koselleck, reinhart.representação, evento e estrutura.in. futuro passado

13
CAPÍTULO 7 Representação, evento e estrutura* O problema da representação, isto é, da maneira como a história [His- torie] narra e descreve, remete, no campo do conhecimento, a diferentes dimensões temporais do movimento histórico. A constatação de que uma "história" já se encontra previamente configurada antes de tomar a forma de uma linguagem limita não só o potencial de representação como também exige do historiador que se volte necessariamente à fonte em busca de fatos. Esta contém indicadores de sucessão temporal muito diversos. Por conta disso, da perspectiva do historiador, a questão pode ser revertida: trata-se de diferentes camadas de tempo que, por sua vez, exigem diferentes aproximações metodológicas. Isso leva o historiador a estabelecer um pressuposto: conforme o resultado da investigação, serão utilizados diferentes meios de comunicação do conteúdo, nos quais, para usarmos uma expressão de Santo Agostinho, narratio demonstrationi si- milis (est). 1 Antecipando a minha tese: na prática, o limite entre a nar- ração e a descrição não pode ser mantido; já na teoria dos tempos histó- ricos, os níveis que abrigam as diferentes extensões temporais não se interpenetram completamente. Para explicar melhor esta tese, partimos do princípio de que "eventos" só podem ser narrados e "estruturas" só podem ser descritas. 1. Eventos, que são isolados expost da infinidade dos acontecimentos— ou, para usar uma linguagem burocrática, são retirados dos arquivos —, podem ser experimentados pelos próprios contemporâneos como um conjunto de fatos, como uma unidade de sentido que pode ser narrada. É essa provavelmente a causa da prioridade dada aos relatos feitos por testemunhas oculares que, até o século XVIII inclusive, valeram como fontes primárias especialmente confiáveis. Reside aí a extrema valoriza- * Esta contribuição é fruto de uma discussão mantida durante uma reunião do grupo "Poe- tik und Hermeneutik", em 1970. Os resultados das discussões foram publicados por Wolf- Dieter Stempel e por mim sob o título Geschichte: Ereignis und Erziihlung, Munique, 1972 ("Poetik und Hermeneutik" V). Minha contribuição refere-se especialmente às interven- ções dos senhores Fellmann, Fuhrmann, Jauss, Lübbe, Stierle, Stempel, Szondi e Taube, a quem expresso aqui os meus cordiais agradecimentos pelas sugestões.

Upload: samuel-ayala

Post on 13-Aug-2015

248 views

Category:

Documents


17 download

TRANSCRIPT

Page 1: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

C A P Í T U L O 7

Representação, evento e estrutura*

O problema da representação, isto é, da maneira como a história [His-torie] narra e descreve, remete, no campo do conhecimento, a diferentes dimensões temporais do movimento histórico. A constatação de que uma "história" já se encontra previamente configurada antes de tomar a forma de uma linguagem limita não só o potencial de representação como também exige do historiador que se volte necessariamente à fonte em busca de fatos. Esta contém indicadores de sucessão temporal muito diversos. Por conta disso, da perspectiva do historiador, a questão pode ser revertida: trata-se de diferentes camadas de tempo que, por sua vez, exigem diferentes aproximações metodológicas. Isso leva o historiador a estabelecer um pressuposto: conforme o resultado da investigação, serão utilizados diferentes meios de comunicação do conteúdo, nos quais, para usarmos uma expressão de Santo Agostinho, narratio demonstrationi si-milis (est).1 Antecipando a minha tese: na prática, o limite entre a nar-ração e a descrição não pode ser mantido; já na teoria dos tempos histó-ricos, os níveis que abrigam as diferentes extensões temporais não se interpenetram completamente. Para explicar melhor esta tese, partimos do princípio de que "eventos" só podem ser narrados e "estruturas" só podem ser descritas.

1. Eventos, que são isolados expost da infinidade dos acontecimentos— ou, para usar uma linguagem burocrática, são retirados dos arquivos —, podem ser experimentados pelos próprios contemporâneos como um conjunto de fatos, como uma unidade de sentido que pode ser narrada. É essa provavelmente a causa da prioridade dada aos relatos feitos por testemunhas oculares que, até o século XVIII inclusive, valeram como fontes primárias especialmente confiáveis. Reside aí a extrema valoriza-

* Esta contribuição é fruto de uma discussão mantida durante uma reunião do grupo "Poe-tik und Hermeneutik", em 1970. Os resultados das discussões foram publicados por Wolf-Dieter Stempel e por mim sob o título Geschichte: Ereignis und Erziihlung, Munique, 1972 ("Poetik und Hermeneutik" V). Minha contribuição refere-se especialmente às interven-ções dos senhores Fellmann, Fuhrmann, Jauss, Lübbe, Stierle, Stempel, Szondi e Taube, a quem expresso aqui os meus cordiais agradecimentos pelas sugestões.

Page 2: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

134 R E I N H A R T K O S E L L E C K • F U T U R O P A S S A D O

ção, como fonte, de uma "história" transmitida pela tradição, que repro-duz um acontecimento a ela contemporâneo.

O pano de fundo no qual diferentes acontecimentos se organizam em um evento é, antes de tudo, a cronologia natural. A exatidão cronológica na classificação de todos os elementos que constituem os eventos per-tence por isso ao postulado metodológico da narrativa histórica. Neste caso existe, no sentido de uma sucessão temporal histórica, um "limite da segmentação em unidades mínimas" (Simmel),2 abaixo do qual o evento se dissolve. A unidade de sentido que faz dos diferentes aconteci-mentos um evento é composta de um mínimo de "antes" e "depois". As circunstâncias ao longo das quais se dá um evento, seu antes e seu de-pois, podem ser estendidas; sua consistência permanece, entretanto, pre-sa à sucessão temporal. Mesmo a intersubjetividade de uma conjuntura de eventos deve, enquanto os atores a realizam, manter-se aderida ao es-quema das seqüências temporais. Basta pensarmos nas histórias das eclo-sões das guerras em 1914 e em 1939. O que realmente aconteceu, justa-mente por conta da interdependência das ações e omissões, só pode ser visto decorridas as primeiras horas, o dia seguinte...

A transposição de experiências outrora imediatas em conhecimento histórico — entendida como o rompimento de um horizonte de expec-tativa, que deixa à mostra um sentido inesperado — permanece sempre comprometida com a seqüência cronologicamente mensurável. Também flashbacks ou avanços em direção ao futuro como meio estilístico de re-presentação (é só lembrarmos os discursos de Tucídides) servem para elucidar o momento crítico ou decisivo no decurso da narrativa.

O antes e o depois constituem o horizonte de sentido [Sinnhorizont] de uma narrativa — "veni, vidi, vicz" — mas somente porque a expe-riência histórica que constitui o evento está necessariamente inserida na sucessão temporal. Desse modo, a sentença de Schiller, de que a his-tória do mundo é a história do julgamento do mundo, pode ser lida assim: "O que se perde em um minuto não se recupera em uma eterni-dade." Mesmo quem se nega a aceitar a pesada conseqüência da frase de Schiller, ou seja, a dissolução da escatologia na realização processual da História, terá que fazer da sucessão do tempo histórico o fio condutor da representação, de modo a tornar possível a narração dos eventos da política, da diplomacia e das guerras, nacionais ou civis, na irreversibili-dade de seus decursos.

Page 3: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

R E P R E S E N T A Ç Ã O , E V E N T O E E S T R U T U R A 135

É certo que a cronologia natural em si é destituída de significado his-tórico, motivo pelo qual Kant demandou que a cronologia se orientasse pela história e não o inverso, a historia pela cronologia.3 Para que se constituísse uma cronologia histórica — também para os eventos — era necessário "estruturá-la". Por isso se pôde falar, em princípio, de uma es-trutura diacrônica, o que hoje pode soar estranho. Há estruturas diacrô-nicas que são inerentes ao decurso de eventos. Toda história revela que seu ponto de partida, seus grandes momentos, suas peripécias, suas cri-ses e seu fim são inteligíveis também para os atores participantes. Na existência de alternativas, no número de participantes, sobretudo na li-mitação ou no estabelecimento de ritmos determinados, podem-se re-conhecer as condições intrínsecas às seqüências de eventos, que, com isso, adquirem sua estrutura diacrônica. Por isso, em um determinado nível de abstração ou com uma dada tipologia, torna-se possível compa-rar seqüências de revoluções, guerras e histórias constitucionais. Além de tais estruturas diacrônicas ligadas aos acontecimentos, há também estru-turas a longo prazo, expressão de uso mais corrente hoje em dia.

2. Sob os preceitos das questões propostas pela história social, o termo "estrutura" foi admitido à história mais recente, especialmente por meio da expressão "história estrutural".4 Desde então, são entendidas como estrutura — em relação à sua temporalidade — aquelas circunstâncias que não se organizam segundo a estrita sucessão dos eventos passados. Elas implicam maior duração, maior estabilidade, alterando-se em pra-zos mais longos. Utilizando-se as categorias de média e longa duração pôde-se formular de maneira mais precisa o que, na linguagem do sé-culo XIX, era conceituado e compreendido como "estado de fato" [Zu-stande]. A referência a uma "justaposição de camadas" [Schichtung], cujo sentido original é espacial, tendendo ao estático, está presente no radical do substantivo "história" [Geschichte]. Dessa forma, ao utilizarmos a ex-pressão "história estrutural" [Strukturgeschichte], estamos aludindo de forma dupla e metafórica a esse sentido literal lembrado pela etimologia da palavra.

Ao passo que anterioridade e posterioridade são elementos constitu-tivos necessários à narração dos eventos, a precisão de limites nas deter-minações cronológicas é, evidentemente, muito menos significativa na descrição de estados ou situações de longo prazo. Isso já pode ser obser-vado nos fenômenos estruturais que, sem dúvida, precedem e integram

Page 4: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

136 R E I N H A R T K O S E L L E C K • F U T U R O P A S S A D O

eventos momentâneos, mas cuja posição em relação a esses mesmos eventos se define de maneira diferente de uma mera relação de anterio-ridade cronológica. Citamos como exemplo algumas estruturas: mode-los constitucionais, formas de domínio que não se modificaram da noite para o dia, mas que são pressupostos da ação política. Ou ainda as for-ças produtivas e as relações de produção, que se transformam apenas a longo prazo e, às vezes, aos empurrões, mas que, de toda maneira, con-dicionam os acontecimentos sociais e atuam em conjunto com eles. Fa-zem parte desse grupo de fatores as constelações amigo-inimigo, que de-cidem a guerra e a paz, mas que também podem prolongar-se sem que com isso sejam favorecidos os interesses de um ou outro oponente, o que torna esse processo controverso. A isso acrescentamos circunstâncias geográficas e espaciais, conjugadas à capacidade técnica, a partir das quais se originam alternativas de ação política de longo prazo, assim como formas de relações econômicas ou sociais. É preciso ainda citar formas de comportamento inconscientes, guiadas por instituições ou que criam suas próprias instituições e que tanto ampliam quanto deli-mitam os campos de ação e de experiência. Ademais, citemos a sucessão natural de gerações que, conforme seu limiar de experiência, podem fa-vorecer a criação de conflitos ou a legitimação da tradição, de forma to-talmente independente do comportamento geracional e das seqüências transpessoais. Por fim, devem ser citados aqui também os costumes e os sistemas jurídicos, que regulam os decursos da vida em sociedade e da vida dos Estados, a longo ou médio prazo.

Sem desejar avaliar aqui a relação de tais estruturas, podemos dizer que todas têm em comum o fato de que suas constantes temporais ul-trapassam o campo de experiência cronologicamente registrável dos indivíduos envolvidos em um evento. Os eventos são provocados ou so-fridos por determinados sujeitos, mas as estruturas permanecem supra individuais e intersubjetivas. Elas não podem ser reduzidas a uma única pessoa e raramente a grupos precisamente determinados. Metodologica-mente, elas requerem, por essa razão, determinações de caráter funcio-nal. Com isso, as estruturas não se tornam grandezas extratemporais; ao contrário, elas adquirem freqüentemente um caráter processual — que pode também se integrar às experiências dos eventos cotidianos.

Há, por exemplo, fenômenos de longa duração que se impõem ime-diatamente, independentemente de serem combatidos ou favorecidos. Hoje se pode indagar, a respeito do prodigioso desenvolvimento indus-

Page 5: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

R E P R E S E N T A Ç Ã O , E V E N T O E E S T R U T U R A 137

trial que sucedeu a Revolução de 1848, se ele ocorreu apesar ou por cau-sa da revolução fracassada. Existem argumentos a favor e contra; pode ser que nem um nem outro sejam convincentes, mas ambos remetem à dinâmica que se impôs transversalmente em meio à situação política de revolução e reação. Assim, é possível que a reação, nesse caso, tenha atua-do de modo mais revolucionário do que a própria revolução. Se revolu-ção e reação podem ser, ao mesmo tempo, indicadores de uma e mesma dinâmica, que se alimenta de ambos os campos e que foi desencadeada por ambos, então este par de conceitos indica evidentemente um movi-mento histórico, um avanço irreversível de transformação estrutural a longo prazo, que ultrapassa os prós e contras associados ao sentido polí-tico de reação e revolução.

O que hoje se apresenta como reflexão metodológica em relação à história estrutural pode ter feito parte da experiência quotidiana das ge-rações de então. As estruturas e suas transformações podem ser (recon-vertidas em experiência quando seu período de duração não ultrapassar a unidade de memória das gerações contemporâneas.

Sem dúvida, existem também estruturas que são tão duradouras que permanecem guardadas no inconsciente ou na não consciência daqueles que a viveram, ou cujas alterações se dão a tão longo prazo que escapam ao conhecimento empírico dos atingidos. Aqui, somente a sociologia ou a história como ciência do passado podem dar notícia que conduza para além dos campos de experiência das gerações contemporâneas de então.

! 3- Eventos e estruturas têm, portanto, no campo de experiência do mo-vimento histórico, diferentes extensões temporais, que são problemati-zadas exclusivamente pela história como ciência.

Tradicionalmente, a representação de estruturas aproxima-se mais da k descrição, por exemplo, na antiga estatística do absolutismo esclarecido; H a representação dos eventos aproxima-se mais da narração, de forma Semelhante à história pragmática do século XVIII. Fixar a "história" des-

ta ou daquela maneira seria impor escolhas inapropriadas. Ambos os ní-veis, o das estruturas e o dos eventos, remetem um ao outro, sem que um se dissolva no outro. Mais ainda, ambos os níveis alternam-se em im-portância, revezando-se na hierarquia de valores, dependendo da natu-reza do objeto investigado.

Assim, as seqüências estatísticas temporais nutrem-se de eventos con-cretos e individuais, dotados de um tempo próprio, mas que só adqui-

Page 6: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

6 R E I N H A R T K O S E L L E C K • F U T U R O P A S S A D O

rem significação por força de uma perspectiva estrutural de longo pra-zo. Narração e descrição se ajustam de modo que o evento se torna um pressuposto para proposições estruturais.

Por outro lado, estruturas mais ou menos duradouras, mas de todo modo de longo prazo, são condições de possibilidade para os eventos. O fato de que uma batalha possa ser decidida nos três tempos do "vera, vidi, vinci" pressupõe determinadas formas de dominação, certa capa-cidade técnica sobre as circunstâncias naturais, assim como uma per-cepção global das configurações "aliado-inimigo" etc. — estruturas, portanto, que fazem parte do evento que constitui essa batalha e que o condicionam. A história da batalha narrada de maneira apodíctica por Plutarco contém dimensões temporais de diferentes extensões, que estão no centro da narração ou da descrição muito tempo "antes" de serem analisados os efeitos que conferiram "sentido" ao evento da batalha. Tra-ta-se, portanto, de estruturas in eventu, para utilizarmos uma expressão de H. R. Jauss, sem prejuízo do pressuposto hermenêutico de que elas só se tornam apreensíveis na sua significação post eventum. Tais estruturas correspondem às "causas gerais" de Montesquieu,5 as quais tornam pos-sível que uma batalha, travada em meio a acasos, possa ser, mesmo as-sim, decisiva para a guerra.

No que diz respeito aos eventos isolados, pode-se afirmar que certas condições estruturais possibilitam seu tránscurso. É possível descrevê-las. Entretanto, elas podem ser também inseridas na narrativa se, entendidas como causas independentes da cronologia, contribuírem para a análise do evento.

Inversamente, certas estruturas só podem ser apreendidas nos even-tos nos quais se articulam e por meio dos quais se deixam transparecer. Um processo de conquista de direitos trabalhistas tanto pode ser uma história dramática, no sentido de um "evento", como também um indi-cador de circunstâncias sociais, jurídicas ou econômicas de longo prazo. Conforme o tipo de investigação, modifica-se a ênfase da história nar-rada e a forma de reproduzi-la: ela é, então, hierarquizada em níveis tem-porais de diferentes extensões. Ou bem se problematiza o caráter an-terior ou posterior do acontecimento, do processo e de seu ponto de partida e respectivas conseqüências, ou a história é decomposta em seus elementos, destacando-se as condições sociais que permitem compreen-der o decurso dos eventos. A descrição de tais estruturas pode ser até mesmo "mais dramática" do que a narração do processo propriamente

Page 7: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

R E P R E S E N T A Ç Ã O , E V E N T O E E S T R U T U R A 139

dito. "A relevância, em perspectiva, de um enunciado narrativo abran-gente" (Jauss) — ainda que seja considerada, em termos hermenêuticos, uma conáitio sine qua non para o conhecimento histórico — transfere suas prerrogativas à relevância, em perspectiva, de uma análise estrutu-ral abrangente.

Esse procedimento de gradação e de estratificação se pode realizar desde o evento isolado até a história universal. Quanto mais rigorosa for a coerência sistemática, quanto mais longos forem os prazos dos aspec-tos estruturais, tanto menos eles poderão ser narrados em ordem crono-lógica estrita, com antes e depois. Também a "duração" pode se tornar evento, do ponto de vista historiográfico. Conforme o ângulo da pers-pectiva, certas estruturas de médio alcance, como a sociedade estamen-tal de tipo mercantil, por exemplo, podem ser integradas, como um com-plexo único de eventos, a conjuntos de eventos maiores. Nesse caso, elas adquirem importância e valor específicos e se deixam determinar cro-nologicamente, permitindo definir épocas na evolução do modo e das relações de produção. Uma vez analisadas e descritas, as estruturas po-dem ser objeto de narrativas, como fatores que pertencem a um conjun-to de eventos de outra ordem. A forma mais adequada para se apreender o caráter processual da história moderna é o esclarecimento recíproco dos eventos pelas estruturas e vice-versa.

Permanece, contudo, um resquício irresolúvel, uma aporia metodo-lógica que não permite amalgamar eventos e estruturas. Existe um hiato entre os dois elementos porque suas extensões temporais não podem ser obrigadas à congruência, nem na experiência, nem na reflexão científica. A distinção e delimitação entre evento e estrutura não deve conduzir a que se eliminem suas diferenças, de modo a conservar sua finalidade cognitiva: nos ajudar a decifrar as múltiplas camadas de toda história, como nos lembra a etimologia de "história" [Geschichte].

O antes e o depois de um evento conserva características temporais próprias, que jamais se deixam reduzir totalmente às condições de longo prazo. Cada evento produz mais e, ao mesmo tempo, menos do que está contido nas suas circunstâncias prévias: daí advém sua surpreendente novidade.6 Os pressupostos estruturais para a batalha de Leuthen nunca poderão esclarecer de modo suficiente por que Frederico o Grande ven-ceu a batalha da maneira como venceu. Seguramente, os eventos e as estruturas remetem uns aos outros: a composição do exército de Fre-derico II, seu sistema de recrutamento, sua implantação dentro de um

Page 8: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

1 4 0 R E I N H A R T K O S E L L E C K • F U T U R O P A S S A D O

sistema agrário como o do leste do Elba, aliados ao sistema fiscal e o "cai-xa de guerra" constituído sobre essas bases, a arte da guerra de Frede-rico II dentro da tradição da história militar — tudo isso possibilitou a vitória de Leuthen. Contudo, o 5 de dezembro de 1757 permanece único na sucessão cronológica imanente.

O desenrolar da batalha, seus efeitos políticos e bélicos, a importância da vitória no contexto da Guerra dos Sete Anos, isso só pode ser narra-do de maneira cronológica, extraindo daí seu sentido. Mas Leuthen tem um significado simbólico. Já a própria história subsequente de Leuthen pode ganhar significado estrutural. Ou seja, o evento adquire uma cate-goria estrutural. Na história da tradição prussiana de Estado, por seu impacto exemplar para a avaliação dos riscos bélicos no planejamento militar da Alemanha prussiana (Dehio), Leuthen converteu-se em um fa-tor duradouro e de longo prazo, que substituiu as condições dadas, cons-titucionais e estruturais, que, por sua vez, haviam tornado possível a pró-pria batalha.

Se relacionarmos metodologicamente as formas de representação às dimensões temporais subordinadas a elas no "âmbito do objeto" da his-tória, chegaremos às seguintes conclusões: primeiro, os planos temporais, por mais que se condicionem reciprocamente, nunca se fundem total-mente; em segundo lugar, conforme o nível em que se dá a investigação, um evento pode adquirir significado estrutural, assim como, da mesma forma, e em terceiro lugar, a "duração" pode converter-se em evento.

Isso nos conduz à relação, do ponto de vista da teoria do conhecimen-to, entre os conceitos de evento e estrutura, os quais foram esboçados, até aqui, apenas no que diz respeito à sua forma de representação e aos correspondentes planos temporais.

4. Seria errôneo querer atribuir aos "eventos" um conteúdo maior de realidade do que às assim chamadas estruturas, só porque os eventos, no desenrolar concreto de um acontecimento, permanecem atados ao antes e ao depois ligados à cronologia natural, empiricamente verificável. A história seria diminuída, se ela se obrigasse somente à narração, em detrimento de uma análise de estruturas cuja efetividade está em outro nível temporal, não sendo menor por isso.

Ora, trata-se de um procedimento historiográfico comum, hoje em dia, alternar os níveis de argumentação, deduzindo um de outro — ainda que esse outro seja de natureza totalmente diversa. Infelizmente, porém,

Page 9: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

R E P R E S E N T A Ç Ã O , E V E N T O E E S T R U T U R A 141

a simples alternância dos níveis temporais, com a passagem do evento para a estrutura e vice-versa, não resolve em nada o problema: tudo pode ser explicado, mas não de qualquer maneira. Quais explicações são váli-das, ou deveriam ser, só pode ser decidido estabelecendo-se um pressu-posto teórico. Que estruturas permitem estabelecer o âmbito das histó-rias singulares possíveis? Que fenômenos podem se tornar eventos, que eventos devem ser integrados à trama da história passada?

É característico da historicidade de nossa disciplina o fato de que as diferentes questões preliminares não possam ser reduzidas a um deno-minador comum; esclarecer seus níveis de temporalidade é um impera-tivo metodológico. Eventos e estruturas são igualmente "abstratos" ou "concretos" para o conhecimento histórico — isso vai depender do nível temporal em que nos colocamos. Com isso, ficar a favor ou contra a rea-lidade histórica do passado não é uma alternativa.

A esse respeito sejam permitidas duas considerações relevantes do ponto de vista da teoria do conhecimento: o conteúdo factual estabele-cido ex post aos eventos investigados nunca é idêntico à totalidade das circunstâncias passadas, supostamente tomadas como reais naquele mo-mento. Todo evento investigado e representado historicamente nutre-se da ficção do factual, mas a realidade propriamente dita já não pode mais ser apreendida. Com isso não se quer dizer que o evento histórico seja estabelecido sem cuidado ou de maneira arbitrária, uma vez que o con-trole das fontes assegura a exclusão daquilo que não deve ser dito. Mas esse mesmo controle não prescreve aquilo que pode ser dito. Pode-se considerar que o historiador, de um ponto de vista negativo, está sujei-tado pelos testemunhos da realidade passada. Por outro lado, de um modo positivo, quando interpreta um evento a partir das fontes, ele se aproxima daquele narrador literário que se submete à ficção contida nos fatos para tornar mais verossímil a sua narrativa.

Assim, de acordo com a teoria do conhecimento, o conteúdo factual dos eventos passados que são relatados não é maior do que o conteúdo factual das estruturas, que talvez ultrapassem o limiar do conhecimento empírico das gerações que os viveram. Estruturas de longa duração, não apreensíveis pela consciência dos contemporâneos, podem até mesmo ser — ou ter sido — tão mais "efetivas", quanto menos estiverem integradas à totalidade constituída pelo evento singular, empiricamente apreensível. Mas isso só pode se dar no plano hipotético. A ficcionalidade dos eventos narrados corresponde, no nível das estruturas, ao caráter hipotético de

Page 10: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

142 R E I N H A R T K O S E L L E C K • F U T U R O P A S S A D O

sua "realidade". Ora, sem dúvida, tais afirmações da teoria do conheci-mento não podem impedir o historiador de se servir da ficcionalidade e das hipóteses para comunicar linguisticamente a realidade passada como um resultado de um estado de coisas empiricamente assegurado.

Mas, para isso, o historiador precisa lançar mão de conceitos históri-cos que, ao mesmo tempo em que recobrem a massa de constelações de eventos passados, devem ser entendidos hoje, por ele mesmo e por seus leitores. Nenhum evento pode ser relatado, nenhuma estrutura represen-tada, nenhum processo descrito sem que sejam empregados conceitos históricos que permitam "compreender" e "conceituaüzar" ["begreiferí']* o passado. Ora, toda conceituaüzação [Begrifflichkeit] tem alcance mais vasto do que o evento singular que ela ajuda a compreender. As catego-rias empregadas na narração de um evento singular, por meio da lingua-gem, não possuem a mesma unicidade temporal que pode ser atribuída ao próprio evento. À primeira vista, essa afirmação é trivial. Entretanto, ela deve ser lembrada para elucidar a exigência estrutural que decorre do emprego não usual de conceitos históricos.

O estudo da semântica histórica7 mostra que todo conceito que faz parte de uma narrativa ou de uma representação — por exemplo, Esta-do, democracia, exército, partido, para citar apenas conceitos gerais — torna inteligíveis contextos, precisamente por não reduzi-los à sua sin-gularidade histórica. Os conceitos não nos instruem apenas sobre a uni-cidade de significados (sob nossa perspectiva) anteriores, mas também contêm possibilidades estruturais; colocam em questão traços contem-porâneos no que é não contemporâneo e não pode reduzir-se a uma pura série histórica temporal.

Conceitos que abrangem fatos, circunstâncias e processos tornam-se, para o historiador — que se serve deles nos procedimentos cognitivos — categorias formais que podem ser colocadas como condições para his-tórias possíveis. Somente os conceitos providos de duração, aptos a uma utilização reiterada em outros contextos, e que remetam a um referen-cial empírico — ou seja, conceitos de caráter estrutural — permitem que uma história que em seu momento foi dada como "real" possa ser hoje dada como possível e, com isso, ser representada.

* O sentido dicionarizado do verbo begreifen é "compreender, entender". No entanto, be-greifen dá origem ao substantivo Begriff, literalmente, "conceito". As aspas são do original. [N.T.]

Page 11: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

R E P R E S E N T A Ç Ã O , E V E N T O E E S T R U T U R A 143

5. A partir da diferente coordenação entre eventos e estrutura, assim como do significado (que se altera a longo prazo) dos conceitos históri-cos, podemos deduzir a mudança que afeta o velho provérbio Historia magistra vitae. A esse respeito, consideremos mais uma observação.

O fato de que as dimensões temporais contidas em um processo his-tórico são apreendidas de forma distinta faz com que os ensinamentos trazidos pela história também sejam apreendidos de forma distinta. Fa-bula ãocet sempre foi um clichê, uma fórmula vazia passível de ser pre-enchida das mais diferentes maneiras — como qualquer antologia de provérbios pode atestar —, tendo sido possível lhe atribuir conteúdos de sentido contraditório. No que diz respeito à sua estrutura temporal for-mal, deve-se ao contrário indagar em que nível a história se estabelece, ou deveria se estabelecer, como mestra da vida: no nível das circunstân-cias de ação em curto prazo e de sua moral respectiva, junto às quais a história atua como modelo de experiência, ou no nível dos processos de médio prazo, a partir dos quais certas tendências podem ser projetadas em direção ao futuro? No primeiro caso, a história instrui a respeito das condições de existência de um possível futuro, sem prognosticá-lo; no segundo, a história diz respeito ao nível da duração meta-histórica, a qual, por isso mesmo, não está situada fora do tempo.

Inclui-se aqui a análise de cunho social e psicológico dos partidos socialdemocratas, conduzida por Robert Mitchel com o objetivo de iden-tificar uma regularidade na formação das elites como medida profilática do comportamento político. Com o provérbio "a arrogância precede a queda", evocamos aqui uma expressão que formula, pura e simplesmen-te, uma possibilidade histórica, ainda que tenha sido empregada, na épo-ca, somente uma vez.

Onde a história só informa sobre a possibilidade de repetição dos eventos, é lá que ela deve demonstrar possuir condições estruturais ca-pazes de desencadear algo como um evento análogo. Tucídides, Maquia-vel, Guicciardini em menor escala, mas também Montesquieu e Robert Michel puderam contar, falando em termos modernos, com tais condi-ções estruturais.

No entanto, uma vez que as próprias condições estruturais se modifi-cam — como, por exemplo, a técnica, a economia e com isso também a sociedade como um todo e mesmo sua Constituição — a história terá que informar sobre as próprias estruturas em processo de alteração, co-

Page 12: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

144 R E I N H A R T K O S E L L E C K • F U T U R O P A S S A D O

mo é o caso da história moderna. As estruturas mostram-se cada vez mais instáveis e modificáveis, submetendo-se ao empuxo da temporali-zação. Originou-se aí o impulso inicial da escola historicista, a qual re-sultou da reflexão sobre o espantoso ineditismo de seu próprio presente. Pois o âmbito da experiência se estreita na mesma medida em que tem que se adequar continuamente aos processos que outrora ocorriam no longo prazo e que hoje são abreviados com uma velocidade variável ou simplesmente acelerada. Assim, a singularidade da história pôde se tor-nar um axioma de todo conhecimento histórico.

A singularidade dos eventos — principal premissa teórica tanto do historicismo como das teorias do progresso — não conhece a repetição e, por isso, não permite nenhuma indicação imediata quanto ao provei-to das ações passadas. Neste ponto, a "história" [Geschichte] moderna destronou a velha historia como magistra vitae. Mas o axioma do princí-pio da singularidade individual que determina o conceito moderno de história se refere — estruturalmente falando — menos ao ineditismo efetivo dos eventos do que à singularidade do conjunto das transforma-ções da modernidade. Isso comprova-se pelo que passamos a chamar de "mudanças estruturais".

Daí não resulta, entretanto, que o futuro se subtraia terminantemen-te a qualquer ensinamento que venha da história. O que acontece é que os ensinamentos se movimentam sobre um patamar temporal compre-endido sob um ponto de vista teórico diferente. Tanto a filosofia da his-tória quanto os procedimentos prognósticos dela decorrentes informam sobre o passado, de forma a deduzir, a partir dele, instruções e diretivas de ação para o futuro. Tocqueville, Lorenz von Stein ou Marx são teste-munhas disso. Se, no entanto, abandonarmos o campo de experiência tradicional e nos aventurarmos em um futuro desconhecido, antes de tudo tentaremos compreender a experiência de um "tempo novo". A par-tir daí, o caráter pedagógico da "história" se modifica. É certo que o diag-nóstico e o prognóstico podem continuar a apoiar-se, como sempre, em estruturas duráveis, de modo a projetar respostas para questões futuras a partir da premissa teórica da capacidade de repetição dos eventos. Po-rém, desde a Revolução Industrial e da Revolução Francesa, esse caráter repetitivo não recobre mais o espaço da experiência. As mudanças es-truturais de longo prazo, com intervalos de tempo cada vez mais curtos, resultam em predições que têm por objeto não mais eventos concretos singulares, mas sim as condições de um determinado futuro possível.

Page 13: KOSELLECK, Reinhart.Representação, evento e estrutura.In. Futuro Passado

R E P R E S E N T A Ç Ã O , E V E N T O E E S T R U T U R A 145

"É possível prever o que está por vir, desde que não se queira profetizá-lo em detalhe" (Lorenz von Stein).8

A história singular deixa de ser exemplar por seu caráter repetitivo, a não ser que se deseje evitá-la. Seu valor está em enunciar proposições estruturais, que falam de um futuro construído como um processo. Exa-tamente quando a heterogeneidade dos fins é introduzida como fator constante de incerteza, a análise histórica estrutural conserva seu poten-cial prognóstico. Nenhum planejamento econômico é hoje possível sem que se tenha em conta as experiências advindas da crise da economia mundial — única no gênero — de 1930. A história como disciplina de-veria então renunciar a essa função em nome do axioma da singularida-de? A história refere-se às condições de um futuro possível, que não se deduz somente a partir da soma dos eventos isolados. Mas nos eventos que ela investiga delineiam-se estruturas que estabelecem ao mesmo tempo as condições e os limites da ação futura. Desse modo, a história demarca os limites para um futuro possível e distinto, sem que com isso possa renunciar às condições estruturais associadas a uma possível repe-tição dos eventos. Em outras palavras, só se chegará a uma crítica bem fundamentada à garantia voluntarista oferecida pelos planejadores de um futuro utópico quando a história [Historie] como magistra vitae ex-trair seus ensinamentos não apenas das diferentes histórias, mas também das "estruturas dinâmicas" de nossa própria história [Geschichte].

Tradução de Wilma Patrícia Maas e Fabiana Angélica do Nascimento Revisão de Marcos Valério Murad