jose_carvalho. a primeira insurreição acreana

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José Carvalho

A Pr imeira Insur reição Acr eana (Documentada)

Mereça esta narração absoluto despreso dos meus concidadãos, si ella não for a expressão da mais restricta verdade.

PARÁ – BELÉM TYP. DE GILLET & COMP.

­ 1904 ­

Page 3: Jose_Carvalho. A primeira insurreição acreana

Á

MEMORIA

DE

Atto Pessoa José Martins Henrique de Pontes barroso José Nunes de Mello e Olyntho Meira

heroicos e mallogrados companheiros na primeira insureição do Acre

OFFERECE

José Carvalho

Page 4: Jose_Carvalho. A primeira insurreição acreana

Devido a um pequeno empastellamento na impressão, apparece, no fim do primeiro período deste trabalho venatura de Galvez, em logar de aventura de Galvez.

Há pequenos outros descuidos de revisão.

______________________________

O autor pede á imprensa e a quem quer que, por ventura, se occupe de seu trabalho, o obsequio de lhe dirigir um numero do jornal respectivo á Livraria Loyola, rua Santo Antonio n. S., nesta capital.

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Em toda a velha e larga discussão sobre o Acre, e, recentemente, sobre o definitivo tratado chamado de Petrópolis, ninguém aludiu á primeira insurreição acreana, e todos, inclusive os congressistas que della trataram, deram­n’a partindo da infeliz e vergonhosa venatura de Galvez.

Não admira isto; é uma cousa naturalíssima, neste paiz, a ignorância absoluta das nossas cousas. Ninguém, por exemplo, saberia da existência do Acre, das suas riquezas naturaes, dos seus habitantes e da monstruosa violação ao nosso direito, si o Acre não se tivesse levantado, fazendo­se conhecer e reagindo com uma coragem e com uma constancia tal, apezar de infinitos dissabores, que o seu exemplo deve ficar perpetuado como um padrão de gloria nacional e como uma consoladora esperança, sinão como robusta prova dos grandes destinos futuros de nossa raça.

Será também uma cousa natural, e desde já prevista, que este opúsculo caia no marasmo da indefferencia pública; não importa! cumpro, escrevendo­o, um dever de consciência, não deixando em olvido eterno o primeiro grito, o primeiro protesto, a primeira repulsa contra a invasão indébita, extemporanea, criminosa, do estrangeiro sequioso nos sagrados domínios de nossa pátria.

E que, também, seja a primeira página desta narrativa desvaidosa, mas verdadeira, a humilde lápide onde para sempre, perdurem os nomes dos pobres companheiros extinctos, tão cheios, que foram, de enthusiasmo e de fé, e que, entre milhares de patrícios, dormem nos barrancos do Purus e do Acre, o eterno sono da Morte. Não quis a fortuna que vissem elles o fim da obra começada e nem que tivessem a dita de saber que os seus patrióticos sentimentos foram, depois, os mesmos que abalaram a alma nacional no curso e no trato da desventurosa questão.

I

No Amazonas o chefe do Município – o Superintendente – não é, como nos demais Estados, eleito – é nomeado; e, portanto, dimittido a bél prazer do governador. É esta uma das muitas bellezas deste paiz, onde cumprem as disposições acertadas da mesma.

No fim do anno de 1898 para começo de 99 foi nomeado Superintendente de Floriano Peixoto, (antigo Antimary) Francisco Monteiro de Souza Junior, hoje, infelizmente, fallecido, moço de nobres qualidades de coração e de caracter e que em todo o rio Acre dispunha de largas sympathias.

A comarca de Floriano Peixoto que se constituia de todo o rio, desde a foz até as últimas explorações, foi creada já depois da República e tinha como sede a villa de Antimary, a qual no alludido anno, foi transferida para um planalto á margem esquerda do Purus, em frente a embocadura do Acre.

Sendo o Município o mais rico do Amazonas, era, no entanto, o mais pobre. Não possuía uma casa para a Intendência, não tinha cadeia e era tal a desordem que nem mesmo havia um foro mais ou menos organisado; não havia cartório ou archivo de livros e documentos pertencentes as duas administrações judiciária e municipal, reinando em tudo um absoluto chão. Nunca se reunira o Jury e os criminosos, ou eram despronunciados (os que tinham dinheiro) ou ficavam na rua augmentando o número dos vagabundos.

A grande receita do Município, orçada sempre em 600 contos de réis annuaes, desapparecia como por encanto, sem que no logar ficasse realisad omenor melhoramento.

A nomeação do coronel Francisco Monteiro, feita muito contragosto do celebre secretario da fazenda, no governo Ramalho, e devida exclusivamente á passageíra

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influencia de um seu amígo na capital (as influências políticas no Amazonas são cousa mais bizarra e constante do mundo) foi muito bem acceita no Acre e em todos os espíritos despertou a esperança de uma nova era de moralidade na gerência do público serviço.

Esta explicação é necessária, por se ver, no fim desta narração, o resultado dessas esperanças, ou antes, dos acontecimentos, aliaz coherentes com todos os actos dos governos daquelle infeliz Estado.

Não havia ainda decorrido tres dias, depois da chegada do povo Superintendente (o qual, no mesmo vapor em que fora, subira o alto Acre a tratar de negócios commerciaes) quando pelas 7 horas da noite, na nova séde do Município, á margem do Purus, ouvimos apitar um vapor. A chegada de um vapor, em qualquer dos rios do interior da Amazonia, é sempre um grande acontecimento, pondo em alvoroto a alma de toda a população ribeirinha. São, para os commerciantes, as novas mercadorias que chegam; são, para todos, as noticias do resto do mundo: os jornaes, as correspondencias comerciaes e particulares, ­ cartas, a mais das vezes, da familia ausente em remotos pontos do paiz, e que vão cheias de saudosas lembranças e de amargos sobressaltos pela saude e pela saude e pela vida dos que para lá se foram. Todo esse mundo de sensações desencontradas e intensas desperta n’alma dos emigrados o apitar de um vapor.

A’quella hora, todos nós – que habitávamos um departamento do barracão que servia de prédio á Intendencia – estávamos resguardados nos mosquiteiros, fugindo á onda bravia dos carapanans que a ninguem permitte, á noite, ficar em liberdade.

A chegada daquelle vapor era, em verdade, para causar surpreza, porque pelas ultimas noticias, nenhum vapor havia para subir, e tão cedo chegar áquellas paragens. Era, pois, aquella viagem extemporanea e portadora, talvez, de alguma nova não commum. Essa curiosidade fez­nos levantar a todos, e, arrostando a guerra sem treguas dos carapanans, corremos para o porto que ficava perto,

Era em Janeiro, e o Purus enchia aos pulos, numa carreira vertiginosa de águas barrentas, galgando os barrancos, ameaçando alagar as mattas e fazer transbordar os lagos e igapós. O vapor, mais de uma vez tentou se approximar do porto, assignalado pela luz de um lampeão suspenso no barranco, e mais de uma vez teve de recuar desgovernando e ganhando a margem opposta, impellido pela força da correnteza.

Essa tentativa improficua repetiu­se algumas vezes até que, vendo o commandante ser impossivel fazer ali a atracação, aprumou no meio do rio o vapor e seguiu avante, indo lançar ferro mais acima, numa curva mansa da torrente.

A bordo havia um grande alarido como de pessoas em festa e feito numa linguagem que a todos pareceu estranha, incomprehensivel, mysteriosa. Quando, nas tentativas de atracação mais se aproximava o vapor mais intensa se tornava a algazarra de bordo, a ponto de ouvirmos vivas a .... e seguia­se um nome que não podíamos apanhar distinctamente em todas as suas syllabas. Um dos nossos disse com espirito:

­ Que diabo! aquillo é um vapor carregado de papagaios! Eram os bolivianos que davam vivas à Bolivia e que iam tomar conta do Acre! Era, tambem, a primeira vez que na margem daquelles rios se ouvia falar por

tantas pessoas juntas uma lingua que não era a nossa. Soubemol­o poucos minutos depois, quando de bordo voltou um nosso emissário affirmando ter falado com um ministro boliviano – o Sr. José Paravicini, que lhe dissera ir estabelecer uma alfandega ou aduana em Caquetá, e tomar conta, em nome da Bolivia, do resto do territorio acreano. A nossa surpreza foi indiscreptivel porque, conhecendo, como conhecíamos, todo o Acre, sabíamos que um pequeno trecho de rio restava ao Brazil, tão insignificante território que não podia constituir nem municipio, nem comarca.

­ Trouxe, communicação, o ministro? Perguntamos.

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­ Limitou­se, respondeu o que viera de bordo, a perguntar pelo Superintendente e como lhe dissesse que havia subido o Acre, resolveu, de accôrdo com o commandante – o Falcão – que me disse vir do Pará commandando o vapor alli fretado pela comissão boliviana, suspender ferro e seguir viagem.

De facto, no mesmo momento, o vapor apitava o signal de partida, levantava ferro, e seguia, dobrando adeante á esquerda, internando­se no Acre e desapparecendo.

A noite toda, passamos, numa inquietação indisivel de espirito, perdidos num labyrintho de cogitaçoes. Para mim, ­ confesso francamente – aquela tomada imprevista do Acre era um assalto arroiado de aventureiros que poderiam, em poucos dias, fazer uma fortuna numa grossa expoliação da borracha.

A essa conjectura, oppunha­se outra de um companheiro: era que aquelles homens não vinham disfarçados, haviam, no Pará, fretado um vapor a uma Companhia, que, embora estrangeira, tinha responsabilidades perante o paiz; o commandante do mesmo vapor era um brazileiro e haviam passado pelos dois Estados sem embargo nenhum.

­ Sim! replicava (porque nunca me passou pela idéia que o governo de meu paiz fosse capaz de semalhante attentado) podia muito bem o troço de bolivianos, no Pará, disfarçar­se em commerciantes, fretar um vapor, e nada ter o governo que ver com isso! Era uma aventura arrojadissima, bem o sabia, mas que estava dentro de esphera do possível.

Poucos dias, depois, espalhou­se por todo o rio a nova do estabeleccimento do governo boliviano em Caquetá, num planalto á margem esquerda do Acre, a que deram o nome de Puerto Alonso.

A indignação de todos os brazileiros foi espantosa e profunda. O Superintendente Monteiro, achava­se incidentemente em Caquetá e ao receber a

noticia do apossamento boliviano, immediatamente officiou ao ministro Paravicini perguntando­lhe, cortezmente, em virtude de ordem se apossava daquelle territorio. Não tenho infelizmente a copia desse officio, mas em testemunho do meu asserto posso invocar o do poeta Themistocles Machado que nessa occasião se achava no mesmo logar, com o coronel Monteiro e que tambem, como brazileiro, presenciou indignado semelhantemente attentado, adoecendo logo depois de terrível moléstia que lhe roubou metade da vida.

Ninguem poderá, de certo, prever que resposta teve o Superintendente. Foi esta a resposta verbal e arrogante que ao portador do officio deu o ministro da Bolivia. NÃO TENHO QUE DAR SATISFAÇÃO A NINGUEM! SOU UM MINISTRO PLENIPOTENCIARIO E SÓ ME ENTENDO DE POTENCIA A POTENCIA!

Esse ministro – foi voz corrente em todo o rio – affirmava que trazia instrucções especiaes do ministro brazileiro – Dyonisio de Cerqueira – para não se entender com autoridade nenhuma do Estado!

O que é certo, é que as autoridades de Floriano Peixoto nenhuma communicação receberam do governo do Amazonas. Pairava, por esse facto, uma duvida intensa no espirito de todos sobre a veracidade de tal empreza.

Mas o commandante do vapor e os proprios bolivianos não se cançavam de propalar as descripções das festas officiaes com que foram recebidos em manaós, tendo o governo lhes offerecido até espectaculos publicos.

Jamais vi entre o povo – o povo rude, de pé no chão, os pobres seringueiros, e os proprietarios do Acre, homens tambem sem instrucção – os quaes, uns e outros, foram sempre os maiores heroes nessa questão, ­ tão funda e intensa indignação e tão alto, tão nobre, tão vibrante o sentimento da Patria!

Agora mesmo, quando escrevo estas linhas, resalta­me nitidamente á memoria o typo de um seringueiro, que não conhecia e nem lhe sei o nome. Era um homemsinho

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magro, atarracado, amarello como açafrôa, batendo o papo, como se diz nos sertões, que, vibrando, numa excitação que não era fementida, nem artificial, nem hypocrita, chegou­se a mim e gritou­me:

­ Seu dotô! vamo bota p’ra fora estes bandido! O exemplo desta indignação foi posteriormente, em todos as phases da questão,

posto á prova com uma evidencia irrecusavel. Alarmado o espirito publico, faltava, apenas, quem se pozesse á frente do

movimento. Amigo e admirador do coronel Francisco Monteiro e attendendo ás considerações de prudencia do mesmo, não me puz logo á frente dos meus patricios para expulsar do Acre os bolivianos. Elle que ha tão pouco tempo tomára conta da gestão dos negocios do municipio, depois de um longo ostracismo politico, não desejava, de certo, vêr­se comprometido num acto de tamanha responsabilidade; apesar de tal movimento poder tomar o caracter meramente popular, como, depois, aconteceu.

Não havendo a menor communicação official e sendo um facto consummado o dominio boliviano no Acre, achou acertado e prudente o Superintendente mandar a toda pressa um emissario a Manaós, entender­se com o governo. Fui distinguido para essa commissão e tomei o primeiro vapor que baixava.

Chegando a Manáos, já a imprensa já occupava do facto, mas limitando­se apenas, a descompor o ministro boliviano e a censurar­lhe os decretos que no novo dominio baixára.

Para dar cumprimento a minha missão procurei primeiramente o secretario da Fazenda, um Sr. Pedro Freire, que era então o secretario richelieu de José Ramalho e que tudo dirigia naquelle tempo.

Por sua historia muito mal contada (ter o Paravacini illudido a bôa fé do governo do Amazonas, dizendo vir estabelecer em Manaós uma alfandega mixta para a cobrança de impostos devidos aos dois paizes) vi que o governo do Estado nada faria no caso, muito principalmente porque tendo a celebre renuncia Fileto dependente da vontade do Governo federal não ia contrariar ordens emanadas do mesmo Governo.

A imprensa manauense, como acima disse, não protestava contra o facto principal, que era o apossamento do terreno litigioso, por parte da Bolivia, e limitava­se a descompor o ministro boliviano. Procurei diversos jornalistas (entre quaes o Sr. Silvério Nery, já indigitado para Senador e Governador do Estado e que neste dia, por signal, vinha de vêr as obras, em começo, de seu palacête á estrada 7 de Dezembro e que me disse que nada se podia fazer nessa questão) e lhes fiz vêr a grande indignação que reinava no Acre e que o caso não estava sendo tratado como devia. Foram improficuas as minhas observações; por ninguem fui atendido (coisa que muito natural devido a attitude do governo) e resolvi ir para o jornal. Escrevi na “Patria”, sob minha assignatura dois artigos e em nome do povo protestei contra o acto do ministro brazileiro, a quem chamei de inepto ou de vendido, entregando o Acre e os seus habitantes ao dominio estrangeiro. Sinto immensa pena de haver perdido esses artigos, porque desejava transcreve­los aqui. Tive a satisfação de ver que um moço, no Pará, o Sr. João Lucio de Azevedo, pela “Folha do Norte” encarou a questão sob o mesmo aspecto, a ponto dos nossos artigos tornarem­se parecidissimos, contendo as mesmas idéas.

Que me conste, foram esses dois únicos protestos que por esse tempo appareceram no paiz.

Vendo que o governo do Amazonas nada fazia, voltei para o Acre e lá colloquei­ me á frente do movimento.

O ministro Paravicini, depois de praticar muitos actos de violência, querendo assim, implantar o seu governo sob o regime do terror; baixára, deixando encarregados

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dos negócios da Bolivia o Sr. Moysés Santivanez, que aliás, se portara com moderação e prudência.

II

A casa de Joaquim Victor da Silva, em Caquetá, foi o ponto de nossas reuniões. Estávamos em fins de Abril e o rio, como sempre, começava a vasar com uma

rapidez espantosa. É, então, o tempo das grandes febres em que, por todo o Acre, passa avassalador e tremendo, um grande sopro de morte.

A anciedade popular não se podia mais conter; a revoltar em todos espíritos era digna da observação de um grande psychologo. Por mim, o digo: jamais senti tão profundas sensações e nem sei si os destinos me proporcionarão occasião de, outra vez, experimentar o que seja e sentimento do dever de cidadão reclamando pelos sagrados interesses da Patria.

Dir­se­ia que, alli, nós sentíamos pelo resto de todos os brasileiros que sentem, que ama, que se enteressam pela felicidade e pela gloria deste Paiz e que depois, constituindo a opinião nacional, una voce, não consentiram que os governos consummassem um crime que importaria numa eterna vergonha para nossa raça. Felizmente o Acre não ficou boliviano, e nós já temos de que nos orgulhar – Quando errou o governo, num acto em que estava empenhada a honra nacional, levantou­se o povo para lhe ensinar o cumprimento do dever!

Que seja fecundo, para o futuro, semelhante exemplo!

A repulsa geral dos acreanos contra o dominio boliviano não se manifestou, sempre, sómente por palavras. Todas as nomeações de questor (delegado), excepção de uma só, que recaíam em brazileiros, á falata exclusiva de bolivianos, foram altivamente devolvidas ao ministro e algumas acompanhadas de officios desrespeitosos. Só um brazileiro – o Capitão Leite, de Humaytá – em todo o Acre acceitou o cargo do governo boliviano e com elle fez causa commum. Consta que o que levou esse brazileiro a ficar numero 1, no meio de seus patrícios, foi uma questão de interesse pecuniario advindo por uma transação. Dizia­se que a Bolivia, precisando transferir para Humaytá a sede de seu governo, offerecia por este seringal a somma de tres mil contos de réis, quando o seu valor intrínseco podia ascender a duzentos contos.

Os commandantes Antonio Bandeira e Mello Cardoso, por esse tempo, com applausos geraes do povo, haviam passado por puerto Alonso, sem visar manifestos e sem dar a menor satisfação ás autoridades bolivianas. Eram os bolivianos, em verdade. Eram os bolivianos, em verdade, poucos, não chegando, talvez, a 50 pessoas, inclusive as autoridades superiores, mas estavam bem entrincheirados e municiados no optimo ponto estratégico que era Puerto Alonso, como depois foi posto á prova no ultimo cerco de Plácido de Castro. Dizia­se que o Capitão Leite puzera a disposição dos bolivianos 300 homens de seu pessoal extractor de borracha.

Era­nos preciso, pois, tomar todas as providencias para que fossem despostos os bolivianos, sem derramamento de sangue e sem deslocamento do pessoal occupado no fabrico da borracha.

Por conhecermos das disposições do cônsul, Moysés Santivanez, encarregado dos negócios da Bolivia e por livrarmos as responsabilidades do Juiz de Direito, interino, José Martins, que alli se achava a serviço publico, não tomando por forma alguma caracter official (*) o movimento, cousa que queríamos evitar, fizemos com que o

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mesmo juiz officiasse ao cônsul, avisando­lhe de que estava no meio de um levante popular com o fim de depor o governo boliviano, e que, não tendo forças para suffocar o mesmo movimento, pedia­lhe que procedesse de forma a evitar derramamento de sangue e funestas consequencias.

O cônsul respondeu, dizendo­lhe que não entendia bem o conteúdo do officio, e pedia­lhe (verbalmente) que chegasse até lá para conferenciarem. Temendo que desse conferencia com o cônsul, devido á exaltação patriótica de que, como brazileiro, se achava tambem, possuído, pudesse resultar um rompimento entre o Juiz de Direito da Comarca de Floriano Peixoto e o Consul Boliviano, e assim tomar o movimento caracter official, que a todo transe procurávamos evitar, não acquiesceu José Martins ao convite do cônsul.

Eis aqui fielmente reproduzido o seu officio: “Caquetá, 29 de Abril de 1899. – A S. Exc.ª o Sr. Delegado do Governo Boliviano

em Puerto Alonso. – Tendo chegado ao meu conhecimento que se preparava um grande movimento popular contra a autoridade que V. Exc.ª está exercendo no territorio da comarca de Antimary, para aqui me dirigi­me Aafim de no caracter de autoridade estadual obstar que esse movimento se effextuasse. Entrando, porem em communicação com os principaes promotores de levante cheguei á evidencia de que todos os esforços que empregue, serão inuteis em vista da forla de que estes dispoem; accrescendo ainda que não tenho instrucção do governo brazileiro para manter V. Exc.ª no posto em que se acha, a meu ver irregularmente, nem de V. Exc.ª communicação quanto ao accôrdo celebrado com o nosso governo.

“Violento ou arbitrario o povo dispõe de elementos materiaes que a autoridade publica não póde sobrelevar, tanto mais faltando­lhe o apoio official dos poderes superiores da nação.

“Em taes condições, observando o estado de exaltação patriotica em que se acham os espiritos, cumpre­me apenas, como intermediario prudente entre V. Exc.ª e o povo brazileiro á cuja causa me prendem, como cidadão, tantos vínculos de solidariedade e sympathias, ceder de modo a poupar sacrificios inuteis e talvez desastres irreparaveis.

“É o que espero da experimentada prudencia de V. Exc. ª a quem tenho a distincta honra de apresentar vivos protestos de alta consideração. Saude e Fraternidade. José Martins de Souza Brasil, Juiz de Direito, interino da Comarca.”

Não possuo, infelizmente, a resposta a esse officio, para dal­a aqui, foi ella, porem, no sentido já explicado.

Decidido não ir José Martins á conferencia pedida, resolvemos subir o Acre, em canoa, com o fim de descermos no vapor “Botelho”, commandado pelo piloto Mello Cardoso, e acompanhados de maior numero possível de proprietarios, de chofre, fazermos a deposição dos bolivianos. Joaquim Victor e muitos outros companheiros ficavam em Caquetá esperando que, acima de Puerto Alonso, na descida, déssemos signaes convencionados com apitos de vapor, os quaes se ouviam alli perfeitamente bem. A canoa que obtivemos comportavam mal oito pessoas e nella, pelas 5 horas da manhã embarcamos, no intuito do passarmos pela margem opposta á cidadella de Puerto Alonso sem darmos satisfação ás autoridades bolivianas, que não deixavam passar a menor embarcação sem chama­la á fala, tomando­lhe as armas, que por accaso levasse. Desse modo já havia tomado os rifles a muitos seringueiros e até os do carregamento de um vapor. Poucos dias, antes, haviam multado, por nossa irregularidades, os commandantes de dois vapores. Em

(*) Julgavamos, até então, apesar de tudo, outra a gente que governava o Amazonas.

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nossa companhia ia um preso – o José – que na véspera havíamos tomado á escolta de um espia boliviano, que viera a Caquetá sondar o terreno.

O José havia commetido um crime qualquer e estava sujeito ao julgamento summarissimo do consul – como todos os mais julgamentos o eram – e, allegando estar passando miseria e fome, pois que só lhe davam bolacha para comer, apesar de lhe fazerem trabalhar diariamente, trabalho braçal e pesado, ­ não quis voltar e declarou­nos que aos pedaços poderia voltar á prisão de Puerto Alonso.

Revelou­nos então, o preso, que os bolivianos estavam bem entrincheirados, que haviam transportado toda a munição de guerra para a primeira barraca junto ao barraco e que esperavam o auxilio de trezentos homens que haviam pedido ao capitão Leite.

Nestas condições – verdadeira ou não a ultima informação do preso – urgia accelerar o movimento.

Assim, no intuito já exposto, embarcámos, em canôa, de Caquetá, no dia 30 de Abril, pelas 5 horas da manhã. Duas horas depois, avistamos a cidadella. Uma lancha a vapor, pertencente á Bolivia e que servia ao governo, alli, estava ao porto. As sanefas da lancha estavam levantadas e cahidas sobre o toldo; immediatamente vimo­las baixar. Aquelle movimento, percebido por todos, transmittiu­nos, não sei porque effeito, um fundo enthusiasmo.

Disse, então, para os companheiros – Acabemos com isso! vamos fazer a deposição, si quizerem!

­ Perfeitamente! exclamaram todos enthusiasmados. Rapidamente, resolvemos o modo por que se devia proceder: eu saltaria sosinho e

faria a intimação ao consul; os outros aguardariam na canôa os acontecimentos. Não haviam elles de entregar as armas e caso eu não podesse voltar, tentassem subir o rio, revolucionar o povo e descer no “Botelho”; não sendo isso possivel descessem, então, e com o pessoal do Joaquim Victor composto de mais de trezentos homens voltassem a Puerto Alonso. Assim resolvido, apróamos e eu saltei subindo o alto barranco a cuja borda encontrei o commandante do porto e alguns soldados, todos armados.

Ao commandante – um homem agigantado – perguntei pelo consul e disse que lhe queria falar; apontou­me elle para uma casa no fundo de uma cidadella, encostada á matta, e deu ordem á primeira sentinella para me deixar passar. Segui passando por uma longa fila de sentinellas avançadas que iam uma á outra transmittindo a senha. Cheguei á barraca do consul que me recebeu á porta com ar solene e grave. Eu ia cançadissimo pela subida do barranco e pela caminhada até alli; pedi­lhe, então, permissão para descançar um pouco e entrando, a seu convite, para a saleta, sentei­me.

Alguns minutos, depois, rompendo o silencio que entre nós havia, disse­lhe por estes termos:

­ Sr. Consul, venho aqui encarregado de uma grave missão! venho em nome do povo deste rio e em nome do povo brazileiro, intimar V. Exc.ª para abandonar este logar, porque não toleramos mais o governo boliviano que V. Exc.ª representa!

O Consul, como impellido por uma mola, levantou­se, e, arrebatado perguntou­ me:

­ Quem está a frente deste movimento?! Levantei­me, tambem, e lhe respondi calmamente: ­ Ninguem!... todos estão a frente! ­ Mas, retrucou o boliviano, quem é que pode apparecer, está falando com um! ­ O nome do senhor! disse­ me o Consul, seccamente, como se estivesse a

proceder a um interrogatorio para a qualificação de um réo. Dei­lhe o meu nome. O rosto do boliviano transformou­se rapidamente abrindo­se num amável sorriso.

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­ Ah! Sr. Carvalho, disse­me, já li os seus artigos na “Patria”! ­ Folgo em sabe­lo! respondi, e neste caso, estou dispensado de repetir a V. Exc.ª o

que penso sobre esta questão. ­ Mas, sr. Carvalho, respondeu o Consul, nós não viemos para aqui em tom de

guerra; viemos em vista de um accordo celebrado entre o governo brazileiro e o... ­ Perdão Sr. Consul! – disse­lhe, sem me poder conter, ­ entre o governo

brazileiro, não! entre um ministro do governo brazileiro – ministro este, que não tem competencia para resolver questões desta natureza!

Travou­se, então, entre mim e o encarregado da Bolivia um largo debate que me despenso de reproduzir aqui. Rematei os meus argumentos fazendo ver que, não estando as demarcações approvadas pelos poderes competentes de ambos os paizes, e sendo nosso o ut possidetes não reconheceriamos, não podiamos reconhecer legal o poder de Bolivia no Acre.

Vendo os companheiros da canôa (os quaes não se renderam ás intimações do Commandante do porto, allegando haverem mandado um emissario ao Consul) a minha demora, destacaram o rapasinho Amaro Nogueira para ver o que havia commigo; elle encontrou­me no meio dessa discussão, assistindo­a até o fim.

­ Bem, Sr. Consul! Conclui – a nossa discussão vae longa e sem nenhum resultado pratico. Desejo cumprir a missão de que sou encarregado e quero saber a resposta de V. Exc. a qual deve ser: si embarca ou não com seus patricios no vapor “Botelho”, aqui esperando a qualquer hora!

­ O Sr. já reflectiu e pensou bem nas responsabilidades deste acto? – perguntou­ me o Consul.

­ Quaesquer que ellas sejam, ­ respondi – nem eu, nem os meus companheiros, fugimos ás suas consequencias.

­ Mas eu, por mim só, não posso resolver, é­me preciso ouvir, em conselho, as auctoridades superiores desta legação, para poder tomar uma resolução decisiva.

­ Si elles estão todos presentes (achavam­se todos presentes assistindo a discussão) não será custoso V. Exc. consulta­los logo; esperarei pelo resultado. O Consul, alli mesmo, em voz baixa, cujas palavras não percebi, falou ligeiramente com todos, que, me parece, lhe deram franca liberdade de agir.

Voltou­se, depois, para mim e disse­me: ­ Vou lhe fazer uma proposta: ­ Estamos, aqui, com poucas mercadorias e

esperamos uma lancha do Pará, a qual deve chegar por esses dias; si a lancha não chegar, nós embarcaremos, então!

Eu olhei para o homem, a ver si elle estava falando seriamente, e não podendo deixar de rir, respondi­lhe:

­ Ora, Sr. Consul, parece que V. Exc.ª está gracejando! Pouco nos importamos nós que os senhores tenham ou não mercadorias, que esperam ou não lancha do Pará; o que queremos é que o governo boliviano, representando na pessoa de V. Exc.ª, seja deposto d’aqui, e há de sê­lo, custe o que custar!

Entremos noutro accordo: atalhou, sorrindo, gentilmente, o boliviano: ­ Embarcarei minha familia no vapor “Botelho”e descerei, depois, em canôa até a Cachoeira do Purus!

Eu ri­me, outra vez, e disse­lhe: ­ É muito incommodo para V. Exc.ª! V. Exc.ª embarca no “Botelho”, com sua

Exm.ª Familia, e pode dizer a Manaós, no Pará, no Rio, no seu paiz, em toda a parte, enfim, que foi deposto pelo povo do Acre. Isto é o que queremos que V. Exc.ª faça!

O consul fez­me, ainda, outra proposta, de cujos termos completos não me recordo bem, mas pela qual queria elle subir até Xapury.

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Peremptoriamente cortei o assumpto das propostas, affirmando­lhe, com energia, que, si elle não embarcasse no vapor “Botelho” era o único responsavel e culpado pelo que podesse acontecer. Fiz­lhe sentir que era tão intensa a indignação do povo, que eu mesmo, dado o primeiro grito, não teria forças para conte­la.

Pediu­me, então, uma intimação por escripto. Respondi­lhe que não a dava; que aquelle acto partia directamente de um

movimento do povo em geral, cuja responsabilidade era collectiva, apesar de não temer a individual que me podesse caber.

O encarregado da Bolivia, então, oppoz­me considerações de ordem pessoal: que, havia pouco tempo, o ministro Paravicini deixará o Acre em bôas condições para a administração do governo boliviano e que, surgindo tal movimento, no curto periodo de sua gerencia, que toda havia sido de tolerancia e urbanidade (o que era verdade) o sacrificado seria elle que era um moço pobre e que havia feito sua carreira nos consulados de seu paiz; que precisava, pois, de um documento com que podesse defender e justificar!

­ Bem, Sr. Consul! – lhe respondi, por dois motivos, vou lhe entregar uma intimação escripta, o primeiro é que não desejo o sacrificio de sua carreira e de seu futuro; para mim V. Exc.ª e os seus patricios, trabalhando, como trabalham, pelos interesses de seu paiz, são patriotas, dignos de admiração e de estima; o segundo é que nem eu e nem um dos meus patricios do Acre fugiremos, em tempo algum, ás responsabilidades deste acto. Mas esta intimação, que deverá ser assignada pelo maior numero possivel de brazileiros, só a entregarei a bordo do vapor em que V. Exc.ª se retirar.

Ficou assim combinado e certo que os delegados do Governo da Bolivia no Acre retiravam­se no vapor “Botelho”.

Despediamo­nos, trocando cumprimentos amáveis, quando chegava o Commandante do porto avisando que o vapor “Cidade do Pará” acabava de entrar.

Ao chegar no barranco, próximo ao vapor, disse para bordo que não era mais preciso visar guias e nem effectuar formalidade alguma, porque os bolivianos estavam depostos; e, corri para a canôa a levar aos companheiros anciosos a desejada nova. Os bolivianos, por sua vez, não exigiram desse vapor o cumprimento de nenhuma formalidade. Vi que era preciso subir o Acre, em canôa, não só para obter maior numero de assignaturas, como tambem para evitar a descida do capitão Leite, suspeita que tomava, ao meu espirito, visos de procedente, depois das descabidas propostas do Consul, e facto que, a se effectuar, importaria na resistencia dos bolivianos, e num grande conflicto, pois.

Assim, seguimos viagem em direcção á casa de João passos, que sendo visinhos de Puerto Alonso, era um dos mais enthusiastas patriotas.

Poucos momentos, depois, passava o “Cidade do Pará” por nossa canôa, levando ainda hasteada a bandeira boliviana. Protestamos em altas vozes e o commandante Trovão (a quem nunca mais tive o agradavel ensejo de ver) mandou immediamente arrear a bandeira boliviana, substituindo­a pela brazileira e nos saudando com uma prolongada salva de apitos.

Nesse dia fomos pernoitar em “Bom Destino” onde se achava Joaquim Carneiro, um dos que, altivamente, devolveram ao ministro a nomeação de questor e que prestou sempre á causa acreana, em todos os tempos, os mais assignalados serviços. Por suas repetidas instancias, foi que, nessa mesma noite, apesar de enfadadissimo por tão longa jornada e tanto esforço, escrevi a intimação promettida e que se vae ler adeante. Queria elle, disse­me, leva­la rio acima, obtendo assignaturas até encontrar o “Botelho” em que desceria acompanhado de amigos. Não a poude, infelizmente, levar porque antes de

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conclui­la foi mandado chamar ás carreiras pelo commandante do vapor em que tinha de subir e com o qual tinha negocios urgentes. Os vapores, por esse tempo, andam no Acre á toda pressa, não tendo tempo a perder, devido á vasante rapida do rio, sendo muito commum ficarem por lá encalhados, no secco, durante todo o anno, só podendo sair na cheia do anno seguinte.

Á noite lembrei­me de que devia ter exigido do Consul um arrolamento do material existente na Aduana e pertencente á Bolivia, e a entrega official de todos os documentos de particulares que naquelle foro estavam para ser ajuisados. Assim, resolvi voltar no dia seguinte e exigir a effectividade dessa formalidade de altíssima importância nesta questão, evitando assim futuras reclamações e indemnisações. Mais uma vez testemunhei o grande enthusiasmo patriotico do povo. Sem que convidasse pessôa alguma, quando no barracão se divulgou a noticia de que eu voltava a Puerto Alonso todos quiseram me acompanhar. Foi preciso, a pedido do encarregado do seringal, empregar esforços para conter os seringueiros Compraram logo caixas de balas ­ e uma bala custava mil réis – mas era forçoso ficarem, pois que as mercadorias, em montão, atiradas ao barranco, precisavam ser transportadas para o estabelecimento. Muitos delles, inclusive um velho, veterano do Paraguay, não attendendo a consideração alguma, quando embarquei pela manhã, tomaram tambem as suas canôas e me acompanharam. Mais de uma vez, ao passarmos em frente ás barracas da margem, gritavam elles pelo morador, que se estava em casa, respondia ao chamado e, ao saber que iamos depor os bolivianos, corria, rifles na mão, ao porto, tomava a canôa e enthusiasmado se encorporava ao pequeno grupo.

Cheguei a Puerto Alonso acompanhado de umas trinta pessôas e tendo mandado, por carta expedida ás pressas, chamar Joaquim Victor e os demais companheiros, estes não se fizeram esperar.

O Consul annuiu a todas as nossas exigencias, combinando­se fazer o deposito de todo material alli existente e pertencente á Bolivia e o inventario dos documentos pertencentes aos brazileiros. Como estava para findar o dia e, não havendo mais tempo para dar começo ao trabalho, resolvemos voltar no dia seguinte.

Quando chegamos ao barranco, o povo que alli ficára sentia­se indignado, porque no alto de uma arvore tremulava ainda a bandeira boliviana. Pediram­me para mandar arrea­la; um quiz derruba­la com uma bala, affirmando, com chiste, que mandava a bala de seu rifle cortar o cordão no ponto que fosse indicado. Um dos nossos foi designado para ir se entender com o Consul, afim de mandar elle arrear a bandeira, ao que annuiu, não sem pedir que não houvesse vivas, nem manifestações hostis, cousa que era desnecessária pedir.

Ao se approximar o soldado que vinha arrear a bandeira, eu disse para todos: ­ Camaradas! a bandeira boliviana vae ser retirada, mas peço que haja deante deste

acto absoluto silencio. Não podemos conter o riso, quando um seringueiro, num tom muito peculiar aos

cearenses sertanejos, observou: ­ Não, patrão! sempre se dá um vivasinha ao Brazil! ­ Não se dá vivas a ninguem! – disse contendo com esforço o riso – está nisso a

nossa dignidade, desde que os bolivianos, vencidos, a nada se oppoem! E foi uma seena commovedora e bella que jamais me fugiu da memoria, vêr­se, ao

crepusculo d’aquela primeira tarde de Maio, á margem do rio silencioso e sombrio, no alto, uma nesga do Ceo sempre ennevoado e triste e em redor a floresta de esmeralda mysteriosa e muda, o boliviano approximar­se da alta arvore desgalhada que lhe sustentava a bandeira, arrea­la pausadamente, sahir cabisbaixo, enrollando­a no braço, no meio de absoluto silencio, e todos nós – os brazileiros – respeitosos e reverentes

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como se estivessemos deante de um grande acto religioso e solenne. Seena commovedora e bella! repito, que naquelle momento deixou­nos n’alma, com a tristeza da tarde, um fundo sentimento de pesar pela sorte do vencido que era d’alli forçado a retirar a bandeira aventurosa de sua Patria!

Em seguida descemos o barranco, embarcámos nas canôas que quase tomavam toda a largura do rio, e volvemos a Caquetá, onde chegamos quasi ás 7 horas da noite. Ao avistarmos o barracão, convidei a todos para salvarmos a casa de Joaquim Victor com uma salva de tiros. Uma voz gritou do meio do grupo que era melhor faze­lo ao saltarmos em terra.

­ Não! respondi, enthusiasmado, a nossa salva deve ser dada dentro do rio, para que o Acre leve ao Amazonas e o Amazonas ao Mar e o Mar diga ao Brazil e ao mundo que nós aqui defendemos a honra da patria, arrancando do dominio estrangeiro o Acre que é nosso, que nos pertence, custe, embora, o sacrificio de nossa vida! As ultimas palavras não foram mais ouvidas porque foram arrebatadas por uma salva de bravos, de vivas e de tiros ensurdecedores.

E uma grande nuvem branca de fumaça desceu a rolar acompanhando o fio da correnteza e perdeu­se na noite.

Nessa mesma noite, já eu e alguns companheiros ardíamos em febre. Encarreguei, então, o DR. Pedro Gomes da Rocha (occupa hoje um cargo da justiça federal no Ceará) de redigir um officio ao juiz, José Martins, officio que foi nestes termos:

“Illm.° Sr. Juiz de Direito desta Comarca. Levamos ao vosso conhecimento que no dia de hontem, 1° de Maio, pelas 5 horas

da tarde, o povo, representado por grande numero de cidadãos, depoz as autoridades bolivianas, estacionadas em Puerto Alonso, sem que tivesse a lamentar acto algum lesivo aos direitos, como se devia esperar de cidadãos que sabiam e queriam cumprir seus deveres por meios regulares e pacificos. Só em ultimo caso o povo appellaria para as armas porque na defeza de seus direitos seria sobranceiro e desassombrado. Succedendo, porem, que a propriedade particular da comissão boliviana deve merecer, de accordo com a nossa Constituição, respeito e garantia, vimos concitar­vos afim de que compareçais hoje ás 4 horas da tarde, no logar Puerto Alonso e mandeis arrolar documentos de brazileiros e tudo mais que existir nomeando­se pessôa chan e abandonada como depositário legal. Esta medida tem efeitos salutares porque , si por um lado, garante direito de terceiros, offerecendo­lhes o escudo da lei, por outro lado evita que exigencias desarrazoadas appareçam dando vulto a factos mínimos e de pequena monta. Mesmo nós, como cidadãos de uma patria livre e altiva devemos abrigo ao estrangeiro que pede as garantias constitucionaes, porque na hypothese contraria transformariamos uma revolta de intuitos nobres e elevados em vehiculo de odio e pequenas paixões.

O vosso patriotismo e ilustração deve impulsionar­vos no cumprimento deste dever conservando a vossa toga de magistrado impolluta, já como proteção aos estrangeiros nossos visinhos da Republica da Bolivia, como tambem precaução aos direitos da Patria que devem ser acautelados.

“Confiados em vossos sentimentos de patriota e de delegado da nação para exercer justiça, subscrevemo­nos como membros da Commissão que representa o povo reunido neste logar.

“Caquetá, 2 de Maio de 1899 – Pedro Gomes da Rocha José Carvalho, Antonio Loyola, (*) Francisco Gomes Malveira, Amaro Góes Nogueira, José Nunes de Mello, Atto Pessôa, Henrique de Pontes Barroso, Antonio Mendes d’Almeida, (**) Joaquim Victor da Silva, Jesuíno Nunes Verçosa, Miguel Ribeiro da Costa, manoel Theophilo de Serpa, Pedro Martins Chaves.”

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“ – Despacho – A. Designo o dia tres do corrente, para ter lugar o inventario e arrecadação requerida. Nomeio depositario o commerciante Joaquim Victor da Silva e escrivão ad­hoc, por se achar impedido o que serve perante este juiso, o cidadão Henrique de Pontes Barroso, que prestará o compromisso da Lei.

Caquetá 2 de Maio de 1899. José Martins.

No dia seguinte, effectou­se o arrolamento por esta forma:

AUTO de inventario de moveis e utencilios, documentos e mais haveres entregues pela comissão boliviana, ao Juiz, para se fazer o deposito legal, conforme o requerimento retro.

Aos tres dias do mez de Maio do anno de mil oitocentos noventa e nove, pelas nove horas da manhã, n’este lugar “Caquetá” Rio Acre. Estado do Amasonas, onde se achava estabelecida a Delegação e Aduana da Republica da Bolivia, onde eu escrivão ad hoc fui vindo, compareceram o Sr. José Martins de Ousa Brasil, Juiz de Direito interino da Comarca do Antimary, D. Moyzés de Santivanez, Consul e Delegado interino da Bolivia, Romualdo de la Pena, administrador interino da Aduana, Capm Benigno C, Gamarra, Commandante da Fronteira e Manoel Véa­Murguia. Secretario da Delegação, Joaquim Victor da Silva, depositario nomeado para zelar como bom e fiel guarda os haveres abaixo arrolados, Dr. Pedro Gomes da Rocha, e diversos mais que assignarão este auto procedeu­se a inventario e encontrou­se: Archivo

Pelo secretario foram entregues os autos seguintes; Inquerito, por crime de homicidio praticado por individuos que não poderam ser conhecidos, em

Feliz Pereira de Freitas, contendo vinte fl, digo vinte­laudas escriptas; Inquerito policial, pelo assassinato perpetrado em João de tal, por João Pereira da Costa, contendo onze laudas escriptas; Demanda por cobrança, procurador Joaquim Victor da Silva, contra João F. da Silva; contendo duas laudas escriptas; Demanda de Joaquim Camillo, contra Ludgero do Nascimento contendo duas laudas escriptas, demanda de Angelo Uchôa Cavalcante, contra Agostinho Freires Guabiraba, contendo uma lauda escripta; Acção­ de Antonio Passos de Sant’anna, contra José Raymundo da Silva, e Olympio João de farias, contendo oito laudas escriptas; Petição de Lourenço Freire pedindo a nomeação de curador para seus sobrinhos, contendo oito laudas escriptas; Acção de Antonio Joaquim do Nascimento e Joaquim Carneiro de Queroiz, contra Silvestre Monteiro, contendo cinco laudas escriptas; Acção de Guilherme Miranda contra José Felippe da Silva, contendo tres laudas escriptas; Acção de Antonio Passos de Sant’Anna contra José Felippe da Silva e Raymundo Barbosa Leite, contendo tres laudas escriptas, Acção de D. Maria Rodrigues d’Oliveira, contra José Felippe da Silva contendo seis laudas escriptas; Acção de Raymundo Soarea contra José Felippe da Silva, contendo sete laudas escriptas; Acção de João Baptista de Alcantara contra José­Felippe da Silva, contendo cinco laudas escriptas, uma procuração e titulo de Seringal; Petição de Agostinho Freires Guabiraba contra o espolio de Casemiro Alves Pinheiro, contendo quatro laudas; Acção de Alvez Braga & Companhia contra Joaquim de Sant’Anna, tutor dos filhos menores de Mileno Benevenuto de Santiago, contendo cinco laudas escriptas; petição de Joaquim José de Sant’Anna, pedindo embragos de borracha, contendo tres laudas escriptas; Acção de João Evangelista do Nascimento, contra Joaquim Camello, contendo cinco laudas escriptas; Acção de Antonio Frederico de Queiroz e petição de Octavio Guarany de Moraes Rego, contra Joaquim Alves Maia & Companhia, contendo dezoito laudas escriptas; Acção de Ferreira & Avila contra Honório & Belmiro contendo seis laudas escriptas; Acção de Joaquim Vieira & Irmão contra Antonio Ignácio Pinheiro e Manoel Ipyranga, contendo duas laudas escriptas; Acção de Francisco Miguel de Carvalho contra José Francisco do Nascimento, contendo tres laudas escriptas; Denuncia de Arthur Posmanhy contra Alexandrino Silva e Pedro Barreto, contendo uma lauda escripta; Acção de Maria Sousa, Viúva de Pinheiro Pinto contra João Xavier contendo dez laudas escriptas; Acção de Joaquim Vieira & Irmão contra Antonio & Ferreira, contendo cinco laudas escriptas; Acção de Joaquim Victoriano Correia contra Antonio Guimarães Filho, Pedro Jacome de Araújo e Manoel Pereira, contendo tres laudas escriptas; Acção de Silvestre Strim contra José Anselmo Melgaço contendo tres laudas escriptas; Acção de Engenio Quitierrez Solono contra Raymundo Vieira Lima, contendo quatro laudas escriptas; Denuncia de Antonio Leite Barbosa pedindo desembargo, contendo nove laudas escriptas; Liquidação testementaria de Jonas Mendonça, contendo lista de devedores, credores, contas correntes e final liquidação, com quinze laudas escriptas; Petição de inventario de Casemiro Álvares Pinheiro contendo contas correntes, petição, inventario da borracha

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existente, um extracto de conta, descripção de bens, termo de entrega, contendo trinta laudas escriptas; Uma escritura particular, vendedor Dias dos Santos & Companhia, comprador Francisco Carlos Mourão, do lugar denominado “Porto Franco”; Protesto de Angelo Uchôa Cavalcante, contra a petição de Agostinho Freires Guabiraba, pedindo demarcação de Seringal, contendo quatro laudas escriptas; Petição de D. Jovita Alves, contendo duas laudas escriptas; Petição de Antonio Joaquim do nascimento, contendo duas laudas escriptas. Estes documentos foram entregues ao Juiz, que os recebeu para dar­lhes o conveniente destino. Aduana

Pelo administrador da Aduana, foi apresentado, em inventario, um caixão fechado e lacrado, que foi entregue ao depositario Joaquim Victor da Silva, contendo, segundo diz o mesmo, utencilios de escriptorio. Bar racas

Pelo Delegado interino do Governo da Bolivia, foram apresentadas em inventario quatorze barracas sitas n’este lugar, sendo tres construidas com zinco e onze de zinco e palhas, com travejamento de madeiras ordinarias: foram entregues ao depositario Joaquim Victor da Silva.

Foram exihibidas cento e sessenta e sete taboas de pinho, distribuidas em differentes barracas, umas e outras soltas.

Apresentou ainda para inventario doze peças de cabo de arame sendo onze intactas e uma encetada; sendo tudo entregue ao depositario.

E por nada mais haver a inventariar, conforme asseveraram os declarantes, o Juiz deu por findo este auto que vai assignado pelo Juiz Commisão Boliviana, Depositario e pessôas presentes. Eu Henrique de Pontes Barroso, Escrivão ad hoc que o escrevi, assigno e dou fé. José Martins de Sousa Brasil. Moyzes Santivanez. Romualdo de la Pena, Benigno C. Gamarra. Manoel Vea Murguia, Joaquim Victor da Silva, Henrique de Pontes Barroso, Bacharel em direito Pedro Gomes da Rocha, Atto Pessôa e Antonio Tavares de Britto (*).

Poucos dias, depois, descia o “Botelho” e nelle embarcavam os bolivianos levando a seguinte intimação:

“Ilustre Sr. Consul da Bolivia, em Caquetá, no rio Acre. “O povo brazileiro representado nos abaixos assignados, solidariamente

responsaveis, no uso de sua alta vontade revoltada, vem intimar­vos para que abandoneis o governo illegal que vos achais exercendo actualmente neste territorio, desbravado, habitado e hoje defendido, por milhares de brazileiros, que até a vossa invasão aparentemente legal, viviam á sombra das Leis de seu paiz, e nellas confiavam.

“O povo e os poderes públicos deste Estado têm sido por demais tolerantes, nessa vergonhosa questão, sanccionada, é verdade, por um nosso desastrado ministro, sobre o qual não queremos nos pronunciar neste momento.

“A violencia de nossa vontade, tão patriotica e tão justa, não nos permitte um longo argumento probatório dos nossos direitos; em toda a parte a imprensa e o povo o tem largamente descutido e elle está solidamente plantado na consciencia nacional. “Essa Posse é um insulto á nossa soberania, e nós bem sabemos que não sois o responsavel directo; sois no entanto, em rasão de vosso governo, o elemento desse insulto que nós soberanamente repellimos, hoje e amanhã, seja preciso, muito embora, o sacrificio de sangue e de vida. Esperamos convictos que haveis de abandonar o mais breve e o mais conveniente possivel este logar que o vosso ministro, o Sr. José Paravacini, baptisou com um nome de Puerto Alonso e onde se acha estabelecida uma Aduana limitando as duas Republicas visinhas.

“Em desaggravo á nossa consciencia e par vossa honra de Cidadão patriota, confessanmo­vos que a nossa extrema prudencia, appellando sempre para o patriotismo do governo brazileiro, nos deixa um pesar, que é o de não termos feito essa imposição ao vosso antecessor o Sr. José Paravacini.

(*) Residente hoje em Obidos, neste Estado.

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“Sabeis, porem, que não fazemos questão de pessôas ou de actos, violentos ou justos, dos Delegados de vosso Paiz, e sim exclusivamente da Posse boliviana desses grandes pedaços de rios e de florestas violados por um governo estranho.

“Não tememos as responsabilidades que nos possam advir por essa intimação escripta que os pedis – a nós que estamos á vossa frente – para vosso documento, sem duvida, porque a fazemos na fé de patriotas, á plena luz do dia, debaixo do nosso Céo e com todo o ardor do nosso patriotismo.

“Estaes intimado a retirardes o vosso governo deste territorio o mais breve possivel, porque é esta a vontade soberana e geral do povo deste Municipio e todo o Povo brazileiro.”

“Caquetá, 1° de Maio de 1899 – José de Carvalho, Atto Pessôa, Amaro de Góes Nogueira, Antonio Mendes de Almeida, José Nunes de Mello, João Passos de Oliveira, Henrique de Pontes Barroso, Pedro Martins Chaves, Antonio Paulo Cavalcante, Antonio Tavares de Britto, Manoel Mathias Cabral, Silvino José Baptista, Antonio José de Góes, Francisco Correia, Luiz Gonçalves de Magalhães, Manoel Martins Chaves, Tertuliano Nazareth de Lima, Antonio Lourenço do Nascimento, Lourenço Francisco do Nascimento, Francisco Januario de Araujo, Lino Vieira de Queiroz, Manoel Fortunato da Silva, José Justino de Araujo, Francisco de Almeida Caterno, a rogo de João Tavares da Silva, Francisco d’Almeida Caterno, Antonio Rodrigues de Salles, Manoel Raymundo Brenha, Joaquim Victor da Silva, Francisco Gomes Malveira, Antonio Loyola, Abílio dos Santos Freire da Rocha, Jesuino Nunes Verçosa, pedro Gomes da Rocha, bacharel em direito, Miguel Ribeiro da Costa, engenheiro civil, José de Prado, (*) a rogo de Manoel Evangelista, José do Prado, João Francisco Corrêa, Pedro Olympio Godim, a rogo de José Rodrigues Vieira, Abílio dos Santos Freire da Rocha, a rogo de Manoel Sacramento Guimarães, Francisco Gomes Malveira, a rogo de Porphirio LAsaro da Silva, Antonio Mendes d’Almeida, Manoel Mathias Pereira, a rogo de Ludgerio José bandeira, Francisco Gomes Malveira, João Roberto Lopes, Francisco Luiz Oliveira, Joaquim C. dos Santos, Antonio Barbosa Conde, a rogo de Antonio Victorino da Silva, de Antonio Chrispim de Almeida, de Balthasar de Cravalho, de Carlos Moreira Torres, de Domingos Alves da Silva, de Eufrosino Alves Guerra, de francisco Cassiano Monteiro, José Carvalho, João Nogueira de Miranda, Olyntho Meira, manoel Theophilo de Serpa.

******

Ao chegarem os bolivianos em Manaós, a imprensa annunciou a sua deposição e o levante do povo, e um periodico no Para – o Cearense – dirigido por José de Carvalho Lima e Raymundo Silveira, deu noticia dos acontecimentos publicando todos os documentos.

(*) Residente actualmente nesta Capital

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III

Não estavamos longe de pagar o tributo inevitavel de saude e de vida, que, ha tão longos annos, é um jus do monstruoso minotauro do Acre.

Alguns dias depois da retirada dos bolivianos, cinco dos companheiros caíram, para sempre, na voragem da morte. Henrique de Pontes Barroso foi o primeiro que o beribéri galopante quase fulminou. No dia seguinte, depois de uma longa agonia, morria José Martins; José Nunes de Mello, algumas horas depois, e logo em seguida Olyntho Meira. Eram todos cearenses, menos o ultimo que era pernambucano.

As infinitas modalidades do impaludismo no Acre, são um vastíssimo campo para especulações scientificas. Todo os dias, pode­se affirmar, parece um caso surprehendente da terrível endemia, muitas vezes completamente desconhecido. A vida no Acre é apreciada como elemento nunca, até hoje,classificado pelos economistas e chrematisticos; é apreciada como capital; capital esse, que, sendo necessariamente o de primeira ordem, é o mais fungível e o que é arriscado primeiro na ordem das transações.

D’ahi a ganância... não! não digo bem: ­ d’ahi essa pressa, esse anceio desesperado de ganhar depressa, para mais cedo sair do perigo.

Essa feição que foi generalisada e duramente tratada, ha pouco tempo, pelo pessimismo de um talentoso e distincto official do exercito, o Sr. Alípio Bandeira, torna­se, porem, mais accentuada na grande ordem dos flibusteiros, dos negociantes de todos os annos, aos milhares, corre para o Acre. São negociantes de todos os jaezes, são especuladores de toda a sorte, que no tempo da cheia, de Novembro a Maio, correm para o Eldorado, em bsuca da fabulosa fortuna sonhada. Nesses, sim, a pressa é mais desesperada, o desejo do ganho está na razão directa do medo de morrer e do desejo de gosar fora do perigo. Porque, em verdade, com os proprietarios, os que estão vinculados ao solo e mais do que isso – presos ás infinitas e ternas malhas dos compromissos commerciaes com a Praça, não é tão accentuada e intensa essa pressa do ganho. Resistindo ao clima e ás molestias, grande numero de proprietarios vive há longos anos no Acre. Só alli – como em todo o interior do Amazonia – quem não tem pressa porque não tem dinheiro é o pobre seringueiro, escravisado eterno, eternamente sonhando o SALDO, que todos os annos lhe foge mysteriosamente, sem que elle possa explicar, porque não sabe ler a factura pelo patrão fornecida (ha, como em todas as cousas, nobres excepções) e nem ler na balança romana o numero indicador dos kilos que lhe custaram o suor. E elle fica! Fica para o anno seguinte, a sonhar o SALDO, a fazer economias, comprando pouco, caçando mais a caça que lhe fornece melhor alimentação, mais nutrictiva e saborosa e lhe evita comprar o jabá! (carne de xarque). E no fim do anno o SALDO lhe foge outra vêz, porque os compromissos do patrão cresceram com o outro patrão da Praça, do qual, por sua vez, o primeiro não é sinão mais que um outro seringueiro.

*******

Deixando atraz de meus passos uma esteira de mortos e deixando integralisado o direito do Brazil no Acre, voltando todo elle ao antigo curso normal, ficando a Comarca e o Municipio restituidos a si mesmos e os nossos patricios sob a mesma bandeira auri­ verde de nossa Patria, desci no dia 24 de Maio, em lancha, e em companhia de Atto Pessôa, secretario da Intendencia e distincto moço cearense, cheio de nobre coragem leonina e de preclaras qualidades de carater. Ambos, eu e elle, vinhamos bastante doentes, em busca de vapores, na Cachoeira do Purus, para descermos. Ainda em viagem, na lanha, começou o pobre rapaz a perder o equilibrio de espirito e a devaneiar.

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Era a confundir o nome das pessôas e a narrar uma serie interminavel de historias que se truncavam e se repetiam indefinidamente, e assim falava até ficar exhausto, sem attender a pedidos de ninguem.

Depois de cinco dias de viagem chegámos a “Cachoeira”, onde não encontrámos vapor. Descemos, então, para um seringal que fica pouco abaixo, chamado de Ihutanaan, pertencente a um cearense que nos deu hospedagem mediante pagamento de uma diaria. Já ahi eramos uma porção de passageiros que demandavam Manáos, Pará, Ceará, etc. Atto Pessôa caira em estado de completa prostação e demencia. Poucos dias, depois, chegou a esse porto um vapor, cujo commandante não quis receber a bordo o pobre rapaz, que embora estivesse mal, poderia, com a viagem ter escapado á morte. Não houve pedidos e solicitações de minha parte que demovesse o commandante de sua obstinada recusa. Todos os outros passageiros, alguns dos quaes moram nesta capital, embarcaram. Fiquei ao lado do pobre enfermo. Poucos dias depois chegou a Ihutanaan o bom e benemerito Padre Leite, vigário da Lábrea, há mais de 20 annos, que lhe deu todos os sacramentos da hora da morte.

No dia seguinte agonisava elle, depois de me estender a mãoe dar­me um longo adeus de despedida, um longo e eloquente aperto de mão, onde punha toda a sua grandeza de sua alma de moço agradecido e generoso.

Com outro, carreguei­o para a sepultura, numa rêde, porque alli não havia quem houvesse fazer um caixão.

E lá se ficou o pobre e heroico rapaz, cuja sepultura rasa e humilde, á margem do Purus, ficou sempre significando, para mim, a primeira sentinella avançada, na defeza dos nossos sagrados direitos.

Sem aportar em Ihutanaan passou alguns dias depois um vapor em direcção á Cachoeira. Voltou com pequena demora, ainda sem aportar, apesar de insistentes chamados a tiros, como é de costume nos rios. Mais uma vez perdi a oppotunidade de descer. Só quando chegou o vapor “Cearense” de uma firma commercial do Pará, da qual era eu advogado no Acre, foi que pude embarcar e ainda assim para voltar á Cachoeira e ahi esperar lanchas que vinham de cima com carregamento de borracha.

Ahi, em Cachoeira, fiquei extraordinariamente surprehendido com a noticia de que no ultimo vapor que alli chegára, viera e já havia subido, em lancha, para o Acre, um novo Superintendente, Manoel de Oliveira Bastos, acompanhado de novas autoridades municipaes e judiciarias para Floriano Peixoto e acompanhado mais de uma commisão de hespanhoes, tendo á frente um de nome Galvez que ia proclamar no Acre – Uma Republica Independente!

Eu estava acostumado a ver as monstruosas cousas que se faziam no governo do Amazonas, mas não podia acreditar naquella que, alem de me parecer ultra­fantastica, julgava um attentado e um crime com o qual o governo do Estado não podia se comprometter e nem brincar. E só me certifiquei da veracidade desse facto, quando, poucos dias depois, chegou de volta a lancha “S Miguel” que havia sido fretada por Galvez para leva­lo e aos seus hespanhoes, e mais as autoridades de Floriano Peixoto. O pobre homem proprietario da lancha, volvia do Acre desesperado, arrancando os cabellos, queixando­se amargamente de Galvez, que não lhe pagára o frete da embarcação e, pelo contrario – lhe fornecera uma conta pela qual ficava, elle lancheiro, devedor de uma avultada quantia e ainda, por cima, ameaçado de sofrer violencias no Acre.

Elle me offereceu essa conta fornecida pelo aventureiro e ainda a possuo junto aos originaes de que tenho lançado mão para escrever este trabalho. Em toda a narração afflicta do pobre homem, a contar a historia do seu grande prejuizo, queixava­se do

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Superintendente que, enquanto elle recaleitrava em fretar a lancha, chegou­se ao seu pé e disse­lhe baixinho: ­ Você quer tirar o pé da lama? frete a lancha ao homem!

Soube, tambem, que as novas autoridades de Floriano Peixoto levavam ordem do governo do Amazonas para me processar pelo crime de haver deposto os bolivianos! Esse processo foi iniciado.

Desci, pois, desilludido e doente, e em Manáos soube da escandalosa farça: era um syndicato que, depois da chegada dos bolivianos, se organisára entre o governador Ramalho, seu ministro Pedro Freire – talvez a alma credora dessa empreza – e Galvez, que a esse tempo geria uma casa de jogo e de prostituição á estrada Epaminondas. Galvez era um simples caixeiro do syndicato em cujas mãos deviam cair todas as rendas do Acre.

O coronel Monteiro, José Martins e mais autoridades, foram pois, accintosamente demittidos, sob o fundamento altamente moralisador de haverem tomada parte na revolução, quando, em verdade, o Superintendente, nella não interviera de forma alguma.

E foi assim creada a Republica de Galvez, aventura infeliz e criminosa que tanto comprometteu os destinos da questão do Acre e que depois pela pacificação – uma outra farça – custou ao Estado do Amazonas mil e dusentos contos, e que ainda hoje, por cumulo! é tida como ponto de partida da insureição acreana.

Os habitantes do Acre – faço­lhes justiça – acceitaram a farça de Galvez, que lhes mandou o Governo do Amazonas, não só de boa fé, sinão porque acceitariam tudo, menos o dominio boliviano.

Em Manáos vi­me sosinho, condemnado por quase todos, que enthusiastas, batiam palmas a Galvez e sua Republica, simplesmente porque sabiam que aquillo partira do governo, ao qual precisavam agradar e curva­se com as mais baixas provas do servilismo.

Ao voltar do Ceará, alguns mezes depois, doente ainda, e sem recursos pecuniarios, foi o infeliz Pensador – o pobre Rei Lear, prêto, que tendo dividido o Reino entre os amigos, viu­se, depois, louco, correndo sosinho pelas ruas de Manáos, morrendo abandonado, mysteriosamente, e deixando alli perpetuada uma outra tragedia Schackspeareana – foi, disia o PENSADOR, ao qual no Amazonas só devo, com uma carta de recommendação, esse favor, que indo se interessar por mim junto ao governo para que não fosse eu hostilisado no Acre e podesse desembaraçadamente tratar dos negocios de casas commerciaes de que era encarregado, trouxe­me a certeza de que estava interdicta a minha ida para alli, sob o fundamento de que havia sido eu que tocára fogo no Acre!

Dissera­lhe isso, em palacio, o Sr. Silverio Nery, já indigitado senador e governador, e já influindo nos destinos politicos do seu Estado, tão digno de melhor sorte.

Em no entanto, a farça de Galvez continuava ainda. Hypocritamente, depois, quando o governador, mandou elle mais de uma vez

tocar fogo no Acre, em expedições mal organisadas, que tanto chafurdaram a questão e que custaram grandes sacrificios de vida e mais uma vergonha ao Amazonas e ao Brazil.

Não estavam, ainda, terminadas as provações do meu grande crime. Não podendo voltar para o Acre, fui exercer a minha profissão no rio Madeira, em Humaytá. Ahi, pelo simples facto de ser advogado na comarca, fui, por outro advogado, envolvido na trama de uma tenebrosa intriga de aldeia. E, num pasquim indignissimo, onde a humildade do meu nome foi coberta das mais injuriosas calumnias, falou­se nas minhas correrias do Acre! E essa infâmia, com outras maiores, foi escripta por uma bacharel,

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um Bernardino Paiva, que, sendo no Pará, um jacobino exaltado, onde muito gritou contra a situação então dominante, falando muito em Republica, inimigo dos gallegos, cobrindo tôrpes injurias o nome do dr. Paes de Carvalho, tem servido o papel de simples alugado de um commendador barato de Portugal, um sr. Monteiro, homem ignorante e mau, que attribue sua influencia politica no Madeira ao facto de (como affirma) nunca ter acceitado patente da Guarda Nacional do Brazil, cousa de que fala com arrogante despreso.

As minhas correrias no Acre têm­me custado carissimo! Não me quiexo; sei avaliar das cousas humanas e do atraso de nossa educação civica e moral. E muitas vezes, commigo só, tenho me encontrado surprehendido a perdoar as muitas miserias de que fui victima por parte de meus pobres, pequeninos e gratuitos inimigos.

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Que este opusculo caia ou não no marasmo da indifferença publica, pouco importa!

Conheço bem os deffeitos de nossa educação. Há pouco tempo, vindo de uma comarca afastada, no interior do Pará, estava

ancioso por saber noticias do Tratado do Acre. Ao aportar a uma cidade próxima á Capital, embarcou um conhecido, ao qual pressuroso me dirigi, perguntando­lhe si tinha lido os últimos jornaes, e o que havia sobre o mesmo tratado. Com uma indifferença admiravel respondeu­me o interpellado: ­ Jornaes eu li, em terra, mas sobre o tratado do Acre nada sei porque agora só presto attenção aos telegrammas que dão noticias da guerra da Russia com o Japão!

É isto, actualmente, muito caracteristico, muito brazileiro! Com outra educação, porem, para o futuro, essa indifferença se ha de acabar, e o

Brazil será pelas industrias, pelas lettras, pela politica, por todas as fontes de progresso, uma das maiores, mais bellas e mais poderosas Pátrias do mundo!

IV

Vou terminar pedindo a Deus que o tratado de Petropolis tenha posto fim decisivo á malfadada pendência; que a ova linha a traçar não traga mais tão funestas consequencias quanto a primeira, aliás de tão facil comprehenção.

Há no paiz uma opinião manifestamente contraria á obra do Barão de Rio Branco é uma questão, parece­me de melindre e de zelo nacional achando que cedemos muito a Bolivia. Mas a Bolivia tinha direitos a respeitar – é força reconhecer – e assim o Direito e a Justiça, palavras de que nós brasileiros fazemos tanto gasto, ficam tendo no Brazil uma significação objetiva e real.

Si é permittido ter hoje uma opinião quem a teve no começo dessa pendencia, eu direi que, si o Acre é realmente todo brazileiro, si os nossos patricios alli não vão recomprar os seus seringaes á Bolivia, como estavam condemnados a fazer, si a nossa posse, feita á custa de milhares de vida, foi pelo mesmo tratado respeitada e garantida, e si não resta ao dominio estrangeiro uma só parcella de vida nacional, passando a linha redemptora acima da ultima barraca dos nossos seringueiros, então o trabalho de nosso grande patrício é, de facto, como elle o quer, a maior de todas as suas obras. Ve­lo

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tirado á limpo e completo não deverá custar muito. Cumpro, até hoje, o dever de acreditar que o nosso immortal advogado nas Missões em Amapá soube o que fez, não compromettendo, em caso de tanta monta, o seu nome e o seu passado; e mais do que isto Concidadãos! – que elle não deixe de amar a sua Patria tanto quanto ella é digna de ser amada.

Há um outro heroe que jamais deve ser esquecido – é o povo do Acre.

Belem – Pará – Março – 1904.

NOTAS Estava escripto este humilde trabalho e nelle não havia outra intenção sinão a de deixar

perpetuada a verdade de um acontecimento que pode ter o seu valôr na história de nossa patria. Á ultima hora, porem, vejo em noticias diarias da imprensa do norte que ha – como

textualmente li – um enttente condiale, entre o governo federal e o estadual do Amazonas sobre a administração daquelle territorio. Causou­me essa noticia profunda tristeza. Pois que! não foi, sempre, esse mesmo governo do Amazonas o maior compromettedor de toda a questão do Acre, ora mandando proclamar, alli, a Republica de Galvez, ora mandando expedições de força, mal organisadas, que foram vergonhosamente rechassadas por um troço de bolivianos?

O governo federal, transacto, teve de certa forma sua rasão mandando repor os bolivianos, porque, não comprehendendo que no Acre houvesse realmente patriotismo, só conhecia d’alli as immoralissimas farças do governo estadual.

Diz­se que o Barão do Rio Branco não intervem nas cousas da politica interna do paiz: estranho, porem, que elle não intervenha neste caso, olhando para o resto de sua obra e não consentindo, a bem do pudor de um governo moralisado, nesse enttente cordiale com o governo do Amazonas.

O desmembramento do Acre e sua administração feita pelo governo federal é uma das mais dignas e honrosas feições do Tratado de Petropolis.

****** Os documentos originaes transcriptos neste trabalho e outros mais aos quaes se não

alludiu, como uma acta lavrada pelas autoridades bolivianas, em que confessavam litigioso o terreno e declarando “Que cualquier violencia em los críticos actuales momentos importaria uma grave complicacion em el litijio de nuestro derecho, exarcevando los ânimos de mas de quince mil brasileros pobladores de este rio, de perfecto y comum acuerdo resolvieram someter­se a la imposion... etc.” ; e mais a Lei e Regulamento, sobre a compra de seringaes (Adjudicacion de Estradas Gomeras) onde havia disposições que provocaram entre os proprietarios funda indignação e revolta, como a necessidade de comprarem, outra vez, os seus seringaes á Bolivia, e ainda muitas outras disposições contrarias ao uso geral dos brasileiros, etc., serão offerecidos, pelo autor, ao Barão de Studart, no Ceará, com a seguinte dedicatoria:

Ao Exm.° Sr. Barão de Studart ­ ao emerito trabalhador da historia da terra cearense, são offerecidos os

documentos originaes referentes á primeira insurreição do Acre, cuja historia não é sinão uma continuação do historia do Ceará.