legitimidade dos atos de desobediÊncia civil do … · 2019. 1. 13. · 2. desobediência civil...
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Synesis, UCP/Petrópolis, v. 5, n. 1, p. 1-15, jan/jul. 2013 ISSN 1984-6754
http://seer.ucp.br/seer/index.php?journal=synesis
LEGITIMIDADE DOS ATOS DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL DO
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA
SOB O ENFOQUE DA TEORIA DE HANNAH ARENDT
THE LEGITIMACY OF THE ACTS OF CIVIL DISOBEDIENCE
OF MOVEMENT OF THE LANDLESS RURAL WORKERS
UNDER THE FOCUS OF HANNAH ARENDT’S THEORY
Resumo: Nesse trabalho será analisado o tratamento teórico apresentado por Hannah Arendt sobre o tema da desobediência civil em sua obra Crises da República, traçando um paralelo com as práticas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra no que tange à legitimidade dos seus atos de desobediência civil. Sob esse enfoque a luta pelo acesso a terra se apresenta como uma possibilidade de que seus integrantes integrem-se em comunidade fundando um espaço público e desenvolvendo sua capacidade de ação política, característica essencial da vida humana. Palavras-chave: Desobediência civil; Hannah Arendt; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Abstract: In that work the theoretical treatment presented by Hannah Arendt on the theme of the civil disobedience in her book Crisis of the Republic will be analyzed, tracing a parallel with the practices of the Movement of the Landless Rural Workers regarding the legitimacy of their acts of civil disobedience. Under this focus the struggle for land comes as a possibility of the members being integrated in community founding public space and developing its capacity of political action, characteristic essential of the human life. Keywords: Civil Disobedience; Hannah Arendt; Movement of Landless Workers.
Artigo recebido em 08/02/2013 e aprovado para publicação pelo Conselho Editorial em 01/06/2013. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil. Pós-graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6972192012882993. E-mail: [email protected].
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1. Introdução
Hannah Arendt aborda o tema da desobediência civil em sua obra Crises da
República reconhecendo o fenômeno como genuinamente norte-americano não só pelo fato
do termo ter sido cunhado pelo ensaio de Thoreau “On the Duty of Civil Disobedience”, muito
embora não concorde que esse exemplo seja o mais elucidativo para justicá-lo, crítica que será
abordada mais adiante conjuntamente ao exemplo de Sócrates, mas também pelo modelo de
constituição firmado pelo povo dos Estados Unidos, que remontado à época do Pacto do
Mayflower, dá ao contrato social, diferentemente do predomínio da vontade da maioria
legitimada pelo sufrágio universal, uma ideia do que chama “versão horizontal do contrato social”.
Essa versão horizontal do contrato social estaria fundada na ideia de consentimento e
reciprocidade, que seria “a única forma de governo em que o povo é unida pela força de promessas mútuas e
não por reminiscências histórias ou homogeneidade étnica...” (ARENDT, 1999, p.78).
Implicando ao conceito de consentimento - que é tácito, dada a não voluntariedade
do assentimento daquele que nasce na sociedade pré-constituída - o conceito de dissidência,
refere que essa é a marca do governo livre, já que todo aquele que sabe que pode divergir e
não o faz, está consentindo.
Nessa linha a filósofa explica que o “Espírito das Leis” norte-americano, assim como
o concebeu Maquiavel, existente e variável a cada povo, é o consentimento no sentido de
apoio ativo e participação em todos os assuntos de interesse público, por meio da associação,
o que dá, em seu entender nicho constitucional ao fenômeno da desobediência civil.
Nesse artigo pretende-se apresentar os argumentos utilizados por Hannah Arendt
para a valoração de um ato como fenômeno de desobediência civil, destacando-o da objeção
de consciência, do ato criminoso comum e enfatizando a problemática da não-violência, o
que, a princípio, seria diferencial entre o contestador civil do rebelde revolucionário. Outro
aspecto relevante é a publicização do discurso de opinião política, que é condição de
possibilidade da associação como pressuposto da desobediência civil - do contrário se
apresentaria outro fenômeno que é a conspiração, no qual o sigilo é determinante.
Sob o enfoque teórico de Hannah Arendt analisaremos ainda o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra, tendo como base artigo publicado por Guterres & Pazello
(2011), numa tentativa de aproximação dos fundamentos teóricos do pensamento arendtiano
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às bases de ação do MST, no que tange à desobediência civil. Para isso será articulado como
elo de ligação o texto publicado por Seixas (2009) e Aguiar (2011).
2. Desobediência civil
Hannah Arendt inicia seu estudo mencionando a dificuldade de que teóricos e
homens da lei enfrentam ao tentar enquadrar a desobediência civil dentro de uma base teórica.
Destaca a literatura desses estudiosos de Sócrates e Henry David Thoreau, exemplos dos quais
extraem como pressuposto à caracterização do fenômeno a predisposição do contestador a se
submeter à pena resultante da lei que viola. Quanto a Sócrates refere que há um equívoco e até
uma ingenuidade desse posicionamento que “marca um retrocesso no modo popular de entendimentos,
talvez mal entendimento, de Sócrates” (ARENDT, 1999, p.52), em razão do sistema duplo de leis
norte-americano que permite que uma lei estadual seja incompatível com uma lei federal.
Nessa circunstância o contestador civil era visto como alguém que testava a
constitucionalidade da lei inferior, apelando para a lei maior. Refere que, no entanto, essa
tentativa doutrinária foi refutada factualmente quando houve uma mudança de foco dos
contestadores que antes pleiteavam por direitos civis passaram a resistir ao movimento bélico,
o que se apresentou como uma desobediência à lei federal. Necessário situar que a Suprema
Corte se recusou a deliberar sobre a legalidade da Guerra no Vietnã sob o argumento da
“doutrina da questão política”, cujo estudo não é objeto desse artigo.
Refere que o aumento de contestadores civis impele, devido ao momento social
político tumultuado nos Estados Unidos, ao equivocado tratamento do governo dirigido aos
manifestantes como criminosos ou a exigir deles o autosacrifício da pena. Arendt critica essa
tentativa em que juristas tentam justificar a desobediência civil pelo viés da moralidade e
legalidade, na forma de objetores de consciência ou daquele que testa a constitucionalidade da
lei, apontando o erro desse argumento por não considerar que o fenômeno da desobediência
civil predica uma qualidade de atuação grupal. Portanto, o ato praticado por um único
indivíduo jamais poderá ser considerado como desobediência civil, tampouco alcançará seu
efeito “o cerne da desobediência civil significativa será praticada por um certo número de pessoas com
identidade de interesses.” (ARENDT,1999, p. 55). Outro detalhe é de que o objetor de consciência
nega-se ao cumprimento direto daquela lei contra a qual se opõe. Já os desobedientes civis
violam leis que não teriam uma razão para tanto, porém o fazem para protestar contra
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regulamentos ou políticas que julgam injustas e não necessariamente contra aquela lei violada.
A isso a filósofa chama de desobediência indireta, uma das características do ato em si.
Apura o conceito de identidade de interesses para uma identidade de opiniões acerca
das quais uma minoria toma posições contra uma política governamental, ainda que essa
encontre apoio em sua maioria. Essa reunião de opiniões que resulta em ato, em forma de
discurso, por sua publicidade encontra sua base sólida no compromisso mútuo, o que lhe dá
crédito, afastando-se, portanto, argumentos morais de cunho individual e “os apelos à mais alta
lei seja ela secular ou transcendental” (ARENDT, 1999, p. 55).
Retomando ao exemplo de Sócrates e Thoreau refere que falta a ambos um
pressuposto fundamental para que seus atos sejam reconhecidos como desobediência civil,
qual seja: o compromisso com os outros no que tange a identidade de opinião. No que diz
respeito a Sócrates, numa análise de Crito de Platão em conjunto com a Apologia, refere que o
problema de Sócrates não foi a contestação das leis em si mesmas, mas aos juízes que não as
interpretaram corretamente. Até porque como ele mesmo mostrou a Crito, as próprias leis lhe
ofereciam o exílio, porém, Sócrates preferiu a morte por uma questão de honra, pois do
contrário teria dado aparência de justiça ao veredicto dos julgadores. Quanto a Thoreau, muito
embora num primeiro momento pareça mais apropriado ao estudo da desobediência civil,
sendo o seu ensaio “On the Duty of Civil Disobedience” responsável pela inserção do termo
“desobediência civil” em nossa linguagem política, suas idéias não dizem respeito ao “campo da
moral do cidadão em relação à lei mas no campo da consciência individual e do compromisso moral da
consciência” (ARENDT, 1999, p. 57). Thoreau não estava preocupado com que seus atos
tornassem o mundo melhor de alguma forma. Ele apenas instigava o questionamento do
homem em relação a sua própria consciência que se apresenta apolítica e desinteressada nas
consequências daquele ato de violação para a sociedade.
Hannah Arendt acrescenta que além das deliberações de consciência serem apolíticas,
elas são sempre expressas de maneira subjetivas e quando Sócrates concluiu que era melhor
sofrer o erro que cometê-lo, ficou claro que era melhor para ele, independentemente da
opinião do povo.
Para ela a questão da consciência e de seus objetores só adquire importância para a
caracterização da desobediência civil se eles resolverem expressar suas convicções em público,
interagindo buscarem um bem maior à sociedade: “Mas não estaremos então tratando com indivíduos
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ou com um fenômeno cujos critérios possam ser derivados de Sócrates ou Thoreau. O que foi decidido in “foro
conscientiae” tornou-se agora parte da opinião pública” (ARENDT, 1999, p.64)
Celso Lafer (1988, p. 232), comentando a filósofa, refere que “É a ação conjunta,
baseada no acordo, que dá credibilidade à desobediência civil, independentemente da maneira como as pessoas
chegaram, individualmente, às suas conclusões”.
Nesse sentido, oportuno apresentar a crítica que Seixas (2009, pp. 213), faz à atual
apatia política de nossa sociedade de consumo, que é cada vez mais lançada à saciedade de
suas necessidades vitais “trancando os indivíduos em suas esferas privadas, intensificando o
individualismo”, critica que o exercício da cidadania hoje mais se apresenta como um modo de
legitimar governos sem que haja a participação por meio de uma influência direta do cidadão
na política.
Segundo o autor a massificação seria um resultado da sociedade consumista e essa
circunstância implicaria em diminuição da capacidade de comunicação entre os homens num
agir político e a construção da esfera pública e que Hannah Arendt nos dá o fundamento
teórico para repensar a prática política:
O reconhecimento das singularidades é essencial para que cada indivíduo apareça enquanto participante da ação política e construam a esfera pública. Mas o que nos faz agir politicamente Como e se possível for, onde estabelecer uma esfera pública Neste aspecto, Arendt desenvolve uma reflexão política de peso fenomenológico, ao privilegiar a aparição dos homens como seres singulares, no mundo humano, onde tudo aquilo que constroem o fazem buscando conciliar sua existência com o espaço comum onde interagem e se comunicam.
Refere ainda que é na obra A Condição Humana que a autora caracteriza a ação como
essencial à existência humana possibilitando o relacionamento entre seus pares e sua inserção
na “teia de narrativas” que organiza e cria os feitos humanos. Os homens se igualam quando,
por meio do diálogo e da ação, buscam começar algo novo, opondo-se aos abusos de
instituições e ao desrespeito dos seus direitos, criando uma novidade que interrompe o status
quo: “O indivíduo ao agir entre os outros revela sua singularidade” (SEIXAS, 2009, p. 212).
Outra diferenciação apresentada no texto de Arendt é entre os conceitos de
contestador civil e criminoso comum. A autora refere que do ponto de vista dos juristas não
existe diferença porque ambos seriam violadores da lei. Mesmo havendo a possibilidade da
participação eventual de elementos criminosos nos movimentos radicais ou revolucionários,
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identificar os dois não seria correto porque tanto criminosos são nocivos tanto nos
movimentos políticos quanto para a sociedade.
Arendt menciona como um dos exemplos, à época, de fatos justificadores de atos de
desobediência civil a política dos Estados Unidos quanto à guerra não declarada ao Vietnã,
esclarecendo que os objetivos dos contestadores pode ser tanto a mudança quanto o
restabelecimento de um status quo.
A publicidade também diferencia um ato de desobediência do crime comum. O
contestador, como já dito, vai a público reivindicar um bem para um grupo e não para si e,
ainda, o que faz com que esse ato adquira importância política não é somente a quantidade de
opiniões no mesmo sentido, mas também pela qualidade das convicções:
Imaginar as minorias contestadoras como rebeldes ou traidoras vai contra as palavras e o espírito de uma constituição cujos idealizadores eram especialmente sensíveis aos perigos de um controle desenfreado da maioria (ARENDT, 1999, p. 70)
Conforme Seixas (2009, p. 215): “Quando os homens estão em dissenso civil no espaço público,
a ação nos parece remeter a um conteúdo ético imprescindível: eles se revelam como agentes ativos e iniciadores de
uma resistência.”
Outra característica de extrema importância da desobediência civil é o uso da não
violência, portanto, não podem ser chamados de rebeldes, muito menos de revolucionários
porque o contestador desobedece à lei, porém aceita a legitimidade da estrutura do sistema de
leis. Esse argumento, segundo a autora, apresentaria maior dificuldade de sustentação do que a
diferença entre o criminoso e o desobediente, colocando como emblemático um dos maiores
exemplos de luta política fundamentado na não violência que foi Gandhi e sua posição de não
aceitação da estrutura legal vigente que era o domínio britânico sob a Índia na época. Tanto o
contestador civil quanto o rebelde revolucionário, no entanto, possuem o desejo de mudar o
mundo.
Nesse sentido a filósofa menciona Locke que a trezentos anos atrás em sua obra “O
Segundo Tratado do Governo” sustentava a celeridade das mudanças, para ressaltar que já naquela
época a mudança era entendida como um fenômeno civilizatório, tanto mais nos tempos
atuais em que o hiato entre gerações já poderia ser sentido, no início da década de 70, em
diferenças de cinco anos de idade, o que antes implicava num padrão de três ou quatro
gerações por século.
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Celso Lafer (1988, p. 227) comenta: “Esta velocidade sem precedentes, que é extrajurídica,
atinge o Direito, afetando a relação entre estabilidade e movimento que tradicionalmente caracterizou a vida do
Direito”.
Arendt refere à lei como um sistema repressivo e necessário para criar o ambiente de
estabilidade que incita a mudança. Uma lei até pode estabilizar e legalizar uma mudança
ocorrida, mas a mudança em si seria sempre resultado de uma ação fora da lei. Exemplifica a
legalização dos direitos trabalhistas, de organizar-se e fazer greves como uma vitória de
décadas de desobediência civil às leis obsoletas:
Se a desobediência civil chegou para ficar como muitos vieram a acreditar, a questão de sua compatibilidade com a lei é de maior importância. A solução disto poderia determinar se a instituições da liberdade são ou não são bastante flexíveis para sobreviverem ao violento ataque das mudanças sem guerra nem revolução. (ARENDT, 1999, p. 74)
A filósofa demonstra sua preocupação em conciliar a desobediência civil com a lei,
referindo que tal feito seria de extrema importância visto que as instituições da liberdade se
apresentariam flexíveis à necessidade de mudança sem guerra ou revolução, ou seja, mantendo
a estrutura e o sistema legal instituído.
É possível observar que ela desliza a questão da violência para a própria circunstância
da mudança, ou seja, por si só a mudança no status quo já traria implícita em seu bojo um efeito
de certo modo violento, independentemente de uma violência performática de membros
contestadores, não sendo necessário que seja instigada por guerra ou revolução. Ressalte-se
que a filósofa repele a idéia de força ou violência como geradora de poder, sendo que esse
emerge do agir conjunto, no que explicita Lafer:
Este sempre resulta do agir conjunto, que se baseia no direito de associação e que requer a comunicação entre as pessoas e, portanto, o direito à informação. Poder não se confunde com força e violência, e estas, quando deixam de ser reação e se convertem em estratégia, são destrutivas da faculdade do agir e, consequentemente, impeditivas do poder que gera e vivifica uma comunidade política (LAFER, 1988, p. 25).
O papel da desobediência civil no fluxo das mudanças nas democracias modernas
determina para Arendt a importância de compatibilizá-la com a lei situando-a num nicho
constitucional e para tanto ela discorre sobre o que seria o compromisso do cidadão com a lei
numa sociedade fundada no consentimento.
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Reconhece que esse consentimento é voluntário na medida em que, numa sociedade
democrática, ainda que os membros que nela tenham nascido não tenham tido oportunidade
de assentir, possam, quando adultos, dissentir “Dissidência implica em consentimento e é a marca do
governo livre; quem sabe que pode divergir sabe também que de certo modo está consentindo quando não
diverge.” (ARENDT, 1999, p. 79)
É nesse consentimento, que para Arendt é compatível com uma versão horizontal do
contrato social, que se funda a legitimidade da desobediência civil, pois o contrato se apoia na
reciprocidade de promessas entre os cidadãos. Para ela a versão horizontal do contrato social
afasta a força do argumento de que o direito ao voto universal imporia a todos à obediência ao
que decidido pela maioria, ao menos no que diria respeito ao formato do espírito das leis do
povo norte-americano.
Discorrendo sobre o tema Aguiar:
A pensadora compreende os movimentos de desobediência civil como movimentos de resistência ao naturalismo nas relações de dominação e à indiferença política das sociedades de massa. Esses movimentos apresentam-se como fundadores de mundo, pois, através das suas organizações, não colocam como centrais apenas a barganha econômica, mas a tentativa de instaurar relações novas, nas quais todos possam se sentir motivados a participar e a cuidar do destino comum. (AGUIAR, 2011, p. 125)
Para ela é justamente essa submissão de uma minoria à lei da maioria sob o pretexto
de liberdade democrática que é o ponto crucial da desobediência civil. É na versão horizontal
do contrato social, na qual há limitação do indivíduo, porém que se mantém o poder da
sociedade, permeado pelo compromisso mútuo de seus indivíduos, o que chama de
reciprocidade, outro conceito importante que desenvolve, ou seja, o conteúdo moral do
consentimento está no compromisso dos cidadãos manterem as promessas feitas
reciprocamente. Essa promessa é a saída humana para a segurança, ordenada do futuro, o que
proporciona condição de previsibilidade “A promessa, observa Hannah Arendt, é a única alternativa
à soberania que se fundamenta no domínio de si e dos outros. É a liberdade dada na condição de pluralidade.”
(LAFER, 1988, p. 222)
Porém a condição de cumprir o prometido se mantém enquanto a reciprocidade não
for quebrada, sendo inúmeros os fatores que podem levar à condição de direito à divergência
por meio de associações de opiniões visando um bem comum. Assim é no direito de
associação que as minorias, especialmente as menos favorecidas, têm seu instrumento de luta
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contra a tirania da maioria “Conforme se verifica, Hannah Arendt liga a desobediência civil a uma
associação voluntária, que tem como objetivo mostrar sua força numérica e diminuir o poder moral da maioria”.
(LAFER, 1988, p. 232).
É, portanto, na possibilidade de associação que Arendt caracteriza o poder que
segundo Lafer (1988, p. 25): “[...] aptidão humana para agir em conjunto, daí advindo a importância
decisiva do direito de associação para uma comunidade política, pois é a associação que gera o poder de que se
valem os governantes”.
Seixas (2009, p. 213), comentando o fenômeno da desobediência civil reconhece que
ele é um importante instrumento contra as “derivas totalitárias”, mas também contra os
regimes totalitários que se fazem presentes em nossas democracias atuais, os quais têm suas
próprias formas de opressão e afastamento do cidadão da participação do espaço público,
como, por exemplo, o lançamento do indivíduo no consumismo desenfreado.
A autora finaliza o texto retomando o equívoco de tratar o desobediente civil como
objetor de consciência ou como um transgressor individual, situação que imputa, em parte, ao
fato de que os debates tenham sido albergados por juristas, para quem seria difícil
contextualizar a ação global, porém reconhece que apesar da desobediência civil encontrar seu
fundamento especificamente, sob o enfoque de sua análise na teoria do consentimento e
reciprocidade, é incompatível com o sistema legal porque uma lei não pode autorizar a
violação de outra lei.
Celso Lafer em sua obra A reconstrução dos direitos humanos refere que o deslocamento
que Hannah Arendt faz para a análise da desobediência civil da esfera jurídica para a política
não é diferente do que tem sido refletido contemporaneamente sobre os temas da resistência à
opressão, contudo ela inova ao sublinhar que a utilização de meios não violentos são os mais
adequados para se evitar a destrutividade do poder e da autoridade e, que a desobediência civil,
como ação política “é uma expressão possível em situações limites.” (1988, p. 235)
3. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
Na segunda parte dessa reflexão será abordada a análise feita no artigo publicado por
Guterres & Pazello (2011), destacando as características principais do movimento numa
tentativa de aproximação do pensamento teórico de Hannah Arendt, nas suas similitudes
quanto à desobediência civil em confronto com o texto de Seixas (2009) e Aguiar (2011).
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Conforme referiram os articulistas Guterres & Pazello (2011), o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST tem sido reconhecido como o maior e mais
importante movimento social do mundo por muitos intelectuais como Noam Chomsky,
István Mészáros, Boaventura de Souza Santos, José Saramago, Oscar Niemeyer. Contudo
devido ao desconhecimento por parte da população dos princípios orientadores, aspirações e
conquistas devido a parcialidade dos meios que transmitem as informações, a tendência é
vincular a existência do movimento a um caráter violento, o que é equivocado. Reforçam os
autores a necessidade de que as ciências sociais estudem mais minuciosamente o fenômeno.
Mencionando a liberdade de associação para fins pacíficos previstos na Constituição
Federal Brasileira, definem o MST como:
[...] uma organização social plural e aberta, destinada a acolher o máximo de pessoas que concordam com seus objetivos e princípios (por isso se diz que é uma “organização de massas”); é, ainda, uma organização que conta com uma base sindical de luta, por sua atuação partir de demandas corporativas específicas (relativas à classe trabalhadora rural), mas que, pela consciência de que suas demandas estão inseridas no contexto geral da luta de classes, possui também um caráter político de alcance muito mais longo; ademais, busca desenvolver as potencialidades dos seus militantes, em uma organização disciplinada e democrática, na qual a educação é vista como a “menina dos olhos”[...]
Como instrumentos de luta do movimento deixam claro que os métodos são
pacíficos, ou seja, não se utilizam de violência para atingir os seus fins, e que além das
ocupações e acampamentos permanentes, nenhuma outra ação extrapola os limites do
ordenamento jurídico brasileiro. Mencionam marchas pelas rodovias, jejuns e greves de fome,
ocupação de prédios públicos, acampamentos nas grandes cidades, vigílias, manifestações e
passeatas. Referem, no entanto, que as principais ações de oposição são as ações de ocupação
e acampamento em terras que descumpram sua função social (entendendo-se essa não apenas
como produtividade, mas também como regularidade das relações trabalhistas, fiscal e
cumprimento das normas ambientais).
Ainda em relação à violência questionam sobre “Quem inaugura a violência?”, o que
respondem citando Paulo Freire:
Como poderiam os oprimidos dar início à violência se eles são o resultado de uma violência? Como poderiam os oprimidos dar início à violência que, ao instaurar-se objetivamente os constitui?
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Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma como violentados, numa situação objetiva de opressão. Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro. Os que inauguram o terror são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os ‘demitidos da vida’, os esfarrapados do mundo. Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos. Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram. Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua. Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes, mas os fortes que os debilitaram (FREIRE, 2004, p. 42-43)
Portanto, a desobediência civil praticada pelo MST, segundo Guterres & Pazello
(2011, p. 330), estaria configurada na medida em que os atos praticados, ausentes de violência,
buscam opor-se à política de Estado claramente “fundiária concentradora em detrimento do
programa de reforma agrária insculpido na Constituição Federal”, política essa sim
inauguradora da violência o que se configuraria uma ilegalidade aparente, relativa, porque a
política Estatal é que estaria a violar a Constituição Federal.
Essas características implicam ao Movimento atos sob o conceito de desobediência
civil naquilo que referiu Hannah Arendt ao diferenciar o contestador civil do rebelde
revolucionário, pois se reveste das características do primeiro e não do segundo, visto que há a
aceitação da estrutura da autoridade e a legitimidade do sistema de leis e princípios
constitucionais, buscando-se a mudança de uma política de Estado, que segundo Guterres &
Pazello (2011), é tradicionalmente fundiária. Desse modo o MST não se enquadraria como
revolucionário ou rebelde, por se fundamentar numa atitude contestatória pacífica.
Guterres & Pazello (2011, p. 328), avançam explanando sobre o ato político do qual
se reveste as ocupações de terras: “Quando há uma ocupação nestes moldes, o intento é o de realização de
um ato político, chamando a atenção da sociedade e do governo para sua inércia no cumprimento da obrigação
constitucional de implementação da reforma agrária”
Esclarecem os autores que quando há uma ocupação de terras que não estejam
cumprindo sua função social, ou fiscal, ou trabalhista e ambiental, a intenção é de praticar um
ato político de denúncia da inércia do poder estatal em cumprir com sua obrigação de
implementação da reforma agrária. Portanto, não se visa à expulsão pura e simplesmente das
terras de seus proprietários, mas sim, dar início aos procedimentos de desapropriação
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realizados pelo órgão governamental competente (INCRA), para que haja a transferência de
sua terra, mediante devida indenização, para o Programa Nacional de Reforma Agrária.
Seguem mencionando que o Movimento preza que nas ocupações e acampamentos
participe toda a família e não apenas os homens, porque o intuito é a formação de uma
comunidade, um espaço público no qual haja integração dos ocupantes estendendo-se a
solução para problemas sociais de outras ordens como do individualismo e do machismo.
Nessa esfera de ação pública que é possibilitada a ação política, Seixas (2009, p. 205)
aborda:
Mas a ação política é uma atividade básica da existência humana. Expressando-se como a dimensão especificamente mais humana, possibilitando aos homens se relacionarem. [...] Configura-se como uma atividade discursiva mediada pela linguagem da pluralidade de opiniões no confronto político e efetivada através do discurso, se instalando assim a esfera pública, notoriamente de caráter político.
É o que Hannah Arendt refere em sua obra Crises da República como condição de
possibilidade de sobrevivência de um membro em comunidade particular o “ser bem-vindo” e se
“sentir à vontade”. Assim, poderia ser traçado um paralelo quanto à ação criativa do MST do
espaço público no qual existe essa integração do indivíduo com o outro, de reconhecimento,
de poder expressar-se e enredar-se discursivamente, o que vai para além da questão da
distribuição de terras: “A condição de sujeito participativo permite ao homem se revelar, o que o torna
singular, e isso o leva a inserir-se no mundo com os outros homens”. (Seixas, 2009, p. 8)
Quanto à localização de um nicho constitucional para a desobediência civil,
mencionado por Hannah Arendt a fim de estabelecer a sua compatibilidade com a lei, o que
ela coloca como um problema de extrema relevância, os autores Guterres & Pazello (2011, p.
332), referem, não exaustivamente, que a legitimidade do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra está calcada em vários princípios constitucionais:
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) ou do pluralismo político (art. 1º, V), de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), do desenvolvimento nacional (art. 3º, II), da erradicação da pobreza (art. 3º, III), da integração da América Latina (art. 4º, § único), da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I), das liberdades de reunião e de associação (art. 5º, XVI e XVII) ou da indistinção entre trabalhos manual e intelectual (art. 7º, XXXII)
Nesse sentido é possível destacar que nossa Constituição Brasileira apresenta uma
base de princípios bastante sólida que, segundo, o articulista albergaria a desobediência civil,
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compatibilidade essa que, para a filósofa estabeleceria um teste de flexibilidade das instituições
de liberdade, de modo a acolherem a demanda por mudanças sem que houvesse a necessidade
de utilização da violência por meio de guerras e revoluções.
4. Considerações finais
Apesar das similitudes apresentadas entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra e o substrato teórico de Hannah Arendt no que diz respeito à caracterização de
seus atos de ocupação de terras como desobediência civil, os autores Guterres & Pazello
(2011, p.336), posicionam-se como sendo insuficientes os seus argumentos para o estudo do
movimento porque sua teoria, sem afastar sua validade, assim como a de Hobbes e Thoreau,
não abarcaria ao entendimento de todos os meandros constituintes e de ação do MST, vez que
se limitariam à denúncia, que é importante, porém não permitiria, no seu entender o ir além,
que seria o anúncio, contestação e libertação, como a realização da busca pela utopia de uma
sociedade mais justa.
Referem que mais apropriados à nossa realidade latino-americana seriam os
fundamentos apresentados por Paulo Freire e Enrique Dussel, em especial o último: “Discute,
no âmbito de sua ética da libertação, quatro questões referentes à factibilidade crítica: a da organização, do
sujeito histórico, da transformação e a da violência”, o que possibilitaria pensar os “novos sujeitos sócio-
históricos” dentre os quais se incluiriam os movimentos populares como o MST.
O aprofundamento dessa questão, de uma base teórica filosófica para a compreensão
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra está sendo objeto de pesquisa e estudo
mais extenso sobre sujeitos políticos, dentro da base conceitual desenvolvida pela filósofa
Hannah Arendt, destacando-se que é possível extrair uma dimensão do estudo dentro do
fenômeno de poder implicante em ação conjunta num espaço público, uma capacidade de
fundar e resistir, para a significação do sentido na esfera da linguagem, no que referiu em seu
trabalho Aguiar:
Arendt situa o poder, portanto, no âmbito da significação, do sentido, na esfera da linguagem e, por isso, não o confunde com a força e a violência. A mudez, a insensatez, o automatismo e o controle são características do terror, da tirania e da necessidade natural, ao passo que o poder é permeado pela legitimidade e pela significação. A aposta arendtiana na política é a aposta de que a capacidade de agir e falar podem se inserir na lógica da fundação de espaços para a liberdade e não da morte, pois, conforme a
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pensadora, “o homem foi feito para começar e não para morrer. (AGUIAR, 2011, p. 127)
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http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/1052/951:
Acesso em 22 jan. 2013.
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LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento
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http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/5226/3944 Acesso
em 03 jan. 2013.