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JORNAL DO ITACORUBI: JORNAL DE BAIRRO COMO TÁTICA PARA PROPOSIÇÃO ARTÍSTICA DE INTERVENÇÃO URBANA JORNAL DO ITACORUBI: LOCAL NEWSPAPER AS A TACTIC FOR ARTISTIC PROPOSITION OF URBAN INTERVENTION João Felipe Reginatto Montemezzo / UDESC Juliano Menegaes Ventura / UDESC Nara Beatriz Milioli Tutida / UDESC RESUMO Jornais de bairro se aproveitam do formato de jornais convencionais para veicular informações referentes aos seus contextos locais. Esse modo de agir se aproxima da noção de mídia tática, prática que consiste no uso de estruturas midiáticas preexistentes para circulação de ideias e informações em espaços públicos. Este texto trata do desenvolvimento de um jornal dedicado a um bairro como proposição artística de intervenção urbana: são abordadas as táticas para a elaboração do conteúdo desde as afetuosas e performáticas pesquisas de campo até as escolhas para a diagramação e a sua posterior distribuição, bem como alguns aspectos e histórias do Itacorubi, o bairro escolhido da cidade de Florianópolis. PALAVRAS-CHAVE Jornal; Bairro; Local; Tática; Circulação. ABSTRACT Neighborhood newspapers take advantage of the format of conventional newspapers to convey information about their local contexts. This procedure is akin to the notion of tactical media, practice which consists of the use of preexisting media structures to propagate ideas and information in public spaces. This paper focuses on the development of a newspaper centered around a neighborhood as an artistic proposition of urban intervention: the tactics for creating content from the affective and performative field research to the choices in typesetting and its subsequent distribution, as well as some aspects of and stories about Itacorubi, the neighborhood chosen as a focus for this work, in Florianópolis. KEYWORDS Newspaper; Neighborhood; Local; Tactic; Circulation.

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JORNAL DO ITACORUBI: JORNAL DE BAIRRO COMO TÁTICA PARA PROPOSIÇÃO ARTÍSTICA DE INTERVENÇÃO URBANA

JORNAL DO ITACORUBI: LOCAL NEWSPAPER AS A TACTIC FOR ARTISTIC PROPOSITION OF URBAN INTERVENTION

João Felipe Reginatto Montemezzo / UDESC Juliano Menegaes Ventura / UDESC Nara Beatriz Milioli Tutida / UDESC

RESUMO Jornais de bairro se aproveitam do formato de jornais convencionais para veicular informações referentes aos seus contextos locais. Esse modo de agir se aproxima da noção de mídia tática, prática que consiste no uso de estruturas midiáticas preexistentes para circulação de ideias e informações em espaços públicos. Este texto trata do desenvolvimento de um jornal dedicado a um bairro como proposição artística de intervenção urbana: são abordadas as táticas para a elaboração do conteúdo – desde as afetuosas e performáticas pesquisas de campo até as escolhas para a diagramação – e a sua posterior distribuição, bem como alguns aspectos e histórias do Itacorubi, o bairro escolhido da cidade de Florianópolis. PALAVRAS-CHAVE Jornal; Bairro; Local; Tática; Circulação.

ABSTRACT Neighborhood newspapers take advantage of the format of conventional newspapers to convey information about their local contexts. This procedure is akin to the notion of tactical media, practice which consists of the use of preexisting media structures to propagate ideas and information in public spaces. This paper focuses on the development of a newspaper centered around a neighborhood as an artistic proposition of urban intervention: the tactics for creating content – from the affective and performative field research to the choices in typesetting – and its subsequent distribution, as well as some aspects of and stories about Itacorubi, the neighborhood chosen as a focus for this work, in Florianópolis. KEYWORDS Newspaper; Neighborhood; Local; Tactic; Circulation.

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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O Jornal do Itacorubi utiliza mecanismos peculiares aos jornais de bairro, mídia

comum na cidade onde moramos1, Florianópolis. Essa mídia nos atraiu porque suas

dinâmicas de circulação na cidade aproximam-se da ideia de mídia tática, uma

prática por nós pesquisada que requer para a sua compreensão um entendimento

da tática como diferente da noção de estratégia. Enquanto a última se refere a um

modo de agir dominante, com planejamento de longo prazo e objetivos específicos,

a tática é uma contra-resposta, uma resistência, um modo de agir esquivo, possível

a partir das brechas encontradas na estratégia de dominação, como define Michel

de Certeau em "A invenção do cotidiano" (1994).

Articulando esse caráter tático ao trabalho com mídias, a mídia tática consiste no

uso de estruturas midiáticas preexistentes com propósito diverso daquele que lhes é

usualmente estipulado. O uso tático das mídias é capaz de subverter os usos

convencionais para angariar objetivos contrários aos hegemônicos. Ao se valerem

do formato dos jornais tradicionais, os jornais de bairro adaptam a estrutura e os

elementos desse tipo de publicação aos assuntos e fatos de seus contextos locais e

também se inserem no cotidiano de mercadinhos e padarias, entre outros

comércios, ao serem distribuídos junto a diários da grande imprensa.

Com poucas páginas e geralmente distribuídos de forma gratuita, esses jornais

noticiam acontecimentos locais que talvez não fossem veiculados pela imprensa

convencional por variadas razões, tais como a divergência de interesses e a

possível irrelevância dos temas para quem não é da região. Jornais de bairro

propiciam publicidade mais direcionada ao público dos comerciantes locais, que

usualmente financiam essas publicações mediante o pagamento de anúncios. Trata-

se de uma publicidade tão direcionada que, em algumas ocasiões, tais jornais se

restringem a ser um conglomerado de anúncios dos produtos vendidos e dos

serviços prestados na região – com não mais que um e outro texto, um mapa e

talvez um calendário.

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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Fazer um jornal também nos instigou pela possibilidade que oferece de abranger

muitos temas e agrupar uma diversidade de conteúdos, como desenhos, fotografias

e textos. Um tipo de publicação com inúmeras possibilidades para proposições

artísticas, ainda que não anunciadas como arte devido à pretensão de acessar um

público diverso do usual consumidor de artes visuais. O jornal do bairro Itacorubi foi

elaborado também como um projeto de extensão universitária, tipo de produção

acadêmica encarregada de estender a produção da universidade para além dos

seus muros (físicos e simbólicos). Assim, a extensão explicita essa vontade de

expansão e se dedica a agenciar trocas com mais pessoas além dos acadêmicos.

O tempo dedicado ao desenvolvimento do Jornal do Itacorubi desloca a

temporalidade usual de um jornal, pois foi desenvolvido durante um longo período

que compreende os meses de abril a dezembro de 2018. Já que não somos

jornalistas, não agimos como a imprensa convencional, apressada em circular com

exclusividade os mais recentes acontecimentos e, então, misturamos fatos atuais

com dados históricos. As matérias do jornal foram sendo elaboradas conforme

nosso envolvimento com o bairro, um envolvimento mais demorado do que

comumente o jornalismo impõe, uma vez que estivemos propensos a encontros

imprevistos e abertos a afetuosidades diversas. Nós já possuíamos vínculos com

essa região da cidade porque lá estudamos, trabalhamos e outrora moramos. Por

outro lado, para compor o jornal, queríamos estabelecer outras relações, entrar em

contato com outras percepções do bairro além daquelas atreladas às nossas

vivências, conhecendo outros caminhos além dos traçados por nossas rotinas. Tal

envolvimento demorado com o bairro permitiu um trabalho minucioso, sem receio de

expor variadas perspectivas de problemas da cidade e atento a banalidades

extraordinárias que geralmente não geram pautas de grandes jornais.

O trabalho de meses poderia ter resultado em um livro ou ser disposto em outros

suportes e materialidades, afinal desenvolvemos um conteúdo robusto disposto em

32 páginas, mas com uma só edição – de um jornal leitores esperam mais edições,

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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espera-se uma periodicidade. Contudo, a decisão era de fazer um jornal visto seu

singular caráter tático de circulação na cidade e propagação de ideias. Queríamos

publicar um jornal dedicado a um bairro, intervindo, desse modo, no contexto local

ao causar algum burburinho – das pesquisas de campo à distribuição do impresso.

Outro aspecto envolvido dizia respeito à “discrição” de um jornal fechado junto a

outros impressos na prateleira de um mercadinho, o que faria com que a intervenção

pudesse, inclusive, permanecer silenciosa e despercebida, uma proposição. Um

jornal com uma só edição, mas intenção de suscitar desdobramentos e outras

continuidades.

Além das prévias relações que nos motivaram a escolher o Itacorubi, nossa atenção

se voltou a esse bairro porque, além de não ter praia – formação geológica tão

representativa de Florianópolis e atrativo explorado pelo turismo –, tampouco tinha

em circulação um jornal de bairro. Uma das razões mais determinantes, ademais, é

por ser o bairro onde se localiza a faculdade de Artes Visuais da Universidade do

Estado de Santa Catarina, instituição à qual estamos vinculados. Uma vez que é

finalidade da extensão universitária estimular a sua interação com a comunidade, o

projeto surgiu como possibilidade de pensar as relações dessa universidade com o

seu entorno mais próximo – considerando-se, sobretudo, ter sido a construção do

campus determinante no modo de ocupação e urbanização do Itacorubi.

O bairro, por ser um local de passagem que liga o Centro da cidade às porções

norte e leste da Ilha de Santa Catarina, é mais central do que o próprio Centro. Em

razão dessa centralidade estratégica, além da UDESC, diversas entidades e órgãos

públicos foram lá construídos a partir dos anos 1970. Os prédios públicos

favoreceram a acelerada construção de condomínios residenciais onde até então

havia pastos e lavouras. Essa construção, que foi desordenada, resultou não apenas

em ruas muito estreitas para o intenso tráfego de automóveis na região, mas deixou

restos vivos de passado, algumas casas e mesmo chácaras remanescentes de

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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outrora, discretas detrás dos novos edifícios e encontradas em nossas andanças

pelo bairro.

Figura 1. Fotografia aérea do Itacorubi impressa e adesivada na parede do mostruário de uma

construtora atuante no bairro. Fonte: Acervo do grupo Observatório-Móvel (2019).

A andança foi tão fundamental à pesquisa quanto a leitura da bibliografia sobre o

tema, afinal o bairro é extenso. Uma longa rodovia principal atravessa o Itacorubi e

possui, entre outros estabelecimentos, um hospital de tratamento ao câncer; três

universidades; uma sequência de prédios públicos – desde um órgão estadual de

extensão rural e pesquisa agropecuária (EPAGRI) até a maior empresa catarinense

de distribuição e comercialização de eletricidade (CELESC) –; o antigo lixão da

cidade e o maior cemitério do estado de Santa Catarina – curioso ressaltar que mais

de uma pessoa lá enterrada foi santificada pela crença popular e aos seus

respectivos túmulos recebem presentes como agradecimento por graças

alcançadas. Nessa rodovia passamos também pelo Jardim Botânico de

Florianópolis, inaugurado em setembro de 2016 após anos de promessas, atrasos e

bastante dinheiro investido, contudo, foi ao passar pelos muitos jardins das casas –

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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com latões velhos de tinta, pneus e garrafões plásticos usados como vasos – que

encontramos maior variedade de espécies de plantas.

Debaixo do sol ou de chuvas e pisando em lajota solta ou poça d'água (que se

acumulam no bairro de vias construídas no improviso), entrevistamos residentes,

passantes e trabalhadores a fim de compor um panorama do Itacorubi mediante

múltiplas perspectivas – de quem lá nasceu e de quem chegou agora. No caminho,

também visitamos algumas casas. Depois de bater palmas ao portão ou conversar

com os curiosos à janela, encontramos moradores antigos que nos narraram

aspectos de um Itacorubi que não existe mais e nos indicavam qual a próxima casa

a ser visitada.

Dona Zezé, nascida no bairro nos anos 1950, nos relatou sua infância, quando o rio

Itacorubi, que corta o manguezal – um dos maiores em perímetro urbano no Brasil –,

ainda era o local de serviço de lavadeiras. Foi lá também onde ela aprendeu a nadar

nos piqueniques em família à beira do rio. A partir da década de 1970 que grandes

áreas que pertenciam ao mangue foram aterradas e a poluição do rio intensificou-se,

o que, além de impossibilitar essas práticas, as torna inconcebíveis para quem

chegou agora à região e reconhece o rio Itacorubi pelo mau cheiro.

De Dona Didi, benzedeira, ouvimos histórias da época em que ela foi colega de

trabalho da Dona Olênia na extinta TELESC2 – um dos prédios públicos então

construídos –, que ofertou o primeiro emprego fora de casa a muitas mulheres do

bairro. Na cozinha de sua casa, Olênia gentilmente nos serviu bolo e chá caseiros e

confirmou a eficácia das benzeduras de Didi. Recebemos o convite para o chá da

tarde porque Dona Olênia viu no jornal uma possibilidade para contar sobre o modo

de comercialização das terras de seu pai, as quais ocupavam uma parcela

considerável do bairro e foram vendidas a preços ínfimos devido à urgência de

espaço para novas edificações. Seu pai, conhecido como Chico Flor, vendeu na

década de 1940 a área onde hoje fica o Centro de Ciências Agrárias da

Universidade Federal de Santa Catarina ao governo.

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De sua chácara reservada do barulho das buzinas dos automóveis que trafegam

pela rodovia que serve de ligação ao leste da ilha, Seu João nos contou memórias

do tempo em que andava a cavalo na Avenida Madre Benvenuta, agora ocupada por

carros e congestionamentos e de quando foi funcionário da UDESC, atuando como

um "faz-tudo", como ele mesmo se autodenominou. Além de "fazer tudo", ele fez,

inclusive, mais um pouco e até mesmo realizou atividades por iniciativa própria e,

àquela época a contragosto da gestão da universidade, presenteou o campus com o

plantio de diversas árvores que hoje fazem sombra, atraem insetos e pássaros e

oferecem frutos.

Quando Seu João decidiu plantar as mudas das árvores no terreno da UDESC, a

gestão criticou por considerá-las incoerentes com o estilo arquitetônico dos prédios

então recentemente construídos e empecilho ao projeto paisagístico que mais tarde

seria implantado. Cresceu a quantia de prédios – em estilos ecléticos – e cresceram

as árvores, que hoje contribuem para tornar o campus um ambiente agradável e

nutritivo, com frutas diversas à disposição de quem por ali transita. Aposentado, Seu

João segue com a produção e o plantio de mudas de árvores nativas e frutíferas

pelo bairro.

Gabriel Jorgio, um morador mais jovem, nos mostrou que, apesar do rio estar

poluído, no Itacorubi ainda tem água boa para se banhar. Apresentou-nos, no topo

do Morro do Quilombo – uma das áreas de ocupação mais antiga do bairro e com

maior vigilância policial –, uma cachoeira de águas límpidas e com muito verde ao

redor. Contudo, a cachoeira é pouco conhecida e não incluída em roteiros turísticos,

provavelmente pelo preconceito com a comunidade das redondezas.

A vigilância policial é grande devido ao comércio ilegal de substâncias ilícitas

praticado por pessoas de baixa renda nessa região, pois o Morro não apresenta

perigos aparentes – parece mesmo ser mais tranquilo do que a "baixada" com suas

ruas ruidosas. É costume na vizinhança ouvir que o Morro do Quilombo começa a

ficar perigoso só depois do pé de jaca, mais de uma pessoa nos alertou disso. Essa

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noção de perigo é proveniente de opinião preconceituosa com pessoas que, no

decorrer do século passado, vieram de outros estados para morar no morro: acima

dessa árvore imensa e frondosa na subida da Rua da Represa é que ficam os

terrenos ocupados por aqueles que vieram de fora e formaram, assim, uma

comunidade de novos moradores que se somou à vizinhança já estabelecida (abaixo

da árvore). O pé de jaca é, pois, a marca de uma divisão social, é resquício da

desconfiança sofrida por quem apenas procurava um lugar para morar e encontrou-o

no Quilombo. Sobre o presumível quilombo, não encontramos registros oficiais de

sua existência, somente relatos. Um deles, compilado pelo historiador André Ogawa

em sua pesquisa sobre o Itacorubi (2010), apresenta o Januário, um senhor que fora

escravizado e morava debaixo da jaqueira onde se sentava para contar histórias aos

passantes.

Figura 2. “Jacas perigosas”. Ilustração jocosa do suposto perigo demarcado pelo pé de jaca na Rua

da Represa, no Morro do Quilombo. Fonte: Acervo do grupo Observatório-Móvel (2018).

Nas andanças pelas ruas, vielas e servidões do Itacorubi, no acesso ao Morro do

Quilombo pelo atalho no mato3 – na aventura (para alguns moradores diária) de

atravessar pela ponte improvisada de pedras o rio que lá no alto começa como

cachoeira–, nos perguntamos como seria possível transpor a complexidade de um

bairro ao espaço das páginas de um jornal. Se teríamos, por exemplo, um texto-rio

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sinuoso ou um texto-rodovia a abrir caminho entre os outros textos; espaços vazios

a representar os terrenos abandonados; ou se cada cantinho e cada margem de

página seriam aproveitados como o são algumas casas e quintais, subdivididos para

a construção de quitinetes. O alinhamento dos textos e das fotografias na tentativa

de emular a tortuosidade das ruas certamente resultaria em manchas gráficas

incomuns, o que provavelmente restringiria o público a quem está habituado a esse

tipo de surpresa.

A ideia era que o jornal fosse amplamente reconhecido e consumido como jornal,

porquanto tencionávamos a inserção no cotidiano de circulação de jornais pelo

comércio local. Assim, para o Jornal do Itacorubi foi escolhido o formato tabloide (de

tamanho 28x38cm), padrão desse tipo de publicação e, para a impressão em papel-

jornal, foi contratada uma gráfica especializada nesse trabalho. Com a diagramação

não seria diferente – mesmo que multicolorida e disponível a algumas

experimentações gráficas –, decidimos formatá-lo para soar familiar a muitos

leitores.

A fim de ser reconhecível como jornal, as narrativas coletadas e as nossas vivências

no bairro foram sendo condensadas e elaboradas conforme as possibilidades de

abordagem que os elementos que compõem um jornal apresentam. Alguns artigos

curtos e outros mais longos, crônicas, fotografias, desenhos, caricaturas etc. Assim,

o bolo e o chá caseiros servidos por dona Olênia tiveram suas receitas publicadas

junto à característica seção de variedades, a qual também trazia uma receita de

artesanato ensinada por Vera Lúcia, outra moradora que nos recebeu em sua casa.

Para alguns casos escolhemos abordagem diferente da usual dos jornais: em vez de

propagandear os comerciantes locais – como é típico em jornais de bairro –,

incluímos alguns comércios por suas particularidades, em implícito contraponto às

padronizadas redes varejistas, que se multiplicam pela cidade. O "Guia do Comércio

Local" não serve exatamente como propaganda porque expõe informações que

talvez não fossem expressas num anúncio, tal como a poeira encontrada sobre as

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mercadorias de um bazar. Ao tratar dos estabelecimentos comerciais do bairro, o

guia privilegia o que pode ser experienciado nesses lugares em detrimento da típica

abordagem das trocas mercantis – embora alguns itens à venda sejam comentados.

A Padaria Santa Isabel, por exemplo, participou do guia por priorizar o almoço dos

funcionários: fecha ao meio-dia e reabre à tarde, hábito incomum em grandes

centros. Do Armazém Santos, cuja decoração nos encantou e foi citada, publicamos

a vontade dos proprietários de fechar o estabelecimento e transformá-lo em

quitinetes para aluguel. Comentamos ainda o comércio fraudulento e o ilegal – este,

de drogas, praticado nas "biqueiras" e, sobre aquele, as tentativas de venda de um

terreno baldio sem o consentimento do proprietário.

Uma enquete foi realizada pelo bairro para saber quais conteúdos e assuntos mais

agradariam a população de possíveis leitores, porém não tínhamos com isso a

intenção de determinar estritamente as reportagens do Jornal do Itacorubi. A

enquete resultou, na verdade, ela mesma uma reportagem para apresentar os

aspectos do bairro que os moradores e frequentadores consideram pertinentes. A

ação performática de interrogar os transeuntes sobre o que gostariam de ver

publicado em jornal local – e lhes dispor como resposta opções como "crítica

gastronômica das lanchonetes do bairro", opção curiosa porque a maioria dessas

lanchonetes dificilmente faria parte de críticas gastronômicas renomadas –, foi um

pretexto para conversar com os frequentadores do bairro sobre variadas questões,

tais como mobilidade urbana e opções de lugares públicos de lazer.

O conteúdo do Jornal do Itacorubi foi concebido com a intenção de suscitar o

interesse da população de um bairro todo – nesse caso, composto por um público

tão variado e de distintos perfis socioeconômicos e posicionamentos políticos, que

compartilham, ao que sabemos, apenas o fato de ocuparem a mesma área urbana.

Desse modo, a reportagem sobre a especulação imobiliária, da qual o Itacorubi tem

sido alvo, apareceu junto de dicas de jardinagem. Textos que tratam das

discriminações social e racial foram publicados entre páginas com enquetes

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divertidas sobre a presença da fofoca no bairro. A importância da fauna do

desvalorizado mangue, foi exposta com desenhos para colorir onde figuravam

animais e como referência para resolução de cruzadinhas.

Figura 3. Jornal do Itacorubi com Beatriz Jorgio, em sua loja Bia Modas, um dos pontos de distribuição dos exemplares impressos. Fonte: Acervo do grupo Observatório-móvel (2019).

Além da abordagem do conteúdo, a distribuição dos 2.500 exemplares impressos

também demandou um planejamento. Seguimos a tática comum dos jornais de

bairro de inserção no comércio local: os próprios estabelecimentos comerciais do

bairro, os mesmos que muitas vezes são anunciantes, são utilizados como pontos

de distribuição dos exemplares. Assim, pode-se dizer que realizam um uso tático

desses locais, uma vez que, de forma astuciosa, aproveitam o fluxo de

consumidores que cotidianamente frequentam esses comércios.

Disponibilizado em um salão de beleza ou em uma clínica médica, o jornal pode ser

lido por quem aguarda atendimento, juntos aos costumeiros impressos oferecidos

em salas de espera. Já em uma oficina mecânica ou em um bazar, o cliente que foi

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até lá por um motivo específico (aquisição paga de produtos ou serviços) pode se

deparar com o jornal e acabar levando (gratuitamente) um exemplar para casa – o

querido brinde que ameniza o valor pago pelas mercadorias e todos querem levar

para casa. Em uma padaria ou em um mercadinho, o jornal de bairro pode ser

colocado junto aos diários da imprensa convencional e, assim, aproveitar o hábito da

clientela de consumir essas publicações. Ou seja, os jornais de bairro pegam carona

em fluxos de consumo já existentes.

Pegar carona é entendido como um meio discreto de se aproveitar de estruturas

preexistentes sem gerar prejuízos a quem detém a sua propriedade. O conceito de

carona é definido por Stephen Wright como “beneficiar-se como usuário sem causar

danos a ninguém” (WRIGHT, 2016, p.43) e possui uma lógica diferente do

parasitismo porque mais próxima do epifitismo:

[...] enquanto os parasitas são visitantes indesejados que se empanturram a ponto de comprometer a alimentação do hospedeiro, e, assim, em última instância ameaçam também seu próprio bem-estar, o epífito vive em uma forma de simbiose negociada com seu hospedeiro (WRIGHT, 2016, p.43).

Wright exemplifica a carona com ações como o reabastecimento de uma garrafa de

água em um bebedouro público, a leitura sob a luz do vizinho e o uso de rede de

internet sem o conhecimento ou consentimento de quem paga por esse serviço.

Wright ainda comenta ser a carona muito utilizada por práticas artísticas que operam

fora dos “domínios financiados pela arte”. Talvez isso aconteça porque, ao escolher

se dirigir a contextos e públicos que não o convencionalmente entendido como

artístico, tais práticas se veem desguarnecidas das usuais ferramentas e dinâmicas

de circulação da produção artística e precisam buscar outras formas de propagação.

Muitas vezes, fazem isso pegando carona.

A carona coloca-se, assim, como tática de inserção e circulação de uma proposição

artística que se dirige, então, a um “número grande e indefinido de pessoas",

conforme definiu o artista brasileiro Cildo Meireles ao descrever a motivação para

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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suas “Inserções em circuitos ideológicos” de 1970. Nesse trabalho interventivo, ele

inseria mensagens que pegavam carona na circulação das populares garrafas

retornáveis de Coca-Cola (projeto Coca-Cola, 1970). O trabalho, além de veicular

frases como “Yankees go home!”, trazia também instruções para replicar a proposta:

“Gravar nas garrafas de refrigerantes (envases retornáveis) informações e opiniões

críticas, e devolvê-las à circulação".

Essas mensagens eram inseridas nas garrafas com tinta branca vitrificada por meio

da calcomania4, sendo visíveis apenas quando o casco está cheio, através do

contraste com o fundo escuro do líquido. Assim, quando a garrafa retornável é

devolvida, a mensagem inscrita passa despercebida para os responsáveis pelo

recolhimento e redistribuição, as garrafas com mensagens inscritas voltam

incólumes à fábrica e posteriormente ao comércio, já com o líquido escuro e o texto

visível aos consumidores. Essa intervenção de Cildo Meireles que visava um público

amplo e desconhecido tinha a capacidade de atingir, portanto, simplesmente

qualquer um que consumisse Coca-Cola.

Cildo afirma que tais trabalhos nasceram da necessidade de criar um sistema de

circulação e de troca de informações que se opusesse ao sistema da imprensa, da

rádio, da televisão. Ou seja, trabalhar com uma mídia de forma diversa do

funcionamento usual das mídias comerciais. Desse modo, as noções de “circuito” e

de “inserção” são definidas pelo artista:

1) existem na sociedade determinados mecanismos de circulação (circuitos); 2) esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produto, mas ao mesmo tempo são passíveis de receber inserções em sua circulação; 3) e isso ocorre sempre que alguém o deflagre (MEIRELES, 2010, p.142).

Percebe-se aí as possibilidades de efetuar as inserções, pegando carona em

mecanismos de circulação e em circuitos estabelecidos. A deflagração como

condição para a ocorrência da inserção no circuito explicita o caráter propositivo

dessa ação, ou seja, é um convite silencioso, passível de ser "recusado" e então

ficar sem público: enquanto despercebida, mantém-se o aspecto tradicional do

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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produto porque a inserção fica invisível e à espera do próximo possível consumidor

a percebê-la.

No caso do Jornal do Itacorubi, como nos jornais de bairro que serviram de

referência, a inserção se deu pelo típico modo de distribuição dessas publicações. E,

visando um público “grande e indefinido”, seguimos não só a tática dos jornais de

bairro de inserção no comércio local, mas para o lançamento do jornal, escolhemos

a entrada do maior supermercado do bairro, que atende público variado. Também

entregamos exemplares pelas ruas: em mãos; em caixas de correio; nos para-brisas

de carros; nos bancos das praças e dos ônibus.

Há quem ficou contente com a chegada do jornal ao bairro e espera uma segunda

edição, quem se orgulhou em se ver publicado, assim como há quem não gostou.

Uma comerciante, habituada ao jornal de bairro como espaço de propaganda do

comércio, desaprovou as curiosidades citadas sobre o seu estabelecimento.

Certamente há quem recebeu o jornal e não leu. Quem o usou para fazer fogo,

embalar peixe e limpar vidros. Soubemos que, num dos pontos de distribuição,

pegaram jornais para xixi e cocô de animais domésticos.

Enfim, embora possa ser guardado, o jornal é "obra descartável" (MANUEL, 2018,

p.22), segundo definiu Antonio Manuel, artista português radicado no Brasil, acerca

de suas produções a partir de jornais. Ele ainda concluiu ser o jornal mais eficaz do

que o próprio Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para a veiculação de uma

proposição artística. Em razão da censura de sua mostra no MAM, Antonio Manuel

desenvolveu em 1973 a “Exposição de 0 a 24 horas nas bancas de jornais”,

desdobrando aquela mostra para um encarte de jornal de grande circulação e,

portanto, disseminando "um ruído de informação de forma relâmpago" (MANUEL,

2018, p.22).

Com as táticas de elaboração e dispersão usadas no Jornal do Itacorubi,

percebemos que o jornal de bairro como proposição artística viabiliza o contato com

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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um público mais amplo que os habituais consumidores de artes visuais, algo

próximo ao que concluiu Antonio Manuel. Vinculados à universidade, como grupo de

pesquisa atento a questões urbanas e usos dos espaços públicos, encontramos no

jornal de bairro também um meio para veicular nossas pesquisas a um público

diverso do consumidor de produções acadêmicas. Com o jornal de bairro pudemos

alcançar quem está diretamente envolvido nas questões pesquisadas sobre

determinada região, promovendo reflexões sobre aspectos históricos, sociológicos,

estéticos e geográficos da cidade.

Figura 4. Jornal do Itacorubi junto a outros jornais em um dos pontos de distribuição, o Mercado da

Família. Fonte: Acervo do grupo Observatório-móvel (2018).

Notas

1Os autores do texto, além de residirem em Florianópolis, integram o grupo de pesquisa Observatório-Móvel,

vinculado ao Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC. A atuação do grupo é voltada a estudos e propostas de intervenções urbanas e usos dos espaços públicos. Desde a sua criação, em 2015, o Observatório-Móvel realiza diversos projetos, especialmente na cidade de Florianópolis; participa de exposições e mostras de artes visuais e tem publicado revistas, livros, jornais e outros impressos. Mais informações disponíveis no website do grupo: < www.observatoriomovel.com>. 2 Telecomunicações de Santa Catarina, empresa estatal operadora de telefonia no estado, fundada em 1974 e privatizada em 1998. 3 Com início na Rodovia Amaro Antonio Vieira, o "mato" refere-se à área em Processo de Recuperação Ambiental cujo trânsito de pedestres é na verdade proibido – em respeito às leis federal e municipal e à resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Apesar do processo verdejante em curso, muito lixo se encontra no local: embalagens de bebidas, alimentos e preservativos além de móveis velhos e outros entulhos.

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MONTEMEZZO, João Felipe Reginatto; VENTURA, Juliano Menegaes; TUTIDA, Nara Beatriz Milioli. Jornal do Itacorubi: jornal de bairro como tática para proposição artística de intervenção urbana, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1822-1837.

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Nessa área instalamos a faixa "Breve aqui praça pública". Tentativa de vincular os usos práticos e lúdicos desse espaço aos necessários cuidados ambientais. Mostra-se inevitável a presença humana nessa área de um bairro tão populoso e povoado, por isso são urgentes táticas de redução dos danos causados e promoção de um convívio sustentável e consciente com a terra, o rio e as plantas. 4 Processo de transferência de desenhos para superfícies rígidas como vidro, mármore e porcelana.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

MANUEL, Antonio. Antonio Manuel / Jean-Claude Bernardet. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia (Org.). Cultura brasileira hoje: diálogos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. v.3. pp.10-61.

MEIRELES, Cildo. Inserções em circuitos ideológicos. In: MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. Cidade do México: Alias, 2010. pp.140-149.

OGAWA, André Eitti. Contemplando Itacorubis: memórias da transformação de um lugarejo na segunda metade do século XX. 2010. 70 p. TCC (Graduação) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Centro de Ciências Humanas e da Educação, Curso de História, Florianópolis, 2010.

WRIGHT, Stephen. Para um léxico dos usos. Tradução de Julia Ruiz Do Giovanni. São Paulo: Aurora, 2016.

João Felipe Reginatto Montemezzo

Artista visual e pesquisador do grupo Observatório-móvel (UDESC/CNPq). Bacharel em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2018). Pesquisa proposições artísticas direcionadas para espaços públicos. Contato: [email protected].

Juliano Menegaes Ventura

Artista visual, atua com editoração, produção gráfica e processos de inserção/intervenção no espaço público. É graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (2016). Vive em um subúrbio praieiro da cidade de Florianópolis, onde pesquisa a comunicação visual (sub)urbana e mídias publicitárias e informativas utilizadas localmente. Contato: [email protected]. Nara Beatriz Milioli Tutida

Doutora em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo (2009). É professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Artes Visuais no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordena o Grupo de Pesquisa Observatório-móvel (UDESC/CNPq). Pesquisa os usos do espaço público como lugar de convívio e troca de experiências e as possibilidades de ação e intervenção na cidade por meio da prática artística. Contato: [email protected].