karina ferreira de oliveira -...
TRANSCRIPT
-
KARINA FERREIRA DE OLIVEIRA
COMO COOPERAR NA DOENA MENTAL NOS PASES EM DESENVOLVIMENTO?
SADE EM TRADUO E COOPERAO EM TIMOR-LESTE
UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA
PORTO, 2010
-
KARINA FERREIRA DE OLIVEIRA
COMO COOPERAR NA DOENA MENTAL NOS PASES EM DESENVOLVIMENTO?
SADE EM TRADUO E COOPERAO EM TIMOR-LESTE
UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA
PORTO, 2010
-
KARINA FERREIRA DE OLIVEIRA
COMO COOPERAR NA DOENA MENTAL NOS PASES EM DESENVOLVIMENTO?
SADE EM TRADUO E COOPERAO EM TIMOR-LESTE
Orientador. Prof. Dr. Paulo Castro Seixas
Co-orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto da Cruz Sequeira
Dissertao apresentada Universidade Fernando Pessoa
como parte dos requisitos para a obteno do grau de Mestre
em Aco Humanitria, Cooperao e Desenvolvimento.
UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA
PORTO, 2010
-
SUMRIO
O presente estudo nasce da anlise da prtica de um projecto de cooperao. Assim, procura explorar a realidade da cooperao em sade no contexto dos pases em desenvolvimento, especificamente tomando Timor-leste como estudo de caso. A expresso como cooperar na doena que o ttulo prope relaciona-se com a questo entre o transpor de modelos globais de sade ou o traduzir modelos locais.
Neste enquadramento, so objectivos deste estudo compreender a relao dos sistemas ideolgicos, o relativo sade e doena no Ocidente (descrito pelas teorias) e o Timorense (resultante da analise) e a importncia da sua anlise para uma cooperao responsvel e eficiente. No das suas semelhanas ou diferenas que se centra este estudo mas da sua traduo (resultados).
Trata-se de um estudo exploratrio de carcter descritivo qualitativo. A metodologia adoptada de carcter etnogrfico. As tcnicas de observao e conversao resultam no dirio de campo como instrumento base. O estudo abrangeu uma comunidade geograficamente concertada, sub-distrito de Laclubar, distrito de Manatuto e utilizou-se uma amostra por tipicidade.
Como resultados perceptvel que Timor-leste no enfrenta apenas o desafio das doenas relacionadas com a pobreza extrema. Preservar a sua identidade, as suas tradies e os seus valores, em relao com normas de sade tidas como universais, tambm um desafio para o pas. Em sade mental as potenciais estratgias passam pela interveno comunitria, criando condies que permitam os profissionais de sade trabalhar com as comunidades. Defende-se que conscincia cultural (cultural awarness) em sade, e especificamente dos seus processos de traduo cultural, um elemento determinante a viabilidade e sustentabilidade de cooperao eficiente e responsvel.
RESUMO (TETUM)
Estudu idanee mosu husi analize ba lalak projectu kooperasaun nian ida. Nunee, estudu, nee buka atu esplora realidade kona-ba kooperasaun iha saude iha kontestu nasaun siraneeb iha dalan ba desenvolvimentu, no horaa liuliu ba Timor-leste nuudar estudo ba kazu. Lianfuan sira iha titulo nia laran como cooperar na doena, iha relasaun ho kestaun kona-ba se atua foti modelu global sira saude nian ka trads modelu lokak sira.
Objetivu sira husi estudu ida-ne'e inklui komprende relasaun entre sistema ideoljiku sira, ida kona- ba sade no moras iha Osidente (hakerek iha teoria sira) no ida Timoroan sira-nian (rezulta husi anlize), no ms importnsia hodi hanoin kona-ba ne'e atu hala'o kooperasaun responsavel i efisiente. Estudu nee la foka ba saida maka hanesan i la hanesan, maib haree liuliu ba nia tradusaun (rezultadu sira).
Ida-nee estudu esploratriu deskritivu i kualitativu. Metodolojia ne'eb uza hanesan etnografia nian. Husi tknika observasaun no ko'alia, mosu diriu iha terrenu ne'eb sai hanesan instrumentu-baze. Estudu nee ko'alia kona-ba komunidade ida ne'eb hela iha sub-distritu Laklubar, distritu Manatutu, no uza amostra tuir tipisidade.
Nu'udar rezultadu sira husi estudu nee ita bele komprende katak timoroan sira la hasoru deit dezafiu ne'eb mosu husi moras relasiona ho kiak aat tebetebes. Mantein sira-nia identidade, lisan no valr oioin Timor nian rasik, iha relasaun ho norma sade ne'eb ita baibain konsidera universl, ne'e ms dezafiu ida ba nasaun ida-ne'e. Iha rea sade mentl, estratjia ne'eb bele uza liu husi intervensaun iha komunidade, hodi hamosu kondisaun sira di'ak atu f biban ba profisionl sade sira atu serbisu iha komunidade sira-nia leet. Estudu nee defende katak konxinsia kulturl (cultural awareness) iha sade, no liuliu kona-ba prosesu oioin tradusaun kulturl nian, ms elementu importante tebetebes ba viabilidade i sustentabilidade ba kooperasaun responsavel no efisiente.
-
ABSTRACT
This study arises from an analysis of the practice of a cooperation project. Thus, it explores the reality of cooperation in health in the context of developing countries, specifically taking East Timor as a case study. The expression, how to cooperate in disease, suggested in the title relates to the question of whether to incorporate global health models or to translate local models.
This is a qualitative descriptive exploratory study. The methodology adopted is ethnographic. The observation and conversation techniques culminate in a field journal as a base tool. The study covered a geographically concerted community, the sub-district Laclubar district of Manatuto and used a typical sample.
Within this framework, the goals of this study are to understand the relationship between ideological systems, the relative health and disease in the West (described by the theories) and in East Timor (resulting from the analysis) and the importance of their analysis to a responsible and efficient cooperation. The current study does not focus on their similarities or differences, but rather on results.
As a result it is apparent that East Timor faces not only the challenge of diseases related to extreme poverty. The preservation of its identity, traditions and values in relation to health standards taken as universal, is also a challenge for the country. In mental health, potential strategies might be related to community intervention, creating conditions for health professionals working with communities. It is claimed that cultural awareness in health, and specifically the processes of cultural translation, is a key factor in the viability and sustainability of efficient and responsible cooperation.
RESUMEN
Este estudio surge del anlisis de la prctica de un proyecto de cooperacin. Por lo tanto, explora la realidad de la cooperacin en materia de salud en el contexto de los pases en desarrollo, tomando, especficamente, Timor-leste como caso de estudio. La expresin Cmo cooperar en la enfermedad, a la que el ttulo se refiere, propone la alternativa entre transponer los modelos globales de salud mundial o traducir los modelos locales.
En este marco, los objetivos de este estudio son comprender la relacin de los sistemas ideolgicos, lo relativo a la salud y a la enfermedad en el Ocidente (descritos por las teoras) y el de Timor-leste (resultante del anlisis), y la importancia de su anlisis para una cooperacin responsable y eficiente. El estudio no se centra en las semejanzas o en las diferencias, sino en su traduccin (los resultados).
Se trata un estudio exploratorio de carcter cualitativo descriptivo. La metodologa adoptada es de carcter etnogrfico. Las tcnicas de observacin y de conversacin resultan en un estudio diario de campo como herramienta base. El estudio abarc una comunidad geograficamente concertada, el sub-distrito de Laclubar, del distrito de Manatuto y utiliz una muestra por tipicidad.
Como resultados, se desprende que Timor-leste no slo enfrenta al reto de las enfermedades relacionadas con la pobreza extrema. Preservar su identidad, sus tradiciones y sus valores en relacin con las normas sanitarias adoptadas como universales, es tambin un desafo para el pas. En salud mental, las posibles estrategias son la intervencin en la comunidad, creando condiciones para que los profesionales de la salud puedan trabajar con las comunidades. Se argumenta que la conciencia cultural (cultural Awarness) en la salud y, especficamente, sus procesos de traduccin cultural, son un factor determinante en la viabilidad y sustentabilidad de una cooperacin eficaz y responsable.
-
Agora veremos com um espelho e de maneira confusa,
mas depois veremos face a face
1Cor 13, 12
-
NDICE
INTRODUO
1. QUE DESENVOLVIMENTO?
2. DA ACO INVESTIGAO
2.1. RELATO EX-POST FACTO: REFLEXES SOBRE COOPERAO EM SADE MENTAL EM TIMOR-LESTE
2.1.1. Consideraes iniciais
2.1.2. O incio: enquadramento e intervenientes
2.1.3. Interveniente: eu, enfermeira em Timor-leste
2.1.4. Circunstncia em anlise: do ideal ao real
2.1.5. Da circunstncia interveno em sade mental
2.1.6. Da interveno investigao
2.2. METODOLOGIA
2.2.1. Objectivos do estudo
2.2.2. Processo de pesquisa
2.2.3. Condies da investigao: insero no terreno
2.2.4. Questes ticas
3. A VISO OCIDENTAL DA SADE MENTAL. AS TEORIAS
3.1. BREVE ABORDAGEM DE SADE/DOENA
3.2. DE NORMAL PATOLGICO
3.3. CONSIDERAES INTERNACIONAIS DA SADE MENTAL
3.4. BREVE ABORDAGEM DE CULTURA E SISTEMAS CULTURAIS
3.5. A DIMENSO CULTURAL DA LOUCURA E A DIMENSO PSIQUITRICA DA CULTURA
3.5.1. O papel do cuidador em sistemas culturais
3.6. TRADUO DA TRADIO
4. A VISO TIMORENSE DA SADE MENTAL. A ANLISE
4.1. A SADE MENTAL EM TIMOR-LESTE
4.1.1. Conceito Bulak
4.1.2 Comportamento/manifestao associadas a Bulak
4.1.3. Classificaes de Bulak
4.2. AS CAUSAS
4.2.1 Limites da interpretao
4.3. TRATAMENTO
4.4. O CONTEXTO FAMILIAR
11
15
22
22
23
23
24
26
28
29
30
31
31
34
35
36
36
38
39
40
41
42
44
46
48
48
49
50
51
53
55
58
-
4.5. ALGUNS ASPECTOS DA INTERACO SOCIAL E DA VIDA QUOTIDIANA
4.6. A SADE MENTAL E CRENAS EM TIMOR-LESTE: O ANIMISMO E A IGREJA CATLICA
4.7. UNIVERSO DOS SENTIDOS EM SADE MENTAL
5. A SADE MENTAL E A COOPERAO EM TIMOR-LESTE. RESULTADOS EM DILOGO
5.1. A SADE EM TRADUO
5.1.1. Profano ou Sagrado?
5.1.2. Cincia ou Tradio? Os dicionrios ou os Katuas?
5.1.3. Matan-dook: unio ou separao?
5.1.4. Mudana de paradigma?
5.1.5. Incluso ou excluso?
5.1.6. F-hatene ou f moral?
5.1.7. Dilemas em Timor-leste?
5.2. DA TRADUO EM SADE COOPERAO EM TIMOR-LESTE
5.2.1. A viso dos timorenses da cooperao em sade
5.2.2. Traduzindo modelos globais em modelos locais de sade
5.3. MEDIAO CULTURAL EM COOPERAO
5.2.1 O cooperante enquanto mediador cultural?
5.2.2. Como mediar diversidade cultural?
5.4. FORMAR PARA DESENVOLVER: CAPACITY BULDING
CONCLUSES
REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS
ANEXOS
Anexo I. Glossrio de ttum
Anexo II. Dirio de campo - Tradues em Sade Mental
Anexo III. Representaes Culturais
60
62
63
66
67
67
68
70
72
74
74
75
76
77
78
87
88
89
91
94
97
NDICE DE DIAGRAMAS
Diagrama 1. Sade Mental e Desenvolvimento
Diagrama 2. Grupos Representativos
Diagrama 3. Mediao em Cooperao
20
33
91
-
LISTA DE ABREVIATURA
Cor Carta de S. Paulo ao Corntios.
CBS - Culture Bound Syndromes
DSM -Diagnostic and Statistical Manual for Mental Disorders
ICD - International Classification of Disease and Related Health Problems
IDH ndice Desenvolvimento Humano
IPAD Instituto Portugus de Apoio ao Desenvolvimento
GHP Gross Hapiness Product
OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico
ODM Objectivos do Desenvolvimento do Milnio
OH Ordem Hospitaleira
OMS Organizao Mundial de Sade
ONG Organizao No governamental
ONGD Organizao No Governamental para o Desenvolvimento
PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento
UE Unio Europeia
UFP Universidade Fernando Pessoa
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
11
INTRODUO
Esta investigao nasce das anlises e reflexes sobre um projecto de cooperao
procurando explorar a realidade da cooperao em sade no contexto dos pases em
desenvolvimento, nomeadamente em Timor-leste. A expresso como cooperar na
doena mental que o ttulo prope relaciona-se com a questo entre o transpor da mera
aplicao de modelos globais de sade e a de traduzir modelos locais.
Em Timor-leste, h quem diga que foram os Irmos de So Joo de Deus1 que levaram a
doena mental para Laclubar2. O ndice de incidncia e prevalncia da doena mental
baixo em todo o territrio de Timor-leste. Laclubar tem um dos maiores indicadores do
Pas. O distrito de Manatuto, constitudo por 6 sub-distrito, em Maio de 2009
apresentava os seguintes dados: Manatuto 39 doentes; Laclo 21 doentes; Laleia 13
doentes, Soibada 19 doentes e Natarbora 22 doentes. Em Laclubar estavam
identificados e acompanhados 74 doentes mentais. Que leitura para estes nmeros?
A Cooperao Internacional para o Desenvolvimento pode reconfigurar estruturas
polticas, sociais, educacionais e de sade de um Estado. Atravs da Cooperao e dos
seus cooperantes, na lgica das teorias do desenvolvimento, possvel a implementao
de modelos globais de sade e a promoo de mudanas de comportamento em prol do
desenvolvimento local, interagindo, desta forma, ideias/valores internacionais com
conceitos sociais/locais. Cabe perceber se, nesta relao, a prpria Cooperao
Internacional coopera ou intervm. Isto , se desenvolve modelos de sade empricos,
ou traa caminhos em conjunto com os modelos de sade local (tendo em conta o
contexto cultural, econmico-social, ) em conjunto com a comunidade em que est
presente. Estas questes tambm se colocam no mbito da sade mental.
Existe uma verdade que defendida pela grande maioria dos intervenientes da
cooperao, quando no conduzida pela compreenso global das questes culturais da
comunidade alvo uma cooperao com tendncia para o fracasso. A conscincia
cultural (cultural awarness) um elemento determinante para a viabilidade e a
sustentabilidade da construo do seu prprio Estado.
1 Organizao No Governamental para o Desenvolvimento em Timor-leste, desde 2004. 2 Sub-distrito que se localiza num vale montanhoso no distrito de Manatuto, a 4 horas da capital.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
12
A cultura fornece modelos de e para os comportamentos humanos relativamente ao
binmio sade-doena. No entender os padres culturais, modelos tradicionais e
intervir apenas segundo uma perspectiva de doena-patologia dificulta a implementao
de estratgias/programas de sade.
Em Timor-leste, em simultneo com as dinmicas institudas pelo Ministrio da Sade,
so usadas prticas de medicina tradicional para a resoluo de problemas de sade. A
OMS (1978), na Declarao Alma-Ata, reconhece esta situao e propicia uma poltica
de integrao em cuidados de sade primrios3. O plano nacional das estratgias em
sade mental no faz referencia a esta integrao.
criado assim um dilema que inclui dois sistemas de valores: por um lado, a crena no
valor da tradio, e na passagem oral da cultura que vem dos antepassados e a
convico de seguir as origens e o tradicional, e por outro lado, a crena (im)posta pelos
intervenientes da aco e cooperao humanitria nos diversos modelos propostos,
internacionalmente aceites: a nova viso da sade, do gnero, da dignidade humana, a
igualdade no acesso a sade, a continuidade de cuidados, etc
Surgem ento uma questo fundamental. Em articulao com o Ministrio da Sade de
Timor-leste, que tipo de interveno necessrio para Timor-leste: instituda
internacionalmente por ONGs ou uma (re)soluo baseada em modelos locais?
Tambm se pode reflectir sobre a influncia que os cooperantes colocam tm, nas suas
intervenes, na problemtica da doena mental. Colocam-se vrias questes que
implicam a perguntam: tero levado os expatriados a doena mental para Timor-leste?
O estudo aqui apresentado inicia-se com interpretaes pessoais, enquanto cooperante,
na rea da sade mental em cooperao. No contacto com o povo timorense e nas
intervenes em sade foram identificadas situaes de doenas e modelos teraputicos
que precisam de ser analisados.
Os estudos antropolgicos tm uma longa tradio e so variadssimos os realizados em
Timor-leste. Porm, estes estudos centram-se apenas na viso da cultura timorense. O
3 Declarao Alma Ata (1978, p. 2). Os cuidados de sade primrios baseiam-se, nos nveis locais e de encaminhamento, nos que trabalham no campo da sade, inclusive mdicos, enfermeiros, parteiras, auxiliares e agentes comunitrios, conforme seja aplicvel, assim como em praticantes tradicionais, conforme seja necessrio, convenientemente treinados para trabalhar, social e tecnicamente, ao lado da equipa de sade e responder s necessidades expressas de sade da comunidade
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
13
presente estudo pretender ir para alem desse conhecimento. Ao compreender a
complexidade cultural e os sistemas de assistncia em sade mental em Timor-leste,
procura entrar nesse dilogo, ou seja nesse cruzamento de lgicas: colocar o sistema
cultural da sade mental timorense ao nvel das concepes de sade ditas universais,
mediadas pela cooperao internacional, possibilita que tais sistemas sejam reflectidos
conjuntamente. Posteriormente pretende-se identificar que estratgias podero ser
implementadas, no quadro da cooperao, para uma cooperao responsvel e eficiente.
Trata-se assim de um estudo exploratrio de carcter descritivo qualitativo. A
metodologia de carcter etnogrfico. As tcnicas de observao e conversao
resultam no dirio de campo como instrumento base (anexo II). O mbito da observao
abrange uma comunidade geograficamente concertada (sub-distrito de Laclubar, distrito
de Manatuto). Utilizou-se uma amostra tipicamente por julgamento e por tipicidade.
Este estudo encontra-se dividido em cinco partes. iniciado com um captulo
elucidativo sobre que desenvolvimento? Sem pretender aprofundar estas teorias, reflecte
as teorias de desenvolvimento e salienta que existem factores (como a cultura) que
condicionam o desenvolvimento e simultaneamente a sade.
O segundo captulo a descrio do caminho da aco investigao. A investigao
nasce a partir de um projecto de cooperao em sade mental e da necessidade de
reflectir e analisar prticas. Este captulo tem dois momentos, o relatrio ex-post
facto, uma equao pessoal realizada enquanto cooperante que expe as questes da
prtica e que proporcionaram a equao do segundo momento, a metodologia de
investigao.
A viso da sade mental ocidental descrita no captulo seguinte. Reflecte-se sobre as
teorias em sade mental e sobre a questo da cultura. Em linguagem de cooperao
pode ser entendido com as directrizes para o enquadramento de projectos em sade
mental em contexto transcultural pela viso dos doadores.
O captulo quatro apresenta A viso timorense da sade mental, resultante da anlise de
dados. Em Timor-leste, a doena mental associada a uma condio, bulak. O sistema
de crena vigente (lisan) remete-nos para uma interferncia sobrenatural sagrada (lulik)
das entidades anmicas da natureza, com maior ou menor influncia nas manifestaes
de sade/doena mental que influencia o tratamento.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
14
Da interpretao da anlise de dados resulta o captulo cinco A Sade mental e
Cooperao em Timor-leste. Resultados em Dialogo. So quatro as reas em anlise: a
sade em traduo, reflexes sobre os sistemas de valores culturais em Timor-leste; a
cooperao em sade mental, apresentado linhas orientadores para uma interveno
comunitria; a mediao cultural e a importncia de uma conscincia cultural em
cooperao e por ultimo, a capacitao humana, como condio para potenciar recursos
humanos em Timor-leste.
Ao longo do estudo so levantadas questes que podero ser pertinentes para futuras
investigaes. As concluses reflectem uma viso global destas questes e da sade
mental em Timor-leste.
Com este presente trabalho, possvel entender que a conscincia cultural em sade
um elemento determinante para a viabilidade e sustentabilidade de uma cooperao
eficiente e responsvel. Timor-leste no enfrenta apenas o desafio das doenas
relacionadas com a pobreza extrema. Preservar a sua identidade, as suas tradies e os
seus valores, em comunho com as normas aceites internacionalmente, tambm um
desafio para o pas. Em sade mental as potenciais estratgias passam pela interveno
comunitria, criando condies que permitam aos profissionais de sade trabalhar com
e para as comunidades, no associando apenas a sade mental s perturbaes mas ao
bem-estar geral das populaes.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
15
CAPITULO 1
QUE DESENVOLVIMENTO?
O desenvolvimento mobilizador de vontades e de mudana de transformao das
sociedades e dos indivduos4 permite avaliar tambm o nvel de progresso e de bem-
estar. Mesmo com o aumento da ajuda internacional a nvel do desenvolvimento e com
a definio de estratgias (ex: Objectivos do Desenvolvimento do Milnio) a qualidade
de vida das naes mais pobres pouco mudou nos ltimos tempos. uma realidade
simples, mas que leva a alguma reflexo. De que desenvolvimento falamos?
Do ponto de vista terico, o conceito de desenvolvimento de natureza
multidimensional e encontra-se directamente associado ao conceito de progresso, bem-
estar, felicidade, realizao, igualdade de oportunidades, oportunidade de escolha e
justia. Desta forma, o processo de desenvolvimento implicaria que a equidade se
constitusse como parte integrante na sua concretizao. Contudo, a histria tem
revelado uma realidade que contraria este princpio (Cunha, 2008). Observou-se que o
processo de desenvolvimento pode traduzir-se num agravamento das desigualdades quer
ao nvel econmico, como social e poltico (Amaro, 1990).
O conceito de desenvolvimento nasce com o fim da segunda guerra mundial5. Os
primeiros contributos surgem com economistas. Arthur Lewis (1955) com a teoria sobre
o crescimento econmico e Walt Rostow (1960) com a teoria do desenvolvimento, do
take off at ao consumo de massas. Ambos referem a convico da capacidade de
crescimento dos pases pobres, associando o desenvolvimento industrializao e
modernizao. Quer Lewis quer Rostow reforam uma perspectiva unidimensional de
desenvolvimento centrada no crescimento econmico, baseado num sistema nico e
universal (Lopes, 2008; Amaro, 2003). Assim, o desenvolvimento meramente
crescimento econmico e a cultura , na maioria das vezes, vista como obstculo ao
prprio desenvolvimento.
4 Roque Amaro, 2003 p. 1. 5 Cunha 2008 citado por Escobar, 1995; Sanchs e Esteva, 2005
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
16
No campo prtico, o questionamento da legitimidade das propostas desenvolvimentistas
surgem. visvel o agravamento econmico dos pases do sul, o aparecimento da
pobreza nos pases industrializados, a conscincia dos enormes custos ambientais dos
modelos de desenvolvimento e o aumento do fosso entre os ricos e os pobre (Lopes,
2008, Amaro, 2003). As alteraes mundiais no quadro poltico, nas estruturas
econmicas e sociais, decorrentes de um aumento de liberdade, aumentam a conscincia
de que o desenvolvimento s possvel se for centrado na realizao do potencial da
personalidade humana (Lopes, 2008). Colocando em causa o desenvolvimento
sustentado meramente no crescimento econmico.
A conferncia organizada pelas Naes Unidas (1972) e a publicao do estudo do
Clube de Roma intitulado Limits of Growth permitiram propor um novo indicador, o
ndice de Desenvolvimento Humano (IDH). Este indicador equaciona uma perspectiva
multidimensional do desenvolvimento, considerando aspectos da vida para alem do
material (social, cultural, ambiental). O IDH baseia-se em trs dimenses: a esperana
media de vida, educao e qualidade de vida.
Tambm em 1972, o Buto Jigme Singye Wangchuck, sinalizou o compromisso de
construir uma economia que serviria uma cultura nica com base nos valores espirituais
budistas. Cria o Gross Happiness Product (GHP). Este baseado no desenvolvimento
da sociedade humana atravs do equilbrio entre o desenvolvimento material e
espiritual. um indicador centrado em quatro pilares fundamentais: desenvolvimento
sustentvel, preservao e promoo dos valores culturais, a conservao do ambiente e
o estabelecimento de boa governana.
So exemplos de indicadores mensurveis de desenvolvimento que surgiram, levando a
que o prprio conceito se fosse transformando. Do crescimento econmico ao
desenvolvimento sustentvel6, do desenvolvimento local e desenvolvimento
participativo7 ao desenvolvimento social e desenvolvimento humano8 esta evoluo
6 A partir de 1972, pela Conferencia de Estocolmo e estudo do Clube de Roma integrada a conscincia ambiental. O primeiro termo que surge ecodesenvolvimento, passando para desenvolvimento sustentvel significando o processo de satisfao de necessidades actuais que no pe em causa a satisfao das necessidades das geraes futuras. (Amaro, 2003 p. 17) 7 O conceito de desenvolvimento local e participativo surge nos anos 60 com tcnicos da ONU designando-o, inicialmente, por desenvolvimento comunitrio ou village concept pela OMS (Amaro, 2003). 8 PNUD, Relatrio do Desenvolvimento Humano (1990). Documento pioneiro na definio e na metodologia para anlise do desenvolvimento dos pases em funo das dimenses humanas. As trs
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
17
traduz as diferentes perspectivas que o prprio conceito foi integrando ao longo dos
tempos. Como refere Amaro (2003), esta adaptabilidade vai ao encontro dos factores
mais privilegiados na sua concepo (ex: o ambiente, a comunidade/pessoas ou os
direitos humanos/dignidade humana) e o reconhecimento que as principais instituies
internacionais lhe proporcionavam (ex: OCDE, Banco Mundial, EU, Naes Unidas).
No mbito da cooperao para o desenvolvimento (ONG; Naes Unidas), so os seus
tcnicos que decompem o conceito de desenvolvimento eurocntrico para um conceito
local e participativo9. Esta nova perspectiva surge pelo confronto sentido entre a
implementao de projectos baseados em modelos ocidentais de
desenvolvimento/doadores e a realidade e as necessidades das populaes/beneficirios.
Este conceito resulta tambm do cruzamento de duas contribuies decisivas: as
diversas experincias de terreno (via indutiva) que demonstram a viabilidade e
pertinncia num contexto de globalizao10 e o paradigma territorialista numa
perspectiva mais acadmica.
O paradigma territorialista v nas particularidades territoriais e na implicao de
diferentes agentes sociais, incluindo a populao, a grande estratgia para mudar o real.
(Manata, 2001; Lopes, 2008). O que est em causa neste processo referente noo de
desenvolvimento dependente, no apenas do contexto econmico, mas da conjuntura
poltica, das condies socioculturais subjacentes a cada regio, onde so privilegiados
os recursos endgenos (os recursos localmente disponveis), sem afastar os factores
exgenos.
dimenses detalhadas so: Vida longa e saudvel (esperana de vida nascena); Educao (taxa de alfabetizao de adultos e taxa de escolarizao bruta combinada do ensino bsico, secundrio e superior); Qualidade de vida, nvel de vida digno (Produto interno bruto per capita). Apesar de no conseguir avaliar indicadores como igualdade de gnero, desigualdades sociais e o respeito pelos direitos humanos e liberdade poltica, consegue obter uma viso alargada do progresso humano e da complexa relao entre os rendimentos e o conceito de bem-estar (Lopes, 2008). 9 Desenvolvimento Local: O processo de satisfao de necessidades e de melhoria das condies de vida de uma comunidade local, a partir essencialmente das suas capacidades, assumindo aquela o protagonismo principal nesse processo e segundo uma perspectiva integrada dos problemas e das respostasAmaro (2004, p.18) citando Amaro (1992), Houe (2001), Pacqueur (1989) e Vachon (1993). Desenvolvimento Participativo: Na adopo de uma metodologia participativa, nos processos de mudana e de melhoria das condies de vida das populaes, desde a concepo e deciso avaliao, passando pela execuo, direco e acompanhamento, implicando a afirmao pela cidadania, nos seus direitos e deveresAmaro (2004, p. 18), citando Seers (1979), Ghai (1978). 10 Referido por R. Amaro, 2004 citando Bhatuagar e Williams (1992), Friedmann (1996) e Ghai (1990).
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
18
Henriques (1990)11 sublinha que este ltimo modelo baseado na participao global
dos diferentes recursos com vista resoluo das principais necessidades do territrio.
As caractersticas locais so elementos essenciais a considerar no processo de
desenvolvimento de cada regio.
A lgica funcionalista encara o desenvolvimento numa perspectiva centralizadora. O
objectivo a unidade nacional com vista obteno do crescimento econmico
mximo. Desta forma, o desenvolvimento impulsionado a partir de cima e
propagado para baixo (Amaro 1990). O modelo territorialista pretende criar o inverso:
a perspectiva descentralizada; Isto , nos actores e nos recursos locais so procuradas e
encontradas as solues que promovem o processo de desenvolvimento12.
A produo local e a manuteno dos rendimentos levam promoo do investimento
local, construindo as foras impulsionadoras para o desenvolvimento local. Aps
encontradas as condies necessrias para a satisfao das necessidades, pelos recursos
locais, com os agentes locais que o impulso do desenvolvimento ascende a uma escala
mais elevada (local regional nacional). No entanto, no muito vivel pensar-se
localmente sem se considerar as condies externas (Amaro, 1990, p. 45), o progresso
social s possvel com a abertura ao exterior. Torna-se primordial a centralidade de
uma lgica local, com agentes endgenos sem desprezar os agentes exgenos da
realidade regional: Agir Local, Pensar Global
Segundo Amaro (1990), trata-se do modelo territorialista que assenta numa viso
integrada e diferenciada do desenvolvimento. Reala a importncia das comunidades
locais, salientando as suas capacidades e necessidades; valoriza as identidades regionais
e locais; destaca o desenvolvimento de formas de solidariedade e comunicao (formais
ou informais); apoia-se na descentralizao e promove a participao, autonomia,
solidariedade e diferena.
Por natureza, este conceito de desenvolvimento territorialista que vai de encontro
prtica da cooperao para o desenvolvimento que defendida ao longo do estudo,
contudo o predomnio de um pensamento econmico uniforme afectou quase todos os
11 Citado por Cunha 2008 12 A este conceito tambm esta fortemente associado o conceito de reforo de capacidades (empowerment e capacity building).
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
19
pases de desenvolvimento e determinou o contedo e os objectivos da assistncia ao
desenvolvimento prestado pelos doadores 13.
Em ateno aos problemas com que o mundo se debatia e os desafios que o novo sculo
apresentava, em Setembro de 2000, na Cimeira do Milnio, 189 pases assinaram um
nico acordo global: Objectivos do Desenvolvimento do Milnio (ODM). Trata-se de
um pacto entre as naes que permite combater a pobreza no mundo14. Estes objectivos
so suportados por uma poltica internacional a concretizar at 2015. Reflectem um
compromisso, sem precedentes, para combater a injustia e as desigualdades no mundo:
pobreza, analfabetismo e doenas. Tratam-se de objectivos globais, adoptados para ser
concretizados por todas as naes e, ao mesmo tempo, visam uma realidade nacional
para o seu xito. Com os ODM, a sade torna-se cada vez mais um indicador central de
desenvolvimento15, dando corpo necessidade da avaliao de prticas em sade.
Esta avaliao em sade fortemente influenciada pela valorizao que se coloca ou na
sade ou na doena. Ou seja, se h uma viso centrada meramente na rea
curativa/interventiva ou se uma perspectiva que visa a preveno e a promoo da
sade no indivduo e nas comunidades. Isto porque combater a pobreza e as doenas
subjacentes cria impactos nos indivduos e nas comunidades, promover a sade dos
indivduos produz melhorias nas condies de vida com efeitos positivos sobre o
desenvolvimento.
Dodd (2006, p. 4) refere tambm que "health in development means looking at how
policies across government impact on health and are affected by health , assim como
as pesquisas desenvolvidas identificam bi-directional link between health and poverty
reduction, namely that poor people are more likely to get ill and that better health
outcomes can, in turn, generate economic growth.
Especificamente na rea de sade mental, a OMS16 refora a relao existente entre a
sade mental e o desenvolvimento. Esta inter-relao mediada tambm por uma srie
13 Ricuper Rubens, 2003, pp. XIV In: Lopes, 2006. 14 Implica 8 compromissos definidos: 1 Erradicar a pobreza extrema e a fome; 2- Alcanar o ensino primrio universal; 3 - Promover a igualdade de gnero; 4 Reduzir a mortalidade de crianas; 5 Melhor a sade materna; 6 Combater o HIV/SIDA, malria e outras doenas; 7 Assegurar a sustentabilidade ambiental; 8 Promover uma parceria mundial para o desenvolvimento. 15 Dos oitos objectivos do desenvolvimento do Milnio trs so relacionados com a sade: Reduzir a mortalidade das crianas, Melhorar a sade materna e Combater HIV/SIDA, malria e outras doenas. 16 http://www.who.int/mental_health/policy/development/en/index.html
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
20
de factores como: nutrio, educao, habitao, direitos humanos, capacitao, servio,
acesso aos cuidados de sade, entre outros. A interaco mtua que liga a sade ao
desenvolvimento permite trabalhar positivamente, facilitando o envolvimento activo e
bem sucedido dos indivduos e das comunidades em desenvolvimento e negativamente,
aumentando o risco de manter o ciclo vicioso da pobreza e as adversidades sociais,
como ilustrado na imagem (Diagrama 1).
Diagrama 1. Sade Mental e Desenvolvimento (Fonte: http://www.who.int/mental_health/policy/development/en/index.html)
Em suma, numa primeira fase o desenvolvimento sinnimo de crescimento
econmico. Quando no foi vista como sinnimo, a economia servia de base s teorias
do desenvolvimento como uma condio necessria da qual dependem todas as Naes.
Actualmente, as reas socioculturais, humanas e ambientais pretendem ser vistas de
uma forma equitativa economia. Vrios indicadores (como os referidos anteriormente)
evidenciam esta importncia. A cultura mesmo no sendo facilmente mensurvel,
tambm um elemento que propicia desenvolvimento. Incorporando a cultura no
desenvolvimento possvel reconhecer o valor econmico da cultura e o valor cultural
da economia.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
21
Para instaurar, modernizar e diversificar as estruturas e para assegurar o estabelecimento
de sistemas com equidade social, incluindo na sade, necessrio muito mais que
aplicar questes tericas, cuja orientao depende dos modelos conceptuais que se
utilizem. Reconhecer que existem capacidades e caractersticas culturais nos pases de
desenvolvimento, assim como ambas precisam de ser desenvolvidas, sintetiza o
reconhecimento de que as estratgias de desenvolvimento no tm de ser importadas.
Haver receitas simples para o desenvolvimento? A maturidade da anlise na rea do
desenvolvimento revela que importa conhecer as diferentes formas de actuao, e que
este processo deve ser transparente e baseado no dilogo (Lopes, 2006). No h um
modelo nico e uniforme de desenvolvimento aplicvel a todas as situaes e a todas as
realidades.
No existem regras, prescries ou solues para o processo de construo do
desenvolvimento. fundamental reconhecer que a mudana de atitudes em matria de
polticas de desenvolvimento no uma tarefa fcil. s vezes so os interesses criados,
e no os objectivos estabelecidos propriamente ditos, que determinam a natureza das
iniciativas de desenvolvimento. O processo que conduz implementao total das
mudanas necessrias leva tempo e irregular. No devem ser esperados resultados
imediatos (Lopes, 2006).
Este captulo no pretende trazer luz discusso sobre desenvolvimento, nem uma
renovao do conceito. Pretende pr em evidncia sectores (como a cultura,
caractersticas territoriais, sade, capacitao humana) que esto em ntima articulao
com o desenvolvimento propriamente dito. Abraando estes sectores de
desenvolvimento possvel assegurar uma politica publica de sade. Pois, se estes
sectores no so determinantes, so mobilizadores para um aco emancipada e
participativa, condicionando directa ou indirectamente os indivduos, as suas
comunidades e nesta lgica, as suas Naes.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
22
CAPITULO 2
DA ACO INVESTIGAO
Todos os conhecimentos so testemunhais porque o que conhecem sobre o real (a sua
dimenso activa) se reflecte sempre no que do a conhecer sobre o sujeito do
conhecimento (a sua dimenso subjectiva), refere Santos (2007, p. 29) Segundo o
mesmo autor (1993), a cincia torna-se reflexiva no momento em que a relao sujeito-
objecto substituda pela anlise da relao do sujeito, enquanto sujeito emprico, com
a comunidade cientfica em que se integra. A reflexibilidade no uma simples
conscincia temporal, uma relao lgica. A reflexibilidade subjectiva ou
personalizante privilegia o questionamento directo e em confronto entre o investigador
enquanto produtor de conhecimento e o investigador enquanto homem comum que
partilha os seus conhecimentos e os avalia. A reflexibilidade presente no relato procura
pela via da introspeco, tornar explcitos pr-juzos, valores e opes. Coloca o limite
da sua subjectividade como a objectividade do conhecimento que se pretende produzir
neste estudo (Sousa, 1992).
O desenho de um processo de avaliao pressupe que se ponha em comum dois modos
de raciocinar: o da produo de conhecimento e do da gesto de programas
(independentemente do domnio onde a avaliao se encontre). As metodologias de
avaliao referem-se s formas deliberadas e racionalizadas de colocar questes e
desafios ao processo de deciso e concepo de programas, projectos, polticas, etc.
Estes processos tm por base sistemas de reflexes criticas a partir de informaes
recolhidas no decorrer do acompanhamento ou no trmino da execuo (Capucha et al,
1996). Assim, possvel avaliar o trabalho a aprender com a mesma avaliao
(passagem dos juzos de valor para os juzos de utilidade).
2.1. RELATO EX-POST FACTO: REFLEXES SOBRE COOPERAO EM SADE
MENTAL EM TIMOR-LESTE.
Uma avaliao ex-post incide sobre o processo interventivo aps terminada uma
interveno que se pretende avaliar. assim possvel e til sistematizar as experincias
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
23
e as actuaes. A equao pessoal realizada, relato ex-post facto, no mbito da
cooperao em sade e a sua avaliao, ponto de partida para uma nova construo
cognitiva (investigao).
2.1.1. Consideraes iniciais
A equao pessoal apresentada descreve o contexto do projecto, as actividades
desenvolvidas e as reflexes que sustentaram a prtica, os dilemas pessoais e a ligao
da prtica com a necessidade de investigao. Centram-se no espao temporal (Abril de
2006 a Abril de 2007) e geogrfico (Timor-leste: Laclubar e Dli) onde foi realizado o
projecto de cooperao para o desenvolvimento17.
2.1.2. O incio: enquadramento e intervenientes
A presena dos Irmos de So Joo de Deus em Timor-leste surge por um pedido da
Igreja Timorense (na pessoa do Bispo da Diocese de Baucau, D. Baslio do Nascimento)
Provncia Hospitaleira, para uma presena/interveno na rea da sade mental. Aps
visita exploratria ao terreno por parte dos Superiores da Provncia Portuguesa da
Ordem Hospitaleira, em Novembro de 2002, foram percebidas as inmeras
necessidades e dificuldades em todos os campos, mas sobretudo no mbito da Sade
Mental, rea de interveno prioritria da Ordem Hospitaleira.
No incio de 2004, a Provncia Portuguesa da Ordem Hospitaleira enviou para Timor-
Leste uma equipa de religiosos, composta, numa fase inicial, por um portugus
(Assistente Social) e um brasileiro (Psiclogo Clnico). O sub-distrito de Laclubar, no
17 Este captulo resulta da adaptao e transcrio de vrios documentos apresentados ou publicados: - Proposta de Protocolo de Cooperao, entre Enfermeira Voluntria (Karina Oliveira), Irmos de So Joo de Deus (pelo Irmo Vtor Lameiras), Centro de Sade de Laclubar (Pela Enfermeira Almerinda) e a Direco Distrital de Sade (pelo Sr. Agapito Soares). Manatuto, Junho de 2006. - Artigo de revista: Oliveira, Karina; Lameiras, Vitor. 2007. Por caminhos de Laclubar: Mapeamento Socio-Sanitario. Hospitalidade, 71 (276), 42-47. - Comunicao proferida subordinada ao tema Etnografia de uma misso em Timor-leste, no I Simpsio de Antropoloxia: Antropoloxia ao Cooperacin ao desenvolvimento, Faculdade de Humanidades de Ferrol, 8 de Abril de 2008,
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
24
distrito de Manatuto, Timor-leste, foi o local de eleio. A escolha de Laclubar deveu-se
aos seguintes factores:
1. A no presena ao momento de outra equipa de religiosos no local, tornando
mais necessria e pertinente esta presena.
2. As imensas dificuldades e necessidades da populao em todas as reas
pastorais, com especial enfoque para a pastoral da sade.
3. A situao geogrfica, em zona de alta montanha, de difcil acesso e onde os
indicadores de desenvolvimento para o pas so dos mais baixos.
Esta equipa, reconhecendo que o trabalho de cooperao e de desenvolvimento
bastante amplo, com diversas reas de interveno e com o objectivo de responder de
forma mais especfica s necessidades, desenvolveu as estruturas necessrias para a
criao de um novo projecto: Leigos Missionrios Hospitaleiros. Trata-se de um
projecto de Voluntariado Missionrio para jovens que, durante um perodo de tempo
(mnimo de um ano), se disponibilizam de forma empenhada e dedicada, a trabalhar em
Laclubar, juntamente com os Irmos de So Joo de Deus, nas reas de sade e aco
social, com vista promoo do desenvolvimento. O projecto dos Leigos Missionrios
Hospitaleiros teve o seu incio em Abril de 2006.
2.1.3. Interveniente: eu, enfermeira em Timor-leste
Em Timor-leste, aps um ms de permanncia em observao em Laclubar, foi
elaborado um protocolo de cooperao entre o Chefe Distrital de Sade do Distrito de
Manatuto (Sr. Agapito Soares), a Enfermeira Chefe do Centro de Sade de Laclubar
(Enf. Almerinda Pereira), os Irmos So Joo de Deus (pelo Ir. Vtor Lameiras) e por
mim. Este documento estabelecia as reas de sade prioritrias de interveno, no
Centro de Sade de Laclubar e de colaborao com os enfermeiros.
Nesse documento18 estava estabelecido no assumir nenhuma responsabilidade por
qualquer rea de sade, mas colaborar nas diversas reas, sempre que se justifique ou
18 Documento: Proposta de Protocolo de Cooperao. Manatuto, Junho de 2006, p. 2.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
25
seja pedida colaborao; dar prioridade prestao de cuidados de enfermagem na
rea de sade mental num perodo de colaborao dos 10 meses restantes da misso.
Em Sade Mental, conjuntamente com a enfermeira responsvel local, realizmos as
seguintes actividades: identificao de novos casos; acompanhamento dos casos
anteriormente identificados; elaborao e registo dos processos clnicos e de
enfermagem dos utentes; monitorizao e realizao das estatsticas pedidas pela
Direco de Sade; encaminhamento para especialistas quando necessrio (os
psiquiatras apenas exercem na capital, Dili (4 horas de distncia)); administrao e
gesto do regime teraputico dos doentes, formao aos utentes/famlias e promoo da
sade mental.
Outras actividades de enfermagem desenvolvidas no centro de sade foram: as visitas
domicilirias e respectivos registos em processo clnico; a articulao com as unidades
de sade, nomeadamente especialidades mdicas e cirrgicas do Hospital Nacional em
Dili. Era recorrente os profissionais de sade detectarem e tratar um doente apenas com
os meios de assistncia de sade existentes na montanha. Em caso de doena grave, o
doente acabava por aguardar pacientemente a morte, no sendo accionados os meios
para o transporte e encaminhamento para unidades complementares necessrias.
Ao nvel das outras reas dos cuidados de sade primrios, como sade materno-
infantil, tratamentos, sade do adulto, farmacologia, cuidados ao doente com
tuberculose, implementao do processo de enfermagem, etc o apoio estava
disponvel conforme as necessidades e os pedidos de ajuda, mas sem assumir nenhuma
responsabilidade de coordenao, nem o activismo19 da mudana, visto que o perodo
de tempo de cooperao era muito curto, e tambm porque a linha de actuao estava
centrada na realizao de actividades no criadoras de qualquer tipo de dependncia de
profissionais estrangeiros.
Em simultneo, realizei ainda o mapeamento scio-sanitrio de Laclubar. Os objectivos
centravam-se no levantamento das condies scio-sanitrias das famlias, assim como
conhecimento e interaco com a realidade vivida em todas as aldeias. Este
levantamento foi realizado atravs de visitas/entrevistas a todas as famlias residentes
nas 29 aldeias que compem o Sub-distrito de Laclubar. Estas visitas permitiram 19 O termo activismos vem do uso do termo activistas usado, tambm, na prtica de terreno para voluntarios.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
26
identificar casos urgentes de sade mental e ainda mostrar comunidade de Laclubar
como que o doente mental pode receber tratamento e pode ser igualmente inserido na
comunidade. Os dados recolhidos e as interaces estabelecidas permitiram organizar
de uma forma objectiva e participada as intervenes necessrias nas reas identificadas
como prioritrias: a Educao e a Sade, confirmando a necessidade urgente de
priorizar a Educao para a Sade.
A par destas actividades, foi aprovado um projecto, pelo Instituto Portugus de Apoio
ao Desenvolvimento (IPAD), realizado em parceria com a Fundao de Evangelizao e
Culturas, que tinha por objectivo melhorar a resposta da comunidade s suas
necessidades bsicas no mbito dos cuidados primrios de sade, em especial os
materno-infantis. Atravs de um programa de Formao (Programa de desenvolvimento
de competncias de Educao para a Sade Preveno/Reduo) e de Sensibilizao
(Promoo da mulher e da criana) na rea dos cuidados de Sade privilegiou-se a
seleco e capacitao de agentes de mudana (mulheres e jovens) junto da
comunidade.
2.1.4. Circunstncias em anlise: do ideal ao real.
Aps a chegada inicial a Timor-leste, foi-me permitido um ms de adaptao, isto , um
ms unicamente para observao e integrao social na comunidade, e a actuar em
funo das necessidades pontuais do momento. Uma adaptao que os livros sobre
Timor-leste, formaes presenciadas e pessoas que me falaram sobre Timor-leste, no
conseguiram transmitir. Este ms foi um perodo de adaptao necessria. Permitiu-me
a diminuio dos pensamentos crticos e dos activismos normais. Procurar viver ao
ritmo do pas onde se realiza a misso permitiu-me entrar em dilogo com a cultura do
prprio pas, neste caso, Timor-leste. Que aprendesse no apenas a olhar, mas a
observar, e a no fazer juzos de valor logo nas primeiras horas. Permitiu-me aculturar e
que a comunidade se adaptarsse minha presena. Muitas das minhas estratgias de
trabalho foram estabelecidas neste ms, quando, pela observao e dilogo, foi
estabelecido o levantamento de necessidades.
Desta fase destaco, como grande dilema pessoal, determinar onde estabelecer o limite
entre o respeito pela cultura e o respeito pela proteco/reivindicao dos direitos
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
27
humanos. E como ver esta diferena? Sentia e sinto que, relativamente ao povo
timorense, posso admirar os seus rituais fnebres, as danas tradicionais, as formas de
vestir, entre outros, mas quando se trata da dignidade humana no que toca
emancipao da mulher, ao trabalho infantil, educao primria, igualdade e
equidade nos servios de sade, entre outros, sempre difcil gerir a aceitao e a
necessidade de intromisso. Existem padres e prticas culturais do povo timorense que,
segundo a viso europeia, pem em causa valores humanos. So as crianas com menos
de cinco anos que vo buscar a gua fonte, logo pela madrugada, para a famlia
inteira; so os ancios que tm prioridade hora da refeio e ao nvel dos tratamentos
de sade; numa famlia de 7 filhos so escolhidos quais que estudam, quais que vo
trabalhar nas terras e quem que fica a tomar conta da casa, sem a mesma igualdade de
oportunidades. mais valorizada a sabedoria do ancio e, por isso, colocado em
situao de destaque relativamente vida de uma criana, pois esta ainda possui pouca
sabedoria. Faz-los compreender que cada vida tem um valor incalculvel, um valor
nico e prprio, independentemente de ser homem, mulher, criana ou ancio, foi-me
difcil. E sentia tambm que, por vezes, esta (in)definio em aceitar, influenciar,
intervir influenciava os julgamentos, e consequentemente, a forma ideal/real de
actuar.
No mbito da cooperao, compreendi lentamente que, como Pessoa, estava disposta a
trabalhar num pas com caractersticas prprias, devendo ser apenas um instrumento de
trabalho, de servio, de ajuda promoo da sade, da educao, e no uma soluo
para todos os problemas. Isto , ser um filtro para a aco: a minha formao e a minha
viso do mundo so importantes, mas, no pas em que estou, a aco s pode ser
validada depois de passar pelo filtro, neste caso especfico, do povo timorense. A minha
viso etnocntrica minha apenas. O sucesso da implementao e sustentabilidade dos
projectos, na rea de cooperao para o desenvolvimento, na educao, sade,
capacitao humana, possvel se nos desvinculamos das nossas vises pessoais e
construirmos uma nova viso - um novo conceito - em conjunto com o povo. Para isto,
necessrio tempo, espao e, principalmente, aceitao do outro como actor principal
no seu desenvolvimento.
No que toca rea da sade mental, que foi a rea com a minha maior participao,
sinto que foi, e continua a ser, importante a interveno. Factos que justificam esta
afirmao esto intimamente relacionados com os nmeros. Isto , anteriormente
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
28
chegada dos Irmos de So Joo de Deus a Laclubar, e mesmo j tendo sido
implementado pelo Ministrio da Sade o programa de sade para interveno em
sade mental (que era um programa considerado prioritrio em termos de actuao),
apenas estavam identificados 3 casos de doena/deficincia mental. Em 2004, as
intervenes dos Irmos de So Joo de Deus, como tcnicos de sade, identificaram
aproximadamente 20 novos casos. No final do meu ano de trabalho em Laclubar, j
tinha promovido o tratamento de mais 22 casos e 37 novos casos estavam a ser
encaminhados.
O conceito timorense face doena/deficincia mental remete para o sistema de crenas
animistas vigente. Tendem a atribuir a doena mental interferncia das entidades
animistas (Rai Nain traduzido a letra: Senhores da Terra) ou das almas dos defuntos
(buan). associado um forte estigma doena mental que conduz ao isolamento dos
doentes, pelo que se torna prioritrio iniciar o envolvimento da famlia e posteriormente
da comunidade. A actuao especializada, mesmo de estrangeiros, nesta rea, pode
fazer com que deixe de ter apenas uma interpretao com base num sistema de crenas,
e que passe tambm (e principalmente!) a ser entendida como uma doena que pode e
tem tratamento na maioria dos casos.
2.1.5. Das circunstncias interveno em sade mental
As circunstncias do dia-a-dia em Timor-leste levaram implantao de uma
interveno em sade mental condicionada pelas necessidades e pelos intervenientes
existentes no momento.
As circunstncias centram-se num quotidiano marcado por um forte isolamento vivido
pelas populaes, que propiciado pela deficincia nas vias de comunicao existentes
ou a inexistncia das mesmas (havendo algumas aldeias acessveis unicamente a p ou a
cavalo) e, consequentemente, as deficincias de acesso aos servios que a existncia das
diferentes estruturas (entre as quais o centro de sade) no conseguiu colmatar.
Tornou-se emergente a necessidade de apostar verdadeiramente num sistema de
interveno comunitria que permitisse quebrar o paradigma tradicional da actuao das
equipas de sade mental (que se limitavam a aguardar a procura da ajuda), sair das
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
29
estruturas existentes e ir ao encontro da pessoa com doena mental no seu contexto de
vida, na sua comunidade, famlia e habitao.
As estratgias de interveno comunitria propostas e implementadas com dificuldades
traduziam-se no envolvimento dos diferentes intervenientes, constituindo uma equipa
multidisciplinar composta por enfermeiros responsveis pelo programa de sade mental
(expatriados e autctones), psiclogo, assistente social e assistente espiritual.
equipa competia a coordenao das estratgias implementadas, a coordenao da
actuao dos diferentes agentes mobilizados e a sinalizao e o acompanhamento dos
doentes e sua famlia, em estreita colaborao com o mdico psiquiatra deslocado em
Dli e com a comunidade de base.
Tornou-se fundamental a interveno em rede, integrando a unidade familiar, (o tipo de
organizao especfico da famlia timorense (uma-Kain)) j que a determinao familiar
e a deciso da assistncia e acompanhamento que pode ser dado a algum, depende da
vontade e resoluo da famlia, na pessoa do chefe do lar (katuas uma-kain).
2.1.6. Da interveno investigao
A interveno comunitria, referida em National Mental Health Strategy for a Mentally
Healthy Timor-leste, 2005, o grande desafio e, ao mesmo tempo, a grande estrutura
para melhorar os servios e suportes em sade, principalmente a sade mental, em
Timor-leste.
O Ministrio de Sade de Timor-leste, no tempo do decorrido do projecto, tinha como
frase-guia O nosso hospital a nossa comunidade. Esta expresso representa
tambm, a tentativa do projecto de cooperao em sade mental em Timor-leste. Na
maioria das vezes, foi na comunidade o local onde encontrvamos os meios para a
cooperao em sade, para a definio das estratgias. O tratamento (ou na maioria das
vezes a manuteno da sade dos indivduos em sade mental) seguia sempre a linha da
famlia: as suas referncias, as suas capacidades, as suas vontades. Por vezes eram
necessrias verdadeiras negociaes com os ancios da famlia (como se de uma troca
se tratasse), para permitir que o doente pudesse iniciar o tratamento por tcnicos de
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
30
sade estrangeiros, acompanhados por enfermeiros timorenses. As implementaes de
modelos de sade globais pareciam utopias que no encaixavam na realidade timorense.
Quando se atribui uma grande relao entre sade mental e mitos vigentes/crenas
culturalmente determinadas, a mudana no pode centrar-se exclusivamente no
indivduo e sua famlia, mas em todo o contexto social e cultural. Assim como, estando
plenamente conscientes que uma cooperao que no conduzida pelo entendimento
global das questes culturais do meio envolvente uma cooperao com tendncia para
uma deficiente efectividade dos seus objectivos e/ou mesmo o fracasso.
Torna-se urgente pensar na concepo de estratgias adequadas, permitindo uma maior
aproximao da sade mental em contexto cultural s implementaes em cooperao.
Desenvolvimento de competncias de profissionais de sade, aces de sensibilizao,
capacitao de agentes locais, programas que privilegiem o impacto da sade mental na
comunidade, estabelecimento de parcerias governamentais, entre outros, podem ser
estratgias que, estruturadas, permitiro a mudana dos modelos presentes.
possvel intervir na sade, mas para a obteno de ganhos de sade autnticos
necessrio o conhecimento da experincia humana tal como ela vivida e como
definida pelos prprios indivduos, isto , a doena-experincia. (Abreu, 2003, Craig,
1999; Kleiman, 1980; Gonalves, 2004). Neste sentido, emergiu a necessidade de
realizar um estudo que tem por base a cultura timorense, permitindo a adaptabilidade
cultural da prestao de cuidados e a centralidade da resposta s necessidades, como
forma de sustentar uma interveno e que no seja desfasada da realidade presente.
2. 2. METODOLOGIA
O mundo social no pode ser compreendido em termos de relaes causais ou leis
universais. Isto deve-se ao facto das aces humanas se basearem e serem
condicionadas por interpretaes de carcter social: intenes, motivos, atitudes e
crenas20. A necessidade de explorar em pormenor a complexidade das aces e
relaes humanas, as experincias vividas e os saberes produzidos no universo humano,
20 Segundo Stew, (1996, p. 558), citado por Abreu, (2001, p. 143)
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
31
em contextos sociais e culturais especficos, so pontos de partida que aliciam a
investigao. (Abreu, 2001; Moreira, 1994).
2.2.1. Objectivos de estudo
Face o exposto, para explorar e dar resposta as questes inicialmente enunciadas so
estipulados os seguintes objectivos:
o Compreender a complexidade cultural e o sistema de assistncia em sade
mental em Timor-leste;
o Compreender a cooperao em sade/doena mental em Timor-leste;
o Identificar estratgias para a cooperao em sade mental em Timor-leste;
necessrio pensar na complexidade cultural (partindo das memrias e das tradies)
para a identificao das percepes, manifestaes e experincias do povo timorense.
Ao mesmo tempo, identificar as prticas para o tratamento da doena mental adoptadas
pelo povo timorense, identificando os principais actores na interveno nos sistemas de
assistncia em sade existentes. S aps esta compreenso poder ser possvel analisar a
complexidade da Cooperao para o Desenvolvimento em Sade num contexto cultural
especfico e propor um projecto de efectiva cooperao internacional e intercultural.
2.2.2. Processo de Pesquisa
Trata-se de um estudo exploratrio de carcter descritivo qualitativo. A metodologia
de carcter etnogrfico. As tcnicas de observao e conversao resultam no dirio de
terreno como instrumento base. O mbito da observao abrange uma comunidade
geograficamente concertada (sub-distrito de Laclubar, distrito de Manatuto). Utilizou-se
uma amostra tipicamente por julgamento por tipicidade. uma investigao com
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
32
propsito de aplicao, no qual se conjuga a escassa literatura e a imerso no terreno
definido tambm por trabalho de campo21.
A investigao qualitativa tem caractersticas que esto presentes neste estudo22:
- A investigao qualitativa indutiva. O investigador conceptualiza a partir das noes
e das representaes culturais;
- necessrio ter em conta a realidade global. No existem variveis pr-definidas, mas
a viso holstica do indivduo;
- O investigador tende a misturar-se para compreender a experincia das situaes.
A pesquisa qualitativa baseia-se em pressupostos segundo os quais possvel obter a
difcil compreenso das experincias como so vividas e verbalizadas pelas pessoas23.
Pressupe tambm uma pesquisa exploratria indutiva. Nesta pesquisa, a partir dos
dados ainda no trabalhados mas que so observados, possvel identificar as
caractersticas gerais e as grandes dimenses das questes abordadas.
Estes dados analisados permitem traar suposies e/ou direces que, posteriormente,
possam ser devidamente interpretados e explicados. Isto , a principal tarefa ser
organizar e conceptualizar dados que se dispem pela explorao, permitindo assim
uma explorao detalhada do estado de arte em sade mental e efectivar uma
cooperao intercultural slida em Timor-leste, assim como, abrir portas para futuras
investigaes (Moreira, 1994).
A perspectiva metodolgica de carcter antropolgico, pois surge a necessidade de
explorar a viso de dentro. Explorando as experincias de vida em sade mental e as
aces que advm num contexto social e cultural especfico, Timor-leste. Este
conhecimento exige o contacto directo com a prpria cultura e desta forma, a
21 Segundo Iturra, 1986, p. 147 A Analise de literatura por si s, apenas poder captar a reiterao das condutas estereotipadas resultantes duma classificao prvia. O trabalho de campo procura, no conjunto da informao sobre o presente e o passado, contextualizar as relaes sociais que observa. 22 Segundo Taylor e Bogdan, 1984, referido por Manuel, 2007. 23 Abreu, 2001; Bogdan, 1984, Manuel, 2007.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
33
investigao vai centrar-se no que cada pessoa , no que cada pessoa diz, tendo em
ateno a rede de significados que isso congrega24.
Exigido o contacto cara a cara com os indivduos, nos seus contextos de vida de forma
natural, abraada uma comunidade geograficamente concentrada, Sub-distrito de
Laclubar do distrito de Manatuto.
Para uma aproximao da noo global da perspectiva da prpria cultura, a anlise parte
de uma perspectiva individual (anlise do lugar de cada sujeito) que participa no
processo de intercmbio da identidade cultural em relao ao sistema cultural
timorense. Na impossibilidade de congregar todo os indivduos, a amostra por
julgamento no aleatria por tipicidade - indivduos que representam os grupos tpicos.
Observa se atravs do diagrama 2. So pessoas escolhidas intencionalmente em funo
da relevncia apresentada nesta rea25. No h assim uma definio de critrios tendo
em conta a idade, o sexo e/ou a escolaridade de cada indivduo, mas o seu
lugar/representao no sistema de sade.
Diagrama 2. Grupos Representativos
Os instrumentos metodolgicos so a observao naturalista e a conversao naturalista
dos diversos grupos.
24 Segundo, Gonalves, 1992, p. 71 A moderna cincia antropolgica organiza-se e cria novas produes que vo construir novas bases axiolgicas e epistemolgicas. Estruturam-se atravs do desenvolvimento e da conjugao de trs coordenadas fundamentais o social, o cultural e o simblico na interaco de trs momentos concretos do processo de investigao observao, analise e interpretao ligados entre si por relaes de complexidade e de reversibilidade. 25 Grupos que foram identificados enquanto cooperante no terreno.
Outros: - Estudantes universitrios; - Formadores;
katuas
Cooperantes
Bulak e famlia
Lideres locais: - Chefes de suko; - Padre; Catequistas; - Matan-dook
Profissionais de Sade: - Centro de sade local; - Departamento Nacional de S. Mental;
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
34
A observao naturalista corresponde a uma observao no participada que permite
ver, descodificar e perceber a relao entre o discurso e o comportamento do sujeito que
vivencia o facto que expressa26.
As conversaes, ou tambm definidas por entrevistas no-estruturadas, correspondem
s conversas de rotina na vida social quotidiana. A flexibilidade que este tipo de
entrevista predispe permite a elucidao de dados variados e detalhados que podem ser
usados posteriormente em anlise. Para isto, torna-se elementar elaborar uma lista de
tpicos (guio de entrevista) com os assuntos relevantes que servem de guia
conversao, onde as questes podem ser formuladas, de acordo com o pretendido e
colocadas na ordem mais adequada investigao (Moreira, 1994).
Das observaes e conversaes naturalistas surgem as notas de campo27 que permitem
a posterior anlise (anexo II).
A participao efectiva, a informao obtida, a desmistificao/clarificao de conceitos
sobre a matriz cultural da doena mental em Timor-leste so condies para produzir,
infundir e efectivar possveis modos da actuao da cooperao em contexto
internacional. Desta forma, a investigao tende a influir propsitos na aco.
2.2.3. Condies da investigao: insero no terreno
A insero no campo foi realizada no ano da interveno em contexto de cooperao
(2006-2007), como descrito no relato ex-post facto, numa viso direccionada
prtica. Houve interaco com timorenses e com expatriados que actuavam no terreno
no mesmo perodo.
O campo familiar e a relao de proximidade que nasceu no mbito da cooperao,
permitiu usufruir de condies adequadas investigao: falar a lngua e compreender o
dialecto local; conhecer a natureza do discurso e as suas limitaes, identificando a
fidelidade s expresses; conhecimento dos lideres locais e dos actores em contexto de
26 Aula com o prof. Wilson Abreu na Universidade de Aveiro, a 8 de Maio de 2009. 27 Citado por Moreira (1994, p. 111) referido por Sanjel (1990), O processo da redaco de notas extremamente produtivo no s em termos de descrio mas pelas primeiras reflexes que proporciona acerca das sequncias e elementos de interaco
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
35
sade; conhecimento real e participativo nos casos clnicos (doente e familiares). Desta
forma, no momento dedicado investigao propriamente dita, a integrao no campo
de estudo28, ofereceu melhores condies de compreenso, decifrao de cdigos,
interpretao de comportamentos para uma anlise dos dados de forma mais fidedigna.
Contudo, na subjectividades das relaes, de realar tambm os limites do (no)
estatuto demarcado pelo povo timorenses, ou seja, ser mulher, jovem, no casada,
associada a igreja e que actua com estrangeiros.
2.2.4. Questes ticas
A investigao segue a linha dos requisitos legais em vigor em Portugal, que vo de
encontro aos de Timor-leste. chegada ao pas, fui apresentar o projecto de
investigao ao Ministrio da Sade de Timor-leste, na pessoa do Secretario Geral da
Sade, o Senhor Agapito Soares. Aprovou a minha permanncia no pas e enalteceu a
realizao do estudo, oferecendo-me para estar ao dispor de qualquer necessidade.
Os entrevistados ou sujeitos a estudo foram devidamente informados da natureza das
perguntas que lhes foram dirigidas e autorizaram referir os seus nomes. Todos os dados
recolhidos permanecem estritamente confidenciais, conservados em lugar seguro e o
retorno da informao, tida por conveniente, ser fornecida em momento oportuno.
Qualquer alterao ocorrida durante a realizao do estudo ser tida em conta e
comunicada.
28 Para o povo de Timor-leste importante um malai que volta a ilha. Poder estar fortemente relacionado a histria do irmo mais novo que regressa a casa. Estabelece-se uma ligao mais familiar, algo como Voltou para continuar a ajudar, no se esqueceu!. A investigao foi realizada no mbito de regresso.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
36
CAPITULO 3
A VISO OCIDENTAL DA SAUDE MENTAL. AS TEORIAS
Ao longo dos tempos, as perturbaes mentais foram percepcionadas e interpretadas de
diversas formas. Desde o modelo cientfico biomdico s explicaes sobrenaturais os
doentes mentais foram temidos, admirados, ridicularizados, explorados ou torturados,
(OMS, 2001) mas muito raramente curados. O conceito da sade mental tem vindo a ser
reconstrudo29.
O domnio global da cincia ocidental dita moderna, como conhecimento, precipitou a
centralizao do saber, exercendo uma constante interpretao de desconfiana contra
os supostos saberes que no so assumidos como universais (Santos, 2007). Com a
valorizao da induo como construo de novos conhecimentos, a valorizao da
interdisciplinaridade e da viso integrada e a interaco com os saberes tradicionais, a
centralidade de que a cincia dita moderna gozava antes, foi reelaborada e matizada
(Amaro, 2003), alargando a diversidade epistemolgica do mundo (Meneses, 2008).
Os desafios e o debate sobre o que constitui conhecimento valido, de quem para quem
e sobre quem, continuam 30. A complexidade em torno das epistemologias de raiz
predominantemente eurocntrica, fica esboada neste captulo, permitindo,
posteriormente o alargamento a uma reflexo mais ampla sobre a (re)configurao das
experiencias da sade mental em contexto cultural, no caso especifico de Timor-leste. A
sade mental uma realidade multi-dimensional e complexa que exige uma anlise
escala global para ser exprimida a nvel local.
3.1. BREVE ABORDAGEM DE CONCEITOS SADE/DOENA
A Organizao Mundial de Sade (OMS, 1948) define Sade como um estado
completo de bem-estar fsico, mental e social, pelo que no se trata somente de uma
ausncia de doena ou de incapacidade do prprio individuo.
29 E apenas nos finais do sc. XX se descreve e se coloca em evidncia a dimenso cultural na doena mental (Abreu, 2003). 30 Maria Paula Meneses, 2008, p. 10.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
37
Um dos elementos chaves para entender a sade/doena compreender como
traduzida. Segundo Kleiman (1980) existe doena-patologia (disease) e doena-
experincia (illnes). A doena-patologia indica-nos as alteraes das normalidades de
estruturas ou funcionamento de rgo ou sistemas (processo biolgico). Ocorre mesmo
sem reconhecimento ou percepo do indivduo. A doena-experincia a traduo da
experincia e percepo do indivduo, relativamente aos problemas decorrentes da
patologia, bem como a resposta social doena; subjectivo mas objectivo ao doente.
A experincia da doena no vista como simples reflexo do processo patolgico no
sentido biomdico do termo. Considera-se que conjuga normas, valores e expectativas
tanto individuais como colectivas e se expressa em formas especficas de pensar e agir.
(Ucha e Vidal, 1994; Gonalves, 2004).
Assim, reconhece-se que as respostas face as complicaes subjacentes doena no
podem ser apenas respostas as alteraes orgnicas. Tambm se constituem socialmente
e, simultaneamente, se remetem directamente a um mundo compartilhado de prticas,
crenas e valores, mas ainda com mais evidncia quando se fala em doena mental.
Definir o que Sade Mental complexo, pois o seu conceito no est completamente
definido 31, contudo, claro para a OMS que a Sade Mental essencial para o bem-
estar geral das pessoas, das sociedades e dos pases 32. Toca os conceitos de bem-estar
subjectivo, auto-eficcia percebida, autonomia, competncia, dependncia inter-
geracional, auto-realizao do potencial intelectual e emocional da pessoa. A definio
possvel de Sade Mental como um equilbrio que ultrapassa a globalidade bio-
psicossocial, para se definir tambm numa dimenso espiritual e cultural. Segundo
Stuart (2001), os parmetros de sade mental so menos claros que os que definem a
doena mental.
Sobre o conceito de perturbao mental evidencia que devemos admitir que nenhuma
definio estabelece adequadamente limites preciosos para o conceito de perturbao
mental 33. Carece assim de uma definio slida. Pode ser considerada como uma
manifestao de uma disfuno comportamental, psicolgica e biolgica no sujeito e
que est associada a sofrimento da prpria ou dos outros que a rodeiam ou incapacidade
31 Ordem dos Enfermeiros, 2008 32 Relatrio sobre a Sade Mental no Mundo, 2001, p. vi. 33 DSM IV-TR (2002, p. xxxi)
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
38
numa rea importante do funcionamento ou como um risco significativamente
aumentado de sofrer morte, dor incapacidade ou uma perda importante da liberdade.
Esta sndrome no uma resposta esperada face a um acontecimento particular
(exemplo: a morte de algum querido).
3.2. DE NORMAL A PATOLGICO
Ao nvel da doena mental necessrio considerar atentamente o significado do
comportamento de um indivduo e o seu contexto. Este pode reflectir uma adaptao a
foras realistas da vida do indivduo ou desvio as normas do grupo. (Stuart, 2001). Por
outras palavras, delicado assinalar diferenas sociais (ex: estilos de vida incomuns,
comportamentos aberrantes, etc.) como doena. Desta forma definir normalidade e
patolgico, em contexto scio-cultural, torna-se crucial.
Normas ou regras servem para indicar pessoa como se deve comportar em cada
situao, do ponto de vista do que desejado por uma sociedade ou cultura. Essas
normas so aprendidas pela educao que dada pelos pais, professores, pessoas de
referncia, etc. O termo normal pode ser mal interpretado quando usado para o que
usual, mas as normas tendem a definir a normalidade dos comportamentos adoptados
pelos indivduos. O anormal o indivduo que, num determinado comportamento, se
desvia da norma de um determinado grupo (Stuart, 2001)
As perturbaes mentais devem ser correntemente consideradas como uma
manifestao de uma patologia/disfuno comportamental, psicolgica ou biolgica do
sujeito. Nem os comportamentos desviantes (por exemplo: politico, religioso ou sexual)
em conflitos primrios entre sujeitos e a sociedade so perturbaes mentais, a menos
que o desvio ou conflito se transforme num sintoma do sujeito (DSM IV - TR). Por
exemplo: A depresso pode ser considerada normal ou patolgica. Sentimentos de
tristeza, abatimento, desanimo so normais, inerentes condio humana, como reaco
a um acontecimento psicossocial negativo, expresso de mal-estar ou insatisfao geral
ou simplesmente enquanto flutuao habitual do estado de nimo. De um modo geral
so sentimentos transitrios e apenas afectam moderadamente a capacidade funcional
da pessoa. Quando o padro especfico de diferentes sintomas que aparecem de forma
simultnea se mantm durante um longo perodo de tempo, produzem mal-estar e
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
39
comprometem a capacidade funcional, considerada doena. Pode ter origem na
reaco a um acontecimento que geralmente produz tristeza, mas esta tristeza dura
muito mais tempo que o habitual e provoca dificuldade em fazer as actividades, e outros
sinais mais fortes que a tristeza normal.
Encontra-se tambm disseminado o conceito vago que quando classificada a
perturbao mental classificada a pessoa. Na realidade esta a ser classificada a
perturbao que a pessoa apresenta (DSM-IV). Pela mesma ordem de ideias, no
existem em perturbaes mentais doenas pr-classificadas em que se deve intervir, mas
doentes que necessitam de interveno.
3.3. CONSIDERAES INTERNACIONAIS DA SADE MENTAL.
A classificao de doenas uma prtica comum nos profissionais de sade. Segundo
Abreu, 2003 as classificaes so plataformas de referncias que permitem no apenas o
diagnstico, mas o desenvolvimento de investigao aplicada, a realizao de estudos
comparativos, por exemplo, formao e principalmente um dilogo comum.
A nvel da sade existe varias nomenclaturas. A considerar: ICD (Internacional
Classification of Disease and Related Health Problems) que a classificao com mais
relevncia nas diversas classificaes desenvolvidas pela Organizao Mundial de
Sade e DSM (Diagnostic and Statistical Manual for Mental Disorders) que foi
desenvolvido pela Associao Psiquitrica Americana e est na verso IV.
O DSM IV completa-se com o ICD no que respeita aos sistemas de classificao das
perturbaes mentais; a classificao que tem mais relevncia para a rea das
patologias mentais. A ampla aceitao internacional do DSM sugere que esta
classificao til na descrio das perturbaes mentais tal como so experimentadas
no sujeito em todo o mundo34, fornecendo uma perspectiva universalista; contudo a
evidencia tambm sugere que os sintomas e a evoluo de numerosas perturbaes so
influenciados por factores culturais e ticos35
34 DSM IV-TR, 2002 p. xxxiii 35 DSM IV-TR, 2002, p xxxiv.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
40
Esta noo de universalidade pressupe que os princpios que seguem as pesquisas nas
sociedades ocidentais podem ser aplicado directamente nas sociedades no-ocidentais, o
que no necessariamente verdade. DSM enfatiza a importncia da cultura no contexto
da sade mental (Eshun e Gurung, 2009)
S a ltima verso do DSM inclui, em apndice, um glossrio de sndromes culturais
(Culture Bound Syndromes - CBS) e a introduo de um esboo para a formulao
cultural. A clnica e as tradues de matriz cultural que esto na base do CBS permitem
perceber que se trata da descrio de um conjuntos de comportamentos, traos de
personalidade ou crenas sancionadas culturalmente como normas (ex: estados de
possesso, audio de vozes de parentes falecidos). Foram concebidas para favorecer
a aplicabilidade do DSM entre vrias culturas, destacando, tambm desta forma os
desafios abrangentes para a compreenso da diversidade cultural em sade mental.
Porm, escrito por Abreu (2003) e segundo Rogler (1998), questionvel se apenas h
doenas culturais assinaladas no CBS ou se outras doenas culturais podero ser
estendveis s outras categorias diagnsticas referidas no DSM-IV-TR.
Esta ltima referncia indica-nos a necessidade de se criar e manter um espao aberto
para o dilogo da traduo cultural em sade mental a nvel transcultural.
3.4. BREVE ABORDAGEM DE CULTURA E SISTEMAS CULTURAIS
Existem variadssimas definies de cultura. Geertz (1989, pp.135) diz que A
cultura, no so cultos e costumes, mas as estruturas de significado atravs das quais
os homens do forma a sua experiencia. Ressalta desta forma, a cultura como o
conjunto dos materiais a que recorremos enquanto indivduos e enquanto sociedades
para elaborar as nossas experincias (Laplantine, 1978). Significa que encontraremos a
doena mental automaticamente em todas as zonas do globo; mas nem sempre com os
mesmos significados.
Laplantine distingue item cultural de Matriz Cultural. Item cultural qualquer trao
de comportamento simples construtivo de uma cultura (o vestir, o alimentar, o
comprimento). Matriz Cultural a estrutura-me de significados pela qual a nossa
experincia se torna inteligvel para nos prprios e para todos aqueles que encontramos.
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
41
esta matriz cultural que define a nossa relao original com o contexto em que
vivemos, como a nossa identidade cultural. Isto , a cultura do local onde nascemos
constitui uma das principais fontes de identidade cultural. No est nos genes, mas
efectivamente pensamos nela como parte integrante da nossa natureza essencial. No
nascemos com a nossa cultura, mas formada e transformada no interior da
representao (Hall, 2001).
Quando os sistemas culturais so estudados, constata-se, como referido por Geertz
(1989, p.123), os sistemas de smbolos so fontes extrnsecas de informao em termos
das quais a vida humana pode ser padronizada (mecanismos extra pessoais para a
percepo, compreenso, julgamento e manipulao do mundo). Os padres culturais
(religiosos, filosficos, estticos, cientficos, ideolgicos) so programas; eles
fornecem um diagrama para a organizao de processos sociais e psicolgicos.
A ideologia uma viso da realidade composta de ideias e valores organizados num
sistema que trata dessa realidade e que tenta reproduzir a mesma (Pereiro, 2004). Geertz
(1989) defende a ideologia como sistema cultural, uma vez que toda a cultura possui
uma prpria ideologia. Esta ideologia apresentada com a dimenso orientadora dos
princpios que so aceites pelo senso comum como indiscutveis, definindo o que
valorizado ou no, em termos comportamentais de determinados grupos. Desta forma, a
ideologia nomeia um compromisso com o estabelecimento e a defesa dos padres das
crenas e valores. Entender, dentro do contexto cultural, o sistema de crenas e valores
permite identificar a identidade e a matriz cultural de cada povo.
3.5. A DIMENSO CULTURAL DA LOUCURA E A DIMENSO PSIQUITRICA DA CULTURA
Afirmar que os critrios psiquitricos so os mesmos em toda a parte, como defendido
no DSM, no justificar o sistema patolgico ocidental em vigor (que tambm possui
uma certa relutncia s diferenas culturais?). Esta expresso denota a universalidade da
doena mental, que se elabora sempre num processo de desculturao36 da prpria
36 Desculturao: Conceito proposto por Georges Devereux, referido por Laplantine (1978). Designa o processo patolgico pelo qual a cultura no mais reconhecida pelo que - um sistema de referncia que permite a comunicao entre as pessoas - mas utilizada para fins neurticos ou psicticos. Isto , a matriz cultural e simblica nos quais esto fundadas nossas experincias "superinvestido" e se
-
Como levar a doena mental aos pases em desenvolvimento? Sade em traduo e cooperao em Timor-leste
42
cultura e, no apenas, de desajustamentos sociolgicos em relao ao meio envolvente
(Laplantine, 1978).
Segundo Laplantine, (1978, p. 67) a loucura parece ser rejeitada para a periferia do
sistema cultural, faz parte integrante deste sistema no qual se forma e desempenha um
papel. Tendo a cultura como a viso principal, as leis de funcionamento do sistema
cultural so importantes de captar, antes de determinar quais os critrios de normalidade
e de anormalidade e as causas reais da loucura.
Estas leis so definidas por Laplantine (1978) como: qualquer cultura cria as suas zonas
patolgicas e a sua prpria definio de loucura; qualquer cultura pe disposio
mecanismos de compreenso e amortecedores do real (sendo alguns deles
manifestamente patolgicos); qualquer cultura tem a sua maneira de pr-estruturar os
sintomas da doena mental. Tambm referido por Abreu (2003, p. 210) cada grupo
cultural define um todo analisvel e possui uma determinada unidade psquica.
Tendo como ponto de vista a dimenso psiquitric