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Advogada. Especialista em Direito Constitucional com ênfase nos Direi- tos e Garantias Fundamentais pela Escola Superior da Advocacia (ESA/ SP). Ex-estagiária do Ministério Público de São Paulo. Solange Rebeca Rodrigues JUDICIALIZAÇÃO: POSSÍVEL CAMINHO À EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL? JUDICIALIZAÇÃO: POSSIBLE WAY TO THE ACCOMPLISHMENT OF THE RIGHT TO HEALTH IN BRAZIL? 08438 miolo.indd 193 24/10/2012 18:58:25

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Advogada. Especialista em Direito Constitucional com ênfase nos Direi-tos e Garantias Fundamentais pela Escola Superior da Advocacia (ESA/SP). Ex-estagiária do Ministério Público de São Paulo.

Solange Rebeca Rodrigues

JUDICIALIZAÇÃO: POSSÍVEL CAMINHO À EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL?

JUDICIALIZAÇÃO: POSSIBLE WAY TO THE ACCOMPLISHMENT OF THE RIGHT TO HEALTH IN BRAZIL?

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RESUMO

O presente trabalho tem dois objetivos básicos: o primeiro é situar o direito à saúde no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, traçando seu perfil e sua forma de concretização. Para tanto, será abordada a estrutura do Sistema Único de Saúde instituído no Brasil e o grau de obrigatoriedade das normas que garan-tem a saúde; o segundo consiste em traçar os limites da atuação judicial em face do caso concreto, com o fito de concluir se a judicialização do direito à saúde é ou não adequada diante das disposições constitucionais vigentes.

PALAVRAS-CHAVE

Saúde. Direito à saúde. Judicialização. Sistema Único de Saúde. SUS.

ABSTRACT

The present work has two basic objectives: the first is to point out the right to health in the context of the Brazilian legal system, tracing its profile and its form of concretion. For this purpose, the structure of the “Sistema Único de Saúde” instituted in Brazil and the degree of obligatoriness of the norms that guarantee the health will be addressed; the second goal consists of tracing the limits of the judicial performance in face of the concrete case, with the aim to conclude whether the judicialização of the right to health is or not adjusted before the effective constitutional disposals.

KEYWORDS

Health. Right to health. Judicialização. Sistema Único de Saúde. SUS.

SUMÁRIO

1. Direitos fundamentais no Brasil. 2. O direito à saúde e o papel do SUS. 3. O dever do Estado em realizar ações efetivas. 3.1. Concretização da saúde. 4. O papel do Estado na efetivação da saúde. Considerações finais. Referências.

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL

Na Constituição Federal brasileira, encontramos normas de organização do Es-tado (que se destinam a proteger o indivíduo e o grupo ao qual ele pertence) e normas que visam garantir pleno desenvolvimento à pessoa humana. Embora existam disposi-ções de interesse do indivíduo em toda Constituição, no Título II desse texto legal estão insertas normas intituladas “Direitos e Garantias Fundamentais”, que regulamentam os direitos individuais, coletivos, políticos e sociais, e suas respectivas garantias.

Embora pareçam e acabem sendo empregadas como sinônimas, em um sen-tido técnico jurídico, as palavras “direito” e “garantia” possuem significados dis-tintos. Garantia não é sinônimo de direito na medida em que o direito se presta a declarar a existência de uma prerrogativa do indivíduo; já a garantia serve para

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afiançar efetividade, plenitude ao direito declarado1. Nessa ordem de ideias, en-quanto o direito estabelece um benefício em prol do indivíduo, a garantia, além de proporcionar (preventivamente) o exercício do direito, ainda assegura a reparação no caso de ocorrência de violação2.

Seguindo essa linha, José Afonso da Silva afirma que a expressão “direitos e garantias fundamentais” pode ser definida como prerrogativas e instituições sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, até mesmo, não sobrevive, ra-zão por que devem ser concreta e materialmente efetivadas a todos, de maneira uni-forme, para que se consolide a convivência digna, livre e igual a todas as pessoas3.

Afirma-se, portanto, que direitos e garantias fundamentais correspondem às normas destinadas a possibilitar condições mínimas para o convívio em socieda-de, que estabelecem direitos e limitações aos particulares e ao Estado (este deven-do respeitar o que estabelece a Constituição)4. Conclui-se, pois, que tal expressão foi utilizada no intuito de estabelecer direitos que devem ser implementados em prol do indivíduo.

A doutrina constitucional divide os direitos fundamentais como sendo de primeira, segunda e terceira gerações5– classificações essas que são feitas com base na ordem histórico/cronológica em que os direitos a elas correspondentes passaram a ser constitucionalmente reconhecidos6/7.

A primeira espécie engloba os chamados direitos individuais e políticos, bem como as liberdades clássicas (liberdades de ordem econômica, de iniciativa etc.)8; visa resguardar o ser humano na sua liberdade. A segunda categoria relaciona-se com os direitos sociais, e visa fornecer meios para a efetivação da igualdade dos indivíduos9, de acordo com suas necessidades. Os direitos de terceira categoria se

1. GALANTE, 2005. p.47/48.2. LENZA, 2010. p.741.3. SILVA, José Afonso da, 2010. p.178.4. OLIVEIRA, Erival da Silva., 2003. p.93.5. Afirma-se existir uma nova geração de direitos: a “quarta categoria”; contudo, não há con-

senso doutrinário sobre qual conteúdo estaria relacionado a essa espécie. Há posição no sentido de que essa categoria se relaciona com o cosmopolitismo e com a democracia universal (DIMOULIS e MARTINS, Leonardo. 2008. p.34); que estariam envolvidos com os avanços da engenharia genética, colocando a existência humana em risco ante a manipu-lação do patrimônio genético (Pedro Lenza. 2010. p.740); e até mesmo como uma forma diferenciada de tutela quanto a determinados grupos sociais (TAVARES. 2006. p.415).

6. MORAES, 2004.p.61.7. Nesse ponto, abre-se um parêntese para esclarecer que, doravante, a expressão “gerações”

será substituída pelos termos “categorias” ou “espécies”. Utilizar-se-ão tais expressões por se entender acertada a posição sustentada na obra Teoria geral dos direitos fundamentais (DIMOULIS e MARTINS. 2008. p.34/36), na qual se afirma que a expressão “gerações” seria inadequada por sugerir uma substituição de cada geração pela posterior. Também se impug-na a expressão “dimensões” porquanto essa indica dois ou mais aspectos ou funções dos mesmos direitos. Diante disso, se adotarão os termos “categorias ou espécies”.

8. TAVARES, 2006. p. 412.9. Ibidem,p.412/413.

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caracterizam por sua titularidade coletiva ou difusa, sendo também denominados direitos de solidariedade ou fraternidade10, tendem à preservação do ser humano11.

Independentemente da categoria em que se inserem, os direitos fundamentais estão em posição elevada em relação aos demais direitos12, possuindo características próprias (p.ex., universalidade, irrenunciabilidade, inalienabilidade, imprescritibilidade etc.13). Essa gama de direitos, por se encontrar em pé de superioridade, deve ser efeti-vada em sua máxima amplitude (princípio ou teoria da máxima efetividade das normas constitucionais), reforçando, assim, a materialização da dignidade da pessoa humana14.

Abarcados na segunda categoria, os direitos sociais exigem do Poder Público uma atuação positiva com vistas à implementação da igualdade social dos hipossu-ficientes15. Os direitos sociais podem ser agrupados em direitos sociais dos trabalha-dores, da seguridade social, de natureza econômica, da cultura e da segurança16. O direito à saúde é um dos eixos da seguridade social (a qual se subdivide em saúde, assistência e previdência social).

A oferta de direitos de cunho social tem por escopo alcançar aqueles que ne-cessitam de maior amparo do Estado17. Eles constituem uma forma de tutela pessoal, por disciplinarem situações subjetivas de caráter concreto em relação a pessoas ou grupos18. Por isso, os direitos sociais consistem em “prestações positivas proporciona-das pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos”, têm eles o escopo de rea-lizar uma espécie de “igualização” de situações sociais que não sejam equivalentes19.

2. O DIREITO À SAÚDE E O PAPEL DO SUS

A partir da década de 1930, estruturou-se no Brasil um básico sistema de saúde, que iniciou a prática de atividades curativas por meio dos Institutos de Previ-dência (IAPs), que posteriormente foram unificados, transformando-se no INPS (Ins-tituto Nacional da Previdência Social)20; porém, desde o surgimento desse sistema até o advento da Constituição de 1988, somente recebia atendimento médico nos serviços públicos quem trabalhava com registro em carteira de trabalho e inscrição

10. Ibidem, p.413.11. ARAÚJO, 2010. p.133.12. MORAES, 2005. p.23.13. LENZA, 2010. p.742.14. CASTRO, F. B.; MAIA C. D. 2009. Disponível em:<http://docs.google.com:8080/an-

dhep2009/arquivos/2 6_8_209_11_42_9.FINAL.ANDHEP. pdf+ativismo+judicial+e+direito+a+sa%C3%BAd&hl=pt-BR&gl=br>.

15. TAVARES, 2006. p.711.16. Ibidem, p.712.17. TAVARES, 2006. p.712.18. SILVA, 2010. p.286.19. Ibidem, p.286.20. BARROSO, 2009. p.21.

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no INSS. Quem não pertencia ao mercado de trabalho formal, sem condição de pagar por serviços médicos, não tinha acesso às ações curativas e somente recebia prestações de saúde por parte do Estado quando essas se relacionavam ao controle de doenças transmissíveis.

Incluído no campo da seguridade social a partir da atual Constituição, o di-reito à saúde passou a ser amparado pelo princípio da solidariedade. A diversidade do financiamento do sistema, a igualdade de participação no custeio e a seletividade e distributividade na prestação dos serviços21 ensejaram a proteção social de todas as pessoas, ainda que não contribuintes, passando esse direito a comportar duas ver-tentes: uma que consiste no direito de exigir do Estado que se abstenha de praticar atos prejudiciais à saúde (natureza negativa) e a outra que versa sobre o direito às prestações estatais que previnam e tratem as doenças (natureza positiva)22/23.

O conceito de saúde não ficou adstrito à ideia de proteção, recuperação ou promoção do bem-estar físico, sendo oportuno destacar a conceituação de saúde hu-mana proclamada na Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde:

A saúde humana, segundo a conceituação datada de 1978 no âmbito da Decla-ração de Alma – Ata, URSS, e proclamada pela Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde, é assim entendida: ‘A saúde, estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade, é um direito fundamental, e a consecução do mais alto nível pos-sível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos setores sócias e econômicos, além do setor saúde’24.

A definição ampliada de saúde foi adotada pela legislação brasileira, passan-do a ser considerada como resultado de vários fatores determinantes (esporte, tra-balho, lazer, moradia, alimento, saneamento, ambiente, educação, renda e acesso a bens e serviços25).

Assim, nas palavras de Lenir Santos26, o disposto no art. 196 da Constituição pode ser desdobrado em duas partes, a saber: a) uma que corresponde aos progra-mas sociais e econômicos que visem à melhora na qualidade de vida, o que se faz por meio da redução coletiva de doenças e seus agravos –, demonstrando, pois, ter a saúde um conceito amplo que abrange, além das prestações de serviços assisten-ciais, o bem-estar individual, social, afetivo, familiar e psicológico; b) e outra que obriga o Estado a manter as ações e os serviços públicos de saúde, preventivos e curativos, mediante uma rede de serviços.

21. SOUZA, 2008. p.20.22. SILVA, 2010. p. 309.23. Segundo Robert Alexy, no âmbito dos direitos em face do Estado, o direito à abstenção

(ações negativas) corresponde a um “direito de defesa”; o direito a um fazer (ações positi-vas) é considerado como um direito à prestação (2006. p.195/196).

24. BUSCHEL, 2003. p. 2553.25. BRASIL, 2009. p.338.26. SANTOS. loc. cit.

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O constituinte preocupou-se em instituir um programa que, na sua visão, garantiria efetivação a esse direito em todos os níveis de governo – o “Sistema Único de Saúde” (SUS). Nessa “rede de serviços”, as ações e os serviços de saúde consi-deram-se de relevância pública e o acesso deve ser garantido de forma universal e igualitária a todos que necessitam27. São titulares dessa prestação todas as pessoas que estejam no Brasil, ainda que estrangeiras sem residência no País28.

A Lei n. 8.080/90, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, dentre outros assuntos, rege a forma de organização do sistema.

O SUS foi criado para garantir ao cidadão o acesso às ações e aos serviços de saúde fornecidos pelo Estado; logo, todos os entes federados são obrigados a aderir ao SUS, sendo vedada a criação de sistema paralelo de saúde por qualquer entidade pública29.

Os destinatários do dever prestacional são os entes políticos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), por compartilharem da competência político-admi-nistrativa para a formulação e execução de políticas públicas sobre saúde (art. 23, II, da Constituição Federal). Sua estrutura é regionalizada e hierarquizada, organizada em níveis de complexidade crescente, com única direção (art. 8° da Lei n. 8.080/90).

Os serviços são unificados e distribuídos pelos Estados e Municípios, que recebem recursos da União, e devem complementar tal verba com parte de sua re-ceita30. Nos termos dos arts. 198, § 1º, e 195, ambos da Constituição, o SUS é finan-ciado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, por parte do orçamento da seguridade social e por outras fontes previstas no art. 32 da Lei n. 8.080/90, como, por exemplo, doações e contribuições. Seus planejamentos e orçamentos são formu-lados de forma ascendente, para que haja compatibilização das políticas de saúde com a disponibilidade de recursos, garantindo a descentralização e regionalização do sistema31. O importante é que, para as pessoas, o serviço deve ser prestado gra-tuitamente, conforme art. 43 da Lei n. 8.080/90.

O art. 4° da Lei n. 8.080/90 traz o conceito do Sistema Único de Saúde como “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos ou instituições públicas fe-derais, estaduais e municipais, da Administração Direta e Indireta e das fundações man-tidas pelo Poder Público”. Do sistema também participam as fundações mantidas pelo poder público, incluindo-se as entidades públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, de pesquisa e de produção de insumos, de medicamentos (nessa categoria abarcando-se o sangue e os hemoderivados) e de equipamentos para saúde32.

A legislação do Estado de São Paulo não foi alheia à saúde, tendo sido imple-mentadas normas nesse Estado referentes ao assunto, que reforçam as diretrizes estabe-

27. Art. 196, in fine, da Constituição Federal.28. BARCELLOS, 2009. p. 2166.29. MIRANDA, 2007. p.291.30. BUSCHEL, 2003. p.2554/2555.31. MIRANDA, op. cit. loc. cit.32. MARTINS, 2010. p.504.

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lecidas pela legislação nacional. Destaca-se que na Constituição Estadual paulista há previsão a assegurar a universalidade e a gratuidade do acesso (art. 222, IV e V), o que é reiterado pelo Código de Saúde Paulista (Lei complementar Estadual n. 791/95, art. 12).

A Constituição Federal traz um rol, exemplificativo, de competências do Sistema Único de Saúde (art. 200), que foi regulamentado pelo art. 6º da Lei n. 8.080/90. Segundo Ana Paula de Barcellos33, para fins didáticos, esse rol constitu-cional de competências poderia ser dividido em dois blocos, a saber: a) o primeiro bloco, composto pelos incisos I, VI e VII, que teria por objetivo proteger a população consumidora do serviço de saúde, conscientizando e informando acerca do poten-cial benéfico ou danoso de determinado produto, para que o indivíduo faça sua escolha (atividade essa que se relaciona à competência geral para a regulamentação e fiscalização de ações de saúde, art. 197 da Constituição Federal); b) e o segundo bloco que se associaria às atividades preventivas, e abrangeria os incisos II, IV e VIII.

Em ambos os casos as competências devem ser exercidas para atingir os objetivos do sistema, consistentes na identificação e divulgação dos fatores condi-cionantes e determinantes da saúde; na formulação de políticas de saúde destinadas a promover a redução do risco de doenças e de outros agravos nos campos econô-mico e social; e na execução de ações promotoras, protetivas e recuperadoras (art. 5° da Lei n. 8.080/90).

Quanto aos objetivos do SUS, traduzem-se em metas que se pretende efeti-var34, consistentes em identificar e divulgar os fatores condicionantes e determinan-tes da saúde; em formular políticas de saúde destinadas a promover a redução dos riscos de doenças e outros agravos, bem como o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços; e em assistir as pessoas por meio de ações assistenciais e de atividade preventiva integradas, o que se faz por intermédio de serviços de promo-ção, proteção e recuperação da saúde.

As diretrizes do SUS são a descentralização (direção única em cada esfera de governo, permitindo que a execução das ações e serviços de saúde alcance um contingente amplo de pessoas com melhores condições, e propiciando controle na aplicação dos recursos35), o atendimento integral (tem como prioridade as atividades preventivas, mas sem abandonar os serviços assistenciais. Ações preventivas consis-tem tanto na ausência de restrições no acesso ao serviço quanto no fornecimento de remédios para qualquer patologia existente36) e a participação da comunidade (que objetiva o controle social pela fiscalização da aplicação dos recursos financeiros, e a participação dos usuários na construção de políticas que direcionem o sistema ao atendimento de suas necessidades37).

33. BARCELLOS, 2009. p. 2183.34. MIRANDA, 2007. p. 292.35.Ibidem, loc. cit.36. MIRANDA, 2007,p. 289.37. Informação disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_

area=1 393>.

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Além de obedecer às diretrizes mencionadas e aos princípios constitucionais que sustentam e direcionam o ordenamento, o SUS ainda se norteia por princípios específicos constantes do art. 7° da Lei n. 8.080/90.

Os principais princípios específicos são os da universalidade de acesso aos serviços em todos os níveis de assistência; da preservação da autonomia da pessoa, defendendo-se, para tanto, sua integridade física e moral; da igualdade da assistência, vedando condutas preconceituosas ou privilegiadoras de qualquer espécie (raça, credo, situação financeira ou nacionalidade), garantindo-se presta-ções nas mesmas condições; e a integração das ações de saúde em nível executivo com conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos de todos os entes da federação.

3. O DEVER DO ESTADO EM REALIZAR AÇÕES EFETIVAS

A construção dos direitos sociais caminha no sentido de serem inerentes à própria pessoa humana, revelando-se como espécie que deve ser respeitada em prol da dignificação e valoração da pessoa38. Logo, não é viável admitir que a realização dos direitos sociais se condicione à edição de atos normativos infraconstitucionais. Tanto é assim que a doutrina pátria e o direito comparado cada vez menos têm afir-mado que as prestações de caráter social dependam de intermediação legislativa, sendo poucos os que lhes negam plenitude eficacial, por se vislumbrar que o conte-údo desses direitos abrange um leque de fazeres amplo que dificilmente poderia ser abarcado por qualquer normalização constitucional ou infraconstitucional39.

Nessa esteira, é possível afirmar que, independente da classificação de sua eficácia, todas as normas constitucionais são aplicáveis de imediato, porquanto to-das elas, indistintamente, são revestidas daquilo que se chamou “eficácia jurídica”, estando aptas à produção de efeitos no mundo do direito, ainda que umas em maior grau que as outras40. Tal assertiva aplica-se mesmo em face de posições que consi-deram o direito à saúde como norma de eficácia limitada de princípio programático – pela qual se estabelece no texto constitucional um programa a ser desenvolvido mediante legislação integrativa de vontade do constituinte41–, haja vista que não se pode negar a força normativa da Constituição.

Destacamos o posicionamento de Luiz Roberto Barroso que reconhece a possibilidade de aplicação imediata das normas programáticas, uma vez que elas ostentam quatro atributos: a) revogam a lei anterior que se mostre com elas incom-

38. SILVA FILHO, 2006. p.122.39. SARLET, 1998, p. 314/315.40. Com relação ao tema não faremos maiores digressões, sugerindo-se para estudo do assunto

a obra Elementos de direito constitucional (TEMER, Michel. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 23 et seq.).

41. OLIVEIRA, 2003.p.32.

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patível; b) vinculam o legislador; c) condicionam a forma de atuação da adminis-tração pública; e d) norteiam a maneira de interpretação e aplicação das demais leis pelo Poder Judiciário42.

O art. 5º, § 1°, da Constituição Federal, de forma clara, determina que as normas relacionadas a direitos fundamentais devam ser aplicadas imediatamente. Além disso, a denominada doutrina brasileira da efetividade aponta que as normas constitucionais contam com um grau de imperatividade que lhes confere aplicação direta e imediata, na extensão máxima de sua densidade normativa. Por isso, tanto ações quanto omissões, em sentido contrário, são capazes de aviltar a norma43, tor-nando as prestações no campo da saúde plenamente exigíveis.

Assim, entende-se mais adequado utilizar a expressão “normas de cunho programático” porquanto, embora elas não tenham o mesmo grau de eficácia dos direitos individuais, ainda assim possuem efetividade44, já que vincula o gestor pú-blico, obrigando-o a empenhar-se para pôr em prática as determinações do texto constitucional, distribuindo as prestações devidas aos cidadãos.

3.1. Concretização da saúde

O direito à saúde enfatiza-se por um viés coletivo, integrando-se material-mente com os demais direitos sociais, ensejando a mudança de foco do indivíduo isolado para o indivíduo inserido no grupo social45. Por vezes, os grupos sociais que se formam não estão em pé de igualdade; cada associação de pessoas tem necessidades diferentes (por exemplo, uns carecem de mais saúde, outros de mais educação etc.). Logo, deverá ser empregado tratamento distinto entre as diversas sociedades, para que as pessoas de determinado grupo consigam chegar a uma situação de paridade face aos demais grupos46.

Nesse sentido, aponta-se um primeiro problema relacionado à efetivação da saúde porque para que haja efetiva promoção da saúde é essencial que primeiro se promova a redução da desigualdade social, pois a diferença de classes constitui fator determinante e condicionante da saúde, já que as pessoas que vivem em situação precária fatalmente serão mais acometidas de doenças e outros agravos47.

A simples existência de políticas que visem diminuir a disparidade entre os grupos sociais não se revela suficiente. É preciso criar programas governamentais que, na prática, atenuem essa diferenciação em todos os âmbitos prestacionais (educação, trabalho, esporte, lazer etc.), pois o conjunto de ações efetivas em

42. BARROSO, 2003. p. 156.43. BARROSO, 2009. p.14.44. SARLET, p.265-266, 1998. Apud SILVA FILHO, 2006. p.126.45. SILVA FILHO, 2006. p.124.46. Segundo Silva Filho, isso não ocorreria com os direitos de terceira categoria, uma vez que esses

abarcariam a sociedade como um todo, não havendo uma diferença a ser superada entre deter-minados grupos sociais porque o problema atinge a todos indistintamente (2006, p.124/125).

47. SANTOS, 2005, loc. cit.

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todas as áreas repercutirá em promoção da saúde de forma plena, garantindo a completa dignidade48 da pessoa.

Por outro lado, como os direitos sociais constituem-se de prestações po-sitivas que devem ser fornecidas pelo Estado a todos os cidadãos, afirma-se que eles possuem uma especialidade em seu conteúdo por ensejarem direito a tais ações positivas49.

Segundo Robert Alexy, o direito às prestações positivas pode ser dividido em dois: a) um que tem como objeto uma ação fática, concreta, denominado direito à prestação em sentido estrito; b) e outro que tem por objeto uma ação normativa estatal e recebe a denominação de direito à prestação em sentido amplo50.

O direito à prestação em sentido estrito é aquele exercido pelo indivíduo em face do Estado para obtenção de algo que, caso tivesse meios financeiros sufi-cientes para fazê-lo, poderia ser adquirido de particulares. Já o direito à prestação em sentido amplo objetiva uma ação normativa estatal que deve ser realizada em prol de todas as pessoas51.

A partir do momento em que é inserto no texto constitucional passa o direito a ser considerado como subjetivo – o que ocorreu com a saúde. Para que se torne di-reito objetivo (determinado), em regra é necessário que o Legislativo atue definindo seu conteúdo concreto, respeitando um quadro político de prioridades que conside-rará, entre outras coisas, a escassez de recursos52. De certo, a omissão do legislador em definir o conteúdo do direito enfraquecerá a posição subjetiva, porém, não o invalidará de todo porque esta (posição subjetiva) estabelece garantias institucionais que devem ser respeitadas, independentemente do ato de criação da norma53.

Dessa maneira, os direitos sociais realizam-se mediante a garantia de presta-ções positivas a serem concretizadas por meio de ações de natureza fática e também compreendem, complementarmente, prestações de natureza normativa que se desti-nam a proporcionar a fruição de bens e serviços de cunho social pelos indivíduos54.

48. No que diz respeito à dignificação do ser humano, adotamos neste estudo o conceito exposto por Ingo Sarlet, segundo o qual a dignidade da pessoa humana pode ser definida como “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições de existência mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (2004. p. 244).

49. TERRAZAS, 2008. p.10.50. ALEXY, 2006. p. 201/202.51. Ibidem. p. 201/202.52. GEBRAN NETO,. 2004. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAu-

dienciaPúblicaSau de/Anexo/Di reito_a_prestacoes_materiais_e_a_efetividade_da_tute-la_jurisdicional.pdf>.

53. Ibidem., loc. cit..54. TERRAZAS, 2008. p. 11.

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Enquanto direito subjetivo, a saúde (e todos os direitos às prestações) con-substancia-se por uma relação trivalente entre um titular de direito fundamental, o Estado e uma ação positiva por parte deste. O titular do direito fundamental tem o direito a uma ação positiva (além de ter competência para exigir o cumprimento da prestação), e o Estado tem o dever de prestar essa ação55.

Ambas as vertentes do direito a uma prestação são encontradas na redação do art. 196 da Constituição, já que a saúde (e o acesso às ações e serviços dela decorren-tes) constitui um direito de todos (sentido estrito), a ser garantido mediante adoção de políticas socioeconômicas, que se fazem por meio de atos normativos (sentido amplo).

Um problema inevitável a se enfrentar quando se reflete sobre a concretização da saúde é que, enquanto direito social, a saúde tem natureza de direito positivo (que exige um fazer, a reivindicação de algo), e se liga à disponibilidade de recursos daqueles que são obrigados a prestá-los. Assim, como os direitos fundamentais sociais concernen-tes às prestações positivas implicam, ainda que garantidores de mínima dignidade, enor-mes efeitos financeiros ao Estado, mormente quando são muitos que dele necessitam56.

Os recursos a serem empregados para a efetivação dos direitos sociais são grandiosos porque ainda não se criou condição para o exercício deles, sendo que os custos para implementação dos direitos civis e políticos geralmente são aprovei-tados de maneira global, enquanto os direitos sociais exigem uma prestação estatal exclusiva que só é aproveitada em função daquele direito57. Portanto, a escassez financeira apresenta-se como grande problema a ser enfrentado diante da obrigato-riedade de distribuição desses direitos.

Desta sorte, a chave para a solução da problemática efetivação da saúde repou-sa na adoção de políticas públicas bem pensadas, que sejam realizadas estritamente da forma como idealizadas e com vistas ao atendimento dos fins a que se destinam.

Na mesma esteira em que se encontram as normas que estatuem os direitos sociais, caminham paralelamente as premissas gerais integrantes do âmbito consti-tucional normativo. Tais premissas constituem elementos estruturais do sistema jurí-dico, como é o caso dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade/isonomia58. Por isso, entendemos que a existência desses elementos estruturais cons-titui o fundamento que implica o dever estatal de diminuir a disparidade entre os grupos sociais, o que se faz, ou pelo menos deveria ser feito, por meio de programas do governo nos quais se realizam prestações em favor da pessoa59.

55. GEBRAN NETO. op .cit. loc. cit.56. ALEXY, 2006. p. 512.57. SILVA, Virgílio Afonso da. 2005. p. 320.58. GEBRAN NETO, 2004. loc. cit.59. Entende-se dessa forma porque, por exemplo, se somente existisse o direito à saúde, sem

que se garantisse a realização da dignidade humana, não haveria um parâmetro hábil para sustentar que os serviços de saúde, da forma como estivessem sendo prestados, estariam adequados e obedientes aos ditames constitucionais. Dessa forma, consigna-se que, em-bora tácita e quase que intuitivamente, referidos elementos estruturais norteiam a ação governamental e impõem a realização de condutas necessárias ao preenchimento das de-terminações do texto da Constituição.

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Qualquer ação prestativa a ser efetivada implicará gastos e, sabendo que a efetivação de direitos pressupõe a utilização de recursos financeiros do governo, cer-tamente a distribuição concreta de todos eles implicará a escassez das verbas disponí-veis. Diante dessa problemática, surgiram teorias que, de um lado, visam resguardar o Estado do esgotamento de sua renda e que, de outro, almejam assegurar ao menos a realização, ainda que superficial, dos direitos previstos. Tais doutrinas denominam-se, respectivamente, “teoria da reserva do possível” e “teoria do mínimo vital”.

A Constituição contemplou as pessoas com direito a prestações de saúde, mas, diante da inércia estatal em efetivar tal direito, iniciou-se um movimento de ajuizamento de ações para assegurar a obediência às disposições constitucionais. Os recursos estatais são escassos; logo, o deferimento indiscriminado de todos os pedidos levados ao Judiciário fatalmente implica o esgotamento das verbas públicas, o que inviabiliza a realização de outras ações da Administração que beneficiariam a população nas diversas áreas de interesse. Referido raciocínio consubstancia o argumento da reserva do possível.

A teoria da reserva do possível não se refere única e diretamente à existência de recursos materiais que são necessários à concretização do direito social, mas à razoabilidade da pretensão, sempre com vistas à efetivação do direito no caso con-creto e nos impactos que a decisão causará no âmbito coletivo60.

Nesse ponto, consignamos que o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que a teoria da reserva do possível não pode ser invocada pelo Estado com a finalidade de este se desobrigar de uma prestação, mormente quando esse dever se revestir de essencial fundamentalidade. A alegação de reserva do possível somente poderá ser acolhida em face da ocorrência de “justo motivo objetivamente aferível”61– o que não se entende viável no atual cenário brasileiro em que a verba pública está sendo empregada na realização de obras para alocação dos Jogos Olím-picos e da Copa Do Mundo.

A reserva do possível corresponde ao fenômeno da limitação dos recursos comprovadamente disponíveis, em face das necessidades a serem supridas pelo po-der público62. Embora sejam limitadas as riquezas estatais, não pode esse simples fato ensejar a aplicação da teoria da reserva do possível porque essa não consiste em cláusula de não efetividade de direitos, haja vista a inexistência de proporção regular entre a fortuna estatal e o desenvolvimento da qualidade de vida no País63.

Alexy afirma que o fato de a reserva do possível se consubstanciar como uma cláusula de restrição de direitos não implica o esvaziamento do conteúdo desses ante

60. MÂNICA, 2007. p. 169-186.61. STF – Agravo regimental na suspensão de tutela antecipada 175-Ceará. p. 114; e Agravo

regimental na suspensão de liminar 47-Pernambuco. p. 41. Ambos julgados em 17-3-2010. Ministro Relator Gilmar Ferreira Mendes.

62. BARCELLOS, 2002. p. 236 e 248.63. OLIVEIRA, 2008. p. 28.

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a impossibilidade estatal, mas tão somente enseja a necessidade de sopesar os direitos aparentemente conflitantes para saber qual deverá prevalecer no caso concreto64. Na impossibilidade de efetivação plena de todos os direitos assegurados constitucional-mente, ao menos uma parcela de cada um deles deve ser garantida – porção essa que doutrinariamente é conhecida como “mínimo vital” ou “mínimo existencial”.

A teoria do mínimo vital consiste na tentativa de se preservar, ao menos, pequena parcela de direitos necessários para a sociedade criar condições de digno desenvolvimento, garantindo que nem o Estado nem os particulares agridam direitos básicos inerentes ao ser humano65. O mínimo vital compreende a prestação social que se faça necessária e indispensável para realização do direito fundamental ga-rantido, prestação que deve ser cumprida de acordo com as possibilidades reais e fáticas do próprio Estado.

No campo da saúde, enquanto não forem efetivados de maneira satisfatória todos os direitos fundamentais da pessoa, o mínimo existencial implicará a impossi-bilidade de se exigir, indiscriminadamente, toda e qualquer prestação material, uma tutela máxima, mostrando-se exigível tão somente aquilo que ordinariamente estiver acessível àqueles que não sejam hipossuficientes66. Por esta razão, afirma-se não ser possível compelir o Estado a fornecer tratamentos extraordinários e acessíveis a poucos, como o caso daqueles realizados no exterior, que estão fora do alcance do indivíduo standard, médio. Em contrapartida, os serviços que forem fornecidos no mercado, mostrando-se acessíveis às pessoas comuns, devem ser garantidos a todos pelo Estado, porquanto os hipossuficientes não podem ser prejudicados por não terem condições financeiras para tratar suas mazelas67.

A tentativa de se definir de antemão quais prestações se enquadrariam no mínimo vital por vezes torna-se difícil, realizando-se com mais precisão quando se está diante de um caso concreto, ao enquadrar a necessidade exposta em uma pers-pectiva geral a fim de que o interesse de todos não seja sacrificado pelo resultado da demanda individual68.

A reserva do possível deve funcionar como um limite jurídico e fático, sem-pre se ponderando entre o que é proporcional em face das condições estatais e o que não se pode deixar de distribuir em razão do mínimo existencial69. Não serve a simples argumentação de escassez de recursos para reduzir a zero a eficácia de qualquer direito fundamental, confinando-o ao simples argumento de que ao Estado

64. ALEXY, 2006. p. 515.65. OLIVEIRA, M. D., 2008. p. 27.66. GEBRAN NETO, 2004.loc.cit.67.Ibidem.68. HEINEN, Juliano. O custo do direito à saúde e a necessidade de uma decisão realista: uma

opção trágica. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPubli-caSaude/anexo/O_CUSTO_DO_ DIREITO_A_SAUDE_E_A_NECESSIDADE_DE_DE_UMA_DECISAO_REALISTA_UMA_OPCAO_TRAGICA.pdf>.

69. MÂNICA, 2007. p. 169-186.

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sua realização não seria possível. Contudo, também não se garante toda e qualquer prestação de forma indiscriminada.

Por conseguinte, a eficácia da norma constitucional que assegura o direito à saúde deve ser interpretada com base na racionalização dos meios, encontrando-se mecanismos lógicos que afiancem os interesses legalmente garantidos ao cidadão, bem como sua vida com dignidade; porém, sem adotar posturas que privilegiem poucos em detrimento da maioria, ou o Estado em prejuízo do cidadão.

4. O PAPEL DO ESTADO NA EFETIVAÇÃO DA SAÚDE

As funções do Poder estatal foram igualmente distribuídas entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, órgãos independentes e harmônicos (art. 2° da Consti-tuição Federal). Cada fração do poder recebeu uma função típica inerente à sua natureza, que é a predominante do órgão, além de outras duas funções atípicas relacionadas com a natureza típica dos outros órgãos70. Entretanto, um Poder não poderá delegar ao outro o exercício de qualquer das suas funções, e a função típica de um dos órgãos somente poderá ser exercida pelo outro quando houver previsão normativa expressa a autorizar tal conduta71.

Ao Executivo compete governar, gerir o orçamento público na execução de obras e serviços de interesse geral, mormente no que concerne às políticas públicas. Ao Legislativo incumbe transformar as normas de organização da sociedade em textos de vinculação obrigatória, emanados do anseio social. Por sua vez, cabe ao Judiciário o papel de agir como árbitro, analisando e interpretando situações alega-das mediante provocação72.

Observa-se que competem precipuamente ao Legislativo e ao Executivo formular e executar políticas públicas para implementação de direitos; contudo, a ineficiência demonstrada por esses órgãos em extrair do papel os mandamentos constitucionais é verificada sob diversos ângulos (falta de efetividade, insuficiência, não universalidade, inconstância e ineficácia), o que demonstra a falência das polí-ticas adotadas, e tem ensejado manifestações de inconformismo popular por meio do ajuizamento de ações na tentativa de se obter do Judiciário um papel ativo em substituição aos gestores ineficazes73.

Outro motivo que leva à judicialização dos pedidos é a ausência de infor-mação adequada sobre o que é fornecido, o que é preciso para se obter o produto, quem é o responsável pelo fornecimento e em que local se realiza a distribuição. Os pedidos judiciais apresentam-se, também, como uma tentativa de abreviar o caminho a ser percorrido para a obtenção do que é necessário74– o que não é ade-

70. LENZA, 2010. p. 398.71. Ibidem. p. 400.72. ROCHA, 2009. p.166/168.73. CARVALHO, 2008. p. 130.74. Ibidem. p.134.

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quado, mas pode ser razoável levando em consideração, diante do caso concreto, a gravidade do problema de saúde a ser enfrentado.

Assim, ainda que a Constituição tenha direcionado o Legislativo e o Exe-cutivo à criação e execução das políticas públicas de saúde, tal fato não constitui impedimento para que, excepcionalmente, o Judiciário determine a realização pelos poderes inadimplentes dos direitos assegurados, mormente quando a inércia dos demais poderes implicar descumprimento dos encargos sobre eles incidentes75– o que, na prática, atende à lógica do sistema de freios e contrapesos estabelecido: a violação dos ditames da Constituição (seja por ação ou omissão) deve ser combati-da, por meio do uso dos mecanismos que garantem tutela ao bem jurídico violado e visam restaurar a ordem jurídica afetada76.

Tal raciocínio decorre da crescente disposição de resgatar as promessas consti-tucionais e efetivá-las, transformando-as em realidades constitucionais, superando-se a literalidade legal, relativizando-se os conceitos anteriormente postos como absolutos, para alcançar a concretização dos direitos fundamentais e, sobretudo, da justiça social77.

Mencionada relativização dos conceitos deu-se com a evolução do pensar jurídico, pela qual a lei deixou de ser considerada como a única fonte do Direito por se entender que este seria maior do que a simples lei, passando-se a conside-rar os princípios jurídicos como postulados de valor para interpretação e aplicação da norma78. Tal mudança de pensamento buscou fundamentar as ações estatais na promoção dos direitos e superar a proeminência legal, restabelecendo, assim, a co-nexão existente entre Direito e Moral79.

Todavia, ao se realizar judicialmente os direitos sociais não satisfeitos pelo Exe-cutivo e Legislativo, não se podem perder de vista as consequências da decisão profe-rida, para que não se acentuem, pela via reflexa, os desequilíbrios sociais existentes.

O texto concessivo da Constituição de 1988 revelou, de forma acentuada, a incapacidade dos agentes públicos de solucionarem espontaneamente os problemas sociais, descolando do texto da Lei Maior os direitos e as garantias fundamentais, a fim de que eles fossem efetivados no dia a dia das comunidades80. Por tal motivo, sob a visão crítica de quem sofre na pele a ausência de prestações mínimas que lhe ga-

75. ROCHA. op.cit.p.180/181.76. BARROSO, 2009. p.14.77. Estamos diante de uma verdadeira mutação do art. 2° da Constituição, na medida em que a

independência dos Poderes vem sendo mitigada pela possibilidade de suprimento da lacu-na existente em face de omissão dos órgãos legitimados em suas atribuições constitucionais atipicamente por outro Poder. As palavras de Luiz Alberto G.S. Rocha bem sintetizam essa ideia, ao se afirmar que “...a realidade social impõe um mecanismo de soluções, pela ótica do marginalizado, dos problemas que não se preocupa em analisar com mais acuidade como e de onde provêm as soluções. Importa que elas sejam adotadas e refletidas no coti-diano dramático de muitas famílias Brasil afora” (2009. p.205/210).

78. ROCHA, 2009. p. 171.79. Ibidem. p. 171.80. Ibidem. p. 173/174.

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rantam a sobrevivência com dignidade, tem-se a impressão de que os direitos sociais não passam de um dado constitucional, permanecendo longe da prática cotidiana.

Mormente no que concerne aos direitos sociais previstos no art. 6° da Consti-tuição Federal, Luiz Alberto G.S. Rocha descreve, em poucas palavras, um sentimen-to que parece fazer parte do discurso da maioria da população carente brasileira:

No Brasil, o fim esperançoso da comemoração da aprovação do novo texto constitucional não conseguiu garantir que os valores sociais, resumidamen-te coletados no art.6°, fossem transformados em melhorias das condições de vida da maior parte da população brasileira. E, mesmo as modificações do texto constitucional, que se iniciaram logo cedo, não foram capazes de, ainda hoje, trazer garantias das condições materiais de exercício mínimo de direitos da dignidade da pessoa humana81.

Diante desse quadro, deparando-se com a violação patente ao texto consti-tucional (somada à provocação daquele que diretamente está suportando o prejuízo da falta da lei, da política pública ou da ineficácia de ambas), não pode o magistrado também se quedar inerte, como se as premissas da Constituição fossem conselhos a ser seguidos mediante análise de oportunidade e conveniência pela Administração e pelo Legislativo. Muito pelo contrário, tem o Judiciário papel decisivo para a con-cretização do texto constitucional.

A ideia de Estado democrático de direito que consta da Constituição (art. 1º) traduz dois conceitos próximos que não se confundem: a democracia e o constitucio-nalismo. De forma sintética, aponta-se que, enquanto a democracia manifesta-se pela soberania popular e governo da maioria, o constitucionalismo significa limitação ao poder com base na supremacia da lei e no respeito aos direitos fundamentais82.

Da singeleza dos conceitos alhures, extrai-se que, por vezes, o constitucio-nalismo brasileiro pode se direcionar em desencontro com a democracia (por exem-plo, quando a Constituição estabelecer determinado preceito e a vontade da maioria for a sentido contrário). Assim, quando as determinações constitucionais apontarem em direções opostas, gerando aparente conflito, o intérprete deverá agir ponderando qual desses postulados deverá prevalecer e ser aplicado ao caso concreto83.

Não pode o Judiciário eximir-se de decidir frente ao caso concreto. Deve ele realizar mandamentos que assegurem a realização dos fins sociais, obrigando que os demais poderes prestem o serviço que foi determinado pelo povo, pois há verdadei-ra responsabilidade solidária dos três Poderes em face dos projetos de modificação das condições materiais de vida da sociedade84.

Por isso, o atual papel do Poder Judiciário é inequivocamente de interpretar a Constituição e as leis, no intuito de resguardar direitos e assegurar a observância do ordenamento jurídico – o que inclui a função de construir o sentido das normas

81. ROCHA, 2009. p. 173/174.82. BARROSO. Notadez, 2009. p.18.83. Ibidem. p.17.84. ROCHA, 2009. p.176.

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jurídicas e de efetuar a ponderação entre os direitos fundamentais e princípios cons-titucionais que eventualmente se encontrarem em rota de colisão85.

Ao revés do Legislativo e Executivo que hasteiam sua legitimidade na “repre-sentação política”, a legitimidade do Judiciário funda-se na sua “representação ar-gumentativa”, porquanto seu papel a ser legitimamente exercido dentro do Estado Democrático de Direito é o de “instância de reflexão do processo político”86. Logo, a função do Judiciário também é de receber as reclamações daqueles que se sentem afe-tados por decisões políticas, questionando as medidas tomadas pelos outros poderes, forçando-os a uma justificativa e reavaliação de suas decisões e prioridades, indicando aos representantes do poder a necessidade de revisar tais decisões e atitudes87.

Por isso, é inquestionável que o Judiciário deve interferir nas deliberações dos órgãos representantes das maiorias eleitas, impondo ou invalidando ações ad-ministrativas e políticas públicas sempre que isso for necessário para preservar um direito constitucional ou para assegurar respeito a uma lei que se mostre compatível com a Constituição88.

Se um direito existe ele é justiciável e, diante de um modelo baseado no so-pesamento (como o nosso), é adequado admitir que aquilo que se considera devido prima facie seja mais amplo do que aquilo que é definitivamente devido89. Dessa forma, ante a omissão dos demais poderes legitimados no cumprimento do dever prestacional que lhes fora atribuído, caberá a atuação judicial para concretização dos direitos postos. Nesse sentido, destacamos os ensinamentos de Alexy:

Como demonstra a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, um tri-bunal constitucional não é, de modo algum, impotente em face de um legis-lador omisso. O espectro de suas possibilidades processuais-constitucionais vai desde a simples constatação de uma inconstitucionalidade, passando pelo estabelecimento de um prazo dentro do qual deve ocorrer uma legislação compatível com a Constituição, até a determinação judicial direta daquilo que é obrigatório em virtude da Constituição90.

A relação entre o juiz e a lei, atualmente, impõe-se como um dever de ação maior para a consecução dos direitos fundamentais. Tem o juiz a obrigação jurídico-constitucional de adotar condutas que confiram eficácia, no mínimo, ao que corresponder ao núcleo essencial dos direitos que são normativamente irre-cusáveis, sob pena de se incorrer em violação ao mínimo existencial91. Busca-se superar a literalidade da lei em favor de uma tutela jurisdicional efetiva, razão por que o cenário vigente abre espaço à atuação judicial em face da inoperância do

85. BARROSO, 2009. p. 29.86. WANG, 2009. p. 33.87. Ibidem., p.34.88. BARROSO.op.cit.p.20.89. ALEXY, 2006. p.514.90. Ibidem, loc. cit.91. ROCHA, 2009. p.176/177.

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Estado em conferir dinamicidade à norma, para que os fatos sociais sejam contem-plados integralmente92.

Tal tarefa consiste em tema de primeira ordem da agenda do Judiciário, de-vendo a atividade dos magistrados se voltar à realização dos direitos fundamentais entendidos como indeclináveis pelo Estado93.

Nesse ponto, deve-se ponderar que a margem de atuação do Judiciário não pode ser considerada como ampla e irrestrita, mesmo diante da necessidade de efetivação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, porquanto isso implicaria, também, violação à separação das competências atribuídas aos órgãos representativos do poder. Deve-se priorizar a via administrativa para obtenção da prestação de saúde necessária, mas, caso tal caminho se revele insuficiente, as ações judiciais não podem ser excluídas do rol de mecanismos secundários para satisfação do direito violado94.

Ao extrair deveres das normas constitucionais, o magistrado deve ter como ce-nário principal as hipóteses de omissão dos Poderes Públicos, as ações que se contra-ponham à própria Constituição, ou ainda o não atendimento ao mínimo vital. Ou seja, na ausência de lei ou ação administrativa cumpridora dos ditames constitucionais, abre-se margem à atuação judicial – o que também ocorre na hipótese de as leis ou atos administrativos não serem devidamente cumpridos95. Deve a atuação do magis-trado encontrar limites para evitar o aumento da frustração social pela manutenção da desigualdade na distribuição de bens sociais também pelas vias jurídicas96.

A crescente insegurança no âmbito da saúde decorre de uma demanda cada vez maior por prestações sociais, já que grande gama da população engrossa a fila da exclusão social e, paralelamente, vê-se o declínio da capacidade prestacional do Estado97. Esses fatos têm fortalecido a concepção de que o Poder Judiciário também é uma instituição democrática, na medida em que é capaz de corrigir os equívocos cometidos pelos poderes políticos e, sobretudo, de amenizar a desigualdade social entre ricos e pobres, mormente quando a desigualdade social se mostra caminhando par e passo com a pobreza98.

O fato é que não se pode considerar equivocada a busca, por intermédio do Judiciário, de satisfação de interesses que se encontrem em situação de ameaça ou lesão, haja vista que diante das inanições institucionais dos poderes, abre-se espaço para uma sucessiva substituição funcional que, por último, legitima o Judiciário a, diante do vazio político, ocupar espaço no cenário constitucional, impondo os di-tames da Lei Maior99.

92. Ibidem.p.177.93. Ibidem.loc .cit.94. CARVALHO, 2008. p.141.95. BARROSO, 2009. p.29.96. ROCHA, op.cit.p.182.97. SARLET, 2004. p. 248.98. TERRAZAS, 2008. p.20.99. ROCHA, 2009. p.177.

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Dessa forma, em face da inércia executiva e legislativa, não deve o Judiciário se furtar em chamar para si a responsabilidade de conformar as regras legais aos direitos constitucionais aplicáveis ao caso concreto, uma vez que os direitos fun-damentais não se efetivarão enquanto não forem superadas as barreiras que tentam impedir que se possa reclamá-los perante o Judiciário100.

Um orçamento público, quando não atende aos preceitos da Constituição, pode e deve ser corrigido mediante alteração, que se faz com a devida condenação do Poder Público à prestação do serviço público básico, ou o pagamento de serviço privado101.

Nesse sentido, a judicialização significa um processo de transferência de poder para os juízes e tribunais.

Em virtude desse movimento, questões de ampla repercussão política ou so-cial passam a ser decididas por órgãos do Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais (Executivo e Legislativo), o que leva (e já levou) o Judiciário a debater as ações concretas ou políticas públicas praticadas por esses últimos.

No contexto brasileiro, a judicialização é uma consequência do modelo cons-titucional adotado, pois incumbe ao Judiciário, sem alternativa, decidir sobre questões relativas às violações perpetradas em face das imposições constitucionais102.

Por outro lado, o ativismo judicial não decorre do modelo escolhido. Reveste--se ele de uma atitude proativa de interpretação da Constituição, na qual se expande o alcance de suas normas103/104. Associa-se a uma participação mais intensa do Judiciário na concretização dos valores e finalidades do sistema jurídico, mesmo que isso impor-te na permeação de suas decisões no campo das competências dos outros Poderes105.

Seja por meio do ativismo judicial ou da judicialização de direitos, percebe--se que, de fato, tem ocorrido uma sequência constante de decisões que suprem omissões e que, até mesmo, inovam na ordem normativa, tudo em nome da efeti-vação da Constituição – fenômeno esse que guarda um inegável lado positivo, na medida em que assim se atendem às demandas sociais não satisfeitas espontanea-mente pelo Estado106.

No âmbito do Poder Judiciário, tanto a judicialização quanto o ativismo assu-miram conotação negativa; porém, essa proeminência judicial é relevante e adequa-da, sobretudo diante da necessidade de concretização dos direitos fundamentais107.

100. BRANDÃO, 2006. p.29.101. Ibidem. p. 28.102. BRANDÃO, 2006.p. 6. 103. Ibidem..loc. cit.104. Somente a título de curiosidade, esclarecemos que o oposto do ativismo é a “autocontenção

judicial”, pela qual o Judiciário busca reduzir sua atuação interferente nas ações dos demais Órgãos do Poder (BARROSO, op.cit., loc. cit.). A respeito desse tema, sugerimos, além da obra de Barroso, o estudo do artigo jurídico O discurso dos direitos fundamentais na legiti-midade e deslegitimação de uma Justiça Constitucional substantiva (TAVARES, 2007).

105. BARROSO, 2009. P .6.106. Ibidem..p. 9.107. TAVARES, 2007.p.12.

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Ademais, frisa-se que é no erro que se chega ao acerto. Dessa forma, mesmo que esses movimentos impliquem atuação judicial desastrosa, esta servirá de expe-riência para as gerações futuras, além de pressionar os demais Poderes a criar solu-ções que deslegitimem a decisão “desastrosa”, atuando positivamente para reforçar os direitos fundamentais108.

A judicialização existente não se deu por opção dos magistrados, pois os tribunais não tinham a alternativa de não conhecer as questões ajuizadas caso os pressupostos e requisitos de admissibilidade estivessem preenchidos. O movimento de judicialização iniciou-se com a estrita execução do papel atribuído ao Judiciário, limitando-se ele a cumprir com seu dever constitucional109.

O Judiciário exerce relevante papel para a efetividade dos direitos fundamen-tais, por descolar do texto vigente os direitos sociais transformando-os em direitos concretos. Logo, a esfera judicial também se apresenta como um espaço de luta dos movimentos populares, ganhando impulso e legitimação com as ações desses sujeitos de direitos110.

Assim, hoje o Judiciário deve ser um “poder pensante”, que extrai e imple-menta de modo ativo os objetivos do Estado, sem ficar adstrito ao texto da lei, obje-tivando, pois, sua correta aplicação, agindo semelhante a um legislador111.

Deve o Judiciário ampliar os conceitos normativos e conferir eficácia à Cons-tituição no caso concreto. Para tanto, seu papel inegável é de interpretar os dis-positivos, abstraindo intenções para concretizar de forma plena o que idealizou o constituinte, exercendo seu concorrente papel político frente aos demais Poderes.

O Estado é o expoente do poder político, e a Constituição é sua norma fun-damental. Dessa maneira, independentemente do órgão a que se atribuir a compe-tência para realizar determinada tarefa, o sistema de freios e contrapesos impõe a existência de uma entidade competente para resolver os conflitos existentes, sendo certo que a ordem jurídica brasileira confiou esse papel (de solucionador de confli-tos) ao Poder Judiciário, que deve realizar um juízo de conformação das normas e atos em face da Constituição, desempenhando, pois, uma função política de interes-se do próprio Estado (interesse de auto preservação)112.

Como bem ressaltado por André Ramos Tavares, a retirada de atuação do Judiciário na implementação dos direitos fundamentais produziria como resultado a diminuição do papel do Estado, permitindo que o legislador deixe, livremente, de concretizar direitos mínimos, o que privilegiaria as decisões majoritárias em detri-mento das minorias113.

108. Ibidem.p.19.109. BARROSO, 2009.p. 5 et. seq.110. CASTRO, 2009. Loc. cit.111. NÓBREGA, 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12910>. 112. Ibidem. loc. cit.113. TAVARES, 2007.p.19/20.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Criou-se o Estado para que ele zelasse, de forma uníssona, pelas pessoas. Para tanto, estabeleceu-se um rol de direitos mínimos a serem garantidos por esta figura, os quais se encontram no bojo da Constituição de 1988. Todavia, passados mais de vinte e três anos de vigência da Carta Magna, ainda não houve atendimento àquilo que por ela foi estabelecido.

É fato incontroverso que as pessoas têm a saúde como direito constitucio-nalmente assegurado – direito social, fundamental, atribuído com vistas a garantir o fornecimento de meios para se efetivar a igualdade dos indivíduos.

Em análise ao texto da Constituição, a priori, pode parecer que a eficácia das normas de direitos sociais é de conteúdo programático (não auto executáveis, diretivas); contudo, elas não podem ser dotadas dessa característica porque há dis-posição expressa da Constituição que determina que os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata.

Por ser direito social, a saúde surge com carga de eficácia que garante a realiza-ção de efeitos imediatos ao menos no que se relacionar com o mínimo vital, cabendo ao Poder Público como um todo implementar medidas efetivas para seu cumprimento.

Tanto o constituinte originário desejou a efetividade do direito à saúde, que foi além no texto constitucional, criando e estabelecendo um programa a ser reali-zado pela Administração Pública, o Sistema Único de Saúde.

A saúde comporta duas vertentes: a primeira que corresponde a programas sociais e econômicos que visem à redução coletiva de doenças e seus agravos, com melhoria da qualidade de vida do cidadão; e a segunda que obriga o Estado a man-ter ações e serviços públicos de saúde que possam promovê-la e prevenir, de modo mais direto, mediante uma rede de serviços regionalizados e hierarquizados, os ris-cos de adoecer e recuperar o indivíduo das doenças que o acometem (assistências preventiva e curativa).

Porém, os ditames constitucionais não foram suficientes para chamar os ór-gãos de poder às suas obrigações, pois o que se vislumbra ter sido efetivamente concretizado até o momento em termos de prestação de saúde é ínfimo frente ao que poderia ter sido feito.

Dessa forma, se por um lado a doutrina da máxima efetividade das normas constitucionais almeja torná-las aplicáveis imediata e diretamente, no mais amplo alcance da densidade normativa do texto constitucional, do outro encontramos os Poderes Legislativo e Executivo inertes, violadores da norma.

Assim, a atuação do Judiciário se faz legítima no intuito de concretizar os mandamentos da Constituição, desde que respeitados certos limites à atuação do magistrado. Logo, embora o julgador deva ser prudente para evitar que o casuísmo da jurisprudência não impeça a adoção das políticas públicas coletivas, não se pode deixar de beneficiar aquele que se socorre do Judiciário para obter uma prestação que já lhe deveria estar disponível.

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O preenchimento de lacunas político/legislativas para efetivação de direitos fundamentais é papel do julgador, e também se presta a impulsionar o Legislativo a legislar e o Executivo a criar e efetivar políticas públicas determinadas pelo texto da Constituição.

Cabe, assim, ao legislador constituir o objeto do direito à saúde, sua extensão e forma de concretização, mas, diante da omissão legislativa, deve o Judiciário (no exer-cício de seu poder de intérprete e guardião do texto constitucional) definir o alcance e a concretude do direito declarado, tornando-o efetivo – porque esse era o desiderato da Constituição: que o direito declarado não ficasse adstrito ao texto da norma.

Da mesma forma, se o Executivo não adota a política pública instituída, ou se a adota de maneira irregular, cabe ao Judiciário obrigá-lo ao fornecimento da prestação, ou a esclarecer o motivo por que suas ações não são realizadas a con-tento, não podendo o indivíduo sofrer as consequências da inobservância ao texto constitucional e da letra da lei.

Mais do que uma colisão entre o direito à saúde de um, em face das teo-rias da separação dos poderes, da reserva do possível, do mínimo assistencial ou dos princípios orçamentários, a judicialização da saúde representa, diretamente, o conflito entre o direito à vida e à saúde daquele que propõe uma ação pleiteando alguma espécie de prestação, em face do direito de toda coletividade de receber políticas públicas de saúde que geram proteção à vida, de forma isonômica.

Portanto, é inegável que algo tem de ser feito para se dar atendimento ao que foi estabelecido pela Constituição, uma vez que, com a ausência das prestações devidas, a sociedade é quem está sendo prejudicada – somente restando o Judiciário como última fonte de esperança para dar fiel cumprimento à Lei Suprema.

O ideal seria que não fosse necessário ao cidadão ter de ingressar com pedidos judiciais para garantir que seus direitos fossem assegurados; porém, como a absoluta inércia e ineficiência dos poderes culminaram a inefetivação dos direitos fundamen-tais não havendo o seu descolamento do campo do “dever ser”, incumbe ao Poder Judiciário amparar tais pleitos, a fim de materializar os ditames constitucionais.

É certo que os direitos sociais devem ser realizados coletivamente, mas, dian-te da omissão dos Poderes legitimados no cumprimento de suas atribuições consti-tucionais, não pode o Judiciário permanecer alheio, ficando o cidadão duplamente prejudicado (pela não observância das normas constitucionais e pela violação direta ao seu direito à saúde que está a necessitar de recuperação).

Deve-se sempre ter em mente que a judicialização do direito à saúde não pode implicar ganho individual e perda coletiva, pois a eficiência que se espera no campo das prestações de saúde é aquela que concretiza o direito para toda a socie-dade, e não apenas para aqueles que ajuízam seus pedidos.

Conclui-se, portanto, que o Judiciário – assim como os demais órgãos do poder – tem o papel de garantir a concretização dos direitos declarados no texto da Constituição porque a omissão do Legislativo e do Executivo legitima, supletiva e extraordinariamente, o Judiciário a colocar em prática o que a voz do povo es-

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tabeleceu. Afinal, a estrutura do Estado foi criada para organizar o convívio social e beneficiar as pessoas.

Não se pode aceitar que essa figura criada em prol da coletividade volte-se contra essa, desrespeitando a vontade popular, governando a seu bel-prazer, deixan-do de lado os objetivos maiores da República Brasileira.

Portanto, não ferem a judicialização da saúde os ditames constitucionais. Ao contrário, sem a maciça propositura de ações judiciais com pedidos diversos, possivelmente pouco tivesse sido feito em termos de saúde até o momento, o que, certamente, implicaria absoluta e muito maior ofensa à Lei Suprema.

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