jürgen moltmann
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Sobre O teólogo Jürgen MoltmannTRANSCRIPT
A TEOLOGIA DO SÉCULO XX: Jürgen Moltmann
Introdução
O teólogo alemão Jürgen Moltmann
O teólogo alemão reformado Jürgen Moltmann é, sem dúvida, dos pensadores
europeus de maior destaque no século XX, aquele que tem mais contato com o
Brasil. Suas duas visitas ao país (em 1977 e em 2008) possibilitaram uma ampla – e
por vezes tensa – discussão nos meios eclesiais e acadêmicos acerca de sua obra
que tem, desde então, desfrutado de amplo trânsito dentro dos mais diversos
segmentos da tradição cristã, do Catolicismo pós Concílio do Vaticano II ao
Pentecostalismo. E dizemos tensa, porque apesar de certas críticas rasteiras, não é
possível enquadrar plenamente o seu pensamento no âmbito da Teologia da
Libertação, nem vincular os elementos inspirativos de sua reflexão ao discurso
teológico que se formou na América Latina na segunda metade dos 60, de modo
que, não obstante tratarem de temáticas similares – a questão da relação entre a fé
e as tensões sociais e políticas no mundo pós-moderno e de que modo a esperança
cristã pode ser uma resposta afirmativa para o pleno saciar de tantas inquietações –
elas não apontam para um mesmo caminho. Apenas para demonstrar isso de forma
bem preliminar, sem ainda adentrar no campo das críticas que se fizeram á sua
obra no Brasil, em Moltmann a Teologia da Esperança não contempla apenas a
perspectiva dos que são dominados, dos que são subjugados pela injustiça, mas vai
também ao alcance dos que praticam a injustiça, tendo em vista que a Palavra de
Deus não visa apenas libertar os oprimidos, mas também os opressores. O
entendimento superficial do pensamento de Moltmann, a exemplo do que ocorre
em Bultmann, é talvez o maior impeditivo do pleno e correto conhecimento de sua
obra e Teologia. Também há de se destacar que pelo seu contato com o Brasil e
com a Teologia da Libertação, surgiu a necessidade de uma ampla divulgação,
edição e reedição de suas obras, de modo que hoje já podemos contar com bom
numero de obras suas publicadas no país, o que, certamente, contribuiu para a
mais ampla disseminação do seu pensamento.
Vida e Obra
Jürgen Moltmann nasceu na cidade hanseática de Hamburgo, na Alemanha, em 08
de abril de 1926. Oriundo, como ele diz de um contexto secularizado, sentia-se
atraído, a princípio, pela Matemática e pela Física sendo seus “heróis” nessa época
Einstein e Heisenberg[1]. Em 1943 no exato momento em que os bombardeios
aéreos aliados se intensificavam sobre as cidades alemãs, Moltmann é mobilizado
para a defesa antiaérea no centro de Hamburgo, tendo assim a oportunidade de
contemplar in loco a destruição da sua cidade na tempestade de fogo lançada no
final de julho daquele ano. Ao completar dezesseis anos de idade, tendo acabado de
ler o livro de Luiz Broglies Luz e Matéria com prefácio de Heisenberg, fui designado,
com meus colegas de classe, para uma bateria antiaérea no centro de Hamburgo.
(...). A bomba que esfacelou um dos meus colegas ao meu lado me poupou de
modo indescritível. Naquela noite de morte em massa, eu gritei pela primeira vez
por Deus. “Meu Deus, onde estás? Onde está Deus?”[2] Mobilizado para o setor
ocidental entre Arnheim e Ostende, na fronteira belgo-holandesa em 1944, é
capturado pelos ingleses que o enviam primeiro para o acampamento 2226 em
Zedelgem, perto de Ostende, e onde as condições de vida eram simplesmente
infernais, e posteriormente para Kilmarnock, em Ayrshire, já em território inglês, de
onde finalmente seria transferido para Norton Camp onde vive de 1946 a 1948,
sendo esse período o momento em que se delineiam as bases de sua teologia.
Norton Camp não era um campo de prisioneiros qualquer. Fora concebido com o
propósito de ser um campo experimental de ressocialização e desnazificação de
soldados alemães, contando para isso com intenso acompanhamento de auxiliares
da Associação Cristã de Moços (ACM) dos EUA e da Inglaterra e onde prisioneiros
cristãos ensinavam rudimentos de teologia a fim de formarem pastores para
atuarem na Alemanha. O choque causado pela descoberta de Auschwitz, a
incerteza do futuro, a vergonha em face do opróbrio e do legado moral do nazismo,
o medo de encarar a insólita contradição de um país que oscilava entre Weimar e
Büchevald, Bach e Wagner, Lutero e Hitler, lançaram fortes questionamentos sobre
o significado do papel do exército e mesmo do povo alemão na guerra de maneira
que muitos combatentes simplesmente começaram a relutar em voltar para
casa. Às depressões devidas às destruições da guerra e à prisão, agregou-se um
sentimento de profunda vergonha por termos de continuar a suportar aquele
vexame, lembraria mais tarde[3]. Contudo, essas indagações logo se dissipam no
momento em que o prisioneiro recebe de presente uma Bíblia das mãos de um
capelão inglês e passa a meditar no Salmo 39.5-12 que falou ao fundo de minha
alma[4]. Depois passou para os evangelhos: Cristo – amigo na peregrinação, que
abandonou tudo para procurar as vidas abandonadas, Cristo – aquele que me toma
pela mão em seu caminho rumo à ressurreição e à vida. Eu tornei a perceber a
coragem de viver. Tomou-me – de modo lento, mas seguro – uma grande esperança
na vida plena. Eu ouvi novamente os tons musicais, vi de novo as cores, senti mais
uma vez as forças da vida[5]. A cordialidade dos seus hóspedes escoceses, o
encontro de reconciliação que tivera com um grupo de estudantes holandeses cujo
país sofrera ao extremo com a brutal ocupação nazista, e sua participação na SCM
(Student Christian Mission, Missão Universitária Cristã), para participar de reuniões
de oração com estudantes de todo o mundo e onde foram recebidos fraternalmente
como irmãos em Cristo, tudo isso foram experiências que contribuíram de forma
significativa na conversão de Moltmann e na sua decisão por estudar Teologia. Eu
me tornei tão fascinado por aquela experiência de vida que perdi meu interesse
pela Matemática e pela Física. Decidi estudar Teologia para investigar o que é
verdadeiro na fé cristã. A propósito, eu fiz isso contra a vontade de meus pais, que
achavam inteiramente supérfluo[6].
Centro de Berlim bombardeado no final da segunda Guerra, em 1945. Experiência da
guerra influenciou a teologia de Moltmann
Ainda na Inglaterra, Moltmann se inscreve num dos cursos de Teologia que a ACM
estava oferecendo no campo e onde passa a ler de tudo avidamente.Discipulado,
de Bonhöeffer e A Natureza e o Destino do Ser Humano, do teólogo estadunidense
Reinhold Nielbuhr foram as primeiras obras que lera no terreno da Teologia
Sistemática. As pregações de Rudolf Halver e Wilhelm Burckert assistidas ora na
Igreja Anglicana de Cuckney ou na Igreja Metodista de Frank Backer também
tiveram impacto poderoso em sua decisão de continuar seus estudos na Alemanha,
depois de sua libertação em 1948[7].
Em 1948, Moltmann ingressa na Universidade de Göttingen (escolhida não por
acaso, pois fora uma das poucas cidades alemãs a escapar dos bombardeios
aéreos) onde realiza sua formação teológica tendo como professores Ernst Wolff,
Otto Weber e Hans Joaquim Iwald. Também Ernst Käsemann, outro ex-prisioneiro de
guerra e que vivenciara maus bocados durante a ditadura hitlerista, passaria a
lecionar em Göttingen em 1951, exercendo influência na sua formação teológica,
especialmente no terreno da Exegese Neotestamentária e que mais tarde
reencontrará como professor em Tübingen. Ordenado pastor da Igreja Reformada
(calvinista) é designado para a cidade hanseática de Bremen (1953 – 1957) de onde
se transfere como professor de História do Dogma e Teologia Sistemática para a
Kirchliche Hoschule de Wuppertal, antiga Barmen, onde trabalha de 1957 a 1963
quando vai para a Universidade de Bonn (1963 – 1967) e por fim para Tübingen,
onde encerra a sua carreira docente (1967 – 1994). É, portanto no período em que
leciona em Bonn que sua Teologia da Esperança (1964) é publicada. Estudos sobre
escatologia no âmbito da Teologia remontavam ao início do século XX (Johannes
Weiss, Albert Schweitzer) e após a guerra tanto Oscar Culmann como Wolfhart
Pannenberg procuraram estabelecer categorias históricas à escatologia bíblica. Mas
foi Moltmann, lembra Rosino Gibbelini, quem conseguiu apresentar um projeto
articulado de teologia escatológica entendida como escatologia histórica, que ele
desenvolverá como doutrina da esperança e da práxis da esperança[8].
Teologia da Esperança
Em 1951 o filósofo marxista Ernst Bloch, então professor em Leipzig, publicou um
livro que tendo inicialmente passado despercebido, daria anos mais tarde muito
que falar por conta das influências que exerceu no campo da Teologia: Princípio
Esperança. A formação de Bloch onde Teologia e Filosofia estabeleciam estreito
diálogo propunha a retomada de uma discussão clássica, especialmente no terreno
da Teologia Neotestamentária, o significado da esperança no âmbito da sociedade e
do mundo moderno:
Bloch distinguia duas correntes do marxismo, ou duas vias para chegar a Marx. A corrente quente
(herança utópica que liga imaginação e conquista do poder, crítica ideológica e crítica da cultura, dos
valores, das mistificações, da alienação) e a corrente fria (“detetiva”, científica, econômico-política).
Devolvendo ao marxismo “científico” a força ardente da idéia de um futuro libertado, ele pretendia
reequilibrar as duas correntes, destacando a importância do elemento subjetivo nos combates coletivos e a
defesa da força expressiva de cada um e do potencial antecipante, isto é, utópico, do ser humano. Essa
“consciência antecipante” vive também na liberdade individual e na capacidade de sonhar, mas é feita
sobretudo de experimentação e de imaginação coletivas, tornando-se possibilidade coletiva futura no
processo de luta. Desta forma rejeitava Bloch qualquer visão determinista que considerasse “inevitável” o
advento do socialismo. As necessárias condições objetivas de pouco serviriam se não houvesse a
capacidade de organizar a esperança e transformar, ao mesmo tempo, o trabalho, a vida e a consciência de
cada um. Para Bloch a utopia não é uma imagem acabada dos “amanhãs que cantam”. É um horizonte de
esperança que atua hoje sobre a humanidade. Quem pode cantar não são os amanhãs somos nós, hoje,
entrevendo a possibilidade de um outro mundo. Porque este está estafado pela exploração do trabalho e
pela mercadorização da vida, e cimentado com a mentira. Não interessa, portanto, a Ernst Bloch a utopia
ideal realizada, nem as imagens do paraíso, mas uma outra utopia, ativa, concreta e profana, que lança
agora materiais para o futuro. Não determina totalmente esse futuro - antecipa-o como anseio e forja-o a
partir de uma impaciência que se faz de luta concreta, uma esperança desesperada, uma esperança que é
exatamente o contrário de ficar à espera. Por isso apelava Ernst Bloch a uma “organização da esperança”,
sabendo, como Gramsci, que é na situação concreta, na aprendizagem que a prática revolucionária
implica que se pode redescobrir a força dos textos de Marx. A sua defesa da revolução russa não o
impediu de criticar a burocratização, o centralismo não democrático e sobretudo o percurso nacionalista e
autoritário do stalinismo[9].
O teólogo norte-americano Reinhold Nielbuhr (1892 - 1971) em capa da revista "Time", de
09/03/1948, cujas obras foram lidas por Moltmann depois da guerra.
A obra, que foi lida por Moltmann pouco tempo depois do seu doutoramento, teve
sobre ele uma influência poderosa, como mais tarde ele testemunhou: por que a
Teologia Cristã deixou escapar e permitiu que lhe tirassem a esperança, que
original e intrinsecamente é o seu tema mais singular? Essa foi a minha primeira
impressão. Mas em seguida, perguntei-me de forma autocrítica: por onde anda hoje
o espírito ativo, cristão-primitivo da esperança? Eu não queria imitar o princípio
esperança de Ernst Bloch. Tampouco era minha intenção “batizá-lo” como
suspeitou Karl Barth naquela vez na Basiléia. O que eu queria era uma ação
paralela na teologia baseada nos pressupostos teológicos judeus e cristãos[10].
Como lembrou em um comentário que fez sobre essa obra, de 1963, a Filosofia da
Esperança de Bloch pretendia demonstrar que o ideário de todas as religiões
buscava, em sua essência, a esperança em totalidade. Onde há esperança, há
religião, e a escatologia do Cristianismo dá a impressão de que nesse ponto a
essência própria da religião tivesse finalmente aparecido (...). Por conseguinte,
quem quiser ser herdeiro da religião, sobretudo do Cristianismo, deve tornar-se
herdeiro de sua esperança escatológica[11]. Em Bloch, ainda de acordo com a
leitura de Moltmann, a critica da religião abre a possibilidade de não mais se
entender o fenômeno religioso apenas como uma questão restrita ao campo dos
fenômenos psicológicos e sociológicos, mas, ao invés, como um processo que
alcança a infinitude. No homem, toda a transcendência alcança o Cristo já que é o
fenômeno do nascimento de Jesus de Nazaré e sua inserção na própria história que
possibilita a plena integração entre as expectativas do homem e sua possibilidade
de relação direta com Deus, realizando assim todas as possibilidades que a religião,
como agente que conduz ao transcendente, pode proporcionar, uma vez, que o
homem fazendo essa operação por meio de si mesmo (quando a divindade de reduz
ao homem, conforme Ludwig Feuerbach) pode, quando muito, voltar-se para si, mas
não para a esperança que é produzida pela esperança do Reino de Deus, esperança
essa que nenhuma antropologia ou psicologia pode satisfazer[12]. Moltmann
também chama atenção para o fato de que há uma distinção significativa entre o
conceito blochiano da Pátria da Identidade e a esperança semeada pela
escatologia:
Daí se segue necessariamente que a escatologia cristã, que se apóia no “salto”, no milagre da ressurreição
da morte daquele que fala do fim das coisas do presente “eis que faço novas todas as coisas”, não pode se
reduzir às utopias, nem ao “princípio esperança” de um aperfeiçoamento imanente ao mundo, mediante
um “transcender sem transcendência”, mas, bem entendido, faz explodir também o princípio esperança.
Essa diferença se torna visível quando a escatologia cristã, frente às utopias humanitárias com que
coexistia no século XIX, toma consciência de seu centro que é a ressurreição dos mortos e o
aniquilamento da morte pela vida[13].
Moltmann estabelece com isso uma clara diferenciação entre a Teologia e a
Filosofia da Esperança já que aquela, no fim das contas, retoma o otimismo do final
do século XIX quanto por meio de uma transformação social, coisa que não pode
ser abarcada pela esperança cristã que assim, correria o risco de tornar-se mero
fenômeno social, tanto quanto aquela. Ao reconduzir a teologia cristã de volta às
suas premissas escatológicas, Moltmann, em certo sentido, devolveu a teologia de
volta às suas expectativas primevas.
Para Moltmann, a escatologia foi parte intrínseca da reflexão teológica da igreja,
englobando eventos tão distintos como mundo, história, humanidade, volta de
Cristo e juízo final com ressurreição dos mortos, etc., contudo, em vista da não
concretude da Parousia, esse tema foi sendo lentamente esquecido ou deixado de
lado nas últimas páginas dos compêndios de Dogmática, até que finalmente o
secularismo iniciado pela encampação da Igreja pelo Estado, fez com que esse
tema se perdesse totalmente, quando foi solenemente distorcido[14]. Contudo,
mesmo escamoteada ou ignorada, a escatologia é uma realidade, ela fala do futuro
e mais, ela não fala do futuro de forma generalizada, mas de forma específica,
dentro de realidades determinadas dentro da própria história[15]. Sem essa
esperança a fé torna-se inócua e entramos então no pecado do desespero
kierkegaardiano[16]. Com toda a sua carga de frustração, tristeza e derrotismo. A
redescoberta da Esperança primeiro na obra do teólogo de Marburgo Johannes
Weiss, e depois em Albert Schweitzer, foi um dos grandes momentos da teologia,
primeiro porque recuperava um tema que estava em suas próprias raízes
dogmáticas, e segundo, porque evidenciou que as tentativas de síntese entre o
cristianismo bíblico e o mundo moderno haviam se revelado completamente
inconsistentes[17]. Contudo, nem Schweitzer e nem seus sucessores, Barth,
Bultmann, etc, compreenderam a escatologia como evento transcendental porque a
dogmática do século XIX não podia conceber a escatologia em termos estritamente
transcendentais[18]. Por isso, segundo Moltmann
Com efeito, a perda da escatologia – não somente como apêndice da Dogmática, mas também como
categoria propriamente dita do pensamento teológico – sempre foi a condição indispensável para a
possibilidade de acomodamento do cristianismo a seu ambiente, isto é, a auto-renúncia da fé (...). Em
lugar do êxodo para fora dos acampamentos seguros e da cidade permanente, do qual fala a Carta aos
Hebreus, houve o solene introito na sociedade mundana, transfigurada religiosamente[19].
Para Moltmann, a interpretação de Bultmann e de resto de toda a teologia
precedente, não pode servir de parâmetro para o entendimento linear da
escatologia que pressupõe – é impossível negar – o testemunho histórico da
tradição. Se a tradição é reflexo de um evento histórico, então ela é história em si
mesma, logo os eventos descritos nos evangelhos e no Novo Testamento devem ser
entendidos como eventos históricos no pleno sentido da palavra[20]. Os
acontecimentos reveladores de Deus devem ser tomados no contexto tradicional e
com esse contexto no qual aconteceram e em conexão com o qual receberam a sua
significação original[21]. Além disso, pormenor que não pode passar despercebido
para quem entende a escatologia de fato como sendo a ciência das últimas
coisas, embora seja certo terem sido as aparições pascais de Jesus experimentadas
e anunciadas nas categorias apocalípticas da esperança da ressurreição universal
dos mortos e como o começo do fim de toda a história, é igualmente certo que a
ressurreição de Jesus não é somente pensada como o primeiro caso de ressurreição
de todos os crentes. Não se afirma que Jesus foi as primícias da ressurreição e que
os crentes encontrarão a ressurreição como ele, mas se anuncia também que ele
mesmo é a ressurreição e a vida, e que por conseguinte, os crentes acharão seu
futuro nele e somente como ele[22]. Para Moltmann, negar o evento da
ressurreição só corrobora a influência do pensamento grego e de sua concepção
epifânica do presente eterno, e que está em rota de colisão com o Deus do êxodo e
da ressurreição. A revelação do Cristo ressuscitado nos obriga a uma compreensão
da revelação como o apocalipse do futuro já prometido à verdade. Ante o futuro da
verdade já contida na promessa, o ser humano experimenta a realidade como
história, com suas possibilidades e perigos, e para ele, se torna impossível fixar a
realidade como imagem da divindade[23].
O reconhecimento da ressurreição como evento histórico que prenuncia a Parousia
e é apresentado no Novo Testamento em termos de uma perspectiva esperançosa é
um contraponto significativo a interpretação dada ao evento desde Bultmann e que
Ernst Käsemann, que foi aluno de Bultmann em Marburgo e professor de Moltmann
em Göttingen, resumia como sendo o início do reino da liberdade divina[24],
definição essa que coloca, dentro da perspectiva vigente, o Reino da Deus numa
condição totalmente imanente. Para Moltmann, a ressurreição é fato histórico da
maior significação entendido assim tanto pelos discípulos como pela própria
comunidade primitiva, e do qual os Evangelhos são os testemunhos mais seguros.
Pela fé pascal, eles não somente queriam dar a conhecer sua nova autocompreensão, mas informar
também sobre a vida de Jesus e o evento da ressurreição de Jesus. Suas afirmações não só contêm
certezas existenciais à maneira da frase “estou certo”, mais igualmente a certeza objetiva de algo à
maneira da frase “a coisa é certa”. Não só anunciavam que criam e aquilo que criam, mas também que
ficaram conhecendo[25].
A Teologia da Esperança é assim, uma teologia em dialogo com a escatologia. Esse
pormenor, embora significativo, pode explicar embora não justificar o ceticismo e a
reserva com que as idéias do teólogo de Tübingen foram recebidas em meios
acadêmicos especialmente nos EUA onde foram rotulados pelos teólogos do
processo como sendo eivados de pressuposições míticas[26], mas não há dúvidas
que ao retornar ao tema da Parousia e ao situar novamente a revelação de Cristo
nas categorias transcendentais de onde a teologia liberal a expulsara no século XIX,
Jürgen Moltmann deu uma contribuição significativa, ainda que paradoxalmente não
tão original, à Teologia Sistemática do século XX.
O Espírito da Vida
Tal como a Teologia da Esperança, esse trabalho de Moltmann na derradeira fase
de sua carreira acadêmica é uma contribuição original: havia muito tempo que não
se concebia uma obra teológica que falasse especificamente sobre a Pessoa do
Espírito Santo e os esboços de um Karl Barth jamais foram levados a termo. Desse
modo, coube ao teólogo de Tübingen retomar um tema que, como a escatologia,
parecia ter ficado restrito às periferias dos manuais de dogmática, dando-lhe
atualidade e dinâmica próprias de nossa época. Além do mais, o fato de ter sido
concebido logo após os acontecimentos de 1989 com tão vastas repercussões
especialmente no contexto da nação alemã, fazem com que a obra tenha um
diálogo ainda mais frutífero com os leitores de nosso tempo, absorvendo
consideravelmente toda a avalanche de transformações pelas quais a sociedade
moderna passou nos últimos anos.
A Universidade de Tübingen, na Alemanha, onde Moltmann lecionou de 1967 a 1994.
A pergunta de Moltmann – Quando você experimentou pela última vez a ação do
Espírito Santo?[27] – é com certeza atual e diz muito ao nosso contexto
pentecostal. Para Moltmann, o Espírito Santo é parte indissociável da própria
criação do mundo, "porque ele torna viva esta vida aqui, não porque seja estranho
e distante da nossa vida. Ele coloca nossa vida na presença do Deus vivo e na
corrente do eterno amor"[28] (idem). Os acontecimentos da sua época chamaram o
homem da morte para a vida, das algemas da humilhação para o novo tempo da
vida livre e democrática[29], mas diferentemente de Paul Tillich que
escandalosamente concebe a ação do Espírito Santo na órbita da ideologia, o
Espírito Santo em Moltmann é agente que demole com aríetes as próprias
estruturas ideológicas que aprisionam o homem – sim, porque Paul Tillich decerto
não concebia que as estruturas espirituais imaginadas por ele em sua teologia
como agentes libertadoras do homem fossem na verdade prisões das almas, não
muito diferentes de campos de concentração, e na verdade em nada diferenciados
deles – por isso Moltmann sente ser chegada a hora de conceber uma teologia onde
a vida fosse plenamente valorizada. Onde o Espírito Santo não fosse tratado apenas
como o Espírito da Salvação, mas como a própria força vital de Deus em sua plena
manifestação.[30] (p.19). Essa compreensão é importantíssima, pois liga a
pneumatologia à compreensão de outras formas teologais, como a redescoberta do
corpo, a cristologia cósmica e a "teologia ecológica". Nesse aspecto[31], (p.21) a
teologia pneumatológica de Moltmann é essencialmente ecológica, pois liga a ação
da Igreja ao próprio destino do planeta, já que a destruição dos recursos naturais é,
em essência, a destruição de tudo aquilo que Deus criou e que viu que era bom
(Gênesis 1.10, etc). O corpo também assumiu importância crítica na vida das
pessoas, tão crítica que não pode mais ser manietado e subjugado por meio de
excessos de ascese. A vida humana se liga intimamente à vida do Espírito e a essa
a sobrevivência do mundo.
Para evitar velhas especulações sobre a personalidade do Espírito Divino, Moltmann
decidiu por utilizar uma outra abordagem, na qual a divindade e a personalidade
fossem poupadas, mas evitando-se propositalmente as fórmulas hipostáticas.
Propositalmente evitei aqui os conceitos de “hipóstase” e de “pessoa” porque não desejaria tornar
imprecisas as diferenças entre a personalidade do Pai, a personalidade do Filho e a personalidade do
Espírito Santo, através de um conceito de pessoa comum a todos. Não apenas em vista da experiência do
Espírito Santo, mas também em vista de suas relações com o Pai e com o Filho tem o Espírito Santo uma
personalidade inteiramente própria[32].
O filósofo alemão Ernst Bloch (1885 - 1977)
Moltmann reconhece que uma definição da pessoa do Espírito Santo pode suscitar
desencontros de toda a espécie. Assim, para não se ligar ao conceito de Karl Rahner
inspirado em Barth e nem ao personalismo da escola liberal ou o de Heribert
Mühlen de doutrina trinitária personalista na qual Deus é o divino Eu, Cristo o divino
Tu e o Espírito Santo o divino Nós onde o divino Nós não tem relação interna como
tem o divino Tu e o divino Eu um para com o outro, mas apenas representa a
comunhão dos dois para fora, isto é, representa a relação deles com o meio criado
por Eles[33]. ele recorre exclusivamente ao seu conceito de pneumatologia
trinitária a partir da experiência teológica fornecida pelo próprio Espírito Santo. Para
Moltmann, é experiência do Espírito toda a experiência que tem um passado
conservado na lembrança e um futuro guardado para mais adiante[34].
Descontando os elementos místicos de uma dada experiência, Moltmann concebe
esse fenômeno em termos de alargamento do conhecimento proporcionado pela
razão. Quanto mais a razão consegue captar o essencialmente indispensável
daquilo que do próprio Espírito emana, ali está manifesta a ação do Espírito e
fortalecida a fé do crente. Moltmann estabelece pelo menos dois tipos de
experiências captadas pela percepção que podem ser tidas como experiências com
o Espírito, as experiências de morte e as experiências de amor, ambas igualmente
marcantes, cada qual ao seu modo, e igualmente duradouras no âmbito da vida do
crente[35]. De certo modo, todas as demais experiências com o Espírito são ligadas
a uma ou outra, de alguma forma.
Compreender a ação do Espírito Santo na vida do crente e na história é de essencial
importância na vida cristã. O Novo Testamento, em especial, descreve a relação de
Jesus com o Espírito Santo de tal forma que na proclamação dos evangelhos é
descrito como Cheio do Espírito de Deus[36]. O Cristo do Espírito e o Espírito de
Cristo, como ele diz, representam o mesmo fenômeno, a mesma relação na vida da
comunidade e da história (idem), sendo que no primeiro caso, tratamos apenas da
Espiritualidade do próprio Cristo[37] e no segundo a da comunidade que se-lhe
seguiu[38], não que uma diz respeito a uma dada situação e a outra se situa em
outro contexto. Na verdade, uma resulta na outra e ambas conduzem simplesmente
à mesma essência que é a ação do Espírito vivificando a comunidade, por meio
primeiro do ministério do próprio Cristo, e depois por meio da sua mensagem e do
testemunho dele subseqüente deixado pelos apóstolos e tomado como regra de fé
pela comunidade primitiva. Isso nos conduz então a outra decisiva esfera de ação
do Espírito que é a ação na vida do crente, por meio da santificação que em nossos
dias significa.
Em primeiro lugar, redescobrir a santidade da vida e o mistério divino da criação e defendê-lo contra
manipulação da vida contra a secularização da natureza e a destruição do mundo pela violência humana.
Como a vida vem de Deus e pertence a Deus, ela deve ser santificada por aqueles que crêem em Deus.
Como a Terra não é uma natureza sem dono, mas sim a criação muito amada de Deus, devemos ir-lhe ao
encontro com respeito e assumi-la no amor de Deus. “santidade hoje” significa voltar-nos ao tecido da
vida, de que a moderna sociedade isolou os homens e os vem distanciando cada vez mais[39].
A santificação é termo que designa o modo de agir de Deus na vida, na comunidade
e na história. Tudo o que é de Deus é santo, como o próprio Deus é santo também,
e segue-se daí que a santificação, assim como a justificação e a vocação, é um agir
de Deus em nós. Aqueles que Deus justificou ele também os santificou (Romanos
8.30)[40]. Se santo é aquilo que Deus criou e ama, então a própria vida já é santa, e
santificá-la significa vivê-la com amor e alegria[41]. Isso, no entanto não aboliu
outras manifestações do Espírito, como por exemplo, o próprio falar em línguas que
Moltmann entende ser um fenômeno historicamente inegável e que tem produzindo
uma profunda renovação da vida cristã tanto nas jovens igrejas como até mesmo
nas mais antigas. Moltmann não nega o profundo impacto que tais cultos – que ele
chegou a assistir quando em sua primeira visita ao Brasil em 1977 quando foi
convidado por Manoel de Melo para ir aos cultos da Igreja O Brasil para Cristo – tem
um efeito fortíssimo sobre a consciência européia mais racionalizada e
organizada. Sobre nós europeus, exerce um efeito libertador vermos e aprendermos
nos cultos carismáticos negros da África e dos EUA uma linguagem corporal
diferente do mero estar sentado ou do juntar as mãos dos europeus. Entendo o
“falar em línguas” como o processo pelo qual a língua das pessoas mudas começa a
desprender-se e elas começam a expressar o que sentem e
experimentam. (...). Antes de as igrejas locais e os bispos amortecerem o espírito
do “movimento carismático”, (na Europa o termo carismático é aplicado tanto ao
pentecostalismo de origem evangélica quanto a renovação carismática católica
propriamente dita) nós todos deveríamos dar liberdade ao Espírito não apenas em
nossos cultos, mas também em nossos corpos, que afinal de contas deveriam
tornar-se templos do Espírito Santo (I Coríntios 6.19)[42]. Contudo, Moltmann tem
também uma censura importante a fazer a esses grupos:
Onde estão os carismas dos carismáticos no dia-a-dia do mundo, no movimento pacifista, nos
movimentos libertadores, no movimento ecológico? Se os carismas são dados não para que se fuja da
realidade deste mundo para um mundo de sonhos religiosos e sim para testemunhar a soberania
libertadora de Cristo nos conflitos deste mundo, então o movimento carismático não pode transformar-se
numa igreja despolitizada e muito menos despolitizante[43].
As criticas à Teologia da Esperança no Brasil
Existem boas e más recepções à obra moltmanniana no Brasil. Além do tenso
diálogo que Moltmann travou com a Teologia da Libertação nos anos 70, a teologia
de Moltmann enfrentou, nos últimos anos, também a resistência de grupos
fundamentalistas. Um dos seus críticos, o pastor assembleiano Silas Daniel em seu
livro A Sedução das Novas Teologias, associa a Teologia da Esperança com a
Teologia Relacional de Clarck Pinnock, em grande parte porque o próprio Pinnock,
em entrevista na revistaChristian Week disse ter sido influenciado pelas idéias de
Moltmann e por Wolfhart Pannenberg. Aliás, para Silas Daniel a Teologia da
Esperança é apenas mais uma teologia liberal, muito comum no século XX e que ao
lado da Teologia do Processo estabeleceram a gênese do teísmo aberto[44]. Não sei
até que ponto pode merecer alguma credibilidade a palavra de um indivíduo que,
como o próprio pastor Silas descreveu, passou do calvinismo radical para o
arminianismo e depois para o ecumenismo e o universalismo[45]. Mas mesmo que
as declarações de Pinnock possam ser levadas a sério logo se nota que a teologia
da esperança e o teísmo aberto são conceitos completamente distintos e mesmo
díspares. Fica até difícil entender como e por que Pinnock estabeleceu essa relação.
Inicialmente é preciso dizer que a crítica de Silas Daniel à Teologia da Esperança
não representa uma unanimidade. O professor Jorge Pinheiro dos Santos, da
Faculdade Teológica Batista e pastor batista em S.Paulo, pensa, por exemplo,
exatamente o contrário, e inclusive, usa essa mesma teologia para atacar a teologia
relacional e o teísmo aberto:
O pensamento de Moltmann é uma reflexão prodigiosamente profética, pois enunciou não somente a
queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães em primeiro lugar, por
europeus na seqüência e agora, possivelmente, por parte da humanidade. É, sem dúvida, uma das
elaborações mais impressionantes, se entendermos a sua abordagem epistemológica teológica.
(...) a teologia de Moltmann nasce como reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch.
A desconstrução do marxismo realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas
estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o
cristianismo.
(...) o Teísmo aberto é uma teologia que faz um balanço do conceito da onisciência de Deus, na qual se
afirma que Deus não conhece o futuro completamente, e pode mudar de idéia conforme as circunstâncias.
(...) Moltmann e os teólogos da esperança, contrários ao teísmo aberto, afirmam que Deus está fora do
tempo e do espaço, acima de toda materialidade e se revela ao ser humano vindo do futuro escatológico.
Por isso não há como Deus desconhecer aquilo que está no mundo material.
A apologética do teísmo aberto, de teólogos norte-americanos cheios de culpa pelos erros da política
externa dos EUA, procuram livrar Deus diante da responsabilidade diante das maldades do império. É
uma teologia pragmática, que acaba por desconhecer a própria teologia, em especial o trabalho gigantesco
de Jürgen Moltmann[46].
Soldados alemães aprisionados pelos ingleses na Normandia, em julho de 1944.
Moltmann iniciou sua formação teológica ainda quando era prisioneiro dos ingleses, de
1945 a 1948.
Outro equívoco que Silas Daniel comete em seu livro é associar a teologia da
esperança à teologia da libertação como ele pretende[47]. A realidade da teologia
da libertação latino americana é totalmente distinta da teologia da esperança e
pode se dizer mesmo que sua ênfase escatológica tornou-se um impeditivo de esta
ser absorvida por aquela teologia que concebe a realidade do reino de Deus em
termos totalmente imanentes. Além disso, enquanto aquela concebia a ação política
como práxis, para Moltmann a escatologia determina o papel da missão cristã:
como diz, aliás, o próprio Moltmann: o evento da promessa reveladora de Deus
deve ser articulado com a questionabilidade da realidade do mundo como um todo,
e da existência do ser humano em particular, mas não se resume nisso, nem é
idêntico com aquele procedimento. Abrange e insere ambas as coisas na mesma
contextura das questões que lhe são próprias, contextura essa em que o
conhecimento da verdade se apresenta sob a forma de questão e de busca, abertas
ao cumprimento da promessa[48]. Já vimos também como se posiciona o
pensamento moltmanniano em relação à práxis da Esperança conforme Bloch. Se a
realidade presente é questionada como sendo fruto da imperfeição e afirma que o
cumprimento da promessa, que está no futuro, é o fator condicionante da ação de
Deus na vida e na história, como se pode associar uma teologia essencialmente
escatológica com outra que concebe a ação do homem na história como sendo o
meio pelo qual o próprio Deus agirá na própria História (imanência) aprisionando-o
assim à vontade dos homens? Ao que me parece, essa concepção de imanência
histórica está mais perto do teísmo aberto e da teologia relacional do que da
teologia da esperança que também concebe a imanência, mas em termos de
liberdade de ação de Deus (Ele conhece o futuro porque está fora do tempo e para
Deus, que está acima de toda a matéria, não há como Ele nada saber). Mas mesmo
assim, e citando Tony Lane, (Da Reforma à Modernidade) Silas Daniel diz que
Moltmann advoga a realização da esperança como uma perspectiva imanente em
conformidade com o teísmo aberto. Não é isso que se lê em sua obra principal: a
mensagem cristã deve responder com a esperança no futuro do crucificado (I Pedro
3.15), transmitindo aos ímpios a justificação e a esperança de ressurreição. Não se
pode voltar à ordem perene e às tradições constantes dos novos horizontes abertos
pela história dos tempos modernos, mas é preciso assumir esses horizontes dentro
do horizonte escatológico da ressurreição, para assim, descobrir sua verdadeira
historicidade para os tempos modernos e sua história[49]. E podemos ainda citar
outros exemplos: o evento da Palavra, em que os eventos passados são postos a
falar, significa o evento do chamado para o futuro da salvação em Cristo e para a
tarefa presente da esperança a serviço da reconciliação. Somente pela missão e
promessa, pelo comissionamento e pela visão do futuro, pela tarefa da esperança, o
“sentido da história” é entendimento da história passada com a vindoura se realiza,
portanto, não em um terreno de substância abstrata e artificial da história, nem
sobre a base da perpétua historicidade do existir humano. A direção da missão é a
única constante da história. Pois na atual linha de frente da missão, novas
possibilidades de história são concebidas e realidades insuficientes abandonadas.
Esperança e missão escatológica tornam-se, portanto, “histórica” a realidade dos
seres humanos[50]. Realidades insuficientes são as tentativas que os homens
fazem no âmbito da história a fim de direcioná-la à suprema utopia da congregação
dos homens vivendo na plenitude da liberdade e da igualdade. Os totalitarismos
que se sucederam na história desde a revolução francesa têm demonstrado
fartamente a insuficiência dessas respostas idealistas. Ainda segundo Moltmann, no
que concerne a escatologia, no Antigo Testamento, todos os chamamentos e todas
as missões são especiais e contingentes. Referem-se a um único povo e alguns
profetas e reis. Contêm certas tarefas históricas bem determinadas. Por isso, a
partir delas não se pode ainda afirmar nada sobre a natureza do ser humano em
geral. Mas, no Novo Testamento, o chamamento e a missão se dirigem “sem
distinção” a judeus e gentios. O chamamento à esperança e a participação na
missão tornam-se aqui universais[51]. Não consigo ver nada de heterodoxo nessas
citações, porque tudo o que, pelo menos na ortodoxia consensual se afirma,
Moltmann reafirma pela perspectiva da escatologia. Ele afirma que Deus age na
história, portanto, não é possível estabelecer relações entre a Teologia da
Esperança e o Teísmo Aberto como Silas pretende. Ele vê a escatologia se
revelando no presente porque o presente converge para essa realidade
escatológica. Na Teologia da Libertação a escatologia é inteiramente imanente e
está condicionada à solução política. E ele afirma que a perspectiva histórica da
escatologia deve ser entendida dentro da perspectiva escatológica da Palavra que a
proclama, isso é, não podemos conceber o futuro escatológico mediante a forma
como nossos antepassados a esperavam (isto é, dentro de determinadas categorias
históricas e sociais) porque o mundo mudou e está em mudança, não obstante a
esperança da Parousia permaneça.
Moltmann autografando Vida, Esperança e Justiça na Universidade Metodista de S.Paulo
(UMESP) em outubro de 2008.
Finalmente, e penso que esse é o ponto mais incisivo da questão, Moltmann não
nega a ressurreição de Cristo: na sua crítica à visão existencialista da ressurreição,
o teólogo de Tübingen concebe-a em termos estritamente sociológicos, como uma
tentativa de explicação da expectativa messiânica das comunidades primitivas –
isto é, como querigma – na qual os textos que a afirmam não são mais tomados no
seu sentido histórico, mas apenas (com faz Käsemann) como expressões de fé da
comunidade[52]. Por isso não se pode dizer que o sentido de suas afirmações seja
simplesmente a nova autocompreensão alcançada pela fé (como defende
Käsemann). As narrativas pascais nos obrigam a perguntar pela realidade do
evento de que falam. Não é a sua própria fé nem as exigências e o oferecimento da
fé na pregação que constituem a realidade de suas afirmações, mas tão somente a
realidade do que foi por elas anunciado e afirmado é que corresponde a suas
afirmações e aos seus testemunhos[53]. E mais: uma vez que o entendimento
histórico sobre a ressurreição não pode ser aceito porque pode conduzir ao ateísmo
(isto é, a negação da ressurreição) ou ao relativismo do reino da liberdade divina,
expressão usada por Käsemann para explicar o evento fora do seu sentido
usual[54] e não podendo ser classificada como mítica, porque os evangelhos nem
apontam e tampouco sugerem essa idéia, resta uma terceira alternativa: entender
o evento pela categoria da revelação. Dessa maneira, porém, o querigma da
ressurreição fica no ar, assim como a existência por ele atingida, sem que a
premência da proclamação e a necessidade de se decidir frente a ela se torne
compreensível[55]. Dessa maneira, Moltmann não nega a ressurreição atribuindo a
ela a condição de evento revelatório que é proclamado pela Palavra e se dirige
única e exclusivamente à fé do crente. Ora, a teologia do processo entende que não
apenas a ressurreição, mas todas as narrativas que envolvem milagres e eventos
que não podem ser classificados por processos históricos formais, devem ser
descritos exclusivamente na categoria de mitos e por essa razão, fato que Silas
Daniel parece desconhecer, a Teologia do Processo rejeita a Teologia da Esperança
precisamente pelo fato de que esta última reconhece tais eventos[56].
Mas Moltmann nega a imagem apocalíptica de um evento terminal da História. A
original e autêntica expectativa do futuro do Cristianismo não tem nada a ver com o
fim, o fim da história, o fim de todas as coisas; mas com o início da vida, o início do
Reino de Deus o início da nova criação de todas as coisas[57]. Contudo, não nega o
ato salvífico que a morte e é esse novo começo significa o sim para o futuro, que
nesse sentido, se realiza como expectativa escatológica. Aqui a chave
hermenêutica está sendo usada em termos de transformação de vidas por meio do
testemunho da morte e da ressurreição do Crucificado e sendo assim não há como
se afirmar que ela seja heterodoxa, uma vez que todas as confissões de fé
preconizam a chave da salvação o reconhecimento de Cristo como Senhor e
salvador bem como a sua ressurreição dentre os mortos. Aliás, é interessante notar
que Moltmann, comentando o credo apostólico, fala em ressurreição da vida como
contraponto à ressurreição do corpo ou dos mortos, para dar a idéia de que a vida
começou a viver de novo naquele corpo sem vida, descrição que sem dúvida soaria
melhor que a ressurreição do corpo que dá ao processo um significado quase
autômato[58]. A ressurreição é evento para a vida e a ressurreição de Cristo exerce
igualmente esse efeito sobre a vida do crente. É o começo de uma nova vida. Para
Moltmann, essa afirmação não apenas manteria o dualismo morte-vida, como ainda
acentua a nossa crença da ressurreição da vida, isto é, a vitória da vida sobre a
morte, além do que, seria mais fácil compreender e aceitar a vida eterna, porque
significa vida em um corpo transformado[59]. Aliás, cumpre lembrar que no que diz
respeito à escatologia futura também não existe um consenso ortodoxo sobre o
quiliasmo (milenarismo) inclusive dentro do próprio movimento pentecostal onde
existem igrejas pré e pós tribulacionistas.
Finalmente sobre o fato de Brian McLaren usar a Teologia da Esperança como
ferramenta hermenêutica em seu livro A Mensagem Secreta de Jesus, é preciso
entender que conceitos e idéias de um autor podem ser usadas sim até mesmo em
sentido inteiramente oposto ao que seu autor originalmente quis dizer, e que nem
por isso este concordasse ou não com as conclusões levantadas a partir de suas
reflexões, isso é práxis na hermenêutica e é preciso estar cônscio disso seja no que
diz respeito a reflexão acadêmica ou mesmo no mais simples sermão (caso de Silas
Daniel). A Teologia da Esperança surgiu de uma reflexão marxista e nem por isso
ela é marxista no sentido de assimilar a sua ideologia. O existencialismo ateu de
Sartre bebeu das fontes abertas pela reflexão de Kierkegaard, um filósofo e teólogo
cristão, e não nos esqueçamos de Hegel cuja teoria sobre o Estado serviu de
modelo para a filosofia marxista cuja concepção de Estado, pelo menos em seu
sentido econômico, era completamente o oposto daquilo que preconizava o autor
da Fenomenologia. O fato de uma pessoa usar uma obra como ferramenta
hermenêutica tomando-a como ponto de partida para fazer a sua própria reflexão
teológica ou filosófica de forma alguma indica pontos em comum com o seu
pensamento principalmente quando no exame de ambas, vemos que seus objetivos
convergem para realidades específicas e até díspares. Se pensarmos assim teremos
que dizer que Hitler era luterano porque Lutero em vários escritos defendeu com
veemência lacônica a perseguição aos judeus, razão pela qual aquele fez
constantes menções não só de sua vida, mas principalmente de sua obra.
Moltmann é um teólogo brilhante e mesmo que seu brilhantismo seja as vezes
eclipsado por opiniões heterodoxas (e digo heterodoxas porque assim são de fato a
sua negação do papel histórico das missões à Igreja de ir e evangelizar os povos e
seu apoio aos movimentos ecumênicos) nem por isso deixará de ser um dos nomes
mais influentes da teologia do século XX porque propôs uma escatologia que
achasse o homem em sua relação com o mundo, e não uma escatologia
institucional, baseada em Impérios que vão e vem como é proposto inutilmente
desde a Reforma pelo fundamentalismo mais extremista. A Bíblia não nega o fim
dos tempos (Mateus 24.3-28), mas também diz que ninguém sabe quando será o
dia ou a hora (Mateus 25.13).
Quanto à influência ou suposta influência da Teologia da Esperança sobre a
Teologia da Libertação, gostaria de chamar atenção para alguns dados históricos
que, no mínimo, não aprovam essa afirmação: o Evangelho Social norte-americano
e o Socialismo Religioso alemão já abriam perspectivas de um pensamento social
no âmbito do Protestantismo da América Latina muitas décadas antes da Teologia
da Esperança. Não podemos ser indiferentes às calamidades que afligem uma
grande porção da humanidade, quer nas cidades, quer nos campos. Se o
protestantismo é desdenhado pelo povo é porque ainda não procurou como deveria
procurar o povo, ainda não se interessou como deveria se interessar por ele[60].
Por essa razão, segundo Rubem Alves, o Evangelho Social pode (...) ser considerado
como a versão protestante (...) daquilo que cerca de 60 anos depois recebeu o
nome de “Teologia da Libertação.[61]” Além disso, a Primeira Conferência
Evangélica Latino-americana (CELA I) realizada em Buenos Aires em 1949 já usava
de um vocabulário do qual mais tarde a teologia da libertação se apropriaria: à luz
dos ensinamentos e exemplo de Jesus Cristo, proclamamos a dignidade e o valor
imponderável do ser humano como criatura de Deus. Todos os homens são iguais
diante do Criador e, portanto, devem ter as mesmas oportunidades e os mesmos
direitos diante das leis e da sociedade (...) a nossos povos. Com seus ideais e
esperanças, com seus desejos e necessidades; aos sedentos e fatigados, que tem
fome e sede de justiça; aos oprimidos e vituperados; aos que vivem satisfeitos de si
mesmos; aos que vagam sem Deus e sem esperança, o evangelho lhes oferece,
mais que uma proclamação, o Cristo vivo e eterno, que hoje, como ontem e como
sempre nos diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida"[62]. Na Segunda
Conferência (CELA II) em Lima, Peru, em 1961, a terminologia está ainda mais
explícita: sabemos que não temos sido chamados a uma vida de mera
contemplação senão de participação ativa, confiada e redentora na vida do mundo
que Deus criou. Contemplamos com profunda simpatia e no espírito de
solidariedade, a busca ansiosa de nossos povos por um futuro melhor. Sentimos
como nossos desejos de justiça, de uma distribuição equitativa das riquezas que
Deus colocou em nossa terra, o desejo de grandes massas da nossa população de
independência social e econômica de acesso à cultura e de uma participação plena
na vida e direção de nossas nações. Solidarizamo-nos com os anseios de liberdade
integral da América Latina. Fazemo-lo porque sabemos que a justiça e a liberdade
são conseqüências inegáveis do evangelho, dons que Deus dá ao homem e pelos
quais devemos lutar[63]. Perceber-se-á que os dois documentos foram redigidos em
momentos-chave da história recente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948) e a Revolução Cubana (1959), traduzindo, por conseguinte, todas as
expectativas criadas dessas duas conjecturas. Além disso, mesmo havendo
distinções flagrantes entre os dois documentos (o de 1949 é mais apologético e o
de 1961 é mais político; o de 1949 se insere ainda na perspectiva da missão e o de
1961 na perspectiva da ação política afirmativa, etc), é importante destacar que os
dois usam uma terminologia que depois reaparecerá na Teologia da Libertação seja
ela de vertente católica ou protestante: solidariedade e serviço (1949), se ele amou
o mundo de tal maneira, nós não podemos menos que preocupar-nos seriamente
por tudo o que ocorre nestas terras onde Deus nos colocou (1961). Não fazemos,
nem aprovamos discriminação alguma por razões de raça, nacionalidade, nem
classe social. Dentro da liberdade política e econômica dos povos, brigamos por um
amplo sentido de independência e de boa vontade, na inteligência de que os
valores que a vida nos dá como indivíduos e como nações não são para
apoderarmo-nos de nada, senão para servir a todos e em forma especial, aos mais
débeis e necessitados (1949). Por tudo isso, chamamos os crentes a um ministério
profético, a uma participação valente e decidida em todos os assuntos da
comunidade (1961).
Assim, do ponto de vista eclesial, já existia no meio evangélico uma consciência
social em maturação e que dentro em breve desaguaria na teologia da libertação
sem recurso algum da teologia da esperança, que como se sabe, só aparecerá no
cenário teológico em 1964. Também não podemos esquecer que no âmbito do
catolicismo já existia também um pensamento social que tinha seu referencial
teórico na Rerum Novarum, de Leão XIII (1891) e na Quadragesimo Anno, de Pio XI
(1931), afora as encíclicas sociais de João XXIII que também exerceram influência
sob o pensamento social do Concílio do Vaticano II, cujo desdobramento se dá no
mesmo momento teórico da Teologia da Esperança, e que irá, logo a seguir,
influenciar o pensamento social católico a partir da segunda metade dos anos 60,
conforme se percebe a influência da teologia conciliar nas Conferências Episcopais
latino-americanas de Medellin (1968) e Puebla (1979).
Finalmente, não podemos esquecer que o próprio Moltmann fez questão de
destacar as diferenças entre a sua teologia e a dos teólogos latino-americanos
desde a sua primeira vinda ao Brasil, no fim dos anos 70:
Se na Europa e nos Estados Unidos da América, nós querermos levar a sério a “teologia latino-americana
da libertação dos oprimidos”, devemos desenvolver uma teologia da libertação dos opressores. Afinal,
como a humanidade pode ser liberta da desgraça da opressão, do descaso e da exploração, se a libertação
rumo a uma humanidade comum não é tomada como tarefa por ambas as partes? Entretanto, os dois lados
não são iguais – os oprimidos vêem a sua libertação como autoevidente; mas para os opressores ela não o
é. O reerguimento dos oprimidos é uma tarefa messiânica de Jesus Cristo. A outra é fazer com que os
cegos tornem a enxergar. (...) por meio de Cristo, Deus liberta as pessoas que perpetraram o mal do poder
do pecado e do peso da culpa. Mas Ele o faz na presença de suas vítimas. Humanamente falando, somente
as vítimas podem oferecer reconciliação a quem perpetra o mal. Isto é, a “autoridade divina” que
adquirem pelo fato de Deus estar ao seu lado. Quando, porém, vítimas e praticantes do pecado são
libertados do seu poder, podem conjuntamente pôr em ordem o caos mortal deixado pelas forças da
morte. A justificação das vítimas antecede a justificação de quem perpetra o mal. A justificação de ambos
conduz a um novo mundo justo nesta terra. Este é o reinado de Cristo, a nova criação, a ressurreição da
vida[64].
Enquanto a Teologia da Libertação considera a realização do Reino de Deus
mediante a ampla justificação dos pobres e a plena igualdade dos homens,
mediante a abolição de todas as formas de exploração, mas sem tratar da questão
da justiça, Moltmann, por outro lado, lembra da responsabilidade cristã sobre
vítimas e algozes, oprimidos e opressores. Apenas quando a justiça for plenamente
satisfeita, e todo o desejo de justiça consumido na chamada para Cristo dos que
exercem o papel de opressão, só então é que a justiça de Deus se consumará e a
Parousia será uma realidade presente.
Conclusão:
O pensamento teológico de Moltmann representa uma radical inversão na
perspectiva teológica do século XX que até então estava enfocado quase que
exclusivamente no debate sobre o significado e a essência da mensagem cristã e
aquilo que seria a proclamação da comunidade relacionada ao próprio Cristo. De
modo geral era esse o debate que vinha se dando desde a conferência de
Harnack A Essência do Cristianismo (1900). Moltmann, ao partir para a reflexão
escatológica, retoma um tema caro do cristianismo primitivo estranhamente
esquecido pela Teologia Liberal e mesmo por autores mais recentes como Barth,
Bultmann e Culmann. Isso, mais a sua preocupação com a teologia do Espírito
Santo e o papel da Trindade na expectativa escatológica e na proclamação da
promessa das esperanças de Deus, tornam a sua obra um paradigma por recuperar
dois conceitos que haviam sido deixados de lado, mas até mesmo negligenciados
por completo pela teologia mais recente, particularmente a Trindade. Sem ser, pelo
menos nesse aspecto, original, Moltmann foi ao menos suficientemente arguto para
entender que nenhuma reflexão teológica seria possível ignorando a promessa de
Deus e o papel do Espírito Santo como agente impulsionador da vida das
comunidades cristãs primitivas (Atos 2), bem como da vida cristã e da própria igreja
como um todo no nosso presente. Como nenhum teólogo dos últimos anos,
Moltmann compreendeu a importância da esperança no mundo moderno,
desajustado e cada vez mais deformado pelo egoísmo exacerbado pela ditadura do
mercado, onde as pessoas são cada vez mais envolvidas no desespero da falta de
perspectivas e de respostas existenciais plenas.