judicialização da política - déficits

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  • 8/12/2019 judicializao da poltica - dficits

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    NOVOS ESTUDOS 91 NOVEMBRO 2011 5

    JUDICIALIZAO DA POLTICA: DFICITSEXPLICATIVOS E BLOQUEIOS NORMATIVISTAS*

    Marcos Nobre

    Jos Rodrigo Rodriguez

    OPINIO

    Nosso objetivo com este texto mostrar as limitaes de uma con-cepo formalista do direito, calcada na gramtica clssica do direito

    burgus. Isso se faz necessrio, a nosso ver, porque essa concepomostra uma persistncia na teoria e na pesquisa social na brasileira,em especial que bloqueia, a nosso ver, uma adequada compreensodo direito, entendido tanto em seu sentido de fenmeno social quantocomo uma das disciplinas das cincias humanas.

    evidente que tal persistncia no casual e merece ser investiga-da por si mesma. Esse no , entretanto, nosso objetivo aqui. Limita-mo-nos a dar indicaes nesse sentido. Para o caso dos pases centrais em especial para aqueles de tradio jurdica romano-germnica,

    mas no s , pensamos que essa persistncia se deve hegemoniaideolgica do neoliberalismo nas ltimas dcadas, cuja viso tradi-cional do direito se apoia em interesses to simples e diretos quantoa defesa intransigente de concepes tradicionais do direito de pro-priedade, das regras de mercado e de um Estado mnimo. Para o casodo Brasil, a hiptese que, em vista do longo perodo de governos au-toritrios e/ou coronelismo ao longo do sculo xx, o prprio direitoburgus aparece como padro e como novidade, obscurecendo a visodas profundas transformaes pelas quais passou o direito ao longo

    desse mesmo sculo. No por ltimo, pensamos mesmo que as trans-formaes atuais tendem a se dar em um sentido bastante diferentedo direito social do sculo passado. Mas, como dito, no nosso ob-jetivo desenvolver em detalhe essas indicaes neste texto; ainda queseja necessrio apontar desde o incio elementos que so importantespontos de apoio de nosso diagnstico do tempo presente.

    Ao longo do texto, chamaremos a essa concepo formalista dodireito simplesmente de viso normativa, ou, mais precisamente,de viso normativista do direito. O formalismo jurdico se tornou

    ao longo do sculo XXquase sinnimo de tudo o que pode haver decientificamente equivocado e normativamente retrgrado, de modoque muito raro encontrar quem se reivindique formalista1. Essefoi o resultado da investida massiva e certeira do movimento operrio

    [*] Texto apresentado na 35 an-pocs, Caxambu (mg), 2011, no

    Frum Dilemas da ModernidadePerifrica.

    [1] Para este ponto, ver o incio de

    Rodriguez, Jos Rodrigo. The Per-sistence of Formalism: Towards aSituated Critique beyond the ClassicSeparation of Powers, The Law & De-velopment Review, vol. 3, n. 1, 2010.

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    [2] Para indicar que essa viso doDireito no se restringe, no Brasil, viso mais comum presente nasCincias Sociais ou no debate pbli-co de maneira mais ampla, pode-semencionar aqui, no campo da Econo-mia, dois influentes artigos a seguirque contm citaes nominais doconceito weberiano: Arida, P., Bacha,

    E. e Lara-Resende, A. High interestrates in Brazil: conjectures on the ju-risdictional uncertainty. In:InflationTargeting and Debt: the Case of Brazil.mitPress, 2005; e Arida, Prsio. Apesquisa em direito e em economia,

    Revista Direito GV 1, pp. 11-22, 2005.Para uma explicao mais completado conceito de Weber, ver: Weber,Max.Economia e soc iedade. Braslia:Editora da UnB, vol. 2, 1999; e Tru-bek, David. O direito e a ascenso docapitalismo,Revista Direito GV5, vol.3, n. 1, 2007.

    contra o direito burgus clssico, que Weber consagrou com o termodepreciativo de materializao do direito. Franz Neumann foi umdos primeiros autores a mostrar que o diagnstico da materializaodo direito no era capaz de explicar positivamente o desenvolvimentoinstitucional do comeo do sculo xx. Ao falar em materializao dodireito sem explicitar sua gnese histrica, Max Weber terminou pornaturalizar o cdigo do direito e a enxergar as potenciais mudanasque ele estava sofrendo como se fossem sua destruio. Vejamos.

    De acordo com Weber, o direito ocidental formal, pois permitedecidir conflitos a partir de critrios jurdicos, ou seja, com fundamen-to em normas jurdicas dotadas de racionalidade prpria, autnomasem relao a valores morais, ticos, polticos, econmicos etc. O direi-to ocidental um direito racional porque remete a justificativas que

    transcendem o caso concreto por serem baseadas em regras claramen-te definidas que permitem padronizar as decises. Historicamente,o desenho institucional que efetivou essas duas ideias nos pases foio Estado de direito concebido em funo da teoria da separao dospoderes em que o Judicirio tem a funo de aplicar as leis produzidaspelo Parlamento. H variaes nacionais muito significativas nessedesenho, mas para os fins deste texto nos basta esta viso de sensocomum, pois, ainda que de maneira transformada, ela est na base deconceitos como judiciarizao da poltica ou ativismo judicial.

    Neste texto, quando falarmos em cdigo do direito e em suastransformaes estaremos falando do direito racional e formal we-beriano, concepo que domina a viso mais corrente sobre o direitoat os dias de hoje2. De outra parte, quando falarmos em gramti-ca ou das gramticas do direito, estaremos falando dos desenhosinstitucionais em que tal cdigo se encontra configurado a cada vez.Mostraremos a seguir que tais desenhos podem ser modificados pordentro em funo da dinmica dos conflitos sociais a ponto de alteraro cdigo do direito, como ocorreu na passagem do estado liberal para o

    estado social por ao da classe operria. Ao naturalizar a ligao entrecdigo do direito e gramticas institucionais, o analista deixa de per-ceber uma tenso fundamental para o processo de institucionalizaoe transformao do direito. O conceito de materializao do direitoweberiano padece desse problema.

    Ainda de acordo com Weber, o direito materializado aquele queincorpora raciocnios valorativos que fogem do registro legal/ ile-gal por estarem fundados em clusulas gerais como boa-f, bonscostumes, concorrncia desleal, mulher honesta. Tais clusulas

    gerais, muitas vezes contidas nas leis, abririam espao para a subje-tividade do juiz e/ ou para a dissoluo do direito em outras ordensnormativas. Afinal, de acordo com esse diagnstico, tais clusulas per-mitiriam que os julgamentos fossem proferidos com base em normas

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    legitimidade das partes. Queremos chamar aqui a ateno para o quenos parece ser o grave erro poltico de no perceber o momento depressionar o Judicirio para que, de maneira regrada, democrtica,se abra participao cidad.

    Entretanto, se o exemplo que acabamos de dar se refere ao Judici-rio, nosso objetivo com este texto no de maneira alguma restringir oexame a esse mbito. Ao contrrio, pretendemos alcanar aqui o direi-to entendido como fenmeno social em sentido amplo tanto quantocomo disciplina das cincias humanas. Pretendemos entender o direi-to como fenmeno social no apenas no sentido restrito de suas con-figuraes institucionais fixadas, mas como um processo aberto dedisputa pelo sentido da norma, algo que de maneira alguma pode serreduzido fixao institucional ou pode ser caracterizado como perda

    de especificidade do direito em relao s demais ordens normativas.Trata-se apenas do abandono de um padro tecnocrtico na atuaojudicial em favor de um modelo de racionalidade aberto deliberao.

    Dito de outra maneira, nosso objetivo mostrar que uma tal visonormativista do direito, herdeira do formalismo e, a nosso ver, larga-mente dominante na teoria e na pesquisa social no Brasil, no capazde dar conta do direito em pelo menos trs sentidos fundamentais. Emprimeiro lugar, no compreende o direito em seu cdigo prprio, ouseja, segundo a autonomia que prpria do direito em sociedades mo-

    dernas e sujeito a transformaes capazes de alterar sua racionalidadesem suprimir as fronteiras que o separam das demais ordens norma-tivas. Em segundo lugar, esse dficit estrutural bloqueia o entendi-mento das diferentes configuraes institucionais prprias do direitoe veda o acesso a diferentes e alternativas construes institucionaispossveis. Em uma palavra, essa viso naturaliza e torna unvoca a gra-mtica do direito. Por fim, uma viso do direito que restringe a priorio prprio sentido do que possa ser o jurdico, fixando de antemoum mbito para a regulao jurdica que impede o acesso s disputas

    contemporneas pela pluralizao no interior do prprio cdigo dodireito, que se desdobra na criao de novas gramticas institucionais,novos modelos institucionais que entram em tenso constante com ocdigo do direito. No por acaso, uma viso que exclui das categoriasfundamentais de anlise a de esfera pblica, de decisiva importnciapara apreender o processo em toda a sua complexidade e potenciali-dades de transformao.

    A mera exposio do objetivo do texto, entretanto, suficientepara indicar a impossibilidade de demonstrar todos esses elemen-

    tos em sua devida amplitude no mbito de um artigo. Por essa razo,decidimos limitar essa demonstrao a propsito daquela noo quenos parece ser a dominante no pensamento social do direito e sobreo direito no Brasil: aquela de judicializao da poltica. Por meio da

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    [9] Sentidos da judicializao dapoltica: duas anlises. Lua Nova ,n. 57, 2002, em que so analisados oslivros: Vianna, Lus Werneck (org.).

    A democracia e os trs poderes no Bra-

    sil. Belo Horizonte: Editora UFMG,2002; Arantes, Rogrio Bastos.Mi-nistrio Pblico e poltica no Brasil. SoPaulo: Sumar, 2002.

    [10] Deixamos de lado neste textoo aspecto complementar envolvidonesse posicionamento ideal centraldo Parlamento em uma democracia,

    ou seja, o da teoria da representaopoltica que pressupe. Apesar de noexaminarmos esse outro forte pres-suposto normativo, possvel pelomenos adiantar o que nos parece sero estado problemtico dessa concep-o de representao mediante duasreferncias bibliogrficas que o colo-cam em xeque. De um ponto de vistamais terico, o livro de Nadia Urbi-natti,Representative Democracy: Prin-ciples and Genealogy. Chicago: Chica-go up, 2006, no qual a ideia de umarepresentao advocatcia pode ser

    interpretada como uma abertura paradiferentes tipos, formas e formatos derepresentao contra o mero regis-tro de uma configurao social dada(p. 46) que continua a sustentar opressuposto de que o Parlamentodever ser o centro, a fonte e o modelode toda representao, normalmenteidentificada com a vontade geralou alguma variante dessa noo.Do ponto de vista da ligao entrebases tericas e pesquisa emprica,muitas indicaes interessantes dapluralizao da representao podemser encontradas em Lavalle, AdrinGurza, Houtzager, Peter P. e Castello,Graziela. Democracia, pluralizaoda representao e sociedade civil.

    Lua Nova, n. 67, 2006.

    anlise dos pressupostos e implicaes dessa noo e daquela queconsideramos sua contraparte necessria, a noo de ativismo judi-cial pretendemos mostrar tanto os dficits explicativos como osbloqueios a possveis transformaes progressistas do direito no pas.Nossa argumentao tem como ponto central a total exterioridadedessas noes em relao ao cdigo do direito. O que, no por lti-mo, significa tambm uma exterioridade em relao ao prprio direitocomo disciplina cientfica das cincias humanas.

    * * *

    S faz sentido falar em judicializao da poltica ou em ativismojudicial tendo por padro uma teoria normativa da poltica que se

    apoia em uma concepo bastante particular da separao de poderesem um Estado de direito. Dessa perspectiva, embora aparentem serideias bastante diferentes entre si, judicializao da poltica e ati-vismo judicial so como lados de uma mesma moeda, de um mes-mo processo visto ora da perspectiva da poltica que seria invadidapela lgica judicial, ora da perspectiva do prprio invasor . Nessecaso, a ligao entre os dois momentos est posta em uma viso emque o Legislativo deve ser o centro vivo de um Estado Democrtico dedireito, tanto a sede por excelncia da poltica quanto seu real ativista.

    Partimos aqui de duas ideias presentes em um comentrio de D-bora Alves Maciel e Andrei Koerner9: tanto dos diferentes pontos departida normativos de cada noo particular de judicializao da po-ltica quanto da disseminao dessa ideia em diferentes sentidos eacepes no debate pblico em sentido amplo. No pretendemos exa-minar nenhuma concepo particular de judicializao da poltica,mas aquele que nos parece ser o ncleo normativo fundamental dequalquer de suas verses. E acrescentamos aqui a noo de ativismojudicial como seu avesso complementar.

    De sada, consideramos que tal viso normativa no capaz dedemonstrar sua aderncia realidade; por essa razo dizemos que se tra-ta, na verdade, de uma viso normativistado direito que naturaliza suagramtica institucional e no abre espao para a transformao do c-digo do direito. Tanto do ponto de vista de sua capacidade explicativacomo de seu enraizamento na realidade social contempornea. Umaviso normativa forte como essa pode perfeitamente se manter comoideal a ser perseguido pelos atores sociais. Mas no pode servir de basea um diagnstico do tempo presente. E permanece como um ideal no

    sentido utpico da expresso, j que no est em condies de mostrarquais elementos concretos da atual configurao do Estado Democrti-co de direito poderiam ser mobilizados pelos atores sociais para atingiro objetivo de fazer do Parlamento o efetivo centro da poltica10.

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    [11] Sobre a impertinncia do con-ceito tradicional de separao depoderes para a concepo mais con-tempornea de racionalidade jurisdi-cional, ver Rodriguez, Jos Rodrigo.The Persistence of Formalism...,op. cit.

    [12] Harvard Law Review, vol. 113, n. 3,jan. 2000.

    [13] Nesse sentido, ver: Castro,Marcus Faro de. Jurisdio, eco-nomia e mudana social. Revi sta

    EMARF, Caderno s Temticos, Rio deJaneiro, pp. 143-73.

    No se trata aqui de discutir se tal modelo estilizado de separaode poderes que se cristalizou no sculo XIXde fato funcionou em algumlugar segundo os parmetros normativos que o justificavam. Indepen-dentemente do fato de ter um dia funcionado assim ou no, o modelopadro de separao de poderes certamente no operou nas ltimasdcadas do sculo xx11. Apenas para tomar como exemplo um estu-do recente, mas j considerado clssico, em The New Separation ofPowers12, Bruce Ackerman compara a tradio americana de separa-o de poderes com o modelo de pases como Alemanha, Itlia, Japo,ndia, Canad e frica do Sul para criticar os euae argumentar contraa exportao de seu modelo para outros pases do mundo. Na descriodo autor, esse modelo possui um presidente eleito que funciona comofreio e contrapeso do congresso eleito democraticamente. Ackermann

    defende um modelo em que o primeiro-ministro fique no cargo desdeque consiga manter o apoio do Parlamento e que o poder do Parlamentotenha como freio e contrapeso uma srie de instituies, no apenas acorte constitucional. Para o autor, esse modelo teria se mostrado supe-rior ao modelo americano por ser capaz de criar uma grande variedadede estratgias institucionais com o objetivo de efetivar os trs princ-pios que motivam a moderna doutrina da separao de poderes: demo-cracia, profissionalismo e proteo dos direitos humanos.

    Independentemente do mrito das propostas de Ackerman, o que

    nos importa em seu artigo tom-lo como ilustrao dos dois aspec-tos de nossa argumentao aqui. Serve para mostrar a variedade nos de desenhos institucionais concretos da separao de poderes, masigualmente de modelos normativos possveis; ao mesmo tempo mos-tra o quanto problemtico fixar de antemo um desenho determi-nado da separao de poderes, que passa a ser pensado como modeloa ser seguido ou mesmo copiado. A cristalizao da viso de que ospoderes so trs e que cada um deles tem a funo de controlar o ou-tro apenas uma das possibilidades institucionais que mesmo a ideia

    original de freios e contrapesos de Montesquieu permite pensar. Osentido de O esprito das leisnunca foi afirmar os trs poderes, Legis-lativo, Executivo e Judicirio, como a essncia do Estado de direito,mas sim mostrar que necessrio criar poderes e contrapoderes paraevitar a constituio de polos de poder absolutos, sem nenhum con-trole. No necessrio que os poderes sejam trs e que funcionem deacordo com a lgica naturalizada da separao de poderes. O pontocentral armar uma trama institucional que no admita o arbtrio, in-dependentemente de qual desenho se venha a adotar. Por isso mesmo,

    importante recuperar o esprito da obra de Montesquieu para refletirmelhor sobre a dinmica institucional contempornea13. Alm disso,como afirmou Franz Neumann em sua introduo a O esprito das leisdeMontesquieu, a separao de poderes pode funcionar como obstculo

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    [14] Neumann, Franz. Montes-quieu. In: Dem ocr atic and Aut ho-ritarian State. Glencoe: The FreePress, 1957.

    [15] EmFuga do Direito, j citado, J. R.Rodriguez tira diversas consequn-cias dessa afirmao de F. Neumannpara a interpretao do cdigo dodireito contemporneo. Em sentidodiverso, Althusser, apoiado em C.Eisenmann, contesta o mito daseparao de poderes em Montes-quieu, apontando para o problema desaber a quem aproveita tal diviso.Cf.Montesquieu: a poltica e a histria.Lisboa: Editorial Presena, 1972, es-pecialmente o cap. V. A interpretaode Neumann nos parece superior de

    Althusser, tanto em termos de exege-se quanto de consequncias emanci-patrias, porque v um vnculo inter-no entre direito e democracia que nopode ser encontrado na interpretaoalthusseriana de Montesquieu. Masa interpretao de Althusser tem omrito de enfatizar o carter de classede uma determinada interpretaoda separao de poderes, ressaltandoassim, de outra maneira, o aspectonormativo implcito na ideia de judi-cializao da poltica que buscamosexplicitar aqui.

    [16] Um estudo emprico de grandeimportncia para a relativizao datese mais geral da judicializaopode ser encontrada em Carlos AriSundfeld et al., Controle de consti-tucionalidade e judicializao: o STF

    frente sociedade e aos Poderes, BeloHorizonte: Faculdade de Filosofiae Cincias Humanas, 2010. Entreoutras coisas, o estudo inova ao in-vestigar o pr oblema da p erspec tivado prprio cdigo do direito e no

    de um ponto de vista que lhe seriaexterno. Alm disso, aceita em certosentido o desafio posto pelo mencio-nado comentrio de Dbora AlvesMaciel e Andrei Koerner de que umainvestigao da judicializao dapoltica seria dificilmente realizvelem termos empricos.

    [17] Esse argumento tambm valepara as regras jurdicas e sua utiliza-o para a soluo de casos concretoscomo mostraram muito bem HansKelsen, Duncan Kennedy e Ronald

    Dworkin. Ver: Kelsen, Hans. Teoriapura do Direito . Coimbra: ArmnioAmado, 1979 (captulo final) ; Ken-nedy, Duncan. Legal Formality,2Journal o f Legal Studies 351, 1973; e

    para as transformaes sociais14quando pensada como um modelonormativo destinado a enquadrar o conflito social em uma gram-tica imune contestao pelas foras progressistas15. O significado daseparao de poderes e, por conseguinte, o do conceito de Estado dedireito, tambm precisam entrar em disputa.

    Nos eua, por exemplo, grande parte dos avanos no campo socialfoi efetivada no Judicirio e no no Parlamento. Nesse pas, a crticaao suposto ativismo judicial e ao suposto desrespeito ao espritoda constituio, segundo a palavra dos pais fundadores, tm fun-cionado como arma utilizada pelo conservadorismo para barrar taisavanos e colocar a sociedade civil em seu devido lugar, ou seja, namo dos lobbies que atuam no Parlamento.

    No Brasil, o momento de redesenho das instituies em todos

    os nveis, desde a abertura do Executivo para a participao populardireta por meio de conselhos variados, conferncias nacionais e agn-cias reguladoras, at a mudana de funo do Poder Judicirio, cadavez mais ativo na arena poltica pela escolha entre as vrias alternati-vas tcnico-jurdicas definidas em funo do material normativo e docontexto de cada deciso. Nesse contexto, definir a prioria dinmicainstitucional em termos normativos a partir de uma concepo mo-delar da separao de poderes antes bloqueia a compreenso e mes-mo a possibilidade de que a sociedade se aproprie de instituies em

    construo e mutao. E acaba por obscurecer tanto o lugar e a funoefetivos do Poder Judicirio, do Poder Executivo e do Poder Legislati-vo, como encobre as possibilidades institucionais concretas presentesno momento atual16.

    A predeterminao das fronteiras entre os poderes, de seus do-mnios prprios e das vias de circulao das demandas sociais partedo pressuposto de que as regras esto predefinidas relativamente aosconflitos e ao jogo democrtico. Pressupe-se uma noo de regraem que esta vem sempre dada em todas as suas consequncias, o que

    inclui o resultado de sua aplicao. uma acepo de regra comoestrutura que precede e determina por completo o caso concreto, comodeveria ocorrer, segundo essa concepo, em um Estado de direitoconsolidado. No entanto, justamente neste ponto que a metfora dademocracia como um jogo cujas regras (entendidas nesses termos)esto definidas de antemo comea a atrapalhar o raciocnio e no aesclarecer o problema. mais adequado deixar essa metfora de lado.

    A concepo de que a regra contenha nela mesma toda a dinmicainstitucional e determine de antemo seu desenvolvimento efetivo,

    assim como a ideia de uma regra do jogo cujo sentido seria sempreestvel e inequvoco, antes encobrem do que mostram a dinmica ins-titucional concreta e o funcionamento da democracia17. exceo dasregras que exigem que o poder justifique racionalmente suas decises

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    Dworkin, Ronald. O imprio da lei.So Paulo: Martins Fontes, 1999. importante dizer que nenhum dosautores citados tira todas as conse-quncias de sua viso da racionali-

    dade jurisdicional para a concepode Poder Judicirio e de separao depoderes que seu pensamento pressu-pe. A renovao da teoria do Direitono que diz respeito racionalidadejurisdicional ainda uma tarefa a serfeita. Sobre esse ponto, ver a partefinal de Rodriguez, J. R. The Persis-tence of Formalism.. ., op. cit.

    [18] Para este ponto, ver: Machado,M., Pschel, Flavia Portella, Rodri-guez, J. R. The Juridification of So-cial Demands and the Application of

    Statutes: an Analysis of the Legal Tre-atment of Antiracism Social Deman-ds in Brazil,Fordham Law Review, v.77, pp. 1535-58, 2009; e Rodriguez,J. R., Pschel, F. P. Inveja de Ssifo:a dogmtica jurdica entre tradioe inovao. In: Rodriguez, J. R., Ba-talha, Carlos Eduardo e Barbosa,Samuel Rodrigues (orgs.).Nas fron-teiras do formalismo. A funo social

    da dogmtica jurdica hoje. So Paulo:Saraiva, 2010, pp. 299-310.

    perante a sociedade e atribui sociedade a possibilidade de participarde sua elaborao, um Estado de direito democrtico no pode blo-quear a disputa pelas regras que definem gramticas institucionais,sob pena de naturalizar posies de poder poltico, econmico e social.Mas mesmo as regras de justificao e de autoria das normas podemser desenhadas das mais diferentes maneiras, podem conter diversasvariantes, h sempre vrias maneiras de fundamentar uma deciso eesta tambm uma arena aberta disputa18.

    Se existe um ncleo normativo prprio da democracia, ele estantes no princpio de que a dinmica institucional deve poder ser co-locada em questo em todos os seus diferentes momentos, em seusdiferentes desenhos, um questionamento que deve poder ser levado aseus limites tanto por demandas concretas dirigidas a este ou aquele

    rgo, como na dimenso mais abstrata do debate acadmico, ou doquestionamento judicial e da disputa legislativa. Subtrair tais regrasao debate significa conservar e naturalizar uma determinada distri-buio de poder entre grupos e uma determinada forma de mediara relao entre Estado e sociedade. um procedimento que impedecompreender adequadamente a dinmica institucional: as assim cha-madas regras do jogo e tambm o que chamamos de cdigo do di-reito so apenas abstraes da dinmica institucional isolada em umde seus aspectos em um determinado ponto do tempo e do espao.

    O desfecho do processo no pode ser conhecido de antemo. O meroato de identificar a regra e apresentar a racionalidade do supostojogo j um ato interessado e precisa ser posto em evidncia juntocom qualquer suposta definio da regra.

    A viso por demais normativa de poltica que sustenta as ideiasgmeas de judicializao da poltica e de ativismo judicial carre-ga consigo uma compreenso limitada do cdigo prprio do direito,no por ltimo da prpria cfde 1988. Na verdade, trata-se de umaviso que procura limitar normativamente o mbito de aplicao

    do direito porque, em suas anlises, no se dedica a compreendero cdigo que lhe prprio. Se o fizesse, poderia encontrar as reaislimitaes impostas por esse cdigo. E, igualmente, poderia enxer-gar os potenciais de transformao que ele carrega. O normativismoprprio das noes de judicializao da poltica e de ativismojudicial v o espao jurisdicional como infenso poltica em sen-tido amplo, o que corresponde ao preconceito mais geral de que oJudicirio como instituio uma caixa-preta. Ou seja, uma in-compreenso do cdigo do direito e de sua lgica de funcionamento

    e transformao se transforma em uma acusao de intransparn-cia, de tal maneira que os reais momentos de intransparncia dofuncionamento do Judicirio so antes encobertos do que reveladospor essa atitude terica e prtica.

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    [19] Brown, Wendy e Halley, Janet(orgs.). Left Legalism/Left Critique,Durham. NC: Duke University Press,2002.

    [20] Em uma resenha crtica ao li-vro de Andrei Y. Vyshinsky, The Lawof Soviet State, publicada em 1949,Franz Neumann mostra que assupostas inovaes do direito so-vitic o aps a Rev oluo Russa no

    passavam da repetio ligeiramentemodificada das categorias jurdicasburguesas, ou seja, que imaginaoinstitucional e revoluo no andamnecessariamente juntas. VerPolitical

    Science Quartely , vol. 64, n. 1, mar.1949, pp. 127-31.

    [21] Essa formulao, bastante in-fluente no Brasil, foi proposta porCelso Lafer a partir de sua inter-pretao da obra de Hanna Arendt.Ver: Lafe r, C. A re cons tru o dos

    direitos humanos: a contribuio deHannah Arendt,Estudos avanados,11 ( 30), 1997.

    [22] Como exemplos do formatomais comum dos debates sobre a re-forma do Poder Judicirio, pode-secitar o iPacto de Estado em favor deum Judicirio mais rpido e republi-cano, de 2004, e o iiPacto repu-blicano de Estado por um sistema dejustia mais acessvel, gil e efetivo,de 2009 (ambos no , acessado em 02/11/2011), cele-brados pelos chefes dos trs poderesda Repblica brasileira.

    esse modo de encarar o Judicirio que v o ato de julgar comoum procedimento que no apenas seria meramente tcnico, mas quetambm deves-lo, sem ligao alguma com o conflito social e comos debates na esfera pblica. E aqui est justamente o normativismodessa viso do Judicirio: o ideal se transforma em uma definioa-histrica e descontextualizada do significado das instituies. Anaturalizao conceitual que apresenta nesses termos em anlisespolticas de conjuntura e trabalhos acadmicos variados um verda-deiro desastre para o pensamento crtico e para a dinmica das forassociais progressistas.

    O livro Left Legalism/Left Critique19, por exemplo, um acerto decontas duro e profundo de diversos autores de esquerda com a gram-tica institucional norte-americana. O sentido geral do livro mostrar

    como a esquerda caiu na armadilha desse normativismo, perdendoem contundncia e radicalidade. O livro especialmente interessan-te, pois, em vez de propor como alternativa a destruio violenta dasinstituies postas, faz um apelo imaginao institucional dirigidaa inventar novas maneiras de juridificar o conflito social sem utilizar alinguagem tradicional dos direitos e deveres20. Nesse sentido, a visoda cidadania como direito a ter direitos21, tambm est caduca e deveser deixada de lado. A cidadania bem mais do que isso. Ser cidad ter a possibilidade de tomar parte ativa no processo de definio da

    gramtica institucional, mesmo que seja para alm da linguagem dosdireitos. Ou seja, ser cidad ter a possibilidade de exercitar e efetivardeliberativamente a imaginao institucional.

    O debate sobre a reforma do Poder Judicirio no Brasil, porexemplo, tem se concentrado principalmente nas questes da cele-ridade da prestao jurisdicional e na garantia de acesso justia populao brasileira. De acordo com essa agenda, preciso moder-nizar nossos cdigos de processo, aumentar o nmero de juzes emelhorar a gesto interna do Poder Judicirio para garantir senten-

    as mais rpidas. Alm disso, o pas, segundo o raciocnio dominan-te, precisaria ampliar a oferta de mecanismos de soluo de conflitos(juizados especiais, mediao, conciliao) e o acesso a advogadose defensores pblicos para permitir que os mais pobres utilizem oJudicirio para resolver seus problemas22.

    Esse debate tem se desenrolado tendo como referncia centralo Poder Judicirio e o processo judicial como principal meio de so-luo de conflitos. Discute-se a necessidade de expandir o raio deatuao desse poder, de ampliar o acesso justia e de aumentar

    sua eficincia, sem colocar em questo a gramtica dos meios for-mais para a soluo de conflitos utilizados no Brasil. Por exemplo, otema dos mecanismos alternativos de soluo de conflitos tem sidodiscutido no contexto da reforma do Poder Judicirio e no como

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    [23] A bibliografia sobre todos es-ses temas imensa e muito diversa.Nossas afirmaes aqui se referemapenas tpica mais comum presen-te no debate pblico de maneira mais

    ampla e no pretendem dar conta dacomplexidade da produo cientficasobre essas questes.

    uma real alternativa a ele23. Tais mecanismos tm sido mantidos sobo controle desse poder e tratados, na maior parte das vezes, comoinstrumentos destinados a desafogar o Judicirio. Reduzir os meiosalternativos a essa funo meramente instrumental significa deixarde lado sua capacidade de enquadrar os conflitos de outra maneira epromover a mediao entre sociedade e Estado de acordo com outragramtica. Uma outra gramtica que pode bem receber o nome dedireito, desde que se deixe de pensar o jurdico como sinnimode judicial e se deixe de pensar os avanos constitucionais apenascomo a ampliao do acesso justia vista como sinnimo de PoderJudicirio. Esse exemplo nos parece trazer um elemento adicional argumentao de como a cristalizao de uma determinada visoe institucionalidade do direito prejudica no apenas a compreenso

    do funcionamento concreto das instituies, mas tambm suas po-tencialidades de transformao. Porque o que est em jogo aqui oprprio sentido do que deve ou no ser denominado jurdico: osentido mesmo do direito que est em causa.

    Mas nosso objeto neste texto est bastante aqum dessa posiodo problema. As ideias gmeas de judicializao da poltica e deativismo judicial representam um imbrglio terico-poltico quenem sequer tem acesso sua prpria concepo de uma linguagemdos direitos que no se pluralizou. Esse problema permanece intei-

    ramente obscurecido por uma rgida fixao institucional que ocupatodo o primeiro plano de sua concepo normativa. De modo que, paraevitar o imbrglio, a primeira atitude a tomar separar analiticamenteos elementos ali amalgamados e afastar o pesado fardo de seus pres-supostos normativos. S assim nos parece possvel compreender comum mnimo de clareza o que est em jogo hoje na posio que ocupamo Judicirio e o direito na poltica brasileira em sentido amplo. E, quemsabe, chegar mesmo a abrir futuramente a discusso sobre a pluraliza-o da linguagem do direito e dos direitos.

    Tudo isso no significa que no seja compreensvel que a confu-so tenha se instalado nesses termos na discusso. A desconfianaem relao ao direito prpria de um pas com parca cultura polticademocrtica, marcado por sucessivos governos autoritrios e/ou oli-grquicos no sculo xx. Da mesma forma, do outro lado da moeda, igualmente compreensvel que um pas em democratizao recenteveja a promulgao de leis (e o exemplo mximo aqui a CFde 1988)como ponto de chegada para a soluo de problemas e satisfao dedemandas legtimas, o que leva decepo correspondente de essas

    mesmas leis no serem aplicadas. Ou seja, de um lado, o direito vis-to com suspeio. De outro, visto como soluo para todos os males.E, quando no traz a soluo esperada, cai novamente no elemento dasuspeio, em um crculo enganoso.

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    [24] Ver a esse respeito Nobre, M.Apontamentos sobre a pesquisa emdireito no Brasil. In: Fabiani, Emer-son Ribeiro (org.).Impasses e aporiasdo direito contemporneo: estudos em

    homenagem a Jos Eduardo Faria. SoPaulo: Saraiva, 2011. Sobre a implan-tao da universidade brasileira con-tra o bacharelismo, ver ainda Nobre,M. e Terra, Ricardo.Ensinar filosofia:uma conversa sobre aprender a apren-

    der. Campinas: Papirus, 2007, espe-cialmente a parte I.

    Do ponto de vista da produo acadmica, a situao bastantesemelhante. O padro universitrio que se estabeleceu no pas teveem larga medida como inimigo e como alvo o tipo de produo aca-dmica tradicionalmente apresentada pelo direito como disciplina doconhecimento. Por terem se instalado cem anos antes do projeto uni-versitrio implantado no sculoXX, as faculdades de direito e seu tpicobacharelismo dispuseram at pelo menos a dcada de 1930 de certaprimazia na definio dos padres universitrios em cincias huma-nas. Esse predomnio foi severamente contestado com a introduo depadres de produo de conhecimento prprios de uma universidademoderna, que se opunha ao arcasmo dos bacharis, no por lti-mo pela relao promscua que mantinham com o poder estabelecido.E incontestvel que o direito como disciplina acadmica at hoje no

    conseguiu acompanhar o rpido desenvolvimento das demais cin-cias humanas, especialmente nas ltimas dcadas do sculo xx24. Nofaltam, enfim, razes histricas para a imagem distorcida e confusa dodireito, seja como fenmeno social, seja como disciplina acadmica. Oestranho que essas razes insistam em se manter e se reapresentarmesmo quando o fundo histrico que as sustentava j no existe. E asideias gmeas de judicializao da poltica e de ativismo judicialso apenas uma verso reciclada desse antigo estado de coisas.

    Em outras palavras, j dispomos de suficiente experincia demo-

    crtica para saber que o direito como fenmeno social no pode serreduzido a uma simples voz do poder, mas que uma etapa deci-siva da disputa poltica entendida em sentido amplo. J dispomosde suficiente experincia democrtica para saber que a disputa nostermos do cdigo jurdico tem uma autonomia e uma especificidadeque no permitem que ela seja reduzida sem mais a qualquer outrotipo de racionalidade. Dispomos de suficiente experincia democr-tica para saber que o aprofundamento do Estado de direito caminhajunto com a ampliao de direitos, que a juridificao das relaes

    sociais inseparvel de avanos em termos institucionais e de culturapoltica democrtica. Tambm dispomos at de centros produtoresde conhecimento jurdico que no mais se pautam pela confuso t-pica do bacharelismo seja com o poder constitudo, seja com a prticaprofissional dos operadores do direito. E, no entanto, a lgica, a auto-nomia e a especificidade prprias do cdigo do direito continuam aser desconsideradas por grande parcela no s dos atores sociais, mastambm dos cientistas sociais.

    O problema , de fato, o da devida compreenso dos diferentes

    processos de juridificao das relaes sociais, uma perspectiva quepermite uma anlise bem mais ampla e complexa do papel do direitodo que a limitao representada pelas ideias de judicializao da po-ltica e de ativismo judicial. A correta compreenso do cdigo do

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    [25] Essa ideia tem como ponto departida a j mencionada obra de

    Habermas,Direito e democracia. Ain-da que no partilhemos de todos ospressupostos e consequncias quesustentam a posio de Habermas,no cabe aqui, entretanto, tratarespecificamente dessas diferenas.Limitamo-nos a indicar os pontosde divergncia mais relevantes: o dopeso a nosso ver excessivo que adqui-re o Direito como mdium na obramais recente de Habermas; e a prpriajustificao habermasiana para a se-parao de poderes, colocada aqui emquesto a propsito da viso norma-

    tivista do Direito e da poltica.

    [26] Uma tentativa de pensar o Di-reito criticamente nesses termosest no cap. 3 da obra j citada,Fugado Direito.

    [27] Engels, Friedrich,A situao daclasse trabalhadora na Inglaterra. SoPaulo: Boitempo, 2008.

    direito e de seu papel estruturante na dinmica institucional permiteprimeiramente o acesso quele que o ncleo social mais profundo dalgica jurdica: seu papel de transformador25. De um lado, o direi-to formata de maneira decisiva demandas sociais de transformao,obrigando os diferentes indivduos, grupos e movimentos sociais atraduzir suas aspiraes em termos jurdicos, o que pode resultar narenovao da gramtica institucional e, at mesmo, na transformaodo cdigo do direito. De outro lado, essa lgica estruturante do direitoexclui de fato opes, alternativas e demandas que no se veem respal-dadas na traduo para o cdigo jurdico vigente.

    Uma apresentao do papel social do direito que esteja altura dacomplexidade do fenmeno tem de ser capaz de manter essas duasperspectivas simultaneamente. Alis, essa dupla perspectiva tam-

    bm condio necessria para uma viso crtica do direito. Pois, de umlado, permite examinar a juridificao em sua especificidade e lgicaprprias, mostrando a ligao ntima entre o enorme peso do direitono mundo contemporneo e o cdigo que lhe prprio. De outro lado,permite mostrar os limites do direito e de seu cdigo, apontando paratodos os processos sociais excludos pela juridificao nos termos docdigo vigente. Essa abordagem em dupla perspectiva importanteentre outras coisas porque veda as interpretaes unilaterais que aca-bam por fazer do direito um supermdium de coordenao das aes

    sociais. Desnecessrio dizer que uma investigao como essa s podeser de fato realizada se a pesquisa em direito for realizada em colabo-rao com as demais cincias sociais26.

    Um exemplo simples e conhecido de muitos a greve e a possi-bilidade de organizar sindicatos. No final do sculo XIXe comeo dosculo XXa greve e a liberdade sindical eram vistas como fatos ilcitospunidos inclusive pelo direito penal. As foras conservadoras da pocadefendiam uma viso do cdigo do direito que via a organizao desindicatos e a realizao de greves como um atentado ao direito de

    propriedade e ao cumprimento dos contratos celebrados entre em-pregados e empregadores. Dessa forma, a assim denominada questosocial ficava localizada fora das instituies polticas normais, relega-da aos domnios do ilcito e do crime.

    Do ponto de vista do cdigo do direito da poca e das instituiesque o efetivaram, a questo social s podia ser figurada como umdesrespeito ao Estado de direito. Para que a questo social apareces-se como tal foi preciso abord-la do ponto de vista de outras cincias,por exemplo, a cincia da histria. Friedrich Engels em seu estudo

    clssico sobre A situao da classe trabalhadora na Inglaterra27

    foium dos autores que levou adiante essa tarefa e contribuiu para quea questo social e o sofrimento humano que ela embutia viesse luzsob outra roupagem.

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    [28] Kahn-Freund, Otto, Das sozia-le Ideal des Reicharbeitsgerichts. In:Ramm, Thilo (org.).Arbeitsrecht und

    Politk. Neuwied: Luchterhand, 1966.

    [29] Em Rodriguez, J. R. Dogmticada liberdade sindical, Rio de Janeiro:Renovar, 2003, afirma-se que a pro-teo social consagrada no direito vista como uma espcie de danoessencial racionalidade do livremercado que nunca foi esquecida ouvista como normalidade institucio-nal pelas foras conservadoras, quesempre contestaram e combateramos institutos do assim denominadoWelfare State.

    [30] In: Kbler, Friedrich (org.). Ver-rechtlichung von Wirtschaft, Arbeit und

    sozialer Solidaritt. Frankfurt/Main:Suhrkamp, 1985.

    E foi necessria muita luta social para que a gramtica institucionalse transformasse e, nesse caso, que transformasse o cdigo do direitoa ponto de incluir essa questo em seu interior, com a criao de novosconceitos jurdicos e de um novo modelo de Estado. A par da batalhasocial nas ruas, foi travada uma batalha dogmtica e uma disputa emtorno do desenho institucional no interior do cdigo jurdico para quefosse possvel criar pouco a pouco um novo modelo de juridificaoque considerasse a greve e a possibilidade de organizar sindicatoscomo fatos lcitos. Um retrato dramtico desse processo pode ser vistono texto de Otto Kahn-Freund, O ideal social das cortes do Reich, de193128, em que o autor mostra como os juzes alemes se recusavam aadmitir e aplicar os novos institutos do direito do trabalho consagra-dos pela Constituio de 1918. Nesse momento, para o cdigo jurdico

    como concebido pelas foras conservadoras, a proteo social adquiriacaractersticas disformes, impensveis.

    O resultado final desse embate foi a transformao radical da com-preenso burguesa dos contratos, do direito de propriedade, do Es-tado e do direito. O direito do trabalho e o Estado social, hoje vistoscomo coisa natural, nasceram como um escndalo aos olhos burgue-ses e como uma afronta ao Estado de direito e ao conceito de direito.Seu poder subversivo permanece vivo aos olhos das foras neoliberais,fundadas na economia neoclssica, que continuam saudosas da gra-

    mtica clssica do direito burgus ao se apresentarem como defenso-ras intransigentes do estado mnimo29.

    Uma concepo tradicional do direito como a que sustenta asideias de judicializao da poltica e de ativismo judicial vedao acesso a esses processos simultneos de traduo e de exclusoprprios da juridificao. Mais que isso, essa concepo congelao direito e seu cdigo de tal maneira que a prpria possibilidadede pensar a regulao jurdica de conflitos sob novas formas so-ciais, legais e institucionais desaparece do horizonte dos atores.

    Um entendimento no tradicional do direito e de seu papel socialpermite recolocar o problema de fundo presente nas ideias gmeasde judicializao da poltica e de ativismo judicial em termosmais frutferos.

    A discusso sobre a juridificao vem j de h muito tempo. Seupice se deu na dcada de 1980, em conjuno principalmente com odebate em torno do Welfare State europeu. O texto considerado clssi-co sobre o assunto o de Teubner, Verrechtlichung Begriffe, Merk-male, Grenzen, Auswege30. Nesse artigo, o autor elabora seu famoso

    trilema regulatrio, que procura organizar diversos problemas dodireito contemporneo, a saber: (a) tendncia indiferena recprocaentre direito e sociedade; (b) perigo de colonizao da sociedade pelasleis; e (c) desagregao do direito pela sociedade.

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    Trocando esse diagnstico em midos, pode-se dizer, com Teub-ner, que a complexidade da sociedade dificulta cada vez mais a regu-lao. A regulao jurdica pe em risco a identidade e a autenticidadedas relaes sociais pelo uso de categorias que perdem em abstrao epassam a regular diretamente as diversas formas de vida, danificandoseu funcionamento. Ainda, a proliferao da regulao de inmerosobjetos, a inflao legislativa, faz com que o direito perca em orga-nicidade e coerncia interna, o que dificulta lidar com os conflitos so-ciais por meio de um conjunto articulado de premissas decisrias. Aquesto , evidentemente, que esse diagnstico tambm se fixa na gra-mtica do direito que naturaliza a separao de poderes e sua funo,sem abrir espao para interpretar essa suposta crise do direito comoindcio da transformao de seu cdigo. Utilizamos juridificao aqui

    no sentido mais largo e amplo de traduo para o cdigo do direito,de tal maneira que todos os diferentes sentidos apontados por Teub-ner possam ser reunidos sem se exclurem mutuamente.

    Em um sentido bastante importante, a conjuno histrica dodeclnio do Welfare State europeu e do debate sobre a juridificaodiz respeito situao brasileira. No porque uma rede de proteosocial dessa magnitude tenha se estabelecido por aqui, mas porque ofenmeno da juridificao das relaes sociais tomou propores degrande magnitude aps a promulgao da CFde 1988, especialmente

    a partir da segunda metade da dcada de 1990. Ou seja, um processode relativa estabilidade democrtica e institucional deu as condiespara que dispositivos constitucionais e toda uma nova legislao in-fraconstitucional pudessem se efetivar, expandindo enormemente oalcance da regulao jurdica de relaes sociais.

    E o momento presente tem ainda outras especificidades que pre-cisam ser tomadas em conta para produzir um diagnstico que possadar conta das figuras atuais da juridificao, o que deve permitir reco-locar em novos termos os problemas visados pelas ideias de judicia-

    lizao da poltica e de ativismo judicial. Gostaramos de destacarpelo menos dois elementos que parecem centrais.

    Em primeiro lugar, o texto constitucional conseguiu fincar razesno sistema poltico e na sociedade de maneira mais ampla. Pode pa-recer uma obviedade que os mais diferentes atores, defendendo posi-es incongruentes e incompatveis entre si, reivindiquem-se da CFpara sustent-las. preciso lembrar que a crtica de que a Constituio um conto de fadas foi repetida de maneira massacrante durantepelo menos os dez anos que se seguiram sua promulgao. Uma cr-

    tica que, maneira das ideias de judicializao da poltica e de ati-vismo judicial, no v que o prprio processo de interpretao e deefetivao da Constituio um processo poltico cujo resultado noest predeterminado pelo texto mesmo.

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    [31] Entre muitos outros aspectos, fundamental aqui o mencionadoestudo Sundfeld, Carlos Ari et al.Controle de constitucionalidade e judi-

    cializao: o STF frente sociedade e aos

    Poderes, op. cit.

    [32] Ver a esse respeito Nobre, M.Indeterminao e estabilidade: os20 anos da Constituio Federal e astarefas da pesquisa em direito.Novos

    Estudos Cebrap, n. 82, nov. 2008.

    Mas nem mesmo a ampla legitimidade de que desfruta a cfsig-nifica que seu sentido esteja fixado. Pelo contrrio, observa-se emanos recentes que o stfmais e mais se retira de seu papel de ltimainstncia do Judicirio para assumir mais e mais sua funo de corteconstitucional31. Ou seja, foram anos de intenso debate sobre o senti-do e a efetivao da CFexatamente porque, de um lado, reformas ins-titucionais permitiram que o stfpudesse progressivamente passar aesse papel, e, de outro, porque o fim do ciclo de reformas iniciado nogoverno FHCparece ter se encerrado j no primeiro mandato de Lula,dando certa estabilidade ao conjunto do texto constitucional32.

    Ou seja, a coincidncia de reformas institucionais e de um novoambiente poltico permitiram que pela primeira vez a cfpudesse setornar de fato o objeto por excelncia da atividade do stf. E, no por

    acaso, esse foco no Judicirio coincide ainda com o que se poderia cha-mar de uma onda de racionalizao do Judicirio, representada pormuitas medidas administrativas, mas, principalmente, pela criao docnj, em 2005. No temos notcia de um perodo anterior da histriabrasileira em que o Judicirio enquanto tal tenha sido objeto de cons-tante e amplo debate pblico.

    A partir dessas consideraes, acreditamos que se torna possvelrecolocar o problema de fundo envolvido nas ideias de judicializaoda poltica e de ativismo judicial em novos termos. Deixando de

    lado o normativismo presente nessas noes, o que surge diante dosolhos um processo de desenvolvimento das instituies democrti-cas que ainda vai encontrar nos conflitos sociais e polticos em cursorespostas para questes como separao de poderes, funcionamentointerno do Judicirio, ou mesmo o que vir a ser compreendido comodireito e direitos. E que, portanto, impossvel compreender esseprocesso em toda a sua complexidade sem que a categoria mesma deesfera pblica passe a desempenhar a um papel decisivo. Ou seja,em lugar de partir de uma concepo prvia sobre o lugar que deve ocu-

    par o Judicirio na diviso de poderes, por exemplo, cabe acompanhara maneira pela qual vai ser concretamente construda a noo nacionalda independncia entre os poderes bem como o mandamento deserem harmnicos entre si, segundo diz o texto constitucional.

    No h deciso do stfque no seja aplaudida, contestada, cri-ticada. E um dos pontos centrais do debate justamente o do esta-belecimento dos limites de uma corte constitucional e de seu papelno sistema poltico em sentido amplo. Tambm no mbito aparen-temente restrito organizao interna do Judicirio, os conflitos to-

    mam propores inesperadas. As prprias medidas tomadas pelo STFpara concentrar e controlar a interpretao da Constituio pem a nuconflitos entre instncias antes encobertos. Em um sistema misto decontrole constitucional como o brasileiro, essa tenso permanente.

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    O que no se mostrou at agora ruim. No se trata de eliminar a tenso,mas de regr-la da maneira mais democraticamente aberta possvel, detal modo que ela se torne produtiva para a administrao da justia epara o prprio debate pblico. Apenas para dar um exemplo entre mui-tos: assim como as liminares de primeira instncia em boa medida sal-varam a economia do pas de um colapso quando da vigncia do PlanoCollor, o mesmo exerccio no que diz respeito garantia de acesso aremdios e tratamentos de sade ganhou tal dimenso que acabou porse tornar um problema para a administrao do oramento pblico.

    Como se v por esses exemplos, abandonar a viso que embasaas ideias de judicializao da poltica e de ativismo judicial nosignifica abdicar de qualquer pretenso normativa. Significa apenasdar um passo atrs em relao a uma teoria normativa por demais de-

    terminada, que bloqueia tanto uma boa descrio dos conflitos comoo surgimento de alternativas para encontrar as melhores frmulas ins-titucionais de seu regramento democrtico.

    Marcos Nobre professor do departamento de Filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

    Jos Rodrigo Rodriguez pesquisador do Cebrap e editor da revistaDireito GV.

    Recebido para publicaoem 1 de novembro de 2011.

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    91, novembro 2011pp. 5-20