lendas do mar - os três avisos do mar

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Lendas do Mar - Os três avisos do Mar de José Jorge Letria

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Page 1: Lendas do Mar - Os três avisos do Mar
Page 2: Lendas do Mar - Os três avisos do Mar

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Os três avisos do mar

Um velho pescador fizera fortuna a retirar do

mar todo o peixe e todo o marisco que ele tinha

para lhe dar. Com o dinheiro ganho, construiu

casas e comprou terras. Quanto mais ganhava,

mais queria ganhar, quanto mais tinha, mais

queria ter.

Num ano em que o peixe começou a escassear, o velho pescador ficou

preocupado e tomou uma decisão: levou comida suficiente para vários dias e subiu a

uma rocha junto do mar para pedir ao Grande Deus das Águas que voltasse a dar-lhe a

abundância perdida. Só dali sairia quando a divindade das águas atendesse o seu

pedido.

O velho pescador era um homem experiente e obstinado e sabia que o Grande

Deus das Águas acabaria por atender os seus pedidos. Ele sempre fora devoto e

dedicado, e quando se fazia ao mar, prometia à divindade oferendas várias, e cumpria

o que prometia.

Dá-me uma faina farta – disse, erguendo as mãos para o céu, e eu acenderei

velas e farei muitos sacrifícios em teu nome.

Enquanto o velho pescador se desfazia em promessas, o mar ia subindo e cercando

o rochedo onde ele se encontrava.

Primeiro passou por ele um pequeno barco de pesca e aquele que o conduzia

gritou-lhe no meio do fragor das ondas:

Tem cuidado, que a maré está a subir. Se não saíres agora, terás dificuldade em

fazê-lo.

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O velho pescador não lhe deu ouvidos e continuou, de olhos postos no céu de

chumbo, a fazer as suas promessas e as suas rezas.

Depois voou-lhe em círculos, rente à cabeça, uma gaivota, que lhe murmurou:

O rochedo em que estás ficou cercado pelas águas. É melhor que partas

enquanto é tempo.

Mas também à gaivota o velho pescador não quis dar ouvidos, continuando a falar

para o alto, para o Grande Deus das Águas, pedindo-lhe a abundância de peixe e a

riqueza que ela traz consigo.

Por fim, saltou das águas um grande peixe-voador, com escamas prateadas, e

disse-lhe:

As águas do mar cercaram-te. Se não saíres agora, estás perdido. Ainda posso

ajudar-te, se tu quiseres. Podes montar-te no meu dorso, e deixar-te-ei em terra, são e

salvo.

Mas também desta vez o velho pescador não deu ouvidos a quem, esforçando-se,

tentava avisá-lo e pô-lo a salvo.

Quando caiu a noite, o velho pescador, já cansado de tanta reza, tentou partir.

Tinha os braços e as pernas entorpecidos pela humidade e os lábios ressequidos pelo

sal. Olhou à volta e viu que estava condenado. O nível das águas subira muito, e ele

não tinha forma de voltar à terra. Aí, levou as mãos à cabeça e dirigiu-se de novo ao

Grande Deus das Águas, desta vez em tom de protesto:

Senhor, não só não atendeste os meus pedidos como me deixaste aqui cercado

sem nada fazeres para eu ser salvo.

Isso é falso – disse uma voz grave e sincopada lá no alto, no meio das nuvens de

tempestade – , mandei um pescador, uma gaivota e um peixe-voador avisarem-te, mas

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a nenhum quiseste dar ouvidos. E assim tem sido toda a tua vida. Só deste ouvidos ao

tilintar das moedas que a abundância de peixe te punha nos cofres. Mas quem dá o

peixe, também o tira.

O velho pescador cobriu o rosto com as mãos e ficou à espera, desolado, que o mar

o levasse, e estava tão cansado que adormeceu. Quando acordou, descobriu, com

surpresa e alívio, que afinal estava vivo. Levantou os braços para o céu, agradecendo

ao Grande Deus das Águas e, desse dia em diante, passou a contentar-se com o peixe

que o mar tinha para lhe dar. Diz-se mesmo que repartiu a sua frota de pesca pelos

pescadores mais pobres e que nunca mais voltou àquele rochedo, nem mesmo para

agradecer ao Grande Deus das Águas os anos que ainda lhe deu de vida. Sempre que

um peixe-voador lhe vinha parar às redes, apressava-se a libertá-lo, murmurando:

Não sei se foste tu que me avisaste do perigo que eu corria, mas se não foste

tu, és pelo menos muito parecido.

José Jorge Letria, Lendas do mar