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  • 8/17/2019 JUSTIÇA RESTAURATIVA AnaBeatrizFerreiraDias

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      Anais do SITED Seminário Internacional de Texto, Enunciação e Discurso

    Porto Alegre, RS, setembro de 2010Núcleo de Estudos do Discurso

    Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

    A JUSTIÇA RESTAURATIVA POR UM VIÉS DA PESQUISAEM LINGUAGEM: POR UMA NOVA VISÃO DE MUNDO1 

    Ana Beatriz Ferreira Dias2 

    Iniciemos este diálogo destacando a forma como compreendemos a noção delinguagem. Iniciemos pela definição daquilo que pode passar a ser o objeto dalinguística –  a linguagem, como quer Geraldi (2009). Para o autor (ibid ., p.110), pareceque precisamos reconhecer nosso objeto não mais a língua como um sistema abstrato deformas linguísticas, mas, antes, a linguagem e seu funcionamento em toda a suacomplexidade.

    Partindo dos estudos realizados pelo Círculo de Bakhtin e pelos estudiosos maiscontemporâneos que tomam o pensamento desse grupo como base, procuramos

    defender, neste trabalho, uma concepção sociointeracional de linguagem. Como umaatividade, a linguagem é entendida aqui como uma forma de ação, ou melhor, umainter-ação que se dá entre sujeitos que falam com certos propósitos comunicativos emuma determinada situação social.

    A linguagem assim considerada se constitui entre indivíduos socialmenteorganizados que pertencem a uma mesma comunidade linguística. Além disso, éfundamental que esses indivíduos estejam inseridos em uma situação social concreta,que eles “tenham uma relação de pessoa para pessoa sobre um terreno bem definido”,

    como afirmam Bakhtin/Voloshinov (1990, p.70). Nesse quadro, encontra-se a interação verbal concreta entre um eu e tu situada

    em um determinado contexto social mais imediato e mais amplo que possibilita a

    emergência da linguagem, a produção de sentidos e a constituição dos sujeitos. Issoquer dizer que:a) a interação entre os sujeitos falantes é o espaço onde se funda a própria linguagem. Alinguagem surge justamente da interação entre os sujeitos durante um processocomunicativo.

     b) a produção de sentidos de qualquer materialidade ideológica é construída por meio darelação social entre os sujeitos falantes durante a interação verbal. Para oestabelecimento do sentido, há uma espécie de negociação entre eles, onde entra em

     jogo uma série de palavras e contrapalavras, nem sempre verbalizadas, que remetem adiferentes visões de mundo, crenças, pontos de vistas que se encontram e dialogamharmoniosamente ou não. Nesse processo de construção de sentidos, a língua em suaconcretude não pode ser definida apenas como um conjunto de elementos linguísticos,mas sim como um produto da interação verbal entre sujeitos, como asseguramBakhtin/Voloshinov (1990).c) como um ser social, o sujeito constitui-se enquanto tal por meio da interação queestabelece com o outro. A alteridade instaura, portanto, a identidade do sujeito. Geraldi(1997, p.28) afirma que, em uma perspectiva bakhtiniana, não podemos considerar que

    1  O texto aqui apresentado é uma atualização de parte de um trabalho originalmente publicado pelaautora: DIAS, A. B. F. Estudos da linguagem e justiça restaurativa: um estudo para o século 21.  In:MIOTELLO, V. (Org.). Fios ideológicos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. p.11-26.2 Licenciada em Letras - Hab. Português e Literaturas da Língua Portuguesa, e mestre em Linguística,

    ambos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente, é aluna de doutorado noPrograma de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), soborientação do Prof. Dr. Valdemir Miotello, e bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]

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    um sujeito pronto se comunica com outro igualmente acabado, mas que “os processos

    interlocutivos estão sempre a modificá-los ao modificar o conjunto de informações quecada um dispõe a propósito dos objetivos e dos fatos do mundo”.

    Destacada a noção de linguagem, passemos a discussão de outra realidadeintrinsecamente relacionada a essa, a de enunciado concreto, também chamado aqui detexto (verbal e não-verbal). Sendo uma atividade complexa e multifacetada, alinguagem singulariza-se e se materializa em enunciados concretos, os quais possueminterlocutores inseridos em uma determinada situação sócio-histórica que participam deuma interação verbal com certos fins comunicativos. Podemos, então, estudar alinguagem por meio de enunciados concretos.

    Ocupando uma instância bem definida na comunicação discursiva de dadocampo da comunicação humana, os enunciados dialogam e se relacionam mutuamente,ou seja, mantêm relações dialógicas entre si, para cristalizar certas posições sociais quesó podem ser definidas na relação com outras tantas:

    Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aosenunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemosa palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma,completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certomodo os leva em conta [...]. É impossível alguém definir sua posiçãosem relacioná-la com outras posições. (Bakhtin, 2003, p.297)

    Dessa forma, os enunciados, que participam de um diálogo, sempre inconcluso,são inseparáveis de um acento apreciativo, de um juízo de valor sobre certo tema,tornando-se impossível dissociá-los de seu conteúdo axiológico.

    Interessa-nos o texto porque ele é uma forma de compreendermos o mundo a

    nossa volta: ele é uma forma de compreendermos nossas próprias realidades. Bakhtin(2003) defende que não há outra forma de estudarmos o homem social senão pelostextos que este produz. O sujeito, além de se constituir pelo texto, fala e se exprimeatravés de enunciados concretos, de modo que, quando vamos estudar o homem,“procuramos e encontramos signos em toda a parte e nos empenhamos em interpretar oseu significado” (ibid ., p.319). Por isso, o autor russo sugere que o texto seja o ponto de

     partida de toda e qualquer disciplina inserida nas Ciências Humanas, que se preocupamcom o homem e suas realidades.

    Ao partimos do texto para descobrirmos dimensões de certa realidade, queremosnão apenas compreender o que somos, mas principalmente tentar rejeitar aquilo quehistoricamente nos tornou o que somos hoje. Utopia ou não, ler o mundo com outraslentes pode desconstruir verdades absolutas. Com isso, podemos compreender nossomundo para, enfim, nele marcar nossa posição responsiva e ativa.

    Pensemos uma justiça restaurativa (JR) pelo viés da linguagem como atividadesociointeracional. Pensemos o diferente, o inovador, nem que seja para conhecermosoutras realidades. Pensemos em possíveis revoluções. Como sugere Silvestri (2007),demos uma mão para a revolução, o que quer dizer que devemos nos mexer nos dias dehoje e “mexer -se nada mais é do que colocar-se como sujeito de experimentação, comosujeito de abertura, ou ainda, sujeito que se permite o experimentar”, como afirma aautora (ibid ., p.79).

    Tomando como base os estudos de Zehr (2008), compreendemos a justiça

    restaurativa como um “modo de vida” baseado em uma série de elementos éticos para propor um novo olhar sobre as relações entre os sujeitos. Essa forma de justiça oferece

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    meios alternativos para lidar com conflitos, cuja aplicação deve ser contextual e nãoabstrata, ou seja, deve ser aplicada a partir de um certo contexto3.

    Em sua dimensão prática, a justiça restaurativa baseia-se em uma série de

    valores para restaurar as relações sociais prejudicadas por um dano, dentre eles: participação ativa dos sujeitos durante o processo de justiça; respeito com o outro e suafala; reconhecimento dos laços sociais que unem todos os sujeitos (inclusive vítima eofensor); responsabilidade etc. Nas palavras de Howard Zehr: “a justiça restaurativa nos  faz lembrar da importância dos relacionamentos, nos incita a considerar o impacto denosso comportamento sobre o outro e as obrigações geradas pelas nossas ações” (Zehr ,2008, p.265).

    É importante termos em vista que a justiça restaurativa é uma resistência à justiça atual que ocupa o estatuto de ideologia oficial. Em contato direto com o sistemaideológico de justiça, a visão restaurativa revisa certos elementos daquela forma de

     pensamento oficial em prol de uma futura transformação social no qual seja vitoriosa.

    Ainda com suas diferenciações, essas duas visões de justiça estão em influênciarecíproca constante, de modo que parece mais adequado pensarmos que ambas fazem parte de um processo de evolução social e não que uma substituirá/excluirá ou não aoutra. Se considerarmos a relação entre as duas visões de justiça a partir dessa segundaforma, como mera possibilidade de substituição/exclusão, estaríamos nos aproximandoda ideia de convergência superficial de dois fenômenos fortuitos e situados em planosdiferentes, de que falam Bakhtin/Voloshinov (1990), em  Marxismo e filosofia dalinguagem.

    Inseridos nesse grupo social defensor da JR, Toews e Zehr (2006), ao questionaras formas de adquirir conhecimento, notam que a justiça tradicional, a justiça atual queconhecemos, chamada por muitos estudiosos de retributiva, compartilha muitos

    elementos-chave com o paradigma dominante de pesquisa. Ambos tomam o sujeitocomo objeto passivo, buscam manter os padrões dominantes de poder, desvendam umasuposta verdade, única, sobre os fatos etc.

    Tendo isso em vista, esses autores elencam uma série de “diretrizes

    transformadoras”, a fim de contribuírem para a construção de um modo de pesquisa quevá ao encontro dos ideais de JR. Dentre essas diretrizes, encontram-se as seguintes:aceitar que o conhecimento é, em grande medida, construído em um processo inter-relacional; admitir que “nossas verdades” são parciais e contextualizadas e que o

     pesquisador não é um especialista neutro; tomar os sujeitos como seres ativos eresponsáveis que podem, conjuntamente, discutir suas condições e criar soluções paraseus problemas; abandonar processos de reificação do sujeito etc. (Toews & Zehr,2006).

     No presente estudo, acreditamos que essas diretrizes podem ser associadas ànoção de linguagem como atividade sociointeracional fundamentada no pensamento

     bakhtiniano. A pesquisa faz-se a partir da linguagem, assim como nossas ações são

    3 Muitos pesquisadores apontam a falta de consenso sobre a definição de justiça restaurativa. De acordocom Pinto (2005), torna-se difícil conceituá-la, afinal a prática restaurativa só pode ser apreendida em suafase inicial, estando, por isso, seu conceito em construção. Recentemente, Saliba (2009, p.144) confirma afalta de uniformidade em relação à definição, “estando o conceito num processo de discussão edesenvolvimento”. Ainda para Saliba (Ibid.), o dissenso existe até mesmo na própria terminologia “justiçarestaurativa”, pois alguns estudiosos da área preferem expressões sinônimas, como “justiça restauradora”,

    “justiça reintegradora” ou “justiça reparadora”. Ainda assim não podemos confundir justiça restaurativacom outros meios de resolução de disputas, como a negociação e a arbitragem. Sobre essasdiferenciações, sugerimos Vasconcelos (2008).

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    realizadas, de alguma forma, por meio da linguagem. Além disso, como jáargumentamos anteriormente, só podemos compreender as realidades humanas por meiode textos.

     Nesse sentido, é relevante lembrarmos a “poderosa ética” e a “poderosa perspectiva utópica" que Bakhtin nos oferece em seus escritos como uma contraposiçãoa um “mundo sem valores” e “desiludido”, como ressalta Faraco (2001, p.125). Segundo esse estudioso (ibid .), é com Bakhtin que foi possível a ligação em um eloindissociável do agir do homem como um ser em transformação com uma linguagemtambém dinâmica:

    Pela primeira vez, descortina-se a possibilidade de conectar o agir dohomem  –   na sua condição essencial de ser sociohistórico, criador,transformador e em permanente devir  –   com uma linguagemfundamentalmente plástica, isto é, adaptável à abertura, aomovimento, à heterogeneidade da vida humana (Faraco, 2001, p.122).

    Diante disso, podemos afirmar que a noção de linguagem proposta pelo Círculode Bakhtin pode ser um elemento fundamental na construção de um modelo de pesquisae (consequentemente) uma determinada visão de mundo defendida por vários

     pesquisadores que se ocupam em incluir em seus estudos os sujeitos e seus dizeres, suasrealidades, suas valorações e suas condições sócio-históricas como formas de descobriro homem e suas realidades.

    Referências

    BAKHTIN, M. Estética da criação verbal . Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo:Martins Fontes, 2003.BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad.Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 5.ed. São Paulo: HUCITEC, 1990.FARACO, C.A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica.  In:FARACO, C.A. et al. (Org.). Diálogos com Bakhtin. 3.ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 2001.

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     In: SLAKMON, C.; MACHADO, M.R.; BOTTINI, P.C. (Org.). Novas direções na

     governança da justiça e da segurança. Brasília –  DF: Ministério da justiça, 2006. p.419-453.

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