leff, e. - epistemologia ambiental

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    2a edi~ao ' Revisao tecnica de

    Paulo Freire Vieira

    CDD-304.2 11 I (),''~l_!_l -:--:---::-:::-:--------- lndices para cataloqo slsternatlco:

    l'vll'i" .unbicntc : Ecologia humana 304.2

    , - Aspectos ambientais I I >ncnvolvimento econorruco - - b' t I I Tttulo . . , I 3 Gestao am 1en a I ltst11volv1mcnto sustentave . .

    I rll. lnriquc . . . 1 E ri ue Leff. traducao de Sandra 1:pisll'111olog1a ambiental n q . , . . . 2 d - Sao \';dt11111cla; rcvisao tecnica de Paulo Freire V1e11a. - . e . l'aul". ( 'ortcz, 2002.

    Traducao de Sandra Valenzuela

    ll1i>li

  • 0 que e o ambiente? Como conhecemos e apreendemos o ambiente? Em que principios se funda um saber e uma racionalidade ambiental?

    A epistemologia ambiental, mais que um projeto com a finalidade de apre- ender um objeto de conhecimento, e um trajeto para chegar a saber o que e o ambiente, esse estranho objeto do desejo de saber que emerge do campo de extemalidade e de extermfnio para o qual foi enviado, expulso do logocentrismo e do circulo de racionalidade das ciencias, 0 ambiente nao e a ecologia, mas a complexidade do mundo; e um saber sobre as formas de apropriacao do mundo e da natureza atraves das relacoes de poder que se inscreveram nas formas do- minantes de conhecimento. A partir dai, abre-se o caminho que seguimos para de linear, compreender, intemalizar e finalmente dar seu lugar- seu name pr6- prio - a complexidade ambiental.

    Este itinerario iniciou-se no encontro da epistemologia materialista e do pcnsarnento crf tico com a questao ambiental que emerge ao final dos anos 60 como uma crise de civilizacao, Dai veio se configurando um pensamento cpistcrnologico que tomou o ambiente coma seu objeto de reflexao, encontran- do cm sua indagacao que o ambiente sempre ultrapassa os ambitos epistemolo- 1.irns quc tentam nomea-lo, circunscreve-lo, codifica-lo e administra-lo dentro dos c.inoncs

  • incluir diversas matrizes de racionalidade, bem como as diferentes significaco.-s culturais designadas a natureza.

    0 quarto capitulo avanca sabre a construcao do saber ambiental na pcrs pectiva da complexidade que ultrapassa o campo do logos cientffico L~ ah11 um dialogo de saberes onde se confrontam diversas racionalidades e tradi c;:oes. A racionalidade arnbiental como processo de construcao social propiu- as condicoes para internalizar o saber arnbiental no campo das ciencias; 111as. sobretudo, o saber ambiental vai alimentando a construcao de uma nova racionalidade social. 0 sujeito e o discurso do inconsciente subvertem o mare. > estrito da interdisciplinaridade, questionando todo projeto de retotalizac.io d11 conhecimento. 0 saber ambiental e construfdo 110 encontro de racionalidadvs 1 identidades, marcado pela abertura do saber a diversidade, a difercnca \' ;i outridade, questionando a historicidade da verdade e abrindo o campo dll l'o nhecimento para a utopia, ao nao saber que carrega as verdades por vir.

    Finalmente, 110 quinto capitulo, o saber ambiental coloca-se 110 cent rn d11 pensamento e do ser; da um salto fora da epistemologia e da metodoloui.i p.11.1 indagar coma as formas do conhecimento do mundo o constroem e o dcsl 11 w111 Este capitulo explora os caminhos para uma desconstrucao do logoccut 1 i~.11111 r das ciencias, da objetivacao, da coisificacao e da economizacao do rn1111tl11, 11;1111 repensar a racionalidade ambiental a partir das condicoes do ser; nao do lu unr- 111 em geral, mas do ser na cultura nos diferentes contextos nos quais r11dtl1rn r significa a natureza, reconfigura suas identidades e fragua seus mundos d1 v1d11 J\ partir dai, abre-se uma via hermeneutica de compreensao da historia till rn nhccimcnto que desencadeou a crise ambiental, e para a construcao de 11111 suher de urna complexidade ambiental que, para alem de toda ontologia t' d1 tnda cpistcmologia, sc discutc a complexidade emergente nas inter-rclacovx d11 n1 nln-c imcnto c das coisas, da hibridacao dos proccssos 6nticos com os prntTSMlfl t it 111 ifico-rccnologicos, do d ialogo de sabcrcs c da reconst it u ii(l;IZCS de gerar um metodo e Um pensamento integrador do real, para desem- l111(";lf" num saber que vai alem do conhecimento cientffico, para problematizar a '"' it malidade modemizadora que provoca a crise ambiental.

    0 primeiro capi tulo trata do encontro da tematica ambiental com a epistemo- 1, 1.1a nascida do racionalismo critico trances -Bachelard, Canguilhem-, que .,. ristaliza no estruturalismo epistemol6gico da escola de Louis Althusser. I >rnlro dessa perspectiva, prop6e condicoes epistemol6gicas para pensar uma .u t t< 11 lacao das ciencias para apreender a complexidade ambiental a partir da 1111111 icausalidade de processo de diferentes ordens de materialidade e seus obje- l1J, proprios de conhecimento. Trata-se, assim, de pensar as condicoes epistemol6- V" :1.s de uma interdisciplinaridade teorica, questionando as teorias e metodologias .1:.1rn1icas que desconhecem os paradigmas das ciencias, os quais estabelecem, .1 p:111ir de seu objeto e sua estrutura de conhecimento, os obstaculos epistemo- 1111 it os e as condicoes de abertura para articular-se com outras ciencias no cam- 1 '" d;is relacoes sociedade-natureza.

    () segundo capitulo abre um dialogo com Michel Foucault para analisar " .uuhicnte no campo das formacoes te6ricas e discursivas que atravessam o .11111 ll) do ambiental, para inscreve-lo na ordem do saber, para combater as ideologias te6ricas que buscam ecologizar "' onhccimento e refuncionalizar o ambiente, para pensar o saber ambiental 11;1 111dcm da diversidade e da diferenca, rompendo o cfrculo unitario do proje- '" 1H1.itivista, para dar lugar aos saberes subjugados, para abordar a ret6rica d11 .l.scnvolvimento sustentavel e o projeto de ambientalizar as ciencias, e 1111.1 proper a construcao de novas conceitos que fundem uma nova raciona- l 1d.id1 social e produtiva.

    < l icrceiro capitulo e um estudo sabre as transformacoes do conhecimento qur pt 11Hic a questao ambiental dentro do pensamento sociol6gico ea constru- t,.il 1 d:1 .ucgoria de racionalidade ambiental em tres campos privilegiados de w.tl1:.1 o conceito de forrnacao economico-social em Marx, o conccito d1 1.11 1t ui.r] idadc cm Weber e o conceito de saber em Foucault, levando a rcllc x.io ii 11111, .11) d1 qualidade de vida, bem coma a analise da ecologia pol fl il'a l' do 011111111111111 umbientalista. 0 centro deste ensaio ea construcao de 111na La11111 1 L1 1k r.uioualidade ambiental que tome o ambiente inteligfvcl. Scg11i1Hlll Max \\'1-lu'1. :1 r.uionalidade ambiental conjuga a ordem te6rica c tfrniLa i11sl11111w11 1,11 1L1 1.1:.1:1

  • Enrique Leff 18 de novembro de 2000

    Os tres primeiros capitulos foram traduzidos sem modificacoes das edi- coes originais em espanhol. 0 primeiro capitulo foi publicado primeiramente em meu livro Biosociologia y articulaci6n de las ciencias, editado pela Universidad Nacional Aut6noma de Mexico, em 1981. 0 texto que aparece nes- te volume ea traducao da versao revisada que foi publicada em meu livro Ecologia y capital, editado pela Siglo XXI, em 1994. 0 segundo capitulo foi publicado em sua forma original com o titulo "Ambiente y articulaci6n de ciencias", no livro Los problemas del conocimiento y la perspectiva ambiental del desarrollo, editado sob minha coordenacao pela Siglo XXI, Mexico, em 1986 (reeditado em 2000). 0 texto que aparece neste volume e a traducao da versao revisada publicada sob o titulo "Interdisciplinaridad y ambiente: bases conceptuales para el manejo sustentable de los recursos", em Ecologia y capital (3 ed. Mexico, Siglo XXL 1998). 0 terceiro capitulo e a traducao do texto original publicado com o tf tulo "Sociologia y ambiente: formaci6n socioeconomica, racionalidad ambiental y transformaciones del conocimiento", em meu livro Ciencias sociales y [ormacion ambiental (Barcelona, GEDISA/UNAM/PNUMA, 1994), do qual suprimi a parte final sobre "O pensamento sociologico e o saber ambiental na formacao profissional em nivel universitario", e algumas dessas reflexoes foram incorporadas ao quarto capitulo deste livro.

    0 quarto capi tulo e um texto inedito que reformula ideias que foram publicadas em meu livro Saber ambiental: sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder(Mexico, Siglo XXI/UNAM/PNUMA, 1998), as quais inte- grei novas reflexoes, Finalmente, o quinto capitulo e uma revisao para esta edi- ~ao de meu ensaio "Pensar la complejidad ambiental", publicado em La complejidad ambiental (Mexico, Siglo XXI/UNAM/PNUMA, 2000).

    Quero fazer constar meu reconhecimento ao Dr. Paulo Freire Vieira, por seu infatigavel compromisso com a pesquisa, o ensino e a difusao do pensamen- to ambiental, e meu agradecimento por seu estfmulo e generoso apoio para a publicacao deste livro.

    Epistemologia Ambiental 20

  • 1. Na hist6ria humana, todo saber, todo conhecimento sabre o mundo e sobre as coisas tern estado condicionado pelo contexto geografico, ecol6gico e cultural em que produz e se reproduz determinada formacao social. As praticas produtivas, dependentes do meio ambiente e da estrutura social das diferentes culturas, geraram formas de percepcao e tecnicas especificas para a apropriacao social da natureza e da transformacao do meio. Mas, ao mesmo tempo, a capa- cidade simb6lica do homem possibilitou a construcao de relacoes abstratas en- tre os entes que conhece. Desta forma, o desenvolvimento do conhecimento te6rico acompanhou seus saberes praticos. Quando surge a geometria nas pri- meiras sociedades agrfcolas como necessidade de racionalizar a producao da terra por meio de um sistema de medicoes, desenvolve-se o conhecimento mate- matico de suas relacoes abstratas. Desde entao, um objeto de trabalho transfor- ma-se tambem em objeto de um saber empfrico e de um conhecimento conceitual. 1

    2. Estas relacoes entre o conhecimento te6rico e os saberes praticos acele- ram-se com o advento do capitalismo, com o surgimento da ciencia modema e da institucionalizacao da racionalidade economica, Com o modo de producao capitalista produz-se a articulacao efetiva entre o conhecimento cienti fico e .::.

    1. Hist6ria do conhecimento e unidade do saber

    SOBRE A ARTICUlA\AO DAS CIENCIAS NA ,. RElA~AO NATUREZASOCIEDADE

  • producao de mercadorias por meio da tecnologia. 0 processo intemo e expansi- vo da acumulacao capitalista gera a necessidade de ampliar o ambito natural que, como objetos de trabalho, se apresenta ao mesmo tempo como objetos cognosciveis. A necessidade de elevar a mais-valia relativa dos processos de trabalho traduz-se na necessidade de incrementar sua eficiencia produtiva, o que induz a substituicao progressiva dos processos de mecanizacao por uma cientifizacao dos processos produtivos. Mas a ciencia moderna nao se consti- tuiu como consequencia direta da transformacao da natureza em objetos de tra- balho e da demanda crescente de conhecimentos tecnol6gicos. Esta emergiu como resultado das transformacoes ideol6gicas vinculadas a dissolucao do sis- tema feudal ao surgimento do capitalismo que estabeleceram um novo campo epistemol6gico para a producao de conhecimentos: Copernico deslocou a Terra do centre do Universo; Descartes produziu o sujeito da ciencia como princfpio produtor, autoconsciente de todo conhecimento.

    3. Estas condicoes economicas e ideologicas sobre o progresso das cien- cias e das tecnicas nao bastam para entender a emergencia dos corpos te6ricos mais importantes da ciencia moderna, que conhecemos sob os nomes de Newton, Darwin, Ricardo, Marx, Freud ou Einstein. A producao dos conceitos dessas teorias nao provern da aplicacao progressiva de um "rnetodo cientifico" nem da necessidade de fracionar o conhecimento das coisas para elevar a eficacia tecni- ca de sua transformacao como objetos de trabalho; nao e o resultado de uma simples apreensao ernpirica e pragmatica do rnundo externo nem da formalizacao dos dados da realidade. A emergencia destas ciencias e resultado de um longo esforco de producao te6rica a partir do saber herdado, para apreender teorica- mente a materialidade do real; e sobretudo o produto de uma luta teorica e poli- tica no campo do conhecimento para veneer os efeitos do encobrimento ideolo- gico no qual sao gerados os saberes iiteis para a exploracao do trabalho e para o exercfcio do poder das classes dominantes. Copernico e Galileu debateram-se contra a teologia medieval;2 o conhecimento biol6gico teve de desfazer-se das concepcoes mecanicistas da vida;3 o saber marxista e freudiano teve de livrar-se das marcas de conceitualizacoes naturalistas e humanistas sobre a ordem histo- rica e simb6lica.4

    4. A busca de uma unidade do real e de seu conhecimento aparece desde o alvorecer do pensamento filos6fico. 0 reducionismo atomista e a dissolucao platonica da realidade na Ideia abrem o caminho para uma filosofia da ciencia que acompanhou o desenvolvimento hist6rico do conhecimento. No periodo classico, Descartes e Newton5 fundarn em sua filosofia natural a ideia de uma mathese geral coma uma ciencia totalizadora da ordem da realidade.6 Este cam- po fisico-matematico haveria de se estender aos dominios da vida e da socieda-

    Epistemologia Ambiental 22

  • de, constituindo-se o saber destas esferas do conhecimento como a organizacao de um sistema de similitudes e diferencas dos objetos pertencentes a diversas regi6es empfricas: a gramatica geral, a hist6ria natural, a analise das riquezas.7

    5. A fundamentacao do racionalismo kantiano nos juizos sinteticos a priori transformou o discurso analf tico-sintetico da l6gica formal numa 16gica transcendental. A questao tradicional de um acordo entre objeto e sujeito do conhecimento foi postulada entao como a adequacao entre os conceitos puros do entendimento e a heterogeneidade da realidade empirica. Surgiu assim uma nova divisao do conhecimento: de um lado, as ciencias formais e dedutivas fundadas na 16gica e na matematica; de outro, as ciencias empfricas, fundadas na inducao de principios e relacoes gerais a partir da observacao, Isto abriu novas perspectivas na busca de uma unidade do saber por meio da formalizacao de todas as ordens empiricas. Dali haveriam de surgir o projeto positivista e os esforcos por matematizar os diferentes dominios do saber: a economia, a biolo- gia, a linguistica.

    6. A 16gica transcendental fundou o projeto fenomenol6gico no qual o ser do homem transformou-se em princi pio do conhecimento sobre o mundo. A dialetica hegeliana estabeleceu o vinculo necessario atraves da Ideia como prin- cf pio de identidade entre o real e o conhecimento, como unidade entre as cate- gorias do pensamento e a coisa-em-si.8 Desta forma, surge a ideologia do humanismo: o saber sobre os entes parte de uma reflexao ontol6gica do ser do homem, cuja finitude limita o conhecimento do mundo. Este subjetivismo humanista encontra sua contrapartida no idealismo ontol6gico, que reduz as regularidades do real as leis ultimas de uma dialetica universal. A emergencia das ciencias da hist6ria, da vida, da lingua e do inconsciente viria a questionar este projeto filos6fico de fundacao do conhecimento num idealismo, subjetivismo ou humanismo, assim como a busca de uma unidade do real e de sua identidade com o conhecimento.

    7. Por volta do seculo XVIII, transforma-se esta conformacao epistemica do saber. A lingua, a vida e o trabalho deixam de ser uma representacao da realidade empirica; aparecem como a substiincia. os principios e os objetos de certos processes materiais em tomo dos quais se organizam seus respectivos campos de conhecimento. Desta forma, rompe-se o espaco unitario da represen- tacao como unidade da realidade e do saber.9 Durante o seculo XIX e inicio do XX, produzem-se as rupturas epistemol6gicas que fundam o conhecimento cien- tffico dos processos biol6gicos, hist6ricos, linguisticos e inconscientes, questio- nando o projeto de unificacao do conhecimento da vida, do trabalho e da lingua- gem. 0 c6digo genetico, as relacoes de producao, a estrutura da lingua. 25

    Sohre a articulai;ao das ciendas ...

  • 9. 0 saber sobre a realidade produz-se como efeito de praticas sociais dife- renciadas. Desde as etapas pre-linguisticas dos hominideos, a realidade aparece como o meio que e utilizado e transformado por intermedio do conhecimento para a reproducao biol6gica e cultural de uma populacao. A emergencia da fun- c;ao da linguagem nao produz uma correspondencia ontol6gica entre as palavras e as coisas; a referencia norninalista emerge sempre das praticas sociais e produ- tivas da cultura, condicionada pelos efeitos de sentido que se produzem nas praticas discursivas como efeito da ordem simbolica e
  • 0 concreto a que Marx se ref ere nao e nunca a coisa. Apenas e concreto o processo material que e sintese de rmiltiplas determinacoes. E este concreto real

    "O concreto e concreto porque ea sfntese de multiplas determinacoes [ ... ] E por esse motivo que o concreto aparece no pensamento como processo de sintese, coma resultado e nao como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, por conseguinte, tambern o ponto de partida da intuicao e da represen- tacao" .11

    Enquanto a realidade se transforma em objetos de trabalho, afinam-se os meca- nismos preceptivos e simbolicos que participam num saber guiado pelos efeitos praticos imediatos, determinados pelo processo de reproducao/transformacao social.

    10. As ciencias nao apreendem diretamente as coisas empiricas, mas esta- belecem paradigmas teoricos que permitem dar conta das relacoes fundamen- tais entre os processos que constituem seus diferentes objetos de conhecimento. 0 conceito nao e um significante como os outros, e o efeito de conhecimento do real que produz sua articulacao com os demais conceitos que constituem uma teoria cientffica difere dos efeitos de sentido que surgem da articulacao de significantes no discurso inconsciente ou no discurso ideol6gico. E nao porque a ciencia seja externa a ideologia, mas sim pela relacao especifica da articula- 9ao conceitual com o real por meio do objeto de conhecimento de uma ciencia, 0 pensamento conceitual estabelece as relacoes fundamentais do real, enquanto o conhecimento tecnico permite a apropriacao produtiva ou ideol6gica da reali- dade. Desta forma, desde a Antiguidade buscava-se conhecer a substancia ou a "essencia" das coisas. Maso conhecimento do real, entendido como processos materiais, e uma emergencia episternica relativamente.recente, que remonta a fundacao das ciencias da vida, da lingua, da hist6ria e do inconsciente. Desde entao conhecemos o real como efeito de certas estruturas e processos materiais. Mas nem o real nem as formas de seu conhecimento constituem sistemas unita- rios e homogeneos, 0 real aparece constituido por diferentes ordens de materialidade cujas relacoes estruturais sao objeto de ciencias especificas. Ja nao e o existente empiricamente, nem um principio substancial (vida, trabalho, linguagem) o que aparece como objeto de conhecimento; inversamente, a reali- dade empirica surge como efeito de um processo invisivel de producao que s6 pode ser apreendida por meio da producao conceitual de campos te6ricos dife- renciados.

    11. Sao conceitos destas novas teorias cientfficas os que dao conta da pro- ducao do real, "concretude de pensamento, sintese de rmiltiplas determinacoes", E ao que Marx se ref ere quando afirma:

    25 Sobre a articula

  • s6 pode ser apreendido no conhecimento pela producao te6rica dos conceitos que integram a sintese de rmiltiplas determinacoes e constituem, ao mesmo tem- po, o principio do processo real. Esta epistemologia materialista nao se confun- de com o pragmatismo epistemico atribuido a Marx, no qual o conhecimento se reduziria ao saber sobre as coisas enquanto objetos de trabalho, 12 nem a concep- c;ao da producao te6rica como o simples reflexo do real no pensamento.

    12. E neste sentido que o conceito de valor - o tempo de trabalho social- mente necessario - e smtese de rmiltiplas determinacoes - da produtividade da terra, da produtividade do trabalho, da produtividade tecnol6gica -, e como tal se transforma no princi pio de um processo de formacao de valor enquadrado nas relacoes sociais da producao capitalista.13 Desse modo, o conceito de valor, articulado aos demais conceitos que formam o corpo te6rico de 0 capital, da conta do real do processo capitalista de producao e dos efeitos ideologicos que permitem coisificar o existente, fazendo aparecer a realidade como relacoes en- tre coisas. 14

    13. As ciencias, por meio da constituicao de seus objetos te6ricos e de seus sistemas conceituais, dao conta de processos reais. 0 "conceito" de um objeto empirico (uma mesa, um homem) nao e objeto de nenhuma ciencia, Os entes empiricos sao, sem diivida, objetos de percepcoes em que se funda um processo de abstracao de suas "essencias", do que deriva tanto um saber formal como um saber pratico, tecnico, operacional sobre as coisas. Mas os objetos de conheci- mento das ciencias sao as relacoes estruturais do real, dos processos materiais que produzem como efeito todas estas coisas, objetos de um saber empfrico. 0 objeto empfrico e efeito de rmiltiplas determinacoes mas nao e 0 ponto de con- vergencia ou de articulacao das ciencias. A historia, a biologia ou a psicanalise nao discorrem sabre o homem, assim como a fisica e a quimica nao tern a uma mesa por objeto cientffico. Os objetos das ciencias sao trans-individuais, trans- objetais .15

    14. Assim como o objeto da ciencia nao e um objeto empirico - uma coisa -, tampouco existe um sujeito da ciencia na forma de um individuo, um homem, que produziria uma ciencia mediante a observacao e a interiorizacao

  • producao dos conceitos - da concretude do pensamento=-- que permite a apre- ensao cognoscitiva do real. E o objeto das ciencias o que, em seu efeito de conhecimento, "recorta a realidade a partir de diferentes perspectivas", 17 o que faz com que a realidade empfrica que constitui o campo de experimentacao de cada ciencia tenha um "sentido" diferente. Dai que o recurso natural como obje- to de trabalho do processo econ6mico nao se identifique com o ser organico visto como objeto biol6gico, nem que a energia pulsional se confunda com a biol6gica, o instinto com o desejo.

    16. 0 principio ontol6gico do primado do ser sobre o pensamento na teoria materialista do conhecirnento traduz-se no reconhecimento de esferas de materialidade do real as quais correspondern teorias cientificas particulares. Isto nao implica que os conceitos sejam abstracoes ou reflexos de diferentes regis- tros da realidade empirica. A producao de conhecimentos cientfficos nunca e urn campo neutro onde entram emjogo as possfveis combinacoes de ideias e nocoes ou a intersecao de teorias para apreender diferentes relacoes da realidade. Es- tas variantes de um empirismo 16gico ou de um racionalismo idealista esquecem que o efeito de conhecimento de uma teoria cientffica e produto da articulacao intema de seus conceitos, os quais nao sao suscetiveis de desarticular-se e acoplar- se pela acao "livre" do cientista ou do filosofo e pelas necessidades subjetivas, tecnicas e ideologicas de ajusta-los a certas porcoes de realidade empfrica. As ciencias nao se geram por uma construcao ad hoc de objetos de conhecimento a partir de posicoes observacionais. Nao e possivel extrair os conceitos de sua concretude te6rica e faze-Ios funcionar dentro de uma "metodologia sisternica", para produzir uma rnetateoria geral capaz de dar conta de todas as inter-rela- c;oes possiveis da realidade. Ou seja, partir do possi vel logicamente, como princi- pio para uma producao de conhecimentos delimitada por seus campos de obser- vacao. Pelo contrario, e nos limites de sua concretude teorica que surgem as possf veis perspectivas de conhecimento cientifico sobre o mundo. Dai se des- prendem diversas formas de apropriacao subjetiva e de efeitos-sujeito que esta- belecem formas de saber que afetam o processo de inscricao - a praxis - dos sujeitos na hist6ria.

    17. A articulacao dos conceitos de uma teoria constituem a concretude do pensamento. Esta "totalidade" de cada ciencia nao e o reflexo de nenhuma totalidade empirica, Esta posicao nao invalida a necessidade da experimentacao para verificar a teoria e confirmar a correspondencia do conceito com o real. As ciencias, constituidas pela especificidade de seus objetos cientfficos e a integracao de seus conceitos, nao sao rnomentos acabados, mas processos interminaveis de producao te6rica que levam a retrabalhar e concretizar seus conceitos ou inclu- sive a revolucionar teorias inteiras. Mas este nao e um processo intemo imanente

    Sabre a articulacao das ciencias ...

  • Desta forma, Althusser e Balibar buscaram demarcar a hist6ria das cien- cias como uma producao que nao e o simples reflexo do real de seu objeto de conhecimento, nem da hist6ria geral. Mas a hist6ria das ciencias nao deixa de ser uma serie diferenciada de processos de conhecimento com vinculos e efei- tos de di versos sentidos com os processos do "bloco hist6rico"; portanto, e ne- cessario apreender os processos de constituicao e desenvolvimento das diferen- tes ciencias em suas relacoes com os processos hist6ricos, inclusive enquanto estes transformam os conceitos do materialismo hist6rico.

    19. 0 problema que se propoe e entender as interdeterminacoes entre os processos reais e os processos de conhecimento: como a dinamica social deter- mina as formacoes ideol6gicas, e como a producao do saber e

  • 22. A partir da perspectiva hist6rica da acumulacao capitalista, a diversifi- cacao e o avanco do conhecimento nao aparecem como um simples efeito da divisao "natural" do trabalho ou como uma evolucao intema das ciencias. A van- cada a fase da acumulacao extensiva, fundada na exploracao de mais-valia

    3. Articula~ao te6rica - articulacao tecnica

    to - e nunca como um simples reflexo - do processo real hist6rico que produz uma sociedade na qual a forma mercadoria e a forma geral dos produtos do traba- lho. 20 Althusser e Balibar aceitam que "o aparato de pensamento, historicamente constituido, articula-se na realidade social e natural"," mas nao definem as deter- minacoes deste processo. Dif erindo do conhecimento do real ffsico-biologico, onde os limites do conhecimento dependem de uma revolucao te6rica, no campo do real historico, os limites do efeito de conhecimento dos conceitos do materia- lismo historico dependem da transformaciio das proprias formacoes sociais. A mudanca social delimita o efeito de conhecimento dos conceitos hist6ricos. Em- bora os conceitos de modo de producao ou de ideologia sejam a-historicos - validos para qualquer formacao social-, os conceitos de valor e de mais-valia apenas tern um efeito de conhecimento dentro das relacoes capitalistas de produ- cao, enquanto a forca de trabalho constituiu o processo fundamental na producao de mercadorias. A base hist6rica e o fundamento epistemol6gico

  • absoluta, a elevacao da taxa de lucro exigiu um aumento na eficiencia produtiva dos processos de trabalho. Isto foi alcancado logo depois da mecanizacao, com a cientifizacao dos processos produtivos, mediante a producao e a aplicacao integrada de diferentes areas do conhecimento tecnico e cientifico. A articula- c,;ao funcional do conhecimento a producao deu um impulso importante ao de- senvolvimento
  • experimental do objeto real cria uma concepcao erronea sabre a fusao da ciencia com a tecnologia que reduziria o conhecimento do real a um saber, como trans- formar, dominar e controlar objetos reais.

    25. A articulacao da producao te6rica com as praticas sociais de reprodu- \3.o/transforma~ao social (processos de trabalho, processos de sujeicao ideol6- gica) nao e uma relacao determinada par um princi pio metodol6gico de produ- cao te6rica - neste caso pelo metodo experimental das ciencias. A luta social pelo conhecimento determina a producao te6rica a partir do saber imperante num momenta hist6rico, assim como a inovacao tecno16gica e suas aplicacoes sociais e produtivas, ou seja, as forrnas de exploracao da natureza e da forca de trabalho, bem coma os processos de vinculacao ideol6gica e de poder politico.

    26. A luta polftica pelo conhecimento e um debate nao s6 por demarcar as ciencias do campo das formacoes ideol6gicas, mas por dissolver essa represen- tacao imaginaria da ciencia como um processo neutro no qual o conhecimento se desenvolve como resultado de uma 16gica intema conduzida pela acao metodol6gica de sujeitos conscientes ante uma realidade objetiva. 27 E assim que as esferas de materialidade do real se dissolvem na banalidade da realidade empfrica e que a 16gica e a matematica se constituem no sujeito universal do saber. Dai derivaram tambem as perspectivas biolagistas sabre o conhecimento em que o sujeito do saber aparece como todo organismo biol6gico que intemaliza e transforma seu meio ambiente. De forma paralela, surgiram diversas teorias e metodologias coma ferramentas ideol6gico-tecnol6gicas para a unificacao do saber e para suas aplicacoes tecnicas - por exemplo, a Teoria Geral de Siste- mas e as praticas interdisciplinares. 0 carater ideologico deste projeto unificador das ciencias imp5e uma analise cri tic a das propostas surgidas, para ver em que sentido concebem e resolvem o problema te6rico de uma suposta unidade da realidade e do conhecimento.

    27. Antes deveremos propor a problernatica de articulacao das ciencias a partir de uma perspectiva te6rica e nao tecnica, para ver se esta constitui um problema concreto que surge das condicoes da ciencia modema. A necessidade e a possibilidade de uma articulacao cientifica apenas se justifica se existirem processos materiais que, nao podendo ser apreendidos a partir dos conhecimen- tos elaborados por apenas uma das ciencias em seu estado atual ou par um paradigma transdisciplinar e integrador, aparecem como regioes do real onde confluem os efeitos de duas ou mais ordens de materialidade, objeto de diferen- tes ciencias, Esta articulacao cientifica nao pode ser pensada como uma fusao dos objetos te6ricos das ciencias - os quais constituem sua especificidade teo- rica e dos quais derivam seu efeito de conhecimento -, mas como uma

    Sabre a articulacao das ciendas ...

  • I superdeterrninacao ou uma interdeterminacao dos processos materiais dos quais as ciencias produzem um efeito de conhecimento pela articulacao de seus con- ceitos em seus respectivos campos teoricos,

    28. 0 problema da articulacao cientffica nao conceme a constituicao de uma ciencia a partir das formacoes ideol6gicas que a precedem, ou seja, de nocoes provenientes de outros campos do conhecimento antes da fundacao dos conceitos proprios de uma ciencia (isto e, o uso de nocoes da mecanica antes da fundacao da biologia, ou da biologia e da termodinamica antes da producao freudiana dos conceitos psicanaliticos). As relacoes de articulacao entre as ciencias constituidas tampouco se referem a convergencia e complementacao de conhecimento provenientes de diferentes areas do saber na fundacao e de- senvolvimento de novas disciplinas (ffsico-quimica, bioquimica, antropologia ecologica), Tampouco tern por objetivo as aplicacoes tecnicas de diferentes areas do saber para resolver problemas intemos das ciencias ou problemas praticos fora delas, nem as relacoes de um objeto cientffico com outros empiricos. A ar- ticulacao cientifica e um problema alheio as aplicacoes tecnicas e ideol6gicas das ciencias, e concerne apenas a alguns casos de uma problernatica transcientifica e intracientffica, da qual podemos indicar as seguintes formas possiveis:

    28a. A importacao de conceitos de outras ciencias constitui das para serem trabalhados e transformados pelas necessidades internas do desenvolvimento do conhecimento da ciencia importadora. Exemplo disso e a assimilacao de conceitos da linguistica pela psicanalise (por exemplo, significante, metafora, metonimia), para serem trabalhados e transformados na producao de novas con- ceitos (como significancia), que, articulados a dinamica do desejo, dao conta das formacoes do inconsciente, objeto da psicanalise." Este seria um caso de transcientificidade teorica sem articulacao cientffica. Outro caso seria o da im- portacao das teorias da termodinamica e da ecologia para reformular os concei- tos de valor, de relacoes sociais e de forca produtiva no ecomarxismo.

    28b. A articulacao intema dos conceitos e categorias de uma ciencia como pontos cruciais da estrutura de uma teoria em tomo de seu objeto de conheci- mento, onde podem articular-se os conceitos de outras ciencias. Desta forma, a infra-estrutura economica articula-se com a superestrutura ideol6gica, as rela- coes sociais de producao enlacam as praticas produtivas, juridicas, politicas e ideologicas por meio da luta de classes, da formacao de valor, da producao de mais-valia. Esta articulacao conceitual implica, por sua vez, a integracao de processos diferentes no objeto de conhecimento cientifico. Assim, o conceito de valor surge como a sfntese de processos naturais, de trabalho e tecnol6gicos,

    Epistemologia Ambiental 32

  • Sobre a articulac;ao das ciencias ...

    que estabelecem o tempo de trabalho socialmente necessario e de uma demanda, efeito ideol6gico do desejo inconsciente, que permite a realizacao do valor. 0 conceito de mais-valia integra a "infra-estrutura" com a "superestrutura", en- quanto a mais-valia e a articulacao da luta economica e ideol6gica de classes. Esta problemdtica intracientijica e condicao da articulacao entre ciencias, mas nao a implica.

    28c. A confluencia dos efeitos de dois ou mais processos materiais, objeto de diferentes ciencias, num fenomeno empirico, que ao nao pertencer ao objeto de conhecimento de nenhuma de suas ciencias nao implica a inclusao dos efei- tos de um processo no outro nem a articulacao dos conceitos de suas ciencias, Este seria o fundamento te6rico de uma problernatica intercientffica, mas que nao implica um processo de articulacao te6rica. Um exemplo disto sao os estu- dos demograficos ou de natalidade. As taxas de reproducao, bem como os caracteres fisicos e psicol6gicos da populacao, nao silo o objeto de uma ciencia privilegiada. Nestes fenomenos convergem os efeitos de diversos processos determinados pela estrutura genetica de uma populacao, por suas condicoes de adaptacao bio16gica ao meio, pela demanda de forca de trabalho que gera a dinamica economica e pelo desejo de reproducao vinculado as forrnacoes do inconsciente, processos que sao o objeto da biologia, da economia polf tic a e da psicanalise,

    28d. A articulacao dos efeitos de processos materiais objeto de uma ou mais ciencias sabre processos que sao objeto de outra ciencia, o que implica uma deterrninacao de processos extemos que, embora nao sejam absorvidos conceitualmente pela ciencia afetada e nao modifiquem seu objeto de conheci- mento, condicionam de tal forma os processos que analisa, que estes s6 podem ser entendidos como uma superdeterminacao ou uma articulacao dos efeitos dos processos objeto destas ciencias, v arias problemas da articulacao natureza- sociedade exemplificam este caso. A evolucao e sucessao dos ecossistemas na- turais sao objeto da biologia e da ecologia; mas os processos de transformacao dos ecossistemas nao dependem tao-somente das leis biol6gicas da evolucao, senao que se veem afetados e superdeterminados pela apropriacao econornica dos recursos naturais. A reproducao do capital nao pode integrar-se ao objeto da ecologia. Por isso, o estudo da transformacao dos ecossistemas implica a ar- ticulacao dos efeitos do modo de producao sabre os efeitos naturais e biol6gi- cos provenientes da estrutura funcional de cada ecossistema. Este e um caso de superdeterminaciio na articulaciio cientifica. Outro caso de articulacao e o da organizacao cultural das formacoes socioeconomic as "nao-capitalistas", objeto da antropologia e da etnologia. Ali se articulam os efeitos da lingua, da organi- zacao dos ecossistemas em que habitam e das estruturas sociais que constituem,

  • na explicacao de suas praticas produtivas e ideo16gicas. E um caso de co-deter- minaciio multipla no processo de articulaciio,

    28e. A articulacao de duas ou mais ciencias no conceito de um efeito- suporte de seus objetos de conhecimento respectivos. Um exemplo disto e a articulacao do materialismo historico, a psicanalise e a lingufstica na producao de um efeito de sujeiciio, onde se articulam os processos significantes determi- nados pelas formacoes do inconsciente, pelas lutas ideologicas de classe inseridas numa forrnacao social e pelos efeitos simb6licos de uma linguagem especifica. Estas posicoes subjetivas nao sao geradas simplesmente pela dinamica econo- mica do modo de producao (a lei do valor, a mais-valia), preenchendo um lugar predisposto pelas condicoes de um sujeito do inconsciente e da lingua, coma o homem biol6gico e pressuposto da forca de trabalho. A constituicao deste efei- to de sujeicao produz-se na regiao na qual se articulam os efeitos dos objetos do materialismo hist6rico e da psicanalise, enquanto transformacoes na estrutura social afetam as formacoes do inconsciente e seus efeitos sabre as formacoes ideol6gicas. Esta articulacao cientifica apresenta-se entao coma uma interdeterminaciio de processos materiais.

    29. Para que exista articulacao entre ciencias num sentido forte, e necessa- rio que a materialidade de certonivel nao seja mero sustentaculo, pressuposto ou condicao dos processos de outra ciencia - isto e, o ser biol6gico do homem como suporte dos processos de trabalho ou de seus processos simb6licos -, mas que suas estruturas materiais ten ham ef eitos determinantes nos processos em que se articulam - ou seja, os efeitos do modo de producao sabre os pro- cessos ecol6gicos, dos processos significantes nas formacoes ideol6gicas. As estruturas biol6gicas, neurol6gicas e Iinguisticas, que silo condicao da historia, nao se transformam com as mudancas historicas, mas a historia superdetermina os efeitos de suas estruturas: a producao simbolica coma efeito da luta ideologi- ca de classes, a transformacao ecossistemica coma efeito da acumulacao de capital. Estes efeitos determinantes de uma ciencia em outra devido a sua arti- culacao nao significam a existencia de relacoes de constituicao de uma ciencia em outra, em cujo caso a ciencia constituida nae seria senao um ramo ou regiao da ciencia dominante. 0 carater constitutivo da maternatica na fisica e o metodo experimental que vincula a producao teorica com suas aplicacoes tecnol6gicas correspondem a especificidade epistemol6gica da fisica. A diferenca entre as ciencias naturais e as historico-sociais nao consiste em que a relacao constitui- c;:ao e aplicacao da matematica a estas ultimas seja "mais exterior, e portanto, muito mais tecnica"." A diferenca nao e o grau. A forrnalizacao matematica da historia produz mais um efeito ideol6gico que um fundamento de seu conheci- mento cientifico.

    Epistemologia Ambiental 34

  • 31. A partir dos anos 70 surgiram duas problematicas novas no terreno da epistemologia e da metodologia das ciencias: a producao interdisciplinar de conhecimento e sua aplicacao no planejamento do desenvolvimento econorni- co. 0 desenvolvimento das ciencias gerou novas especialidades que se encon- tram na fronteira entre duas ou mais disciplina s (bioffsica, bioquimica, biossociologia) propondo a problematica interdisciplinar. Por sua vez, a aplica-
  • ciplinas cientificas ou de articulacao te6rica das ciencias, e de uma analise cri ti- ca da factibilidade de sua aplicacao a projetos sociais determinados.

    32. A interdisciplinaridade surge como uma necessidade pratica de ar- ticulacao dos conhecimentos, mas constitui um dos efeitos ideol6gicos mais importantes sobre o atual desenvolvimento das ciencias, justamente por apre- sentar-se como o fundamento de uma articulacao te6rica. Fundada num princi- pio positivista do conhecimento, as praticas interdisciplinares desconhecem a existencia dos objetos te6ricos das ciencias; a producao conceitual dissolve-se na formalizacao das interacoes e relacoes entre objetos empfricos. Desta forma, os fenomenos nao sao captados a partir do objeto te6rico de uma disciplina cientifica, mas surgem da integracao das partes constitutivas de um todo visivel,

    33. Desta postura ideol6gica surgem os problemas de aplicacao de um metodo da interdisciplinaridade. No campo teorico, propoe-se a legalizacao de "dados" pertencentes a disciplina "x" a partir das leis que regem a disciplina "y". Mas em que sentido pode a realidade, as coisas, os dados pertencerem a uma disciplina? 0 real pertence a uma ciencia nao como objetos isolados, mas como o conjunto de determinacoes de seus processos, as quais nao podem ser legalizadas por outra ciencia sem ser absorvidas por ela. A importacao anal6gica das leis de uma ciencia para descrever os fatos de uma disciplina nao-cientifica e um caso comum da hist6ria do conhecimento, como o e tambem a adaptacao

  • reza dos elementos ou forca do sistema" - dos quais dao conta as diferentes ciencias e que permitam apreender as causas e formas de articulacao de seus efeitos, bem coma a transformacao destes fen6menos ao modificar-se as estru- turas materiais que OS produzem. Dai 0 carater ideol6gico da utilizacao da TGS como ferramenta conceitual para compreender a dinamica dos processos hist6- ricos. Ao aplicar-se a TGS para analisar os limites do crescimento do sistema capitalista,33 sao extrapolados os efeitos de uma racionalidade social historica- mente determinada, coma se esta fosse uma realidade invariavel, sem explicar as causas do crescimento capitalista que leva ao esgotamento de recursos, nem a possf vel transformacao da racionalidade economica para evitar estes efeitos ecodestrutivos. Assim, as transforrnacoes sociais, as inovacoes cientifico- tecnol6gicas e a construcao de uma racionalidade ambiental permitirao mudar os efeitos do processo produtivo sabre a oferta natural de recursos, o equilibria ecol6gico, o crescimento demografico e a poluicao ambiental.

    35. Os principios desta pratica interdisciplinar como metodologia unifica- dora do saber foram transferidos para o campo da teoria, pretendendo fundar neles o desenvolvimento do conhecimento cientffico. Desta forma surgiu uma pratica transdisciplinar, ou seja, a aplicacao de metodologias de uma ciencia em outro campo cientffico, a formalizacao matematica das ciencias naturais e so- ciais, ou o transplante de conceitos e teorias pr6prias de um objeto cientffico a outro. Neste caso, mais que a arnpliacao de um campo da ciencia, foram geradas ideologias te6ricas que velam o objeto te6rico das ciencias assim "exploradas", constituindo um obstaculo para o conhecimento.34 Dai todos os "ismos" surgi- dos no campo da ciencia: mecanismo, biologismo, economicismo, formalismo etc. 0 problema da articulacao das ciencias nao consiste em forjar um fio con- dutor, uma metodologia, conceitos ou estruturas anal6gicas comuns ou uma metalinguagem que permita integrar e unificar o conhecimento da realidade. 35 A materia e di versa e s6 pode ser apreendida pela especificidade conceitual dos corpos te6ricos que dela dao conta. 0 importante e analisar coma confluem num processo determinado os efeitos de diferentes estruturas do real, onde o concreto s6 e analisavel a partir da especificidade de cada uma

  • ....

    desentranhar as estruturas profundas, "inconscientes", determinantes do pro- cesso cultural. 36 0 metodo estruturalista apresenta duas limitacoes fundamen- tais na perspectiva do conhecimento cientffico: por um lado, a impossibilidade de fazer surgir as estruturas fundamentais de um processo a partir das homologias formais de suas manifestacoes fenomenol6gicas; por outro, a reducao da expli- cacao destes processos a uma estrutura gerativa ou determinante - por exem- plo, a explicacao dos processos epigeneticos e de desenvolvimento a partir do

    . DNA; a explicacao da hist6ria a partir das estruturas economicas.s? Esta formalizacao das ciencias, correspondente ao estado de elaboracao de analises estruturais comparativas, difere da articulacao das esferas de materialidade com que o materialismo hist6rico articula as relacoes sociais de producao com o processo de desenvolvimento das forcas produtivas, bem como com as forma- coes ideologicas e as regras de casamento que normatizam a reproducao social. Tambem difere das respostas possi veis que pod em surgir para o problema da interdeterminacao das estruturas geneticas, as regras de organizacao cultural, as relacoes sociais de producao e as formacoes do inconsciente, a partir da perspectiva da articulacao das ciencias correspondentes a cada uma dessas esferas de materialidade e a suas respectivas ordens de racionalidade.

    37. Outra solucao ideologica para o problema da articulacao dos diferentes nf veis de materialidade do real prov em da bus ca de um principio originario e constitutivo destes que, ao mesmo tempo, funcione coma princfpio transcien- tifico, capaz de unificar ou articular as ciencias e de servir-lhe como metodo para o desenvolvimento do conhecimento. Este projeto de unificacao transdis- ciplinar do conhecimento produziu-se por diferentes caminhos. Porum lado, apa- rece na forma de principios gerais abstratos (lei de unidade de contraries, leis de organizacao da rnateria)." E neste sentido que foi formulado o materialismo dialetico coma as leis fundamentais da materia e do pensamento cientffico. No entanto, a concepcao dos fenomenos fisicos e biol6gicos em termos de uma contradicao dos elementos constitutivos de suas estruturas foi sobrepujada pela producao de seus objetos e conceitos cientificos; no social, o principio de contra- dicao so pode ser concretizado no conceito de luta de classes articulado aos conceitos que dao conta das determinacoes de uma formacao social na qua! se inscreve e as contradicoes discursivas das formacoes ideol6gicas.

    38. A historia recente das ciencias gerou paradigmas transdisciplinares e enfoques metodol6gicos sabre sistemas complexos que oferecem a possibilidade de integrar diversos processos materiais e ordens do real (a termodinarnica de sistemas abertos de Prigogine). Entretanto, o projeto transdisciplinar caracteri- zou-se tambem pela transferencia anal6gica dos conceitos e teorias pertencen- tes a uma ciencia para diferentes disciplinas, gerando um efeito ideo16gico ou um

    Epistemologia Ambiental 36

  • reducionismo do saber devido a aplicacao dos conceitos cientfficos fora do campo especifico do real no qual se produzem seus efeitos de conhecimento. A especificidade e a "natureza" dos processos de que dao conta as diferentes ciencias nao podem ser entendidas como entes ordenados em niveis hierarqui- cos nos quais seus processos possam ser absorvidos pelo nivel "superior", ou ser reduzidos a seus ni veis fundamentais numa ordem epigenetica de evolucao da materia, Como objetos cientfficos, o ffsico, o biol6gico, o Iinguistico, o hist6rico, o inconsciente, sao aut6nomos, e nao formam uma hierarquia fundada em sua genese historica. A antropologia e a historia nao podem ser reduzidas a uma psicologia, assim como esta nao e, em ultima instancia, uma biologia. Os conhe- cimentos produzidos numa ciencia de ordem "superior" ou com uma capacidade de cornpreensao transdisciplinar podem afetar o desenvolvimento de diversas disciplinas, impulsionando a ampliacao e generalizacao de suas leis e regularida- des, sem implicar uma importacao de conceitos ou uma articulacao de seus objetos cientfficos. Desta maneira, a termodinamica de sistemas abertos coloca a possibilidade de se unificar a ordem fisica e biologica e torna-se possivel trans- ferir os conceitos de entropia e as analises do fluxo de energia para o campo da economia e da antropologia; da mesma forma, procurou-se estender as leis da genetica e da evolucao biol6gica para o campo da hist6ria e da sociedade, geran- do uma sociobiologia.39 Mas nem o biol6gico se reduz a uma termodinamica generalizada," nem e possivel explicar a hist6ria como um processo de evolucao biol6gica. Nao existe uma metalinguagem capaz de fundir ou unificar, por meio de um nivel geral de formalizacao, as especificidades conceituais de cada cien- cia para apreender as diferentes ordens de materialidade do real.

    39. 0 projeto interdisciplinar proposto pela TGS di assim continuidade ao das filosofias que tentaram encontrar um princf pio unificador da realidade empirica e uma unidade conceitual das ciencias. Este reaparece coma uma "revolucao metodol6gica" que busca descobrir os princfpios ff sicos gerais de evolucao da materia a partir da auto-organizacao da pltysis, fundado numa lei geral de desor- dem-interai;oes-ordem-organizai;ao.41 Morin critica a Teoria Geral de Sistemas por dessubstancializar os objetos cientfficos e busca descobrir a "natureza da natu- reza" no princfpio da generatividade organizacional, que postula coma principio metodol6gico a emergencia das diferentes formas de organizacao da materia. Contudo, Morin nao consegue concretizar as leis deste princfpio material generativo da physis, nem especificar as estruturas materiais que vao se constituindo no referido processo. Desse principio nao se derivam leis gerais da materia nem leis particulares de cada um de seus niveis organizacionais. Esta ea limitacao de toda tentativa por fundar uma categoria geral, um metodo onicompreensivo ou uma teoria transdisciplinar para articular o ffsico, o biol6gico e o social.42

    39 Sohre a articulacio das ciencias ..

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    40. A descoberta das bases geneticas dos sisternas vivas levou a concebe- las como uma estrutura fundamental, deterrninante dos processos evolutivos. Os fenomenos de desenvolvimento apareciam assirn fundados na reproducao de certas estruturas geneticas conformadas ao acaso, de seu desenvolvimento ontogenetico, de seu processo evolutivo, da producao ao acaso de mutacoes geneticas e de sua selecao por assimilacao ao rneio arnbiente. 0 processo teleonomico assim constituido afasta-se das concepcoes vitalistas e animistas, enquanto a emergencia de novidades bio16gicas nao esta predeterrninada nas estruturas geneticas iniciais OU por um fim predestinado, "pois se 0 DNA e 0 suporte molecular da ernergencia, e por si rnesrno inerte e desprovido de proprie- dades teleonomicas"." As mutacoes produzidas ao acaso conformam novas estruturas que determinam o aparecimento de especies e processos que nao estao contidos nas estruturas previas, Por outro lado, as estruturas geneticas, ao combinar-se com as proteinas alostericas e por meio de "novas redes de coorde- nacao" em nf vel celular, dao lugar a ernergencia de novos processos funcionais no desenvolvimento morfogenetico dos organismos vivas. Desta forrna, consti- tuem-se os diferentes ni veis epigeneticos no desenvolvimento da materia viva. 44

    41. As descobertas da biologia molecular e da genetica moderna permitiram, desta forma, combater o individualisrno metodol6gico que teria surgido da nocao de "adaptacao do mais apto", A selecao natural apareceu como efeito de popula- c;oes definidas por suas estruturas geneticas, e nao como a ac;ao de individuos biol6gicos sabre seu meio ambiente. Esta descoberta fundamental no campo da biologia alimentou, porem, as ilusoes reducionistas de en tender os ni veis epigeneticos de desenvolvimento deterrninados por urna estrutura genetica" ou pelos mecanis- mos pr6prios do desenvolvimento biol6gico.46 Contudo, corn as contribuicoes da topologia, a morfogenese avancou na formalizacao dos processos epigeneticos."

    42. Para o estruturalismo genetico, a ordem simb6lica, cultural e hist6rica emerge como ni veis epigeneticos superiores de organizacao, analogamente a seu surgirnento no desenvolvimento biol6gico.48 Assim, a teoria biol6gica constitui-se em teoria geral de diferentes esferas do real. Nesta epistemologia biologista, o sujeito apreende o objeto de conhecimento num processo de assimilacao-transfor- macao de seu meio ambiente, de forma analoga a funcao evolutiva dos organisrnos vivos em seu meio ecol6gico, desconhecendo os efeitos no processo de desenvol- virnento psicol6gico, da lingua,

  • 45. Toda possf vel articulacao entre ciencias depende do sentido de seus conceitos te6ricos, do que derivam seus efeitos de conhecimento, as possibili-

    5. Articula~ao de conhecimentos e materialismo hist6rico

    tentativa de sfntese te6rica, capaz de tracar as determinacoes filogeneticas do com- portamento social.49 0 projeto de Wilson funda-se em sua certeza de que "a hist6- ria esta guiada ate um ponto mais que desprezi vel pela evolucao biol6gica que a precedeu [e que] as direcoes que pode tomar esta mudanca e seus produtos finais estao sufocados pelas predisposicoes do comportamento geneticamente influen- ciadas, que constituiram as primeiras, simples adaptacoes dos seres humanos pre- letrados", Embora considere que "a religiao e a estrutura de classes sao transmutacoes tao grandes que s6 os recursos combinados da antropologia e a hist6ria podem esperar (descobrir) sua filogenia cultural a partir dos rudimentos do repert6rio dos cacadores-coletores [pensa que] ainda estes poderiam com o tempo submeter-se a uma caracterizacao estatistica com a biologia'Y"

    44. Nao ha duvida de que as caracteristicas biol6gicas do ser humano im- puseram, atraves de toda a historia, constrangimentos a seu comportamento social. Estas condicoes silo um pressuposto da evolucao cultural e da historia e podem ser entendidas como a limitacao do cam po onde se manifesta o possi vel da cultura e da hist6ria. Mas o caracteristico das sociedades humanas sao os efeitos da lingua, do inconsciente e da hist6ria sobre estas bases geneticas que geram processos que nao estao "guiados" por suas condicoes filogeneticas. A cultura ea hist6ria nao sac deterrninacoes sihcronizadas e diacronicas do desen- volvimento evolutivo das estruturas geneticas que deram origem ao Homo sapiens. Mais ainda, a emergencia dessas novas esferas de materialidade - a lingua, a organizacao social, as forrnacoes do inconsciente - fazem da hist6ria um processo que determina a estrutura genetica das populacoes biologicas, en- quanto seus efeitos sobre toda formacao social condicionam a transtormacao de seu meio ambiente, assim como a conforrnacao de regras de casamento e das relacoes sociais entre os homens, de onde surgem suas normas de fecundidade, de reproducao social e de evolucao biologica, 0 objeto da Antropologia e do Materialismo Hist6rico sao os processos de reproducao/transformacao das cul- turas e das formacoes sociais, distanciados de uma preocupacao pela origem filogenetica de suas estruturas.51 0 estudo das praticas sociais e dos processos simb6licos que caracterizam a hist6ria nae encontra um denominador comum no "cornportamento social", entendido como as operacoes adaptativas de um individuo ou de uma populacao biol6gica a seu meio ambiente.

    41 Sabre a articulacao das ciencias ...

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  • pensar o todo concreto de pensamento e a realidade coma uma articulacao dos processos especificos de cada esfera, ou coma a resultante da visao do todo a partir da perspectiva de alguma de suas instancias ou registros. Mas, como Marx indica na Introduciio de 1857, o efeito de conhecimento nao surge da conver- gencia das visoes possi veis sabre um objeto de conhecimento, masque e o todo concreto, articulado aos conceitos de uma teoria, o que constitui o princfpio do conhecimento do processo real, objeto do materialismo hist6rico e das praticas diferenciaveis e articuladas do todo. A producao do conhecimento concreto "sm- tese de rmiltiplas deterrninacoes" nao e uma integracao gestaltica de percep- c;oes, nem a integracao das homologias estruturais provenientes da formalizacao dos elementos empiricos das diferentes regioes que engloba o objeto de conhe- cimento da hist6ria.

    48. A problematica marxista da articulacao intema das instancias do todo social para dar con ta do processo de reproducao cultural nas "sociedades primi- tivas" levou a utilizar os fundamentos do estruturalismo e do funcionalismo sob o predominio da "deterrninacao em iiltima instancia do econornico", como fia- dor do principio do materialismo hist6rico. Neste sentido, Godelier deslocou esta problematica para a busca - em cada caso hist6rico e em cada modo de producao - da estrutura que adota a funcao dorninante como relacoes de pro- ducao. Desta maneira, postulou que nas "sociedades primitivas" as relacoes de parentesco, a religiao e as relacoes imaginarias funcionam coma infra-estrutu- ra, e que tanto o pensamento como a linguagem sao partes desta, enquanto fun- cionam coma forcas produtivas. A distincao ontol6gica entre infra-estrutura e superestrutura transforma-se, dessa forma, numa diferenciacao funcional.57

    49. Nesta perspectiva teorica, o que importa e descobrir a instancia que funciona como relacao de producao, de maneira que "todas as relacoes sociais aparecem coma tantos aspectos e efeitos destas". Mas esta concepcao do fun- cionamento do social deixa sem resposta o problema de saber coma, nos diferen- tes estadios historicos, o complexo de processos que conformam a organizacao social se produz como um efeito das estruturas ecologicas, as regras da cultura e as relacoes de producao, que em cada caso ocupam a funcao dominante na infra-estrutura, assim como as deterrninacoes das esferas da superestrutura - religiao, mitos, representacoes simb61icas e formacoes discursivas - e seu fun- cionamento como infra-estrutura por meio do "arcabouco" de praticas produti- vas, ideol6gicas e polfticas de uma Iormacao social. Desta forma, a complexi- dade cultural e reduzida aos efeitos de uma estrutura dominante, sem dar plena conta da articulacao hist6rica das diferentes esferas de materialidade que lhe conferem sua especificidade a uma racionalidade social determinada. 0 pensar

    Sobre a articulacao das ciencias ...

  • as "superestruturas" e os processos ideol6gicos como aspectos constitutivos das relacoes sociais de producao ajuda a romper com um esquematisrno estrutural imaginario da teoria rnarxista; no entanto, esta relativizacao funcionalista nao explica a articulacao de estruturas invisi veis que produzem o processo de produ- cao/reproducao/transformacac social em suas relacoes com a cultura e com a natureza.58

    50. A soma das visoes parciais do processo hist6rico nao produzem a integracao dos conceitos especificos das diferentes regioes ou instancias do todo social. Os conceitos do materialismo hist6rico ja sao conceitos que articulam as praticas diferenciaveis dessas regioes e dos efeitos de seus processos materiais. 0 conceito de valor nao s6 integra os processos naturais, os de trabalho e os cientifico-tecnologicos para transformar-se em princfpio do processo economi- co. Toda formacao de valor, o estabelecimento de um tempo de trabalho social- mente necessario, implica tan too desgaste de energia da forca de trabalho como a realizacao das mercadorias produzidas. Neste sentido, o processo ideol6gico produzido pelas posicoes subjetivas dos agentes sociais integra-se ao processo economico, gerando sujeitos de consumo, traduzindo o desejo numa demanda de mercadorias que permite a realizacao do valor.59 Desta forma, sea constitui- c;ao biol6gica da forca de trabalho apresenta limitacoes para a elevacao da mais- valia absoluta, a acumulacao capitalista pode prosseguir seu ritmo de expansao gracas a producao de uma rnais-valia relativa proveniente do processo de inova- c;ao cientifico-tecnologico, e da possibilidade de realizar esta producao em ex- pansao, agindo sobre a insaciabilidade do desejo inconsciente. 0 conceito de mais-valia indica a luta de classes no processo de trabalho," e o conceito de luta de classes atravessa todas as praticas sociais: as produtivas e de consumo de mercadorias; as praticas te6ricas e tecnol6gicas, as discursivas.61

    51. 0 materialismo hist6rico nao e, portanto, a articulacao das "ciencias" de suas diferentes "instancias" e "regioes": a economia politica nao e a ciencia da estrutura produtiva, ante a psicanalise como ciencia da superestrutura ideo- 16gica, a antropologia de sua organizacao cultural e a ecologia de suas bases naturais. As formacoes ideol6gicas nao pertencem a uma regiao do imaginario desvinculada do processo economico, o que impediria a compreensao da auto- nomia relativa de cada regiao e romperia a interdeterrninacao

  • sustentabilidade. Isto obriga a rediscutir o problema da articulacao de instancias e regi6es rel a ti vamente autonomas, ja que a superestrutura ideol6gica, polf tica e juridica, assim coma as bases ecol6gicas e culturais, sao, mais que condicoes gerais da producao, parte constitutiva do processo economico, processos ativos no desenvolvimento das forcas produtivas.

    52. As diferentes praticas sociais nao sao processos autonomos a partir dos quais se integra a realidade do todo social. Pelo contrario, e o processo comple- xo da reproducao/transformacao do modo de producao, que gera um conjunto de praticas diferenciadas coma efeito da divisao do trabalho e das manifestacoes da luta de classes em cada uma dessas esferas. Essas praticas nao sao produzidas livremente, e sim encaixam-se num cam po do possi vel que depende das deter- minacoes estruturais do modo de producao e das condicoes que surgem dali para as praticas politica, teorica, produtiva e discursivas.

    53. 0 modo de producao capitalista, o objeto do materialismo hist6rico, e um modelo abstrato sobre o real. Mas seu efeito de conhecimento nao depende tao-somente da possibilidade de completar a teoria do capital por meio de uma analise empirica, por conceitos observacionais e por nocoes intermediarias en- tre o nivel te6rico e a realidade concreta. De cada modo de producao derivam leis e condicoes gerais que organizam uma forrnacao social, ou seja, as determi- nacoes que permitem conhecer as situacoes concretas, Estas determinacoes ge- rais devem ser completadas nao s6 por seu ajustamento as diferentes condicoes de desenvolvimento e adaptacao do modo de reproducao ao meio geografico ea hist6ria cultural de cada forrnacao social que dao especificidade a estas leis gerais, como efeito de sua articulacao com as determinacoes de outras forma- c;oes sociais - a articulacao de modos de producao e formacoes socioecono- micas. Neste sentido, a nocao de formacao social enriquece e toma mais con- cretas as determinacoes abstratas do modo de producao, para dar conta do pro- cesso de constituicao, de reproducao ou de transformacao da sociedade.62 En- tretanto, a teoria da producao deve ser completada incorporando esferas de materialidade que ficaram fora da ordem complexa de condicoes de sustentabi- lidade ecol6gica que determinam a reproducao do modo de producao capita- lista e de toda forrnacao social onde convergem as hist6rias diferenciais das linguas, a heterogeneidade dos sistemas ecol6gicos ea diversidade de organi- zacoes culturais. Toda formacao social constitui, assim, "sinteses de rmiltiplas determinacoes".

    54. A nocao de formacao economico-social (FES) surgiu no pensamento marxista como uma necessidade de subtrair as tendencias economicistas e mecanicistas que buscavam dar conta da complexidade da organizacao culture.

    45 Sabre a articulacao das ciencias ...

  • em termos de uma articulacao de modos de producao, fundado nas estruturas produtivas e nas relacoes sociais de producao.P Este problema te6rico nao se resolvia fazendo funcionar as relacoes de parentesco, a lingua ou a estrutura ecol6gica do meio geograficc como relacoes sociais de producao
  • 59. Neste sentido, a reproducao do modo de producao capitalista depende das condicoes dos diferentes meios ecol6gicos e culturais - gerando forrnas desiguais de desenvolvimento, de acumulacao, de localizacao e de especia.iz i-

    "nao e 0 modo de producao (e seu desenvolvimento) que 'reproduz' a formacao social e 'gera' de alguma forma sua hist6ria; [ ... j e a hist6ria da forrnacao social que reproduz (ou nao) o modo de producao no qua! se baseia e explica seu desenvol- vimento e suas transformacoes. A hist6ria da forrnacao social, isto e, a hist6ria das diferentes lutas de classes que ali se integram e de sua 'resultante' em conjunturas hist6ricas sucessivas". 66

    entre certas relacoes sociais de producao e desenvolvimento das forcas produti- vas. Todo MP e toda FES estabelecem conexoes com a natureza por intermedio dos objetos e meios "naturais" de trabalho dos processos produtivos que ali se desenvolvem. Contudo, ha uma dificuldade nao resolvida para compreender as determinacoes do meio na estruturacao das relacoes sociais e tecnicas de produ- c;ao e para incorporar os processos ecol6gicos nos processos produtivos globais e no desenvolvimento das forcas produtivas da sociedade.

    57. Talvez o esforco mais acabado por construir uma categoria de analise sociol6gica a partir do conceito de FES e o realizado por Fossaert.65 Este autor constr6i, a partir de uma caracterizacao do tipo de trabalhadores, proprietaries, meios de producao, que constituem um conjunto de modos e 16gicas de produ- cao, toda uma tipologia de FES fundada em sua combinat6ria. Entretanto, esta diversidade tipol6gica nao chega a romper com certo esquematismo e estatismo da analise estrutural, que dificulta a analise dinamica dos processos de mudan- ca, a transicao para novas racionalidades produtivas e a incorporacao dos pro- cessos culturais e ecol6gicos que participam na conforrnacao das relacoes de producao e das forcas produtivas que devem caracterizar as forrnacoes sociais que funcionam e produzem dentro de unidades ~mbientais determinadas.

    58. 0 processo de reproducao/transformacao do modo de producao capita- lista, como um processo em escala mundial, depende das formas particulares que ado ta seu predominio em nf vel nacional, ou seja, de sua articulacao com o comple- xo de formacoes sociais diferenciadas, que por meio das relacoes de poder regu- ladas pelo Estado constituem uma "formacao social nacional". Esta manifesta-se como um complexo de praticas no nivel produtivo e no superestrutural, como o efeito das lutas de classes que refletem por meio dos aparelhos de Estado a deter- rninacao exercida pelo modo de producao dominante. Por outro lado, essas rela- coes de poder nao resultam de uma deterrninacao das estruturas que sustentam os atores sociais passivos. Neste sentido, Balibar assinala que

    47 Sobre a art.culacao das ciencias ...

  • 60. Natureza e sociedade sao duas categorias ontol6gicas; nao sao nem conceitos nem objetos de nenhuma ciencia fundada e, portanto, nao constituem os termos de uma articulacao cientifica. Estas categorias estao presentes tanto na ciencia bio16gica como no materialismo historico. Na primeira, o processo evolutivo se produz pela determinacao genetica das populacoes biol6gicas e de seu processo de selecao-adaptacao-transformacao em sua interacao com o meio ambiente; na ciencia da hist6ria, a natureza aparece como os objetos de trabalho e os potenciais da natureza que se integram ao processo global de producao capitalista e, em geral, os processos produtivos de toda formacao social, como um efeito do processo de reproducao/transforrnacao social.

    61. Podemos distinguir quatro problemas nas relacoes entre a biologia e a hist6ria:

    61a. A producao de conhecimentos sabre os processos fisicos, a evolucao biol6gica ou a organizacao ecol6gica da natureza. Neste sentido, o objeto de conhecimento e externo a historia, mas 0 conhecimento sobre tais processos e um processo hist6rico de producao cientffica.

    6lb. 0 conhecimento de processos biol6gicos (evolucao e transformacao ecossistemas naturais), onde o objeto natural esta superdeterminado por proces- sos socio-historicos. Neste sentido, a articulacao entre natureza e sociedade - entre a ciencia biol6gica e o materialismo hist6rico - da-se coma a articulacao dos efeitos de ambos os objetos te6ricos num processo real: a transformacao concreta dos ecossistemas e as condicoes ecologicas da producao.

    6lc. A absorcao da natureza no processo capitalista de producao, enquanto, como objetos do trabalho, de recursos e fenornenos naturais ou de produtividade ecologica, a natureza incorpora-se tecnologicarnente ao processo produtivo.

    61d. 0 estudo de uma formacao social "nao-capitalista". Esta analise faz convergir tanto os efeitos do meio ambiente particular na divisao do trabalho, da linguagem e da estrutura social, quanto os efeitos da sociedade capitalista por meio do intercambio mercantile sua integracao por intermedio dos aparelhos do Estado a sociedade nacional.

    6. Biologia, hist6ria-natureza e sociedade

    c;ao dos capitais em escala mundial -, bem como do efeito das lutas de classes que ali se desenvolvem por transfonnar a lei absoluta do valor e do mercado e constituir uma racionalidade alternativa.

    Epistemologia Ambiental 48

  • 62. Cada ciencia funda os conceitos nos quais se absorve "o natural" e "o social" em seu objeto de conhecimento. Os processos naturais estao presentes no materialismo hist6rico na nocao de objeto de trabalho e nos conceitos de valor e renda diferencial, que articulam os processos naturais com o processo de producao de mais-valia. Como nao existe uma ciencia geral da hist6ria, nenhu- ma nocao geral pode servir como conceito cientifico da articulacao entre natu- reza e sociedade. 0 processo de trabalho, a transforrnacao do objeto de trabalho em valor de uso, e a condicao geral de todo modo de producao, mas, em sua generalidade, as nocoes de trabalho ou de valor de uso nao podem explicar as determinacoes especfficas dos processos de trabalho de um modo de producao, nem suas consequencias na transformacao da natureza.

    63. Os processos naturais sao objeto da biologia enquanto fenomenos evolutivos e de desenvolvimento ontogenetico. Desde o momenta em que a na- tureza - do meio ambiente ate a natureza organica do homem - e afetada pelas relacoes sociais de producao, estes processos biol6gicos sao superdetermi- nados pelos processos hist6ricos em que o homem ou a natureza se inserem. Fenomenos parciais da natureza podem constituir objetos de conhecimento de diferentes disciplinas biol6gicas (a fisiologia de plantas, o metabolismo de ani- mais ou a caracterizacao dos ecossistemas). No entanto, a partir do momenta em que a natureza se transforma, num processo geral, em objeto de uma ciencia - a evolucao biol6gica, a dinamica dos ecossistemas -, esses objetos biol6gi- cos devem incluir os efeitos das relacoes sociais de producao que os afetam. E esses efeitos devem ser considerados em suas determinacoes s6cio-hist6ricas especificas, nao na reducao do social e da hist6ria em processos naturais ou ecol6gicos. Desde que a natureza se transforme em objeto de processos de tra- balho, o natural absorve-se no objeto do materialismo hist6rico. lsto nao nega que operem as leis biol6gicas dos organismos que participam no processo, in- clusive do homem e sua forca de trabalho; mas o natural se transforma no biol6- gico superdeterminado pela hist6ria. Nern o recurso natural nem a forca de tra- balho se referem ao metabolismo biol6gico ou ao desgaste energetico dos orga- nismos vivas. 0 recurso natural e a forca de trabalho nao sao entes naturais existentes independentemente do social, mas sao ja o biol6gico determinado pelas condicoes de producao e reproducao de uma dada estrutura social. 67

    64. 0 conceito de valor - o tempo de trabalho socialmente necessario para a producao de mercadorias - e um conceito no qual a produtividade natu- ral da terra, a produtividade do trabalho por meio de uma tecnoestrutura, a pro- dutividade dos ecossistemas pelo conhecimento cientffico e as lutas para a re- ducao da jornada de trabalho conjugam-se para estabelecer um tempo de traba- lho socialmente necessario para produzir OS diferentes valores de USO intercam-

    49 Sobre a articulacao das ciencias ...

  • biaveis. 0 conceito de renda diferencial nao implica o efeito do natural na produ-
  • deixar para tras as concepcoes naturalistas, onde o social e absorvido no biol6gi- co como um ecossistema, e as concepcoes "marxistas", onde esta diferenciacao/ articulacao de processos aparece como uma rnediacao entre valor de uso (meta- bolismo ecol6gico) e valor de troca (metabolismo social)." Esta biossociologia emergiu como uma estrategia epistemol6gica para pensar a problematica te6rica da articulacao biossocial a partir das condicoes hist6ricas que produziram as crises ecol6gicas como efeito da crise do capital. Todavia, surgiria mais como uma via metodol6gica para o estudo concreto de comunidades rurais e para a implementacao de praticas de ecodesenvolvimento do que como uma ciencia ou teoria geral da articulacao das ciencias. Neste sentido, a biologia tendia a con- vergir para o ecol6gico, e o materialismo hist6rico, para a economia politica, Conseqlientemente, a separacao entre o biol6gico e o social apareceria como uma reducao da cultura as leis do ecossistema e da hist6ria as leis do intercam- bio mercantil. Esta postura te6rica permitiu demarcar o terreno de uma teoria materialista do ambiente; contudo, nao constitui uma teoria geral das relacoes entre natureza e sociedade nem um princi pio epistemol6gico para o estudo cien- tifico das sociedades "primitivas" e das camponesas.

    67. A articulacao entre natureza e sociedade, entre ecologia e capital nao poderia se estabelecer como uma relacao entre intercambio ecol6gico/valor de uso e intercarnbio econornico/valor de troca. Uma empresa agricola capitalista produz valor de troca no pr6prio processo em que transforma os valores de uso naturais em valores de uso para o consumo, na integracao do intercarnbio de materia do processo produtivo com o intercambio ou metabolismo ecol6gico. Seja nesta forma direta ou por sua articulacao com formacoes sociais rurais, todo modo de producao determina os processos de intercambio material com a natureza. No mesmo sentido, a energia humana atua como suporte da forca de trabalho; porern, a materialidade hist6rica desta nae se funda em seu carater natural ou biol6gico, mas nas condicoes sociais em que opera. Por isso, nas sociedades agrarias e ainda nas comunidades de autoconsumo, a analise da racionalidade da producao e de reproducao social fundada no calculo energetico" e util para planejar as praticas do ecodesenvolvimento, mas tern um valor explicativo limitado, na medida em que desconhece os efeitos das estruturas materiais constitutivas da cultura e do ecossistema nas praticas de uso dos re- cursos que determinam os fluxos de materia e energia.

    68. A analise dos processos ecol6gicos, sociais e culturais, em termos de sua racionalidade energetica, surge da aplicacao a esses campos dos princf pios da fisica, da entropia e da termodinamica de sistemas abertos. Neste sentido, Lotka ? pretendeu fundar o processo de sucessao ecol6gica e de selecao natural no princfpio de fluxo maxima de energia, e Schrodinger rediscutiu o fenomeno

    51 Sabre a articulacao das ciencias ...

  • vital a partir das leis da fisica e da termodinamica, 73 Os princi pios da termodina- mica e os balances de energia tern sido aplicados no campo da antropologia, da ecologia e do social. Ainda pretendeu-se fundar uma energetica social a partir dos princfpios da energia, como um paradigma transdisciplinar e como substan- cia material capaz de se aplicar a varies campos empfricos.74 Tentou-se explicar, assim, tanto o funcionamento das "sociedades primitivas", como a evolucao das sociedades agricolas para a industrializada, por meio de um processo de complexizacao da estrutura social que implicaria a necessidade de incrementar o consumo de energia para manter a coesao social dentro das formas de poder cada vez mais complexas. 75 Recentemente, a conceitualizacao do processo eco- nomico como um processo entr6pico levou a uma critica radical da teoria do crescimento econornico e a fundamentar a economia na ecologia, "por ser esta uma ciencia muito mais complexa".76 Estes argumentos demonstram a irracionalidade energetica e ecol6gica dos princi pios mecanicistas nos quais se fundou a racionalidade econornica dominante, mas nao dao conta da articulacao da ordem economica com os processos estruturadores ou desestruturadores do meio ambiente e das organizacoes culturais de onde surge um potencial neguentropico para a construcao de outra racionalidade produtiva. Desta for- ma, a exploracao crescente da energia da forca de trabalho e o desenvolvimento tecnol6gico caracterizado por sua tendencia exponencial para o consumo de recursos naturais, para a degradacao dos ecossistemas e para a entropia crescen- te da organizacao social e dos processos produtivos, aparecem como uma lei sociol6gica universal, encobrindo o efeito das tendencias para a rnaximizacao da taxa de lucro do capital, fundado num modo de producao que nada tern de natural ou de universal. Seo incremento do consumo das fontes nao-renovaveis e da degradacao da energia fosse uma lei geral de evolucao cultural, da organi- zacao social e do desenvolvimento das forcas produtivas, esta lei nao poderia ser revertida pelos princfpios eticos e pelas normas morais postuladas pelos pa- ladinos do crescimento zero e da economia estacionaria para produzir uma mu- danca social e impedir a catastrofe eco16gica, ainda se isso implicasse a inviabilidade da sobrevivencia do homem no planeta.

    69. A forma particular de articulacao das determinacoes do ecossistema, a lingua, a cultura, um modo de producao sao especificos de cada formacao so- cial. A conformacao de seu meio ambiente, a hist6ria de suas praticas produti- vas e sociais, seus intercambios culturais na hist6ria determinaram a capacidade produtiva dos ecossistemas, a divisao do trabalho, os nf veis de autoconsumo ea producao de excedentes comercializaveis, A intervencao mais ou menos forte do capital e dos Estados nacionais modificam estas modalidades de transforma- 9ao do meio ambiente e dos estilos culturais pela introducao de novas tecnicas e

    Epistemologia Ambiental 52

  • 1. Leff, E. Ciencia, tecnica y sociedad. Mexico, Anuies, 1977. 2. Cf. Kuhn, T. S. La revolution corpernicienne. Paris, Fayard, 1973. Koyre, A. Etudes

    galilennes. Paris, 1966. Idem. Etudes d'historie de la pensee scientijiquc. Paris, Gallimard, 1973. 3. Cf. Canguilhem, G. La connaissance de la vie. Paris, J. Vrin, 1971. 4. Cf. Althusser, L.; Balibar, E. Lire le capital. Paris, F. Maspero, 1973. Lacan. Escritos.

    Mexico, Siglo XXI, 1976. 5. Cf. Koyre, A. Etudes newtoniennes. Paris, Gallimard, 1968. 6. Para A. Koyre, as transforrnacoes na visao do mundo que surgem como efeito da "revo-

    lucao do seculo XIII" podem caracterizar-se como "a destruicao do cosmos e a geometrizacao do espaco: isto e, a substituicao da concepcao do mundo coma um todo finito e bem ordenado, no qua! a estrutura espacial incorporava uma hierarquia de perfeicao e valor, pela de um univer- so indefinido ou ainda infinito que ja nao estava unido par subordinacao natural, mas se unifica-

    Notas

    modelos produtivos. Isto transforma as formacoes sociais nao-capitalistas em objetos complexos que se definem pelas interdeterminacoes entre processos naturais, tecnicos e culturais. Em todo caso, estes processos culturais nao po- dem ser explicados mediante um esquema irnaginario que reduz suas interdeterminacoes a um modelo n-dimensional de variaveis, A articulacao de determinacoes que explicam as relacoes sociedade-natureza de uma formacao cultural nao pode limitar-se a analise dos intercambios energeticos nos proces- sos produtivos ou a um princfpio fisico generalizavel a partir dos processos biol6gicos ate os processos hist6ricos. Tampouco pode reduzir-se a um esque- ma formal que recorte a realidade em sistema arbitrariamente escolhido (tecnologia, cultura, economia, ecossistema) sem uma integracao das discipli- nas ecol6gicas e etnologicas que dao conta de seus processos materiais.77

    70. No caso das sociedades agrarias, a articulacao do natural e do social nao pode ser resolvido pela reducao da forrnacao camponesa de autoconsumo a um "ecossistema humano" inserido no ecossistema geral e articulado com o capital. Esta articulacao nao se concretiza simplesmente na superdeterminacao do capital sobre a cultura e seu meio ambiente, a partir do intercarnbio mercan- til. Uma formacao camponesa pode ser considerada uma "entidade mediadora" entre o modo de producao capitalista e a natureza; no entanto, possui uma estru- tura propria que especifica esta "mediacao", 0 problema reside em entender como se articulam os processos e potenciais da natureza, dependentes da estru- tura do ecossistema, com as leis sociais e as formas de organizacao cultural que regulam os processos produtivos e as condicoes de acesso e apropriacao da na- tureza, articulados, por sua vez, com os efeitos do modo de producao capitalista ou de outras formacoes sociais dominantes.

    Sabre a articulacao

  • -

    va tao-somente mediante a identidade de suas leis e componentes ultimas e basicos", In: Koyre, A. Delmundo cerrado al universo infinito. Mexico, Siglo XXI, 1979, p. 2.

    7. Cf. Foucault, M. Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1969. 8. A 16gica hegeliana formulou o "discurso do ser no sentido em que e o pr6prio ser quern

    se diz-e diz a si mesmo-em e pelo discurso do sujeito ... ultrapassando a separacao estabelecida arbitrariamente entre o 16gico pensado e o ser pensado. Esta propora sua identidade". In: Lecourt, D. Une crise et son enjeu. Paris, F. Maspero, 1973, p. 58.

    9. "O que no horizonte de todas as representacocs atuais se indica em si mesmo como o fundamento de sua unidade sao esses objetos mais objetivaveis, essas representacoes jamais completamente representaveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisfveis, es- sas realidades que estao em retirada na medida em que fundam o que se da e avanca para n6s: a potencia do trabalho, a forca da vida, o poder de falar. .. Buscam-se assim as condicoes de possi- bilidade do objeto e de sua existencia, enquanto na reflexao transcendental identificavam-se as condicoes de possibilidade dos objetos da experiencia com as condicoes de possibilidade da pr6pria experiencia". In: Foucault, ibid., p. 257.

    10. Estas transformacoes fundamentais no saber cientifico moderno foram entendidas pela filosofia materialista do final do seculo passado. Desta forrna, Engels assinalava que "a grande ideia fundamental segundo a qua! o mundo nao deve se considerar como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos ... penetrou tao profundamente na consciencia comum, sobretudo ap6s Hegel, que quase ja nao encontra contraditores sob essa forma geral. In: Engels, F. Ludwig Feuerbacli et la fin de la Philosophic classique allemande. Paris, Sociales, 1966, p. 61. Nietzsche apontava para as implicacoes anti-subjetivistas deste saber: "A lingua- gem pertence em sua origem a idade da forma mais rudimentar de psicologia: encontramo-nos em meio a um rude fetichismo quando buscamos na mente as pressuposicoes basicas da metaffsica da linguagem - ou seja, da raziio. E isto o que ve em todas as partes a9ao e ator; isto o que ere na vontade como causa em geral; isto que projeta sua crenca na substancia-ego para todas as coisas- apenas cria assim o conceito de 'coisa'". Nietzsche, Friedrich. Twilight of the idols. SI I, Penguin Books, 1968, p. 38.

    11. Marx, K. "Introduction generale ... la Critique de J'economie politique". In: Marx, K. Oeuvres, Economie I, Paris, Gallimard, 1965, p. 255.

    12. Sabre uma pretensa epistemologia pragmatista em Marx, ver A. Schmidt, 0 conceito de natureza em Marx, Mexico, Siglo XXI, 1976, assim como minha crftica a este: Leff, "Alfred Schmidt e o fim do humanismo naturalista". In: Antropologia e marxismo, n 3, Mexico, 1980, pp. 139-52.

    13. "Esse tempo nao e acessivel como entrecruzamento complexo de diferentes tempos ... mas em seu conceito ... E preciso construir os conceitos dos diferentes tempos hist6ricos ... a partir da natureza diferencial e da articulacao diferencial de seus objetos na estrutura do todo." Althusser, L.; Balibar, E. Lire le capital, op. cit., pp. 128-9.

    14. Marx, K. "Le capital". In: Oeuvres, op. cit., cap. I. 15. "Nao e somente a forma da sistematicidade que faz a ciencia, mas apenas a forma da

    sistematicidade

  • 17. Seria necessario precaver-se contra o uso acrftico, que vai alem do sentido metaf6rico desta formulacao das teorias de sistemas, o que poderia remeter a certo empirismo ao postular uma realidade preexistente que estaria ali para ser recortada pelas diferentes vis6es dos cientis- tas experts que definem o que fica dentro e fora de um sistema construfdo intencionalmente.

    18. Althusser, L.; Balibar, E., op cit., p. 107, 170. 19. Cf. Olive, L. La explicaci6n social del conocimiento. Mexico, UNAM, 1985. Leff, E.

    "Sociologia y ambiente: formaci6n socio-econ6mica, racionalidad ambiental y transformaciones del conocimiento". In: Leff, E. (Coord.), Las ciencias sociales y la formacion ambiental. Barce- lona, GEDISA/UNAM/PNUMA, 1994 (ver Cap. 3, neste volume).

    20. "Esta abstracao do trabalho em geral nao e o resultado mental de uma totalidade concre- ta de trabalho ... o trabalho transformou-se ... nao apenas enquanto categoria, mas na pr6pria realidade, num meio de produzir a riqueza em geral." Marx, K. "Introduction". Oeuvres, op. cit. p. 259.

    21. Althusser, L.; Balibar, E., op. cit., p. 47. 22. Leff, E. "La teorfa del valor em Marx frente a la revoluci6n cientffico-tecnol6gica". In:

    Leff, E. (org.). Teoria def valor. Mexico, UNAM, 1980. 23. Leff, E. "Ciencia y tecnologfa en el desarrollo capitalista". In: Historia y sociedad, n. 6.

    Mexico, 1975, pp. 75-87. 24. Cf. Jantsch, E. Technological forecasting in perspective. Paris, OCDE, 1967. Helman,

    F. Society and the assessment of technology. Paris, OCDE, Paris, 1973. 25. Cf. Marcuse, H. L'homme unidimensionnel. Paris, Minuit, 1968. 26. Cf. Leff, E. "El sisterna de ciencia y tecnologia en el proceso de desarrollo

    socioecon6mico". In: Comercio Exterior, v. XXVI, n. 11. Mexico, 1976, pp. 1334-41. Sobre a funcao ideol6gica das aplicacoes tecnicas das ciencias, ver Habermas, J. La technique et la science comme ideologie. Paris, Gallimard, 1973, cap. II.

    27. Cf. Popper, K. La logique de la Decouverte scientifique. Paris, Payot, 1973. 28. Cf. Lacan, J. Escritos, op. cit. e Las [ormaciones def inconsciente . Buenos Aires, Nueva

    Vision, 1977. 29. Althusser, L. Curso de filosojia marxista para cieniificos. S.11., Diez, 1975, p. 38. 30. Boisot, M. "Disciplina e interdisciplinariedad", In: Apostel, L. et al. Interdiscipli-

    nariedad. Problemas de la enseiianzu y de la investigacion en las universidades. Mexico, ANUIES, 1975 (reimpressao em 1979, pp. 108-9).

    31. Leff, E. "Biosociologia y ecodesarrollo". In: Leff, E. (org.). Memorias def primer simposio sabre ecodesarrollo. Mexico, Asociaci6n Mexicana de Epistemologfa, 1977, pp. 52-71.

    32. A teoria geral de sistemas de Von Bertalanffy parte de uma nocao de sistema que "alude a caracterfsticas muito gerais compartilhadas por grandc numero de entidades que costumam ser tratadas por diferentes disciplinas. Oaf a natureza interdisciplinar da teoria geral de sistemas; seus enunciados afetam a comunidadcs formais ou estruturais, deixando de ]ado a 'natureza dos elementos ou forca do sistema', de que se ocupam as ciencias especiais ... A unidade da ciencia nao e assegurada por uma reducao das ciencias a fisica e qufmica, mas pelas uniformidades estruturais que se estabelecem entre os diferentes nfveis da realidade". Von Bertalanffy, L. Teoria general de las sistemas. Mexico/Buenos Aires, Fonda de Cultura Econ6mica, 1976, pp. 263-90.

    33. Meadows, D.; Meadows, J.; Randers, J.; Behrens III, W.W. Los llmites de! crecimiento. Mexico, Fondo de Cultura Econ6mica, 1972.

    34. Ver Fi chant, M.; Pecheux, M. Sur l 'histoirie des sciences. Paris, Maspero, 1971. Lecourt, D. Pour une critique de L'espistcmologie. Paris, F. Maspero, 1972.

    Sobre a articulacao das ciencias ...

  • 35. Sobre o uso de um metodo anal6gico para a integracao dos processos biol6gicos e culturais, ver Gerard, R. W.; Kluckohn, C.; Rapoport, A. Biological and cultural evolution. Some analogies and explorations.

    36. Levi-Strauss, C. Structural anthropology. Londres, Allen Lane, The Penguin Press, 1968.

    37. Rene Thom delimitou o alcance da metodologia estrnturalista nos seguintes termos: "Do ponto de vista estruturalista, nao se tenta explicar uma morfologia por reducao a elementos emprestados de outra teoria - supostamente elementar ou fundamental... trata-se a pen as de melhorar a descricao da morfologia empirica exibindo suas regularidades, suas simetrias ocultas, mostrando sua unidade interna por um modelo maternatico formal