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COQUE Violência Jovens Educação Mulheres Reciclagem Música Cotidiano Meio Ambiente História Permanência

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Elaborado por alunos do curso de Jornalismo da UFPE, ganhou, na categoria Jornalismo Universitário, a 4ª edição do Prêmio Caixa de Jornalismo Social.

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COQUE

ViolênciaJovens

EducaçãoMulheres

ReciclagemMúsica

CotidianoMeio Ambiente

HistóriaPermanência

Todo jornalista é comprometido. O que os distingue uns dos outros é aquilo com o que, orientados por sua ideologia e ética, compro-metem-se. Nesse jornal, nosso compromisso com a comunidade Coque é bem claro, mas ele não obliterou nossa visão. Despidos, porém, de preconceitos, conseguimos enxergar o Coque na sua complexidade: constatamos seus prob-lemas, mas também suas potencialidades.

Por mais de dois meses, freqüentamos o bairro e convivemos de perto com jovens ligados ao Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francis-co de Assis (Neimfa), ONG que atua há mais de 15 anos na comunidade, parceira na elaboração desse jornal. Confirmamos o pouco que sabía-mos previamente sobre o bairro: sim, o Coque é um bairro violento. Constatamos o que muitos não se dão nem ao trabalho de pensar: o Coque não é tão somente um bairro violento. É também um lugar com um promissor movimento musi-cal, com experiências sociais singulares, com um grande histórico de resistência política.

Para elaborar esse jornal, discutimos com seus moradores sobre a imagem do Coque dentro e

fora do bairro. Apoiados nessas discussões e nas nossas apurações, propomo-nos a fazer uma apresentação geral do bairro a partir de grandes temas que revelam as suas múltiplas faces. Para entender melhor o Coque, é preciso buscar as causas e conseqüências perversas da violência, que tem implicações em toda a vida da comunidade. É fundamental saber sobre os jovens e os filhos precoces das suas mães-adolescentes.

É importante lembrar como se deu a ocupação da área e acompanhar a luta dos moradores para garantir a posse. É preciso observar como lidam com a falta de infra-estrutura, com a e-ducação precária, e com o manguezal a partir do qual o bairro cresceu. É uma questão de justiça apontar o esforço daqueles que, com a música, com projetos de formação comple-mentar, reciclagem e geração de renda, tentam mudar o bairro. Uma visita ao Coque pode des-fazer possíveis equívocos.—

Produzido como parte das atividades de uma disciplina do curso de jornalismo da UFPE, a proposta do jornal-laboratório é preparar os estudantes para planejar e produzir uma publicação, cuja proposta editorial é definida pela turma. O tema desta edição surgiu de um pedido de jovens do Coque: queriam ajuda para fazer um jornal comunitário. O pedido trans-formou-se em uma proposta que modificou a própria dinâmica de produção do jornal.

Nesta edição, os alunos trabalharam em gru-pos compostos também por moradores do Coque. Em cada grupo, havia três funções e a responsabilidade de desenvolverem juntos uma pauta (ou subtema): o repórter redigiria a reportagem principal; ao que chamamos de repórter-orientador, cabia escrever um artigo e, ao mesmo tempo, ajudar o colaborador da comunidade a produzir seu próprio texto so-bre o assunto. As pautas de cada grupo foram decididas a partir de discussões com os jovens no Neimfa, ONG que serviu de base nas visitas ao Coque. Decididos os enfoques, o grupo foi a campo e, nessa etapa, os moradores da comu-nidade funcionaram como fontes e como guias.

Levantadas as informações, a segunda etapa foi a produção dos textos dos colaboradores no Laboratório de Informática da UFPE. Agora, os estudantes de jornalismo assumiram o papel de guias. Trabalhando sobre as idéias e esboços produzidos pelos jovens do Coque, ajudaram na adoção de um estilo, na construção do per-curso textual, na correção gramatical. Com os primeiros textos em mãos, começou a dinâmica de correção e de leituras entre os grupos. Sur-giram então muitas sugestões, muitas trocas,

remanejamentos de informações e funções; três ou quatro versões foram elaboradas até a última seguir para a publicação. Em todas as etapas, incluindo a edição, os jovens do Coque foram ouvidos e opinaram sempre com muita propriedade.

O resultado é um jornal que funcionou, de fato, como um grande laboratório, a partir do qual surgiram importantes discussões sobre a prática jornalística, sobre os limites de atu-ação do jornalista e sobre o papel social dos que optam por essa profissão. O convívio no Coque também se transformou em um grande “laboratório social”. Para os jovens da UFPE, entrar numa comunidade pobre e violenta foi – na visão de um colaborador perspicaz do Neimfa – “pedagógico”. E foi mesmo, especial-mente em tempos nos quais a classe média se isola intramuros e o jornalismo se faz cada vez mais nos “gabinetes”. Para os jovens do Coque, foi também uma experiência rica: puderam aprender um pouco sobre o jornalismo, mas aprenderam bem mais sobre o seu potencial para construir suas próprias representações sociais. Para os envolvidos, o jornal foi, antes, uma prática rara de convívio respeitoso com as diferenças.—

COQUE Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. 6º. Período, 2005.2

Recife, julho/agosto de 2006.

OrientaçãoYvana Fechine

Comissão editorial Ana Carolina SennaCarolina VanderleiJoão Vale NetoLuísa AbreuMônica AlcântaraYvana Fechine

Articulação interinstitucionalAna Carolina Senna(UFPE)João Vale Neto (UFPE)Gustavo Neves da Silva (Neimfa)José Ferreira (Neimfa)Ridivaldo Procópio da Silva (Neimfa).

PesquisaDiego GouveiaLucas LimaLuísa AbreuMariana D’EmeryPatrìcia Alves

EdiçãoLucas LimaMariana D’EmeryPolyana TarginoTiago Maciel

FotografiasRafael Alves da Silva

Projeto gráficoClériston AndradeGuilherme Luigi

IlustraçãoGalo (Coletivo Êxito d’Rua)

AgradecimentosAna Andrade, Alexandre Freitas, Ari Cruz, Aurino Lima, Di-mas Henrique, Eduardo Duarte, Galo, Guilherme Luigi, Igor Cabral, Luis Henrique Leal, Nerivanha Bezerra, Virginia Cavalcanti, Wilma Morais. E, em especial, aos moradores do Coque e aos voluntários do Neimfa.

ParceirosNúcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (Neimfa) Projeto Imaginário Pernambucano - UFPE

Reportagem/Produção de textosAlissa Farias, Ana Carolina Senna, Carolina Vanderlei, Cecília Almeida, Conceição Gama, David Diniz, Endie Eloah, Guilherme Gatis, João Vale Neto, José Juvino Junior, Julia Veras, Juliana Paes, Julya Vasconcelos, Luisa Abreu e Lima, Maria Carolina Santos, Mariane Menezes, Mônica Alcântara, Rodrigo Ferreira, Samara Fernandes, Wagner Sarmento.

Colaboradores da comunidadeAna Claudia Morais, Carlos Alberto da Silva, Gustavo Neves da Silva, Joseane Oliveira, José Ferreira, Júnior José da Silva, Patrícia Maria da Silva, Rafael da Silva Freitas, Ridi-valdo Procópio da Silva, Sérgio Souza.

Editorial

Um novo olhar sobre o Coque

Comissão editorial

Projeto

O Coque como laboratório

Yvana Fechine

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Dia 23 de fevereiro. Os moradores da Arei-nha, na comunidade do Coque, são surpreen-didos com tiros disparados sem cerimônia em plena tarde de sol a pino. Rapidamente, todas as janelas e portas se fecham. Quinze minutos depois, enquanto crianças correm para ver o que aconteceu, a rotina dos mora-dores volta ao normal. Nem sinal da polícia que, desde que dois policiais foram mortos em 2005, realiza na área um policiamento tão ostensivo quanto ineficiente. Por mila-gre ou sorte, o alvo dos tiros, João Paulo*, conseguiu sair ileso dos disparos efetuados por Cristiano*, membro de uma gangue rival que luta pelo controle do tráfico de drogas na região. Hoje na casa dos 20 anos, João e Cristiano eram amigos na infância e freqüen-tavam a mesma escola.

A dinâmica do crime que leva dois amigos a tentarem se matar é uma das facetas mais cruéis de uma comunidade abandonada pela sociedade e esquecida pelo Estado. A mesma violência que quase pôs fim à vida dos jovens, no entanto, é a única fonte de renda para mui-tas famílias da localidade, que sobrevivem graças à ajuda que recebem de parentes en-volvidos no tráfico ou em assaltos. Embora dependam desse dinheiro, as famílias de adolescentes no crime quase nunca aprovam

essa iniciativa, mas são obrigadas a aceitar. No Coque, o desemprego beira os 80% e as condições de vida são desumanas.

Mesmo sofrendo com a miséria, o desemprego e a falta de saneamento básico e saúde, é a violência que se destaca quando a mídia fala sobre o Coque. Maior favela urbana do centro do Recife, a comunidade fica localizada en-tre duas ilhas de prosperidade. De um lado, um dos melhores pólos médicos do Brasil. Do outro, a Zona Sul classe média. Mesmo assim, é incomum que moradores dos dois lados en-trem na área. O que acontece na comunidade é visto pelo resto da cidade através da mídia, que também só vai até lá para cobrir crimes e homicídios.

Ao longo das últimas quatro décadas a loca-lidade tem freqüentado as páginas policiais com afinco, seja pelo banditismo social da década de 1970 ou pelo uso de crianças no crime. Em 2005, das 93 matérias publicadas sobre o Coque no Jornal do Commercio, o de maior circulação em Pernambuco, 78 destaca-vam a violência. Até mesmo os moradores do local, ao falar como percebem a violência na área, citam os meios de comunicação. “Não podemos ficar na rua depois das 22h, sabe-mos que aqui é um lugar violento. Escutamos

no rádio e vemos na televisão os crimes que ocorrem na comunidade. A minha esquina é como uma televisão, quase todo dia eu vejo assaltos”, conta a jovem Débora da Silva, de 15 anos.

Para o professor Eduardo Duarte, do Depar-tamento de Comunicação da UFPE, a violência tem muito espaço na mídia porque desperta a curiosidade das pessoas. “A imprensa cos-tuma se utilizar da ‘cultura da pinça’, ou seja, retira o fato do contexto, colocando-o em uma situação em que tenha mais apelo. A mí-dia busca o que provoca escândalo, o espe-táculo. Por exemplo, quando há alagamento em São Paulo, os jornais dizem que a cidade está debaixo d’água quando, na verdade, só alguns trechos estão alagados. Assim acon-tece com a violência no Coque, vista de ma-neira generalizada”, explica.

O repórter Wagner de Oliveira, que hoje tra-balha no Diario de Pernambuco, já perdeu a conta de quantas vezes foi ao Coque fazer matérias de polícia. Embora a destaque para a violência seja evidente, o repórter afirma que não há política editorial para destacar os crimes. “O destaque é pelo tipo de crime. Por exemplo, se houver uma morte de um bandido no Coque e de um turista em outro lugar, a pri-

oridade no jornal é pela morte do turista”, diz. Mesmo sem intenção, o fetiche da mídia pela violência no Coque ajudou a transformar a localidade em sinônimo de violência. Por tabela, esse estigma atinge os moradores, prejudicando-os até mesmo para conseguir emprego. O auxiliar de serviços gerais Carlos Alberto da Silva, de 22 anos, sofreu na pele a discriminação. “Já estava tudo quase certo para eu conseguir um emprego quando eles pediram meu currículo, onde estava escrito que eu moro no Coque. Eles nunca mais me ligaram. Amigos meus haviam dito que havia esse preconceito, mas eu não havia acredi-tado”, conta.

Com o escanteamento do Estado e a falta de preparo da mídia, o bairro se transformou em um lugar onde violência e pobreza são associados sem distinção. “No Coque, é como se todos fôssemos ex-presidiários sem nun-ca termos cometido crime algum”, sentencia um líder comunitário do bairro, entrevistado na tese de doutorado do pedagogo Alexandre de Freitas.—

Por Maria Carolina Santos

COQUE: um sinônimo de violência?

violência

* Os nomes usados são meramente ilustrativos.

O galeguinho que fez a fama do CoquePor Maria Carolina Santos

“Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha. Não tinha medo da Perna Cabeluda...”, cantava Chico Science, em Da Lama ao Caos, sobre o bandido que deu fama ao Coque em meados da década de 1970. A ocupação e a violência na área surgiram bem antes, na passagem do século XIX para o século XX, personificada na figura do capanga. Na época, para garantir a segurança da exportação agrária, os donos de engenho contratavam homens armados para realizar o transporte da carga do Interior até o Porto do Recife. A quantidade de bares e prostíbulos presentes no entorno do Rio Capibaribe logo passaram a seduzir esses homens, que, com a derro-cada do setor açucareiro, foram se fixando na área que vai do bairro de São José até o Coque.

A localidade ganhou fama como ponto de de-sordem e os moradores ficaram conhecidos como “cocudos”, ou seja, gente de cabeça dura e pavio curto. No final da década 1960, o Coque entrou na mídia como um bairro vio-lento, carregando a imagem negativa de que os moradores protegiam os criminosos. O principal responsável por esta má reputação foi o jovem José Everaldo Belo da Silva, nas-cido na Zona da Mata Sul, que começou a praticar furtos aos 16 anos na região comer-cial e portuária do Recife.

Não demorou para que o adolescente, con-siderado bonito e esperto, alcançasse fama e fosse procurado pela polícia de quatro esta-dos do Nordeste. Durante quatro anos ele fi-cou escondido no Coque, ganhando o apelido que o transformou em personagem lendário da história policial pernambucana. Ainda hoje os moradores mais antigos lembram o dia em que o Galeguinho do Coque assaltou um caminhão de leite em pó e distribuiu na comunidade.

Em 1971, ele foi preso e, na cadeia, se transformou em um homem religioso. Era o provável fim de uma vida de crimes, mas não o fim da violência no Coque. Com a prisão do Galeguinho, o grupo que ele liderava pas-sou a lutar pelo controle da área, dividindo o local em várias regiões de influência, o que permanece até hoje. Ao deixar a cadeia, José Everaldo abriu um pequeno negócio no Alto do Jordão e se casou. Anos depois foi encon-trado morto no município de Moreno, com uma bíblia ao lado. Ao invés das palavras sa-gradas, no entanto, o livro era oco e dentro estava escondido um revólver calibre 38.—

As maiores vítimas da violência no CoquePor David Diniz

A pior violência do Coque não é a que tran-scende os limites da comunidade, e sim a praticada contra seus próprios moradores. Na área, a vida vale muito pouco. Grupos de assaltantes e narcotraficantes dividiram o local em “territórios” nos quais cada gangue pratica atividades criminosas livremente com a condescendência da polícia.

Donas de grande poder dentro de suas áreas de influência, as gangues cerceiam a liber-dade dos moradores. Determinam horários em que não se pode andar na rua e os obrigam a conviver com o risco de balas perdidas, ori-undas dos constantes tiroteios, em virtude de suas disputas.

Assaltos e assassinatos acontecem frequen-temente, tendo como vítimas os próprios moradores do Coque. Estes, porém, parecem não preocupar muito os PMs lotados no bairro. A polícia, que tem por dever propor-cionar segurança também aos que moram no bairro, além de não fazê-lo, é denunciada por agredir cidadãos de bem em suas aborda-gens. Os moradores, acuados pelas gangues e pelo descaso do poder público, não têm se-quer como denunciar.

Em uma visita que fiz ao Coque, fui surpreen-dido, com estouros que vinham de ruas vizin-has. Pensei que se tratava de fogos de artifí-cio, mas eram tiros. O tiroteio entre grupos rivais que, naquela tarde, causou um visível constrangimento aos moradores do Coque que me apresentavam o bairro, revelou ap-enas uma realidade cruel com a qual eles são obrigados a lidar cotidianamente.

O medo que senti naquela tarde é um medo que eles sentiriam todas as tardes se a violência já não fosse, de algum modo, tão banalizada. Depois, soube que um dos en-volvidos no tiroteio, ao tomar conhecimento que naquela tarde os seus vizinhos estavam “com visita”, enviou um pedido de desculpas – imagino que pelo risco que nos impôs.

O pedido foi ainda mais revelador, pois parece ter confirmado que se a violência for dirigida contra “os de casa” e ficar “dentro de casa”, tudo bem. —

Exigimos o respeito da polícia!Por Gustavo das Neves Silva

Como morador do Coque, vejo com frequência as abordagens policiais na comunidade. Noto o estilo desrespeitoso e truculento dessas práticas. Sabemos que a questão da se-gurança, e o dever da policia de proporcioná-la, pode exigir algumas vezes o uso da força, mas, no caso da comunidade, moradores de bem e malfeitores vêm sendo tratados da mesma forma.

Posso dar testemunho disso, lembrando que, em plena hora do almoço, enquanto eu e meus amigos estávamos na Rua Imperial, indo para uma reunião de trabalho, fomos abordados por um policial, que ordenou grosseiramente que encostássemos em um muro. “Encoste e ponha a mão na cabeça”, disse ele. De forma grosseira, ele tomou a carteira de um dos meus amigos e começou a examiná-la. Quando o dono da carteira olhou para trás para ver o que estava sendo feito com ela, o policial falou em tom de chacota: “Tá olhando por quê? Aqui só tem dois reais!”.

Outro dia, quando retornava da escola, pre-senciei outra abordagem da polícia contrária aos Direitos Humanos. Vi um morador da comunidade sendo agredido com um tapa de um PM. Nesse momento, uma adolescente que passava no local indignou-se com a ati-tude, aproximou-se do policial e pediu para

Gustavo das Neves Silva, 17 anos ,é es-tudante do 2º ano do Ensino Médio, aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento Comunitário e integrante do Núcleo de Ar-ticulação e Desenvolvimento Comunitário (NADC) / Divisão de Comunicação Social da ONG Neimfa.

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que ele parasse de bater no rapaz, obtendo como resposta também um tapa na face.

Infelizmente, fatos assim acontecem com freqüência no Coque. É comum ver pessoas de boa índole sendo agredidas publicamente, sem nenhum motivo que justifique tais ações dos homens fardados, pagos para garantir a segurança de todos. A nossa, inclusive.

É inaceitável que nossa comunidade precise agüentar diariamente tamanho desrespeito. Gostaria de crer que esse tipo de tratamento não está relacionado com nossa condição social e que a policia não vê cada morador do Coque como um marginal. Mas não dá para acreditar. —

(colaborador)

viol ência

O pedagogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Alexandre Simão de Freitas, 32 anos, é dono de uma visão única sobre o Coque. Mesmo sem morar na comunidade, Alexandre freqüenta o local quase que diariamente há mais de 15 anos, desenvolvendo atividades sócio-educativas no Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis, o Neimfa, como é mais conhecido. Assim, ao mesmo tempo em que conhece a rotina e as dificuldades da comuni-dade, também pode ser capaz de ter um olhar “de fora”. Em 2005, a comunidade foi tema de sua tese de doutorado. Na pesquisa, ele es-tudou o funcionamento das redes sociais no local, discutindo questões como a violência e a imagem social do Coque, temas sobre os quais conversamos na entrevista abaixo.

Como o senhor descreve a violência no Coque?

Há dois grandes tipos de violência na comu-nidade. Uma é a mais óbvia, a violência ma-terial, revelada principalmente pela falta de acesso às condições mínimas para a sobre-vivência com dignidade. Uma segunda forma é a violência simbólica. Ao se representar o Coque como a “morada da morte”, estamos contribuindo para gerar um estigma social sobre as pessoas que habitam a comunidade. Atualmente, esse tipo de violência, uma vio-lência invisível, vem sendo mercantilizada, fazendo notícias.

Quais as causas da violência na comuni-dade?

O abismo provocado pelas desigualdades so-ciais é, sem dúvida, o principal responsável pelos problemas estruturais que dão margem à ruptura dos vínculos sociais na localidade. Há, também, uma desestruturação das redes familiares. E as próprias mudanças na cul-tura dos adolescentes e jovens. Temos uma sociedade que estimula muito o consumo. Os jovens estão na fase de construção de sua identidade e a mídia contribui para o espe-lhamento dessa identidade. Ela dita o que se veste, o que se calça, e estimula a busca por esses bens. Todos esses fatores têm culmi-nado com a expansão de um ethos da violên-cia que é apenas sintoma da lógica cultural vigente.

A violência no Coque é então um fenômeno ligado aos jovens?

Atualmente sim. A participação dos jovens como atores, mas, sobretudo, como vítimas da violência é um fato social. É importante ressaltar, portanto, que no Coque há menos de um 1% dos jovens envolvidos com o crime. No entanto, são eles que vão para a linha de frente. O problema é encontrado no que não se vê nos documentários e nas re-portagens sobre a participação dos jovens no crime: os líderes dos grupos criminosos, os fornecedores das armas, os responsáveis pelo narcotráfico. Onde estão esses atores?

Por que a presença desses sujeitos não tem visibilidade nos discursos que se produzem sobre a violência associada aos jovens da comunidade?

Em sua tese o senhor coloca que o acesso às armas é quase irrestrito. Onde eles con-seguem essas armas?

É possível obter as armas com quem tem o direito legítimo de portá-las. Depois disso, elas circulam e há outras formas de acesso. Inicialmente, quando os meninos começam a ser seduzidos pelas redes do crime, os líderes normalmente emprestam a arma du-rante um período curto de tempo. Depois ele diz: “agora você vai comprar a sua”. Essa é uma das razões de ocorrer tantos assaltos nas imediações da comunidade, porque os adolescentes têm que obter dinheiro para pagar a arma.

Quais as conseqüências dessa violência para a vida da comunidade? Em primeiro lugar, há o isolamento provo-cado pela fama de “comunidade violenta”. Ao gerar esse tipo de perfil, produz-se uma estigmatização de quem mora lá, que dificul-ta inclusive a circulação dessas pessoas em outros grupos sociais. Muitos moradores ao procurarem emprego omitem nos currículos que moram no Coque.

A medida do governo para tentar controlar a violência no Coque tem sido o policia-mento ostensivo na área. O que o senhor acha disso?

A presença é apenas aparente, ficando con-centrada nos arredores da comunidade. A lóg-ica tem sido a de impedir a ação criminosa, e não a de oferecer outras possibilidades para os jovens. Atua-se no plano repressivo im-ediato, o que é importante, mas não resolve a questão. Eu, que não moro lá, reconheço imediatamente como está o “clima”, ou seja, quando as atividades vão iniciar. Como é que o sistema de segurança, que possui uma área de inteligência e que está localizado lá dentro, não consegue reconhecer essas pes-soas? Há uma contradição nesse processo de controle da violência na região.

Há soluções para o problema da violência no Coque?

A médio e longo prazo, sim. São soluções de peso que exigem a articulação do setor público, das associações locais da comuni-dade e do empresariado que margeia a área. É preciso redistribuir os recursos públicos, criando alternativas concretas de inserção social para as pessoas que vivem no Coque. Não podem ser apenas programas paleativos, como se tem feito no âmbito federal e local, mas programas que promovam efetivamente empregos e gerem renda formal, resultando em verdadeira inclusão social.

Violência simbólica: um problema do CoquePor David Diniz e Maria Carolina Santos

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Entrevista : Alexandre Freitas

viol ência

Por Cecília Almeida

Uma conversa quase informal, não fosse pelo gravador encarregado do registro so-noro, para a elaboração de uma reportagem. O objeto fora levado por dois estudantes de jornalismo, em sua primeira visita ao bairro do Coque. Diante deles, outros três jovens, residentes da comunidade, dividiam a sala. Dois repórteres, dois entrevistados e um amigo em comum, para mediá-los. Os univer-sitários sentem-se à vontade, ao perceberem a eloqüência dos rapazes que iriam entrevis-tar. Sentem-se próximos deles, parecidos por terem a mesma faixa etária.

Até que um dos jovens do bairro lembra a discrepância entre suas realidades: a maior parte dos seus amigos de infância, hoje, só pode ser lembrada através dos álbuns de fo-tografia. Quase todos, conta, estão mortos.

Quem levantou a voz foi Luiz Vicente. De seus 22 anos, 17 foram vividos dentro do bairro do Coque. Evangélico, ele faz parte de uma associação não organizada. Trata-se da APPC – Amor Pela Comunidade do Coque –, que desenvolve atividades regulares com os jovens do local, na tentativa de levantar a auto-estima dos que participam do grupo. O segundo jovem é Gleisson Ramos, 20 anos. Morador do Coque há nove anos, já perdeu três de seus cinco irmãos. O crime sempre esteve por perto, afastando-o de seus co-nhecidos. O rapaz também se juntou à Igreja

Evangélica, o que considera ter sido de grande ajuda para controlar seus impulsos “vingativos”, como ele coloca.

Os dois contam que é difícil caminhar pela honestidade num lugar em que o crime parece ser o caminho natural. As crianças são apresentadas cedo a esse mundo, e logo estão realizando pequenos furtos, que ten-dem a evoluir. Começam, por exemplo, com uma fruta e, antes de perceberem, estão roubando o som de um carro. É complicado, especialmente nessa fase, distinguir o limite entre o permissível e o “fora da lei”. Luiz e Gleisson foram bem sucedidos nesse ponto, afastando-se do crime, ainda procurado por muitos jovens.

O grande catalisador desse processo, para Luiz, é a ociosidade. A escola, de má quali-dade, não motiva o jovem a estudar. É difícil praticar esportes, já que até a quadra de futebol do bairro é de difícil acesso. Assim, sem garantias de uma formação saudável, a auto-estima do adolescente diminui.

A maneira mais prática de resgatá-la é a-través da afirmação de sua identidade diante de seus conhecidos, o que pode ser um pas-saporte para a ilegalidade. A identidade de um indivíduo se estabelece lentamente, a partir de suas relações com o meio em que vive. Numa comunidade margi-

nalizada, como o Coque, é difícil ser reco-nhecido pelo caminho honesto. Isso coloca o adolescente em um círculo de pressões, onde ele se torna mais vulnerável às atividades desonestas, especialmente num local onde as figuras que representam autoridade são os criminosos.

Afinal, eles têm as armas, as mulheres, o din-heiro, e, enfim, o ‘respeito’. São eles, tam-bém, que ajudam a pagar as contas de famil-iares ou oferecem proteção contra gangues ou da polícia. Toda essa boa vontade se torna uma dívida “moral”: o adolescente sente que precisa retribuir de alguma forma e acaba se tornando parte desse mundo. É um enge-nhoso ciclo que sufoca quem vive na comu-nidade.

A sociedade isola o bairro, inviabilizando oportunidades de emprego por conta do preconceito. Ao mesmo tempo, as pressões internas da comunidade empurram o jovem para o crime.

Para aumentar sua força de vontade na es-colha pelo caminho “certo”, a dupla faz questão de citar a religião. Não a religião evangélica, necessariamente, mas apenas a existência de uma filosofia de vida, de uma crença. Luiz chega a afirmar que “tudo que está no mundo, está na Bíblia”. O jovem tam-bém crê que, só de pensar em tomar um bom

caminho, Deus dará condições para que ele consiga esse objetivo, cedo ou tarde.

Mas essa escolha não é tão simples assim. No Coque, como na maioria das comunidades de baixa renda, todas as grandes mudanças acontecem mais cedo. O primeiro cigarro, a primeira cerveja, a primeira aventura sexu-al.

Quando o assunto é sexo, Luiz e Gleisson silenciam por alguns instantes. Em seguida, vem a resposta, quase em forma de lamen-tação: os meninos iniciam a vida sexual as-sim que têm condições físicas, e as meninas por volta dos 11 anos.

Crescer em meio a valores tão contraditórios é uma experiência conturbada. Mas Luiz e Gleisson se saíram bem e fazem planos. Luiz pretende organizar sua vida para se ins-crever em algum curso de Marketing. Gleis-son deseja trabalhar com pedagogia.

Os dois sonham em mostrar para o Recife que os jovens do Coque também são capazes de produzir coisas boas. Ressaltam, en-tretanto, que isso só pode acontecer quando a sociedade deixar de tratar o bairro como uma causa perdida. E nisso, com certeza, eles têm razão.—

06

Retratos da Juventude

jovens

Aos seis anos, presenciei o primeiro ato de violência da minha vida: um rapaz envolvido com o tráfico de drogas foi morto por um ri-val na rua em que eu morava. Porém, só aos 11 anos eu passei a ter contato direto com esse mundo. Passei a ter muitos conhecidos envolvidos com o mercado ilegal e, nessa mesma época, surgiram diversas gangues rivais. Andar armado se tornou normal e a polícia quase não aparecia. Os tiroteios en-tre gangues eram constantes. Eu nem me as-sustava mais.

Ainda aos 11 anos, comecei a fumar maconha, por curiosidade. Afinal, as coisas mais fáceis de arrumar no Coque são drogas e armas. Terminou que eu e meus amigos entramos no grupo de um cara envolvido com o tráfico de drogas, enquanto outros amigos meus se afastaram de mim. Fiquei nessa dos 11 anos aos 16. O rapaz mais velho tinha a boca-de-fumo e, como sempre existiu essa rivalidade entre os grupos e aparentemente eu estava do lado dele, me envolvi na guerra sem per-ceber. Eu só falava com esse cara pra fumar. Fui jurado de morte e, aos 14 anos, passei a andar armado. Uma noite, estava voltando para casa e tinha um grupo da gangue rival me esperando. Eles dispararam alguns tiros, mas terminei fugindo por um beco e pulando

as cercas que separavam as casas umas da outras, até chegar ao meu quintal.

Decidi sair de lá, mas só consegui passar uma semana fora. Voltei por conta da sau-dade de casa. Por insistência do meu pai, ao contrário do que outras pessoas diziam, continuei no Coque. Passei um tempo tran-cado em casa, enquanto a comunidade estava em ebulição. Um grupo estava aniquilando a gangue que tinha atentado contra mim, pois esta estava criando muitos problemas na comunidade. Quando mataram o chefão, minha mãe me acordou pra contar. Recebi apoio da família e dos amigos que tinham se afastado e me livrei das drogas e do pessoal do tráfico. Ainda assim, permaneço tratando bem todo mundo. Minha mãe me dizia: “seja amigo dos bons e dos ruins porque se você não tiver problemas com ninguém, facilita a sua liberdade dentro da comunidade”. Tento seguir esse conselho, mas sem julgar nin-guém, consciente que as fronteiras entre os envolvidos e os não envolvidos com ativi-dades ilegais no Coque é quase invisível. Principalmente pra quem olha de fora.—

Em meio às fronteiras invisíveis Por Júnior José da Silva

07

No Coque, aos seis anos, algumas crianças já estão trabalhando vendendo pipoca e picolé na estação Joana Bezerra. Prova-velmente já cruzamos uma ou dez ou dez milhões de vezes com diversas delas e nunca nos demos conta de suas existên-cias. Nessa mesma idade, eu estava sendo alfabetizado e não me sentia invisível aos olhos estranhos.

Na comunidade, aos 11 anos, algumas des-sas mesmas crianças fumaram maconha, tiveram a primeira experiência sexual e outras tantas já estão envolvidas no trá-fico. Eu entrava na quinta-série e desper-tava para as possibilidades do meu corpo. Por volta dos 14, 15 anos, os jovens da comunidade, provavelmente, já tiveram acesso a uma arma e muitas garotas já

ganharam ao menos um filho. Eu acabava de entrar no ensino médio, nenhuma amiga minha estava grávida e aos 17 anos passa-va no vestibular de Jornalismo. Enquanto isso, quantos no Coque tiveram acesso ao ensino superior? Provavelmente dez den-tro de uma realidade que abriga 48 mil, segundo Aurino Lima, um dos fundadores do Neimfa.

A expectativa de vida desses jovens, se-gundo eles mesmos, era de 20 e poucos anos. Exatamente a minha idade atual.

Não há dúvida, que existe um momento crucial em nossas vidas, onde nossos ca-minhos se distanciam por completo.Por esse ângulo fica clara a lacuna social que nos separa, e, ao mesmo tempo, evidencia-

se a intriga sobre o laço que nos une. Nos-sas trajetórias eventualmente se cruzam, eventualmente se tocam, mas quase sem-pre terminam em situações díspares. Tanto no Coque quanto no Espinheiro, na Torre ou em qualquer outro bairro de classe média é normal que jovens subam em árvores de terrenos vizinhos para pegar frutas. Mas, provavelmente, nem no Espinheiro nem na Torre esses mesmos jovens estarão na seqüência juntando dinheiro para comprar uma arma e planejando um assalto maior. Tanto no Coque quanto no Espinheiro é normal que uma parte dos jovens fume maconha duas ou três vezes por semana, mesmo que seus pais ignorem.

No entanto, em nenhum dos dois bairros esses mesmos jovens se tornarão filhos do

Através do EspelhoPor Rodrigo Almeida

Júnior José da Silva tem 23 anos, mora no Coque há 19 e está no quarto ano do magistério. Há sete anos não tem mais contato como tráfico de drogas.

tráfico prontos para matar ou morrer por uma boca-de-fumo.

Nossas trajetórias eventualmente se espe-lham. A rebeldia se espelha. A curiosidade e os hormônios se espelham. A juventude em si, e da forma que for, se espelha. Já a experiência de vida nos diferencia e mos-tra que vivemos dilemas semelhantes em mundos bem distintos. As conseqüências só podiam ser diferentes. A nossa juven-tude se complementa, une duas extremi-dades distantes, e converge fatalmente para uma semelhança. E, por um segundo, ainda somos iguais.

(colaborador)

Jovens X Educação

De 15 a 17 anos:

- 58,70% estão na escola;- 87,91% têm menos de oito anos de estudo;- 42,88% têm menos de quatro anos de estudo;- 12,40 são analfabetos.

De 18 a 24 anos:

- 0,82% têm doze anos de estudo;- 74,51% têm menos de oito anos de estudo;- 26,60% têm menos de quatro anos de estudo;- 12,91% são analfabetos;- 0,0% tem acesso ao curso superior.

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife. Dados de 2000.

População de jovens de 15 a 22

anos

- 12,96% da população total é composta

por jovens.

- Destes, 53,15 % são mulheres, sendo

37,45% de 15 a 17 anos e 62,55% entre

18 e 22 anos.

- Os homens representam 46,85 % dos

jovens. Destes, 45,89% estão entre 15 e

17 anos e 54,01% entre 18 e 22 anos.

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no

Recife. Dados de 2000.

jovens

Por Carolina Vanderlei e Julya Vasconcelos

Márcio tem dez anos e mora no Coque desde que nasceu. É negro e cultiva os cabelos pintados de loiro no alto da cabeça. É uma dessas crianças de fôlego alucinante, muito embora pareça até tranqüilo à primeira vista. Não sabe ler ou escrever, e está fora da escola desde o ano passado, segundo ele, porque lhes roubavam o lápis e a borracha, e a diretora “não queria saber”.

Apesar de não estar na escola, Márcio sonha seguir uma profissão: integrar o exército para “treinar e prender ‘os ladrões errados’”. Perguntado se haveria uma segunda opção, ele responde com um surpreendente “profes-sor de teatro”. A falta de conexão no racio-cínio de Márcio, entre educação e realização profissional, parece ser algo aferido pela comunidade. Apenas 18% dos jovens acredi-tam que a educação pode ajudar no alcance de um emprego.

Aparentando ter algo em torno dos 50 anos, a mãe de Márcio, Jacilene Francisca Rocha, tem somente 38. A casa, de muro azul des-botado e um portão improvisado, abriga ainda uma neta, Valeska, de 4 anos, e seu marido, Valdomiro, 32, padrasto de Márcio. Jacilene não sabe sequer escrever o próp-

rio nome, e muito menos identificar a linha de um ônibus: “eu quero pegar um ônibus e não posso, porque não sei ler. É ruim, né? Aí eu não saio pra canto ne-nhum”. Já Val-domiro sabe o mínimo para, pelo menos, se locomover pela cidade, mas confessa o seg-uinte: “eu não sei é juntar as letras, ler um pouquinho eu sei. Estudei até a 3ª série”. Ambos, quando questionados sobre seus sonhos, apesar do cons-trangimento visível em falar do assunto, assumem que gostariam de ser cantores: Jacilene de brega, Valdomiro de pagode. Quando alguém pergunta aos pais ou a Márcio quando ele voltará para o colé-gio, nenhum deles parece muito preocupado. A escola não é, para eles, uma necessidade.

A educação formal

Márcio não é o único a desvincular seu futuro da educação formal. Segundo Aurino Lima, psicólogo e co-fundador do Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis), os moradores do Coque não vêem a educação como forma de ascensão social, sobretudo porque dentro da própria comu-nidade não há exemplos que comprovem e estimulem esse pensamento. “De forma geral, os rapazes daqui conseguem aumen-

tar seu poder aquisitivo através do crime, e as mulheres casando-se ou entrando para a prostituição”, comenta. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano do Recife, em 2000, apenas 5,4% dos adolescentes do Coque estavam cursando o Ensino Médio.

Apesar dos graves problemas que o bairro enfrenta com a educação, certos exem-plos de dedicação são louváveis. É o caso de Marilene, diretora da Escola Estadual Nossa Senhora do Carmo. Mesmo com a amargura de quem vive num lugar perdido no mapa da ci-dade, e principalmente no mapa da educação, Marilene mantém um espírito empreendedor e conta que briga para manter a escola de pé. Na realidade, o colégio da dona Marilene não passa de uma pequena casinha na Realeza (uma das muitas regiões em que se divide o bairro), onde, para se locomover de uma sala de aula para o banheiro, é inevitável não invadir as salas das outras turmas. No intervalo, os alunos sentam e lancham em um estreito corredor de pouco mais de 1,50m de largura. Um feijão cheiroso está sendo cozinhado enquanto a diretora nos mostra as dependências. A estrutura física do pré-dio é precária, mas percebe-se uma atmos-fera acolhedora. Marilene nos diz que, além

de alunos, outras pessoas da comunidade, na hora da merenda, se colocam em fila na porta do colégio, e que ela alimenta a todos, até que a panela esvazie. Fala também que, quando encerram os estudos, muitos ex-alu-nos entram no crime. Não há o depois da es-cola. A educação, nas poucas vezes em que é iniciada, se interrompe na saída do colégio.

A história de Márcio se entrecruza com a de Lígia

A cerca de vinte minutos da casa de Márcio e na mesma região da escola da Dona Mar-ilene, mora Lívia, ex-aluna do Costa Porto e da Nossa Senhora do Carmo (ambas escolas da região). Ela vive no Coque, como Márcio, desde que nasceu. Filha de mãe ajudante de merendeira e semi-analfabeta “que sabe apenas ler e escrever o nome”, e de pai mecânico, que cursou até a quarta-série, Lívia já teve que traba-lhar cuidando de um casal de idosos para ajudar nas despesas da casa. Quase todas as amigas de infância da estudante são mães e tiveram de interromp-er os estudos, antes mesmo do término do ensino fundamental. Nenhuma delas almeja o ingresso na Universidade. Lígia, porém, é uma rara exceção.

08

De educação e vidasAs histórias pessoais por trás dos problemas educacionais da comunidade do Coque

educação

Li no site de uma escola a seguinte frase: “A educação não transforma o mundo, a edu-cação transforma as pessoas, e as pessoas transformam o mundo”. Isso me fez refletir profundamente sobre o papel da educação na minha própria vida, pois vejo nela a opor-tunidade de conseguir uma transformação pessoal e social. Devo essa visão e parte da minha formação à minhas experiências no Neimfa.

No núcleo, a educação é vista como uma “ação” política, o que ultrapassa a idéia de educação apenas como uma formação “esco-lar”. Foi esse paradigma que me proporcionou uma consciência de mundo, senso crítico, além de um desejo de mudança e a crença de que o ponto de partida para a constituição de uma sociedade, verdadeiramente democráti-ca em seu sentido mais amplo e respeitador dos Direitos Humanos, está na participação e no exercício consciente de seus direitos de cidadania.

Essa formação possibilitou ainda uma alte-ração significativa na minha forma de ser e agir, e de me preocupar com a transformação do meu bairro. Tenho me dedicado ao máximo à desmistificação da imagem negativa do Coque, à percepção perversa que a socie-dade possui sobre nossa comunidade. Hoje, acredito que tudo é possível, até mesmo um

outro Brasil é possível, desde que se invista na educação dos jovens.—

Numa comunidade em que há tantos prob-lemas na educação formal, existe uma movimentação natural que tenta suprir essa carência e encaminha seus projetos através da educação informal. Neste âmbito, desta-ca-se o Neimfa, criado em 1987. Nascido sob uma ideologia religiosa, é uma instituição que trabalha os valores espirituais, no sen-tido mais amplo da palavra: religião, edu-cação, ética, intervenção social, bem-estar. Foi transformada em uma Organização não-governamental em 1998, quando começou a desenvolver projetos de repercussão social mais ampla.

Trabalhar a educação e a formação numa concepção diferenciada é o mote da enti-dade, que oferece diversas oficinas e cursos. Dentre eles, o Cores do Coque (reciclagem), Assistência à gestantes (existente desde 1987), Formação de valores humanos e cul-tura de paz (cerca de 120 jovens e 250 cri-anças) e o Grupo de Formação de Educadores Holísticos (criado há dois anos e meio, e com duração de cinco anos). Segundo Gustavo, 17 anos, que faz parte do curso de Agentes de Desenvolvimento Comu-

nitário, o Neimfa trabalha “de acordo com as demandas da comunidade”, e se pauta pela necessidade de “formação para jovens, para que possam ser desenvolvidas intervenções na comunidade, e até mesmo fora do Coque”.

Ele explica que o diferencial do núcleo é esse: proliferar essas informações. Conta que o acesso livre à casa é de grande importância na relação que se estabelece entre o jovem do Coque e a Organização não-governamen-tal: “Nós temos uma liberdade muito grande e podemos freqüentar a casa sempre. Os pro-fessores sempre estão aqui e há uma cumpli-cidade entre nós”.

Em média 450 pessoas são atendidas pelo Neimfa e 90% dos que trabalham na casa são voluntários. Em dezembro do ano passado, foram contabilizados 82 voluntários e cinco funcionários.—

A jovem de 19 anos, de sorriso aberto e pele morena, ultrapassou barreiras impostas pela sua condição social e foi aprovada no vestibular da Universidade de Pernambuco (UPE) para o curso de Ciências Biológicas. Perguntada se sente orgulho de si mesma, ela responde com um enca-bulado e sincero “sim”. E tem motivos. De acordo com Aurino, dos 48 mil habitantes do Coque, estima-se que, no máximo, dez estejam cursando o en-sino superior.

Motivada, Lígia entrou em um cursinho pré-vestibular gratuito e resolveu agora prestar concurso para Serviço Social na UFPE. Ela tentará seguir a profissão pela qual se apaixonou quando participou da Ong Casa-Menina-Mulher, que trabalha com jovens e crianças do bairro dos Coelhos e proximi-dades. “Eu comecei a observar o trabalho da assistente social com os meninos de rua e aquilo me tocou”. Foi na ONG que ela perce-beu a importância da educação. “As pessoas, em geral, não enxergam que a educação é um patrimônio, que a escola deve ser respeitada e cuidada. Falta a consciência da importân-cia do que a gente pode conseguir através dela”.

Para Lívia, o que impede os jovens de pro-gredirem por meio da educação não é apenas a falta de um ensino público de qualidade. Faltam também aos habitantes do Coque au-toconfiança e alguém que lhes mostre que é possível chegar lá. “Uma amiga minha contou que, quando a professora falou que queria ver todos os alunos presentes na universi-dade, a risada foi geral. Todos sabem o peso de morar no Coque, do preconceito que a gente encontra lá fora. Daí, ela falou de mim. Todo mundo ficou em silêncio. Quem sabe não surgiu neles uma esperança”.—

Participar, uma condição necessária!Por Gustavo das Neves Silva

A educação informal como saídaPor Carolina Vanderlei e Julya Vasconcelos

Gustavo das Neves Silva é estudante do 2º ano do Ensino Médio, aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento Comunitário e integrante do Núcleo de Articulação e Desenvolvimento Comunitário (NADC) / Divisão de Comunicação Social da ONG Neimfa.

09

(colaborador)

educação

Educação no Coque

- Taxa de analfabetismo em 1991: 33% da população. Em 2000: 20% da população;

- Tempo médio de anos estudados 1991: 3,1 anos. Em 2000: 3,9 anos.

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife. Dados de 2000.

As meninas-mães do CoqueA submissão como regraPor Alissa Farias e Samara Fernandes

O calor das 15 horas não intimida o grupo. Cerca de 20 meninos, com pés no chão e ca-belos descoloridos, correm num vai-e-vem pelas ruas do bairro. É sexta-feira, véspera de Carnaval, e os garotos com bombas de cano às mãos riem à toa com a água reti-rada do esgoto a céu aberto escorrendo por seus corpos miúdos. Enquanto isso, algumas meninas estão sentadas na calçada e, com os olhos apertados pela luz do sol, tentam observar todo o mela-mela. Um outro grupo prefere o futebol às brincadeiras momescas e se diverte ao discutir se a bola saiu ou não pela linha de fundo. Caminhando por algumas ruas, garotas se revezam na arte de fazer trancinhas nos cabelos e prendê-las com elásticos coloridos.

Não tem importância o dia e o caminho es-colhidos para percorrer o Coque, as muitas crianças sempre estão lá, descalças, brin-cando. Elas aparecem do onde menos se es-pera, são muitas e iguais: tamanho, roupa, cabelos, modo de andar, falar, olhar, sorrir. É mínima a quantidade de pessoas mais velhas a acompanhá-las. Uma ou outra adolescente de 15 anos parece cuidar de uma infinidade de meninos. Quase sempre dão liberdade, e, de longe, sem muito o que fazer, jogam con-versa fora. São elas as meninas-mães dessa comunidade que, de acordo com o Atlas de Desenvolvimento Humano do Recife, apre-

senta a maior proporção de genitoras entre 15 e 17 anos, já que 30,21% das mulheres nessa faixa etária têm pelo menos um filho.

Atraídas pela boa condição financeira e o res-peito que os rapazes impõem na comunidade, muitas meninas se envolvem, desde cedo, com os jovens ligados ao tráfico. A partir daí, passam a dar e receber apoio, tornando-se suas companheiras. Mas para esses jovens não é interessante apenas uma mulher, pois quanto mais tiverem, maior seu prestígio. Em paralelo ao relacionamento com a namorada, costumam então existir as amantes.

Das relações instáveis surgem os filhos, e eles conferem alguns dos privilégios à mulher diante do parceiro, mas dificilmente trazem responsabilidades. As crianças não modificam a vida dos jovens pais. Geralmente são as avós que acabam por criá-las

O problema da gravidez precoce no Coque agravou-se há cerca de três anos. Mas há 18 anos as dificuldades enfrentadas pelas futuras mães da comunidade já preocupava Dona Luíza Margarida. Foi quando ela criou o projeto Gestantes do Coque, tríade da per-sonificação de Deus – beleza, graça e pros-peridade. Ao longo desses anos, a iniciativa foi adquirindo um outro perfil em função da nova realidade no bairro e, hoje, discute as

transformações na vida das meninas com a maternidade. Em um ano, três a quatro tur-mas passam pela sala do projeto no Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Fran-cisco de Assis).

O primeiro grupo desse ano reúne 22 gestantes. Muitas já são mães: garotas de 16 anos que esperam o segundo filho, quando o primeiro ainda nem completou o segundo ano de vida. De acordo com uma das monito-ras do projeto, essa turma é um pouco mais experiente; a anterior tinha como mascote uma garota de 12 anos, com sete meses de gestação. O encontro inicial busca respos-tas para as perguntas: “O que significa es-tar grávida?”, “O que mudou em minha vida com a gestação?”. Silêncio predomina por instantes, mas algumas respostas começam a brotar e revelam a imaturidade, o desin-teresse pelo planejamento familiar e formas de prevenção. Logo, a conversa que se inicia com uma tímida fala a respeito dos filhos chegarem por “vontade de Deus”, vira uma discussão sobre assumir as responsabili-dades por seus atos, o controle sobre o pró-prio corpo, a condição da mulher.

A violência dos jovens contra as companhei-ras é outro problema sério na comunidade. A fala de uma das meninas é reveladora: “quem aqui nunca apanhou do marido?”. A indagação

provocou olhares de indignação e conformis-mo. Os de indignação partiram das orienta-doras do curso e de algumas vítimas, que, quando apanharam, deram o troco na mesma moeda, demonstrando sua altivez: “posso até apanhar, mas também vou pra cima dele; apanhada não fico”, garantiu uma delas.

Os olhares de conformismo vieram da maio-ria das gestantes, que em qualquer momento esconderam o temor de perder a vida pelas mãos daquele que já foi sinônimo de pro-teção. O silêncio cúmplice da submissão con-trasta com a algazarra das brincadeiras de criança bem parecidas com aquelas que lhes divertiam não faz muito tempo. —

Aposta nas exceções Por Patrícia Maria da Silva

O fato de morar no Coque já gera preconcei-tos e esses são redobrados para com as mul-heres, que ainda convivem com a violência doméstica e são consideradas inferiores.

Por quê? Porque há o pensamento machista de que a mulher foi feita para estar com a bar-riga no fogão, pronta para servir seu marido, a qualquer hora, e nunca se interessar pelos “assuntos de homem”. Enfim, precisa ser “um bicho que deve sempre depender dele, e que

nunca deve ser maior do que o homem”.

Mas, com esforço e conscientização, pode se mudar essa visão de submissão que, no Coque, é agravada pela gravidez precoce. Uma prova dessa mudança entre as mul-heres é S.M.G., 17 anos, moradora do Coque, que cursa o segundo ano do Ensino Médio no Colégio Sizernando Silveira. Para ela, ser mulher está além do físico: “é se valorizar, ter amor próprio, gostar de você e nunca se

colocar para baixo; ser autêntica”. Ela vai de encontro com a visão majoritária da sua comunidade ao afirmar que ser mulher é “ser independente, mesmo que se tenha um mari-do em casa. É não ter que pedir nada a ele. Fazer o que quiser e quando quiser. É ter uma visão ampla do mundo e ter seus próprios projetos de vida. É ter uma beleza interna e externa”. —

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Patrícia Maria da Silva Santos, moradora do Coque, é estudante de Magistério e educadora social da ONG Neimfa. Também atua, há cinco anos, no Orçamento Participativo junto à Prefeitura da Cidade do Recife.

Gravidez

- Recife ocupa o segundo lugar entre as capitais nordestinas em proporção de adolescentes de 15 a 17 anos com filhos: 8,13% em 2000. A maior taxa é a de Maceió (10,49%).

- O bairro de Ilha Joana Bezerra e a Zeis Coque formam a Unidade de Desenvolvimento Humano (UDH) que tem maior proporção de mães com 15 a 17 anos: 30,21% das mulheres nessa faixa etária têm pelo menos um filho. Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife. Dados de 2000.

mulheres

(colaboradora)

No Neimfa, jovens gestantes têm acompanha-mento.

São bloquinhos, cadernos, porta-incensos, objetos graciosos que poderiam estar à venda em qualquer magazine. O que os di-ferencia de quaisquer outros encontrados em lojas da cidade é a história e as pes-soas que estão por trás desses produtos. O nome da marca, Cor do Coque, dá uma pista de sua origem. Eles são fabricados em uma unidade produtiva alojada no Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis), instituição não-governamental en-cravada no Coque, um dos bairros de menor índice de desenvolvimento urbano do Recife (0,632, número similar ao de países como o Gabão, na África).

Os produtos à base de papel reciclado são elaborados por jovens da comunidade. A uni-dade produtiva, orientada pela estudante e moradora da comunidade, Joseane Oliveira, já é conhecida por algumas pessoas, graças à exposição dos trabalhos em stand da Fenneart, uma feira nacional de negócios do artesanato. Foi nesse evento, há qua-tro anos, que o grupo, dando seus primeiros passos, conseguiu um maior destaque na ci-dade.

As raízes do projeto, no entanto, são ainda mais antigas e remontam o ano de 1998. Na época, o Neimfa oferecia dois cursos, o de

atendimento ao cliente e o de reciclagem, no qual Joseane, adolescente ainda, se matricu-lou. Aos poucos, o curso se transformou em projeto, até que em 2003 foi consolidada a idéia de montar uma unidade produtiva. As-sim nasceu o “Artesão da Cidadania”, primei-ro nome do grupo. Em 2005, em busca de um resultado mais bem-elaborado, procuraram a ajuda do Centro de Design de Pernambuco.

Alguns voluntários da instituição passaram a oferecer assessoria para as meninas. Fo-ram aperfeiçoados vários aspectos, desde a qualidade dos produtos até a criação de um nome e de uma logomarca. Surgiu então o Cor do Coque, que ajuda pessoas do bairro a transformar o que deveria ir para o lixo em beleza e esperança de uma fonte de renda.

O projeto funciona em duas frentes. De manhã é oferecido um curso que dá noções básicas sobre manuseio de papel. Para os jovens que participam, são oferecidas gratuitamente aulas de informática e português. Os alunos que se destacam nessa fase são convidados a fazer parte da unidade produtiva, da qual atualmente fazem parte cerca de 20 pessoas, entre 13 e 28 anos. Até hoje, muitos já pas-saram por lá, mas a evasão é grande. Alguns saem porque, apesar de serem muito jovens, já constituíram família. Out-

Papel, cor e cidadaniaPor Julia Veras

ros acabam desistindo já que, ao entrar, acreditavam que poderiam obter sustento financeiro imediato a partir da atividade, o que ainda não é possível. “Sem opção, mui-tas pessoas acham que vão ganhar dinheiro aqui, mas a realidade que encontram não é bem assim. Mesmo quando estivemos na Fen-neart, não conseguimos sequer tirar o din-heiro do stand. São muitos custos”, comenta Joseane.

Dificuldades

Os produtos fabricados pela unidade aten-dem a um requisito cada dia mais valorizado: são politicamente corretos, uma vez que partem do princípio da reciclagem, transfor-mando papel usado em capas bloquinhos e caixas de presentes. No entanto, ainda não conseguiram alçar o mercado como deveriam, e o principal motivo é o preconceito. “Muita gente se interessa pelo nosso trabalho, pedem encomendas, mas com a condição de não pisar no bairro. Então é preciso que nós mesmos façamos as entregas, e de ônibus”, explica Joseane.

Para tentar evitar esse tipo de problema, o grupo espera concretizar o antigo desejo de ter uma loja própria. O lugar almejado seria no centro da cidade, próximo do Mercado de

São José. Outra conquista que elas esperam obter é um melhor maquinário, como uma pi-cotadeira (que faz as minúsculas perfurações que permitem arrancar a folha de papel do bloco sem dificuldades) ou um cortador (es-pécie de guilhotina que recorta o material).

Atualmente, o grupo precisa pagar a ter-ceiros para lapidar os detalhes, visto que eles agregam qualidade ao produto final. Diante de tantos sonhos, uma melhoria já foi alcançada: a sala que eles ocupavam na ONG foi reformada recentemente. Ficou mais ampla e ganhou uma cobertura de cerâmica, garantindo um bom ambiente de trabalho.

Hoje, quando questionada a respeito dos planos para o Cor do Coque, a resposta de Joseane vai além de simplesmente garantir uma renda sustentável para o grupo. “Es-pero que assim que alcancemos algumas melhorias, possamos também ajudar a pagar algumas das contas do Neimfa.

Com isso, poderemos também ajudar a man-ter projetos que auxiliem a transformar ou, ao menos, melhorar a vida das pessoas daqui, e a imagem que as pessoas têm do Coque”.—

Com 28 anos, Vânia Soares está há quatro no grupo. Ao responder à questão de por que entrar no projeto, ela é enfática: “Se não tivesse aqui dentro, o que estaria fazendo lá fora? Aqui, antes de tudo, aprendi a ser me-lhor como pessoa, a ser uma cidadã. A fazer um trabalho”. Essa é a resposta dada por quase todos os jovens do projeto.

Antes de simplesmente elaborar produtos de material reciclado, os meninos ganham auto-estima, a certeza de que são muito mais do que apenas as notícias violentas veiculadas nos meios de comunicação. “Queremos mos-trar que podemos ir além do que a maioria das pessoas acha que somos. O Coque tem o que oferecer” comenta Gutemberg de Lima, 15 anos, um dos sete homens que fazem parte do projeto. Nessas falas, fica claro

É gratificante ser uma das integrantes da unidade produtiva Cor do Coque. Há diversos motivos para isso. Um deles é o cuidado com o meio ambiente, pois de algum modo esta-mos contribuindo para diminuir as agressões à natureza através da reciclagem, reduzindo o acúmulo de lixo e doenças.

Existe também a questão do trabalho social, que tenta diminuir a inserção dos jovens na criminalidade, mostrando uma perspectiva de melhoria de vida. Além disso, queremos mostrar que ao contrário do que a socie-dade pensa, a comunidade do Coque não é um bairro de marginais. Para que isso seja verdade, 100% da população deveria estar na criminalidade, o que não acontece. O que não podemos permitir é que a grande maioria da população pague por isso.

Um outro motivo é o financeiro. Vemos uma oportunidade de geração de renda que nos ajude nos trabalhos sociais do Neimfa, as-sim como na renda dos integrantes do Cor do Coque. Para isso, precisamos de um maior suporte dos órgãos competentes no sentido de incentivar a população a adquirir produ-tos reciclados tanto pela contribuição social quanto pela questão ambiental. —

Joseane Oliveira é moradora do Coque, estudante universitária e voluntária da ONG Neimfa.

Em busca da dignidade Um projeto de vidaPor Joseane Oliveira

que o projeto vai além até mesmo da von-tade do retorno financeiro. Embora ainda não tenham lucro, ganharam - e muito – em res-peito, tanto em relação a si mesmos, quanto aos outros. No entanto, a expectativa é que a longo prazo o projeto ajude a melhorar a renda das famílias da comunidade, cujos res-ponsáveis, em sua maioria, sobrevivem com apenas R$199,40 mensais. [ J.V. ]

(colaboradora)

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Renda: 33,3% das pessoas

possuem renda per capita de

até R$ 37,75.

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no

Recife. Dados de 2000.

Cor do Coque

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Rock para mudar o CoquePor Guilherme Gatis

O ano é 1986 e o disco Cabeça Dinossauro, dos Titãs, estoura nas rádios com músicas como Homem Primata e Polícia. No Coque, adolescentes se inspiram pelas críticas e sarcasmo dos Titãs e resolvem criar um grupo para fazer playbacks das músicas. Um desses jovens é Alexandro Roberto, com 14 anos na época. Os Titânicos de Afogados, como gostavam de ser conhecidos para evi-tar problemas de preconceito com o Coque, começam a se apresentar em bairros de periferia.

Em uma das apresentações dos Titânicos o equipamento de som falhou. Para tentar con-tornar o problema, Alexandre prontamente improvisa jogos de palavras, ladainhas que misturavam letras em português com termos desconexos em inglês e palavras inventadas. Shivaprulouro. A platéia gosta e surge daí a motivação para criar. Ele assume o apelido de infância, Xicharro, e se torna uma figura fundamental para a movimentação cultural do bairro.

Salto para 2000. Xicharro está no palco com outra figura importante para as bandas de rock do Coque, o guitarrista Sérgio Souza. Junto a mais três amigos, eles são os Bastar-dos Infames e fazem a primeira apresentação de Rock da história do bairro. É o festival Coque em Rock, que em sua primeira edição contou com a presença de bandas de outras

comunidades, como Afogados e Areias. A falta de apoio político fez com que o festi-val terminasse em 2001. Um ano depois, os Bastardos terminaram. O único evento que valoriza os roqueiros do bairro é o Cinzas do Rock, que ocorre desde 2003 na quarta-feira de cinzas com o apoio da Prefeitura e de li-deranças comunitárias.

Do embrião dos Bastardos surgiram três bandas que hoje são a base da cena do bairro: “Matéria Bruta”, “Província Rebel-de” e “Xicharro e seus amigos Cabras Safa-dos”. Juntam-se a elas outros grupos como o “Dragon Ranger”, de metal, e as bandas punk “Blasfêmia” e “Porcos”, que surgiram a partir da oportunidade aberta pelos pi-oneiros. Talvez seja mais exato dizer que o “Matéria Bruta” encabeça, hoje, a cena do Coque. O grupo, liderado por Sérgio, já tocou em outros bairros e no festival Pátio do Rock, no Pátio de São Pedro, além de uma apresen-tação no programa de TV Sopa Diária. A banda busca o caminho da profissionali-zação e da movimentação social. Eles têm a ambição de, a partir da música, modificar a comunidade. Para tanto foi criado junto com outras bandas o movimento “Arrebentando Barreiras”. A iniciativa pretende usar a música como forma de conscientização popu-lar, com apresentações de graça e palestras sobre temas como sexualidade e drogas.

Outro nome importante para a para a for-mação da cena do Coque é Almir Alves, líder do “Província Rebelde”. No início, Almir ia apenas para alguns ensaios e não sabia to-car, mas foi aprendendo guitarra apenas ob-servando os amigos e com o tempo fundou a banda, em que tocou outro articulador cul-tural da comunidade, José Ferreira (também conhecido como Israel). O conjunto foi impor-tante nas mobilizações idealizadas pelo “Ar-rebentando Bareiras”, mas uma fatalidade empacou o movimento. A prisão de Almir, em 2005, por porte ilegal de arma, foi um baque para os músicos e minguou as iniciativas do “Arrebentando Barreiras”. Xicharro conta que Almir procurou uma arma por temer a violência contra um de seus cunhados, mas que nunca usou o revólver. Era apenas para se sentir mais seguro.

Aparentemente, Xicharro parece estar desa-linhado com a mobilização das outras ban-das. Ele diz que, apesar de ter ajudado a fundar a cena cultural, foi esquecido pelos grupos que surgiram depois. Por isso, criou um outro movimento, os “Excluídos”, que juntou algumas pessoas que se sentiram preteridas pelo “Arrebentando Barreiras”. Mas ele garante que a intenção não é se pos-tar contra e sim declarar abertamente que foi deixado de lado. Sérgio não entende essa postura. Garante que todos foram chamados diversas vezes, mas não compareceram a

nenhuma das reuniões e que essa exclusão é totalmente voluntária. Diante do impasse, é complicado tentar ava-liar quem está com a razão. O que vale são as impressões. De um lado está um grupo de jo-vens que procuram modificar a realidade do Coque a partir da música, de forma aplicada e comprometida. Do outro está Xicharro, com ressentimentos por se sentir de fora de um movimento que ele ajudou a criar justamente no momento em que ele aparenta ter mais força.

A conversa fácil e o ar de malandro de Xi-charro pode indicar que ele não se compro-mete como deveria com o movimento, mas pensar assim é fazer um julgamento pre-cipitado. Basta ele empunhar o violão para perceber que todos ao seu lado sabem cantar suas músicas.

Tanto Xicharro quanto Sérgio, cada um a seu modo, tem carisma e força para estimular, com suas canções, uma transformação so-cial. _

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música

Como manter uma banda de rock no Coque? As dificuldades são grandes e incluem desde a problemática para comprar instrumentos até o aparelho de som e onde ensaiar. Dimas, vocalista da banda de metal melódico Dragon Ranger, faz conservatório junto com Renato, baterista, e sempre que precisam ensaiar vão para algum estúdio fora da localidade. “No Coque tudo é mais difícil. Aprendemos a tocar fora da localidade e sempre ensaia-mos em estúdios no centro da cidade, pois é difícil ensaiar dentro da comunidade”, ex-plica o músico.

Para driblar as adversidades, alguns músi-cos se juntaram para comprar o aparelho de som que viabiliza todos os ensaios. “Foi muito sacrifício, mas fizemos uma vaquinha e conseguimos comprar as caixas e ampli-ficadores. Agora não precisamos sair do bairro para ensaiar”, se entusiasma Sérgio, do Matéria Bruta.

A formação musical também é complicada. Sérgio sabe disso e tenta contribuir para modificar essa realidade. Junto com Procó-pio, ele idealizou um projeto para dar aulas de violão e baixo acústico para as crianças do Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Meno-res de Francisco de Assis), ONG que atua no Coque. —

Por Guilherme Gatis

Superando as dificuldades

Por Sérgio Souza

Coque é rock(colaborador)

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Se o Coque fosse música, com certeza, seria rock. Foi do rock que surgiu a iniciativa de mostrar para as pessoas a face artística da comunidade. Antes, nenhum grupo ou movimento cultural havia pensado em divulgar a parte boa do Coque, mostrar que lá não existe somente o que se vê nos jornais e na televisão.

Eu vejo no rock um ótimo veículo para protestar contra as desigualdades que vivo em minha comunidade, e foi no ano de 2000 que, junto com amigos revoltados com a situação decadente em que se encontrava a cultura local, resolvemos fundar a primeira banda, os Bastardos Infames, e o primeiro evento de rock do bairro, o Coque em Rock (nome que particularmente não gosto porque se parece muito com Rock in Rio).

O primeiro Coque em Rock foi sensacional! Neste evento tocaram bandas de Boa Viagem, Areias, Afogados, Ibura, mas a banda principal foi mesmo o grupo da comunidade. O público não era muito, em torno de 300 pessoas, a maioria do próprio bairro e que nunca tinha presenciado um evento de rock.

Esta foi a primeira vez que subi ao palco. Naquela noite, tocamos Green Day, Nirvana e composições nossas. O primeiro impacto foi a incerteza de como seríamos recebidos pelo público e a expectativa era se seríamos

aceitos, ou não, pelo fato de nossas músicas, já no início, terem um sentido crítico.

O sentimento que movia a banda era o não-contentamento com as injustiças que aconteciam dentro e para com o bairro. O que ocorria, e ainda ocorre, é a forma repressiva como a polícia trabalha, a falta de interesse dos líderes comunitários em mudar a imagem do Coque e também a ausência de políticas públicas eficazes que contribuam para a mudança do contexto do bairro e de outras tantas comunidades.

Após minha saída dos Bastardos Infames, em 2001, passei dois anos estudando música e, em 2003, junto com um amigo, resolvi fundar o Matéria Bruta, que tem como objetivo fazer um rock pesado com letras poéticas e críticas. A formação da banda já mudou várias vezes, mas continuo na batalha difundindo nossas ideologias, pois não somos rebeldes sem causa. Temos uma questão profunda e seriíssima para resolver: mudar a imagem do nosso bairro.

Depois do primeiro Coque em Rock, o sentimento de revolta se espalhou e outros jovens se engajaram na causa, fundando, então, um movimento organizado de conscientização e divulgação do cenário musical do bairro: o Arrebentando Barreiras. O nome é uma referência aos muros invisíveis

que cercam o Coque e que não permitem que nada de bom saia ou entre na comunidade. Somos jovens e adultos organizados para quebrar os tijolos destes muros invisíveis, ou seja, promover os grupos locais para que o espaço do palco e público das bandas sejam aproveitados para uma conscientização sobre temas importantes.

Aos 17 anos eu já tinha uma concepção de como a sociedade vê o nosso bairro e isso me impulsionou a lutar contra as injustiças que promovem a desigualdade e a discriminação. A única arma com que eu posso contar nessa batalha é a música, pois é nela que expresso minha opiniões e sentimentos. Eu sei que é com o rock que eu mudo o Coque.—

música

Sérgio Silva de Souza tem 23 anos, mora no Coque

desde que nasceu e a partir dos 17 anos começou

a compor.

Ampliando o movimentoPor Guilherme Gatis

O Rock é a base para a mudança. É a trilha so-nora para a mobilização social. É também uma língua universal, que pode ser usada como senha para o intercâmbio de experiências e vivëncias entre diferentes comunidades.

É com essa certeza que os músicos do Coque sobem o Alto José do Pinho, em Casa Amare-la, para ouvir Canibal, líder do “Devotos” e figura importante na transformação social que aconteceu naquele bairro.Assim como o Coque, a comunidade de Casa Amarela já foi conhecida pela violência.

“Antes eu marcava com as pessoas fora do Alto para encontrar com elas. Hoje eu sei que posso chamar as pessoas, que elas podem subir que não vão ter qualquer problema”, comenta o músico. A mudança aconteceu com a união das bandas e com a mobilização de toda a comunidade.

O encontro com Canibal foi proposto, como parte do processo de produção dessa repor-tagem, objetivando tentar entender um pro-cesso que deu certo no Alto Zé do Pinho e que pode ser frutífero também no Coque. Nesse

A malandragem de Xicharro fica evidente quan-do ele pega o violão. Em meio a uma música e outra, explica a história da canção. Sempre faz questão de pontuar também o sucesso que elas fazem na comunidade. De velhos a crianças, todos sabem cantar, todos chegam perto e entoam um verso. Ele diz que não gosta de en-saiar, que é no palco que ele mostra sua verda-deira força. Cantando ele se desviou do caminho mais fácil, a criminalidade. Xicharro explica que é muito simples conseguir uma arma no Coque. Armas e drogas, basta querer. Não fo-ram poucas as oportunidades que ele teve de seguir para o caminho do crime, mas sentia que a música era maior. Recentemente invadiram seu barraco e roubaram o aparelho de DVD. Ele sabe quem foi. Sabe que é fácil pegar uma

arma e tirar satisfações. “Mas não vale a pena. Todos nós sofremos com esse tipo de violên-cia, mas responder com mais violência não é o caminho. Por isso fiz essa música. Ela retrata a dura realidade da cidade. Começa falando do Recife, das coisas boas da cidade, depois vem pro Coque, comenta a truculência da polícia, no caso em que uma senhora foi atingida por uma bala perdida. Já tenho todo o clipe dessa música na minha cabeça, seria interessante se pudéssemos trabalhar com vídeo depois, para filmar. Começa com as pontes, o Recife Antigo, depois corta para a estação, para a Vila. Quer ouvir?”. (GG)

Música como Saída

sentido, a boa vontade do músico, que pro-meteu não ficar apenas na conversa, foi um incentivo a mais para as bandas que tentam criar uma cena musical ainda sufocada pelo viaduto Joana Bezerra. Canibal disse que vai ajudar as bandas do bairro com projetos de música. E foi enfático: “O mais difícil não é ser necessário, é fazer com que todos sejam necessários. A comunidade precisa ter essa consciência e a força da cena musical é o caminho mais fácil de atingir essa meta”. —

“Por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague” (Chico Buarque)

“A cidade não pára, a cidade só cresce. O de cima sobe e o de baixo desce”(Chico Sciente)

A música não pode ser dissociada do con-texto cultural. Para entender o sentido de transformação evocado pelos versos de Chico Buarque, de Chico Science ou da ban-da Matéria Bruta é necessário mergulhar no universo dos autores. A canção de Chico Buarquea, Deus lhe pague, foi composta em 1971, durante o período negro da dita-dura, o governo Médici. Era o apelo irônico do povo oprimido. Já em A Cidade, de 1994, o contexto era outro. Chico Science e Nação Zumbi, gravando o primeiro CD, faziam com que os pernambucanos revalorizassem a sua a própria cultura. Era o início do Manguebeat, movimento musical que elevou a auto-estima recifense, assim como chamou atenção dos jovens para as injustiças de dentro da nossa cidade.

E foi exatamente a insatisfação com as desigualdades sociais que motivou adoles-centes do Coque a cantar para conscientizar a própria comunidade. “Não somos rebeldes

sem causa” – diz Sérgio Souza, vocalista do Matéria Bruta, uma das bandas do lugar – “É pra nossa comunidade que fazemos música, para que as pessoas não fiquem acomoda-das. Queremos divulgar o nosso trabalho e mostrar que é possível mudar o Coque”. É impressionante como os meninos do rock têm consciência do canal de comunicação que lhes é aberto pela música, um caminho oposto ao da criminalidade que estigmatizou o Coque. Eles sabem que, mais que mudar as manchetes dos jornais, é preciso que as pes-soas não se submetam aos abusos nem aos bandidos nem dos policiais. Com ensaios, os grupos de rock convidam seus vizinhos a resgatar a dignidade.

Eles apostam na música como um meio de transformação pessoal e, depois, de trans-formação social. Guitarras, baixos, bateria como instrumentos de inclusão social. Assim como o grito de abaixo a ditadura e a retoma-da da valorização das raízes pernambucanas, a transformação do Coque pode começar pela música, pela cabeça de garotos que, mais que gostar do estilo musical, sentem-se como responsáveis por essa mudança.—

O anúncio ao microfone prepara toda a vi-zinhança. É dia de ensaio dos roqueiros na Rua Catalão, no Coque. A bateria, guardada durante a semana na varanda, foi montada na rua, junto aos amplificadores aos quais estão ligados o baixo, as duas guitarras e o microfone.

Em frente à casa de Procópio, baixista, quem ensaia é a banda Matéria Bruta, que tem Sér-gio no vocal e na guitarra solo, Neuber na guitarra base e Rico na bateria. Por vezes são aplicados, ensaiam sério, treinam os ar-ranjos das músicas próprias. Outras vezes curtem um som, tocam um cover e tiram uma onda. Vários amigos sempre aparecem. Al-guns são de outras bandas, e chegam para dar uma palhinha.

Na Catalão, as casas são conjugadas e a-pertadinhas, ou seja, todos escutam o en-saio. Mas cada um parece entretido com suas próprias atividades: meninos correm para cima e para baixo. Os moradores, pelas calçadas, em frente às suas casas, seguem conversando normalmente. Dois policiais fazem guarda na esquina. O jogo de futebol segue animado, e só pára quando passa uma carroça ou eventualmente um carro.

Em algum momento do ensaio, se faz uma “vaquinha” e alguém sai para comprar o combustível: uma Pitú, um refrigerante e um pedaço de queijo coalho. É o rock etílico da Catalão, animado, compondo um dia de sábado na comunidade do Coque.—

Uma transformação cantadaPor Juliana Paes

“Hoje não tem novela!”Por Carolina Senna

“Não sou condenado a ser quem você querMentir para mim mesmo, me deixar trairNão sou condenado a não poder viverVer o meu tempo se acabando e você sorrirNão sou condenado a ser quem você querTe realizar com minha derrota, perder a razãoNão sou condenado a não poder não serMais um escravo de uma sala de televisão”

“Estou cansado de tragar minha vidaMe tornar um suicida antes de me matarCheirar a morte e embarcar na desgraçaImplicar com minha sorte, não parar de errarEstou tentando não morrer aos poucos...”

Trecho da música Pequeno Inferno,de Sérgio Silva de Souza

Bandas de rock do Coque

Província RebeldeMatéria BrutaXicharro e seus amigos cabras safadosPorcosDragon RageBlasfêmiaMaracatu Atômico do CoqueBastardos Infames

Música como Manifesto

“Ele parecia dormirmas estava mortoa sua alma no infernoseu corpo no necrotériocrivado de balae no chão da favelaa família acendia velascom lágrimas nos olhosfaziam oraçãomeu deus, meu deusalivia minha dor, alivia minha dore quem matouesta vivo, olhando pra ele

sorrindo pra mim...”

Trecho da música Drama, de Xicharro

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música

Ao entrar no Coque pela primeira vez, lem-brei do medo que sentia ao passar pelas pro-ximidades do bairro toda vez que cruzava o viaduto Joana Bezerra, pois no imaginário do Recife, a comunidade é apenas perigo. Mas as impressoes apos uma visita atenta sao ricas e surpreendentes.

O Coque é extenso – toca a Avenida Sul, a Casa da Cultura, o Cabanga e a ponte nova do Derby, margeia a maré, toca a linha do metrô, a Rua Imperial e a Avenida Agamenon Magalhães. São cerca de 140 hectares para mais de 40 mil habitantes. A comunidade é dividida pelos moradores em localidades, como se fossem pequenos bairros. Tem a Vila, situada perto da Estação Joana Bezerra; a Realeza, para o lado da Rua Imperial; a Areinha, perto da maré; além da “Boca” ou “Favela da Vila”, Rua da Zuada e Rua do Campo, Favela do Papelão, Curva do S, onde se vive da coleta de lixo para reciclagem, Avenida Cabo Eu-trópolis, principal via dentro do Coque, Vila da Areinha e Cabanga, perto da Avenida Sul. Tem ainda o “Outro Lado da Estação”, a Vila do Motorista e a Rua Azul, localidades que não pude visitar porque lá meus guias não tinham conhecidos.

Nas andanças pelo Coque estive sempre com Procópio, que mora na Vila, e José Ferreira, que mora na Areinha, ambos com 22 anos.

A Vila é parte mais próxima da Agamenon Magalhães, bem em oposição ao Fórum. De ‘vilas’ são chamadas todas as localidades cujas construções foram providenciadas pela prefeitura ou pelo governo — mas ‘A Vila’ mesmo é apenas uma. A rua de acesso ao Neimfa , ONG que serviu de base para nosso trabalho, margeia o canal a ceu aberto na entrada da Vila. À esquerda da rua estão dis-tribuídas casas conjugadas perto do canal. Cruzando uma ponte sobre ele, chegamos à Rua Catalão, onde alguns jovens roqueiros se reúnem toda semana.

Se acompanharmos o canal, as casas dão lu-gar a estábulos que abrigam burros e cava-los. Curzamos uma praça sempre cheia de crianças brincando. Bem perto, duas escolas do Coque, a Costa Porto e a Josué de Castro. Ao fundo, no horizonte, o Hospital Espe-rança. A praça tem escorrego de concreto, pilares que já serviram de suporte para ba-lanço, bancos e outras estruturas feitas para brincar. Mas está completamente depredada. Os balanços foram roubados, assim como os refletores. “E você pensa que essa praça é velha?” — Procópio me perguntou, e logo acrescentou que não fazia mais de três anos que ela existia.

Os meninos que me guiavam sabiam quem tinha roubado os balanços. Quase sempre os “criminosos” são amigos de infância, conhecidos ou parentes, em algum grau, de todos os outros moradores do Coque. Lidar com isso é difícil. Se, por um lado, é impre-scindível fazer distinção entre aqueles que se envolveram no crime e aqueles que não, reforçando as responsabilidades e as esco-lhas individuais, por outro lado, é necessário reconhecer que essas escolhas são, em mui-tos casos, ditadas por um contexto social perverso. Ferreira sintetiza a questão ao afirmar: “nada justifica o mal, mas eu acho que tudo tem uma causa”.

Mais adiante, na Areinha, Ferreira foi guia não só para mim, como também para Procó-pio, que raramente vai para ‘aquelas bandas’. Ele explica o pro-blema: “na Areinha tem um grupinho, na Vila tem outro, na Realeza tem mais um grupinho, e são antagônicos”. Quando perguntei se esse antagonismo é generalizado, ele negou: “a questão da rival-idade é uma questão criminal mesmo: brigam por droga, por quem rouba mais”. Ferreira esclarece que as tensões são sazonais, já que a configuração desses grupos se altera freqüentemente, pois o tempo de vida ou de permanência no Coque para as pessoas

ligadas ao crime é muito curto. “Se naquela época tiver uma pessoa ali que não esteja re-speitando ninguém, então você evita passar naquele local”, explica Ferreira.

A Areinha é a ‘invasão’ mais recente no Coque. Seu Henrique, um dos primeiros moradores desta parte que avança sobre a maré, veio assim que a draga passou. Como ele, vieram muitos outros, que melhoraram o aterro e se organizaram aos poucos. Hoje, a Areinha já é uma faixa extensa. O lugar tem esse nome porque o chão é de areia mesmo, da maré. Ainda hoje podem ser vistas muitas conchinhas pelo chão. No início da ocupação do terreno, a maior parte dos moradores viv-ia da pesca e da coleta de crustáceos. “Essa rua antes ficava cheia de casca de sururu”, lembra seu Henrique. Hoje a maré poluída serve mais como lugar de brincadeira para as crianças.

Um dos desafios que exigiu grande paciência dos primeiros moradores foi uma praga de bicho de pé. Seu Henrique disse rindo que, ao meio dia, com o calor, os bichos pulavam do chão, fervilhando. Brincadeiras à parte, houve mesmo, segundo ele, casos extremos de pessoas que ‘aleijaram’, ou que se muda-ram por causa dos bichos. Uns dizem que a solução foi água com sal ou que foi cloro; outros dizem que foi simplesmente o tempo.

Na Areinha, por ser invasão, cada um tem a casa que construiu, no terreno que conquis-tou. O resultado é uma maior variedade nos tamanhos, formas e disposição no terreno. Em geral, as casas são um pouco maiores que as das vilas e os terrenos, mais arejados, com quintal e terraço e algumas árvores. A disposição irregular das casas impõe irregu-laridade também às ruas. O resultado é um emaranhado de becos e passagens estrei-tas.

Em todo o percurso, havia muitas igrejas

evangélicas, de todas as denominações. E também muitas casas lotéricas. O trabalho se via em toda parte: a barraca de acarajé, a Kombi de transporte escolar particular, as mesinhas para vender coxinha e salgados, as bicicletas e carroças de levar água mi-ner-al, gás ou frutas, e pequenos comércios ou serviços, como padaria, casas de consertos em geral, cabeleireiros ou vendas de picolé.

Os moradores fazem seus próprios serviços de construção ou infra-estrutura, como con-sertar seu telhado ou abrir uma vala para seu esgoto escorrer. Mas algumas interfe-rências do poder público puderam ser perce-bidas em uma visita – recapeamento de ruas, serviço de limpeza, casas construídas pela Prefeitura para reacomodação de moradores de palafitas. Mas a relação com o Poder no Coque é muito delicada, mediada por lider-anças comunitárias que muitas vezes estao envolvidas disputas e conflito de territorio de influencia.

À frente de algumas casas, era impressio-nante a quantidade de gente sentada nas calçadas. Eram pessoas jogando bingo! O lazer favorito no fim de semana é a praia e, de preferência, uma à qual possam ir a pé. Como disse Ferreira: “o Pina é Coque!”.

Dentro da comunidade, meninos jogam fute-bol ou bola-de-gude, e rodam peão; meninas jogam dama e famílias inteiras jogam dominó na rua. Clubes e bares também não faltam e música se escuta sempre, especialmente nos fins de semana.

O Coque é isso, e muito mais – nada muito diferente de outros bairros pobres, nada além de um retrato dessa cidade-paradoxo chamada Recife. —

Por Carolina Senna

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cotidiano

Uma visita ao CoqueGeografia, imagens, impressões

O Coque, pode-se dizer, é um bom lugar para se esconder. Lá você se esconde de quase tudo e usa quase tudo para se esconder. A própria história da povoação do bairro já car-rega essa característica de esconderijo. Na década de 70, durante o crescimento popula-cional mais intenso, as pessoas precisavam de abrigo e tinham como alternativa a comu-nidade. Mas essa fama pegou mesmo com a história do Galeguinho do Coque, criminoso que não era da área, mas estava sempre lá para se esconder da polícia. Criou-se assim um mito em torno da comunidade, de “aco-bertar bandidos”.

Esse mito criou um preconceito, e hoje as pessoas que moram no Coque, e que nunca praticaram nenhum crime, acabam sendo tratadas como bandidos. Para poder conse-guir emprego, muitos deles precisam colocar nos currículos ou dizer que moram em outros lugares.

Com esse preconceito, a comunidade fica isolada, e isso ajuda a esconder os seus ver-dadeiros problemas. Não aparecem os reais responsáveis pela situação ou os reais inte-ressados em que ela se mantenha como está, ou mesmo piore, pois isso daria um motivo para a comunidade ser deslocada para outros lugares, o mais distante possível da elite do Recife.

Para os moradores, resta se esconder no trabalho, e ninguém de lá trabalha por satis-fação pessoal. No Coque, o “trabalho” (bicos) esconde a falta de trabalho (o desemprego).

A maioria é obrigada a fazer o que aparecer e não tem a chance de seguir seus sonhos. Os evangélicos fogem “do mundo”. Outros se escondem no lazer, nos jogos, no futebol, para fugir das más condições de moradia, “incondições” das escolas (para onde as cri-anças só vão para brincar e comer), falta de perspectivas, etc., etc., etc.

Até mesmo aqueles que percebem esse es-conde-esconde não têm como deixar de fugir. Não fogem de suas realidades, mas sim dos mecanismos de opressão e da submissão. Os grupos culturais ou artísticos do Coque tentam encarar a realidade e criar novas condições, o que se pode chamar de fugindo para se impor frente à situação. Esses grupos usam a arte para denunciar, de algum modo, tudo aquilo que se esconde no Coque e tudo aquilo que escondem sobre o Coque.

Ridivaldo Procópio da Silva, 22 anos, é Agente de Desenvolvimento Comunitário da ONG Neimfa e aluno do curso de For-mação Política da ONG Etapas. É também baixista da banda Matéria Bruta do Coque, onde mora desde que nasceu.

O Coque é um mosaico de realidades e pes-soas. Se, de um lado, existe na comunidade gente com renda suficiente para comprar um carro, do outro, há aqueles que não têm seq-uer um espaço decente onde morar.

Esse é o caso de Seu Deca, que mora há 28 anos na Areinha com a esposa, Dona Joana. Além do casal, na pequena casa vivem mais 26 pessoas, entre filhos, noras, genros e netos, E tem mais um chegando: Cirlene, 15 anos, casada há dois, está esperando seu primeiro filho.

Para sustentar a família, Seu Deca conta com aposentadoria de apenas um salário mínimo e faz bicos como pedreiro. “Também pesco, cheguei da maré nesse instante”, conta.

Dona Joana também ajuda, catando papel e garrafas para vender. Antes de morar na Areinha, Seu Deca vivia com a família na Rua Azul. “Essa casa aqui tem mais espaço. Lá, era muito apertado”, afirmou para surpresa de quem tem outra experiência com a divisão do espaço.

A família de Seu Deca é um exemplo da vida dura, mas decente, da maioria da gente do Coque. que luta para sobreviver com digni-dade.—

O esconderijo chamado CoquePor Ridivaldo Procópio da Silva

Cabe mais um?Por Conceição Gama

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cotidiano

[Topo] Seu Deca vive na comunidade da Areinha há 28 anos. [Acima] O cotidiano do Coque.

(colaborador)

O Coque já foi mangue. A necessidade de moradia da população provocou sucessivos aterramentos, e a conseqüência foi a di-minuição considerável da área. O que restou lembra aos moradores de hoje a beleza e a generosidade do ecossistema. Mesmo lu-tando para sobreviver aos elevados índices de poluição, o mangue ainda oferta ao bairro um cheiro saudável de maresia, a vegetação ribeirinha composta por árvores de frutas tropicais, o solo fértil e o espetáculo singu-lar de pequeninos caranguejos, os chiés.

O mangue vive um paradoxo. Ao mesmo tem-po em que os moradores desenvolvem com ele uma relação amistosa, também agridem. Tomam banho, mas despejam esgoto. Tiram peixes e crustáceos, mas colocam lixo. O que poderia ser uma piscina natural se transfor-mou em depósito de detritos caseiros, mas também de resíduos industriais – suspeita-se que fábricas de sabão e borracha despe-jem os restos de seus trabalhos nas águas. Embora esteja poluído, o mangue do Coque é espaço de aproveitamento comercial, ain-da que por poucos. Através das pescarias e viveiros – construídos com simplicidade, a-través do cercamento de um pedaço de água

– alguns conseguem renda extra.

Entretanto, os habitantes, ao poluírem o mangue, deixam de tirar proveito de todas as suas potencialidades. De acordo com o oceanógrafo Zanon Passavante, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um mangue sujo tem muito de sua capacidade alimentícia enfraquecida. Ele, de acordo com o professor, ainda protege contra a invasão da maré: “é como se fosse uma barreira”, es-clarece.

Recuperar o mangue do Coque não é uma tarefa complicada. O professor Zanon ensi-na: “O processo é bem simples. É só espalhar as flores e esperar a maré encher”. Segundo Passavante, a técnica só se encarece quan-do a mão-de-obra é paga, o que não seria necessário no caso do Coque. “A população poderia fazer isso”, sugere. —

Potencial desperdiçadoPor Mariane Menezes

O problema da poluição ambiental no Coque – que tem no mangue sua principal vítima – reflete os graves problemas de infra-es-trutura do bairro. Logo na entrada da Vila (próximo à Estação Joana Bezerra), uma das principais localidades do bairro, há, por ex-emplo, um enorme canal improvisado pelos próprios moradores, que funciona como um verdadeiro esgoto a céu aberto. Sobre ele, há uma grande quantidade de palafitas, o que dificulta a limpeza do lixo que ali tam-bém é despejado.

A falta de saneamento básico na maioria das localidades do Coque é agravada pela coleta limitada de lixo. Além de se amontoar no mangue, entulhos são acumulados nas ruas, especialmente nas mais estreitas. A coleta é feita todos os dias, mas se limita às vias principais, como a Rua da Zoada, e aos bair-ros próximos ao Fórum Rodolfo Aureliano e ao viaduto Joana Bezerra. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Recife (2005), apenas 10,44% dos moradores vivem em residências sem serviço de coleta. Entretan-to, os índices não se confirmam pelo que se vê ao andar pelo bairro.

A coleta na Areinha, segundo Elziene Fechine, é realizada por carrocinhas de três em três dias. A moradora é sincera a ponto de assumir sua responsabilidade – assim como a de outros moradores – pela situação crítica. “Eu admito que jogo lixo no canal. O coletor funciona, mas é mais fácil jogar ao lado. Existia um cesto de lixo em cada rua, mas até o cesto roubaram”. Rafael Freitas, líder comunitário, atribui o comportamento “à falta de educação ambiental e de higiene da populaçao”.

Nesse contexto, em que as múltiplas agressões ambientais estão diretamente re-lacionadas a carências de toda ordem, outro

grave problema é a dificuldade para se obter água encanada. Segundo dados do Atlas do Desenvolvimento, 31,1% dos residentes não recebem o serviço em seus domicílios.

Entretanto a realidade denunciada pelas pessoas é diferente, as reclamações e quei-xas são unânimes. Elziene diz que o líquido “chega enlameado”. Além disso, há a dificul-dade diária em conseguir água.

João Boulitreau, vice-gerente regional da Compesa, explica que a empresa não está autorizada a abastecer ou sanear as áreas que não sejam legalizadas, como a maioria das localidades do Coque. “Para o Ministério Público, estender serviços a loteamentos ir-regulares é estimular a ocupação, e dá de um a quatro anos de cadeia”, justifica. De acordo com o vice-gerente, a água chega ao bairro em intervalos idênticos ao que acontece no Grande-Recife – dia sim, dia não, “mas o abastecimento só contempla quem está re-gularizado”, contrabalança.

Quanto à salubridade, Boulitreau é incisivo. “As pessoas dizem que a água está barrenta, quando o que acontece é um processo muito comum de oxidação do ferro. Como a água não vai todos os dias, o cloro oxida o ferro, transformando-o de líquido em sólido, daí o aspecto de lama.

Se o motivo não for esse, suponho que o abastecimento em questão seja ilegal, por isso, mal-feito e prejudicial à qualidade da água”. [ M.M. ]

Falta de saneamento básico: a grande vilã

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meio-ambiente

No Coque, existe uma possibilidade concreta de preservação ambiental: a Escola Munici-pal Novo Mangue. Um lugar em que a tarefa de casa dos 385 alunos não se resume aos livros didáticos, envolvendo os cuidados com a natureza. A vice-diretora da escola, Maria Aparecida, tem consciência que as ini-ciativas da Novo Mangue não são suficientes para reverter o quadro atual de degradação do mangue. Segundo Aparecida, o problema começa com a falta de iniciativa da própria comunidade. A reciclagem, proposta pela escola, com o material plástico retirado do ecossistema, por exemplo, é considerado pe-los pais de vários alunos como um trabalho menor.

O projeto da Escola Mangue começou em 2000, quando o local, às margens do mangu-ezal, foi comprado pela Prefeitura do Recife. No pátio externo, os mangues mais raros e em processo de extinção são cultivados iso-ladamente. No interior das salas, os alunos produzem mini-jardins e têm o dever de

mantê-los saudáveis.

Entre 2004 e 2005, numa parceria pública-privada firmada com a Fundação Philips, a es-cola capacitou professores para desenvolver atividades voltadas para conscientização e sensibilização com o meio ambiente.

Apesar dos sucessos da sua atuação, a Novo Mangue sobrevive com dificuldades. Seus administradores, não raro, têm que tirar do próprio bolso a renda complementar. Mesmo assim, a escola trabalha na educação ambi-ental por acreditar que a melhor saída para os problemas de poluição enfrentados pela comunidade está além da coleta e do sanea-mento. Dependem também, de um trabalho de educação, principalmente com as novas gerações.

Educação ambiental conscientiza jovensPor Endie Eloah

Assim que me alistei no exército, vivi uma experiência marcante. Ao desbravar uma floresta paulista em 2001, encontrei uma situação terrível: uma grande área des-matada. No lugar de pau-brasil, encontrei tocos de árvores. Constrangido, procurei as autoridades e fiz uma denúncia anônima. Descobrimos que as árvores estavam sendo exportadas ilegalmente para os Estados Uni-dos e para a China. A empresa responsável teve que pagar multa e replantar a área des-matada.

Eu transfiro esta situação para o lugar onde moro: o Coque. A depredação ambiental se estende à comunidade, através da poluição do mangue e das ruas. O número de árvores desmatadas se compara à quantidade de pes-soas que jogam lixo no mangue. A responsa-bilidade não pode ser creditada apenas às autoridades, pois as pessoas sabem que o ecossistema é importante para o equilíbrio ambiental. Entretanto, é mais prático jogar o lixo na beira da maré do que esperar pela coleta, até porque a freqüência dos cami-nhões vive mudando.Por isso, sinto-me deslocado quando falo para não poluir. E o que me desmotiva a continuar reclamando é escutar piadinhas e ironias. As pessoas dizem que não tem jeito, afinal, atitudes isoladas, como a minha, não

mudam uma situação total. É um bom argu-mento, que às vezes me faz pensar em parar minhas tentativas de conscientização. Mas não vou, porque acredito que essa é a única maneira de transformar a cabeça de alguém. É justo reivindicar uma solução do poder público para o lixo e falta de saneamento, mas também precisamos fazer esforços para preservar.

Quando vejo o mangue tão sujo, penso que todos nós poderíamos utilizá-lo muito mel-hor, aproveitando a água, pescando, cons-truindo viveiros, como faziam os primeiros moradores. Só de imaginar é um estímulo. Modificar o ambiente no Coque custa um es-forço que vale a pena. Porque não há melho-ria na qualidade de vida sem se viver em paz com o meio ambiente. —

Carlos Alberto da Silva, 23 anos, é estudante do 2º ano do Ensino Médio e aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento Comunitário da Neimfa.

Saudades do mangue limpoPor Carlos Alberto da Silva

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(colaborador)

Coque em Números

Água

- O percentual de domicílios com água encanada em bairros como Graças e Derby é de 99,45%. Já no Coque o percentual é de 68,9%.

Saneamento

- Menos de 1% da área do Coque possui saneamento básico. Apenas duas ruas são saneadas: a rua da Regência e a Desembargador Guerra Barreto.

Coleta de lixo

- O Coque ocupa a 55ª. posição entre os bairros atendidos pela coleta de lixo da Prefeitura: 89,56% dos moradores dispõem do serviço.

Saúde

- Seis equipes do Programa Saúde da Família atuam na comunidade. Com um total de 22 profissionais: seis médicos, seis enfermeiros, seis auxiliares de enfermagem, dois dentistas e dois auxiliares de dentista.

Fontes: Compesa, Emlurb e Secretaria de Saúde do Estado.

meio-ambiente

“Capim, palha de coco e candeeiro”, apontou a senhora de 67 anos olhando para fora de sua casa, como quem revê a paisagem ala-gadiça e anfíbia que encontrou quando che-gou no Coque, há mais de cinqüenta anos. As pessoas precisavam subir em um bote para ir à Madalena e aos outros bairros porque eram reféns do Capibaribe.

É de se imaginar Dona Marion, que na época ainda não havia ganhado esse apelido e chamava-se Isabel Marili, embrenhando-se por dentro do capim e do manguezal, fincando as primeiras tábuas e cobrindo com palhas o barraco em que morou inicialmente. Tudo isso com uma luz fraca de candeeiro, pois a noite escura era cúmplice da ocupação. Da mesma forma que o barraco de Dona Marion, ergueram-se depois muitos outros, incluindo os da primeira rua, a Cabo Eutrópio, e das áreas conhecidas como Vila, Realeza, Are-inha... Todos abrigavam gente que emigrou do Agreste e da Zona da Mata. Eram famílias que chegavam ao Recife em busca de moradia e encontravam ali uma área fértil para a ma-terialização dos seus sonhos, uma vez que aterros sucessivos haviam destruído par-cialmente o mangue da região para encobrir o lixo ali despejado.

“Ninguém tem idéia de como era o Coque. Era tudo praia. A gente veio e tinha que passar numa ponte estreita para não cair no rio. Era um lixo só e as prefeituras foram jogan-do areia. Isso tudo aqui um dia foi aterro, ganhado da maré”, reporta Dona Paulina, 58 anos, uma antiga moradora, que sorri bastante quando o assunto é a memória da comunidade.

Cristalizou-se então, no imaginário do bair-ro, um sentimento de constante luta contra a maré, que tantas vezes ameaçou tomar de volta as praias que lhe foram roubadas. Agora, porém, ao invés de caranguejos, es-sas praias estão cheias de famílias, morando

de maneira precária em seus barracos. Ione Maria José da Silva, a Dona Zezé, que vive no bairro há 45 anos, relembra que “o Coque era como Brasília Teimosa, com aquelas tantas casas de palafitas. Eu aluguei um quartinho aqui e fui ficando. Mas quando deu a primeira cheia, eu corri com meus filhos pra eles não morrerem afogados”.

A história do bairro foi construída com mui-tos momentos de sofrimento e luta como o de Dona Zezé. Um outro símbolo da determi-nação em ocupar a área é Miro de Oliveira, filho de dona Marion. Ele era um jovem que não esperou a promessa de moradia por parte dos políticos e resolveu por conta própria carregar tábuas em um carrinho de mão para construir barracos e garantir a ocupação da praia. Hoje, ele é uma das referências na ocupação da Areinha, uma das áreas mais ig-noradas pelo poder público. “Olhe, meu filho morreu no sábado de carnaval do ano pas-sado. Ele era muito doente. Mas ele fez muito pela melhoria da gente daqui. Aquelas casi-nhas da Areinha era ele quem fazia, a troco de nada”, conta Dona Marion, segurando um porta-retrato com a foto do filho que morreu aos 33 anos, em decorrência do vírus da HIV. A história do “Finado Miro” é apenas uma en-tre várias que confirmam a vocação histórica do Coque para a resistência.

O passado no qual o bairro está inserido é rico também em exemplos de luta. Foi ali onde as tropas republicanas combateram as forças monarquistas de Dom Pedro I, na Confederação do Equador, cujo líder, o Frei Caneca, foi fuzilado em 1835 no Forte das Cinco Pontas.

Em 1935, novo choque político: o segmento recifense da Intentona Comunista, liderado por Gregório Bezerra, fez da região um dos palcos de seus combates em prol da implan-tação de um regime de esquerda no Brasil.

Por João Vale Neto e Wagner Sarmento

A esperança nas transformações parece ser, até hoje, uma outra histórica vocação do lu-gar; do contrário, poucos teriam superado as dificuldades dos primeiros anos da ocupação: “A gente só tinha um chafariz aqui, então todo mundo corria para lá para apanhar água”, conta Dona Marion. Juntamente com ela, também outros senhores, que hoje o-ferecem suas memórias em testemunho, car-regaram muita água em baldes de ferro para estabelecer suas raízes no bairro.

Apesar dos graves problemas de infra-estru-tura do Coque, os moradores mais antigos reconhecem o que já conquistaram. Dona Paulina, por exemplo, pondera que “agora a gente tem escola, tem rua asfaltada, tem muita coisa boa”. De fato, nos últimos vinte anos, o Coque assistiu a um processo que envolveu a pavimentação e drenagem das ruas, transformação de muitas das casas de tábua para alvenaria, abertura viária e esgotamento sanitário, além da construção de dois colégios. Entretanto, a melhoria não contemplou toda a comunidade, pois, embora boa parte da população que margeia a maré já tenha sido transposta para áreas mais urbanizadas, a necessidade de garantir um teto próprio impulsiona novas investidas em direção ao mangue. Surgem assim os contrastes e as visões contraditórias sobre o Coque entre os seus próprios moradores. Por um lado, os moradores mais antigos que, com sua luta, conquistaram asfalto, luz e água encanada, expressão um carinho extraordinário pelo lugar onde vivem. Por outro, os que ocuparam mais recentemente a região revelam um misto de desencanto e desconfiança em relação ao que podem ainda conquistar dos poderes públicos.

Como quem teima, tantos anos depois, em manter a esperança, os mais velhos fazem questão de registrar seu sentimento pelo Coque: “Não existe lugar melhor que esse, só se aparecer outro igual.

A vizinhança aqui é amiga, todo mundo gosta de todo mundo e briga com todo mundo, e assim a gente vai levando a vida”, diz Seu Melquidesec Alves da Silva, o Seu Deda, 69 anos, com a serenidade que o tempo lhe trouxe.

De fato, quem ajudou a construir a comuni-dade, como ele, sente o desejo de dividir com os outros um certo orgulho contido de “ser do Coque”. Faz questão também de dividir com os moradores mais jovens momentos im-portantes para a memória do bairro, como a passagem do então presidente João Baptista Figuerêdo, que visitou a rua Cabo Eutrópolis nos idos de 1980.

Lá, cercado de líderes comunitários e dos moradores, “ele disse que todos nós que habitamos aqui, quem botasse um bolo de barro no terreno, esse era o proprietário” relembra Seu Deda.

A promessa do presidente se perdeu em meio as dificuldades que os moradores ainda enfrentam pela regulamentação da posse do lugar que ocupam. Seu Deda, como mui-tos outros, ainda sonha com o dia em que a promessa se cumpra e que, além de donos de fato, sejam também donos de direito.

Entre os candeeiros de sua memória, Dona Marion se despede das lembranças seguran-do, emocionada, a foto das netas nas mãos. As filhas do Finado Miro hoje vendem bijute-rias no bairro de Afogados.

No retrato ao canto da sala, o pai das moças observa o bairro que ajudou a construir e im-agina quantas são as lutas ainda necessárias para que os outros moradores do Recife per-cebam no Coque um lugar digno de atenção e reconhecimento.—

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Capim, palha de côco e candeeiro

histórico

A memória da maréPor João Vale Neto

A primeira vez que fui ao Coque deixei o mo-torista do ônibus assustado. Não sabia onde descer e pedi informação. O moço respondeu: Para o Coque? Você tem certeza que é para lá? Para lá mesmo, respondi. Meses depois, a certeza já me permitia andar pelo bairro e conversar com os idosos. Chegávamos assim: “Vamos fazer um jornal para falar da comuni-dade. O que aconteceu de bom aqui?” Então, lentamente, eles começavam a desenterrar seu passado e nos surpreender com uma real inundação.

Navegamos por suas memórias, até que en-contramos histórias iguais à maré que os rodeia: fértil e generosa. Gente forte como Dona Marion ou seu Edivaldo, que sustenta a família com muita luta e trabalho lá dentro da Areinha; gente engraçada, de riso fácil, como seu Deda e muita gente amorosa e bem educada como Dona Zezé e Dona Paulina, que construíram uma história de trabalho social e ajuda comunitária dentro do grupo.

Fico me perguntando o porquê dessas memórias não serem valorizadas como deve-riam. Parece até que estão sendo aterradas

pelo preconceito. Diversas vezes já escutei: “Lembra de levar colete para ir ao Coque...”, ou coisas parecidas. Se eu não tivesse con-hecido esses antigos moradores e suas lembranças de luta, seria talvez difícil reco-nhecer o valor da história Coque.

Resta só saber se existe, de fato, espaço e in-teresse em reportar essas vidas que parecem flutuar no tempo sem que ninguém dê conta delas. A gente do Coque, no fim das contas, não é nem um pouco diferente daquela boa passagem de Macbeth:

– Paz, te peço. Ouso fazer tudo o que faz um homem; quem fizer mais, é que deixou de sê-lo.

O resto... Bem, depois da discriminação e do descaso...

O resto não é nada mais, nada menos do que um rótulo frio e desumano sobre a memória da maré.—

Há 60 anos, retirantes da região rural de Pernambuco migraram em busca de melho-rias financeiras para uma vila de pescadores perto do centro da cidade. Essas pessoas criaram raízes e vínculos, e daí veio o sur-gimento dessa comunidade, chamada Coque, cercada de mistérios sobre a criação do seu próprio nome.

Uma das histórias que ouvi quando era cri-ança conta que, em meados de 1950, existia um pequeno bar pertencente a um senhor chamado Coque e alguns trabalhadores em horário de almoço iam ao local para brincar, conversar, descontrair e descansar, apre-ciando uma boa cachaça. Nos fins de semana, eles se encontravam sempre com a idéia de visitar o bar do seu Coque. Falam também que, antigamente, existia uma carvoaria e o nome veio da melhor parte do carvão, cook. Outra hipótese diz que a origem vem dos co-queiros que existiam em grande abundância na região.

Mas não é só no nome que o Coque tem dife-

rentes versões. Os moradores buscam desco-brir a verdadeira cara da comunidade. É muito complicado encontrar essa face uma vez que ela é descaracterizada pela mídia, tornando difícil saber qual é o real sentido de viver no bairro. No entanto, nossa gente ainda vê aqui um lugar bonito onde nasceram, criaram seus filhos e vão criar seus netos. Para mim, o Coque é mesmo esse espírito de união que deu origem ao bairro, quando os migrantes vieram para cá, juntaram-se aos pescadores e imaginaram uma forma concreta de realizar seus sonhos.—

Rafael da Silva Freitas, 16 anos, nasceu e cresceu no Coque. É estudante do 2º ano do Ensino Médio e aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento Comunitário da ONG Neimfa.

História de uniãoPor Rafael da Silva Freitas (colaborador)

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Cook? Coke? Coque?

Coque = cuca Coque = cascudo Coque = tipo de penteado feminino Coque = carvão sem forma definida.

Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

histórico

Situado entre os bairros de São José e Afoga-dos e distante 2,5 km do centro do Recife e 3,5 km de Boa Viagem, o Coque está perto de tudo. Os serviços públicos e privados da metrópole (como hospitais, parques, esco-las, etc.) deveriam ser, portanto, partes in-tegrantes da vida dos moradores. Porém, tal privilégio geográfico não se traduz em van-tagem social ou desenvolvimento humano. Ao contrário, a localização, hoje tão valori-zada, chega a constituir uma ameaça. Os mo-radores vivem constantemente com medo de serem expulsos do lugar.

Valdemir Amaro, 48 anos, conhecido como Charque, avalia que existem muitas razões para esse temor. Presidente do Grupão, entidade popular do Coque de luta pelos di-reitos de habitação, ele mora na comunidade desde que nasceu. Extremamente politizado e consciente dos problemas do bairro, Val-demir acredita que o Coque é vítima de um processo de “expulsão branca”, silenciosa. Não é difícil perceber os vários elementos que amparam essa teoria. Para isso bastaria olhar o desenvolvimento do mapa local. Nos últimos dez anos, o surgimento da Estação de Joana Bezerra, da Associação de Apoio à Criança Deficiente (AACD) e do Fórum Tho-mas de Aquino empurraram o Coque cada vez mais em direção ao mangue. Os novos empreendimentos provocaram a saída de moradores para outras localidades dentro do próprio bairro sem a garantia sequer de uma indenização.

Esse é o caso, por exemplo, de seu José Fran-cisco da Silva Filho, 68 anos, mais conhecido com Seu Deca. Ele morava na Rua Azul, na li-nha onde hoje fica a AACD. Saiu de lá sem ser indenizado e foi construir sua casa na Are-inha, que à época ainda era um manguezal. Junto com ele moram mais 28 pessoas, en-

tre filhos, netos e genros. A casa é pequena e fica à beira da maré, onde Seu Deca ainda pesca. Ele passou dois anos fora, mas não pensa em deixar mais o lugar. “Fiquei com saudades e voltei. O Coque é muito melhor que os outros cantos. Eu construí tudo que tenho aqui”. Como o Seu Deca, existem mui-tos outros moradores que gostam do lugar, que têm sua história pessoal intimamente ligada a do bairro, mas que vivem constante-mente atormentados pela perspectiva de serem expulsos da área.

Para a maioria que vive no Coque, em função dos interesses de ocupação de empreendi-mentos imobiliários e de algumas empresas, há uma deliberada “demonização” do bairro na cobertura policial. Na visão de moradores como Charque, a imagem negativa do bairro veiculada pela mídia funciona, de algum modo, como cúmplice dessas estratégias veladas de “expulsão branca”, pois respalda ações que buscam confinar a comunidade nas localidades de menor valor imobiliário den-tro da Ilha Joana Bezerra. Um exemplo claro disso é a medida anunciada pelo Pólo Médico da Ilha do Leite.

Com o intuito de coibir os assaltos e aumentar a segurança pública na área, com respaldo da Prefeitura, o Sindicato dos Hospitais Parti-culares do Estado de Pernambuco (SindHosp) está investindo R$ 30 mil na construção de um gradil de 2,50 metros de altura no en-torno do Rio Capibaribe e área de mangue, por baixo do viaduto João Paulo II. O trecho em questão é considerado um território de vulnerabilidade visual para a Polícia Militar, uma vez que é utilizado por assaltantes para promover fugas e surpreender os transe-untes na área. Apesar do objetivo de frustrar esse tipo de ação criminosa, o gradil revela que, para os freqüentadores do pólo Médico,

Moradores vivem sob o medo da expulsão.Por José Juvino, Luísa Abreu e Mônica Alcântara

a comunidade do Coque é uma ameaça, o que reforça ainda mais o medo de expulsão entre os moradores.

Direito à terra: uma luta antiga

As ameaças à permanência da população no Coque são quase tão antigas quanto a ocupação da área. O surgimento do bairro re-monta ao final do século XIX com a ocupação de alagados e mangues pelos mocambeiros, ex-escravos e pescadores. Na época, essa região depositava o carvão que era utili-zado no Gasômetro, na Usina Termoelétrica e na Estação de Trens do Recife existentes na área. Foi justamente esse carvão, cha-mado “cook”, que deu origem ao nome da localidade. Os conflitos pela posse da ter-ra surgiram no início do século XX, com a ocupação de áreas próximas às margens do rio Capibaribe. Nesse período, começaram a aparecer os proprietários da região, entre eles o Barão Correia de Araújo, reclamando a posse da terra. A população foi, por diver-sas vezes, expulsa da área, mas a resistência era intensa, o que acabou acarretando várias mortes.

A partir da década de 40, com as migrações do Agreste e Zona da Mata para o Recife, o local se adensou, surgindo, então, novos proprietários exigindo a reintegração de posse. Diante do acirramento dos conflitos nos terrenos, o Governo Federal, através do Ministério da Fazenda, firmou um contrato de aforamento com o município, garantindo o repasse de 134 hectares de terra que de-limitam a Ilha Joana Bezerra à população. Em 1978, a União cedia as terras, de forma a possibilitar a regularização fundiária, sob a condição de que fosse realizada a urbani-zação de toda a área. O processo teve início com a visita do então Presidente da Repúbli-

ca, João Figueiredo, que realizou um comício no bairro com a finalidade de “oficializar” sua inclusão no Plano de Desenvolvimento da cidade do Recife.

Apesar da pressão do Governo Federal, o município não realizou nada em um ano. Para acelerar as ações prometidas, a comu-nidade se mobilizou. Fez um levantamento das condições de infra-estrutura da região e conseguiu que, em 1979, o então prefeito Gustavo Krause editasse um projeto de lei no Diário Oficial da União, no qual estava cons-tando o prazo de cinco anos para a completa urbanização da área e a doação de títulos de propriedade para 12 mil pessoas. A medida ocasionou a migração de moradores de ou-tras áreas para a localidade, resultando no surgimento de mais focos de tensão, como a favela da Realeza.

Nesse mesmo período, o Supremo Tribunal Federal (STF) embargou o processo de doação dos títulos de propriedade, diante de uma ação de reintegração de posse impetrada por Iraquitan Bezerra Leite, proprietário de dois terços dos terrenos da área. A Prefeitura chegou a propor aos moradores permutar a desapropriação com imóveis do município, mas os movimentos populares resistiram. Devido à falta de perspectiva quanto à posse da terra, os moradores, as-sessorados pela Comissão de Justiça e Paz, mobilizaram-se para exigir a edificação de equipamentos urbanos na localidade na tentativa de fortalecer a resistência e con-servação da comunidade.

Finalmente, em 1983 é votada e sancionada a lei de nº 14.511/83 – Lei de Uso e Ocupação do Solo do Recife – que reconheceu e institu-cionalizou os assentamentos habitacion-

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permanência

ais de baixa renda, classificando 27 áreas, incluindo o Coque, como Zeis (Zona Especial de Interesse Social) com o objetivo de pro-mover a regularização fundiária, ações de urbanização e sua integração à estrutura urbana. Concomitantemente, o município baixava o decreto de lei expropriatório da área pertencente a Bezerra Leite.

Apesar disso, até hoje, não há registro da entrega de nenhum título de posse aos mo-radores do Coque, o que tem contribuído para o medo recorrente de expulsão entre as famílias locais. Soma-se a isso o fato do decreto de lei expropriatório da área perten-cente a Bezerra Leite, que gerou dois proc-essos judiciais, ainda não ter sido concluído. Os herdeiros do antigo proprietário até o momento não chegaram a um acordo quanto às indenizações.

Apesar de tudo, o Coque resiste. Conviven-do com o medo de expulsão e lutando para manter o direito à moradia, a comunidade expõe o problema de habitação vivido em muitas outras periferias da cidade. O Coque (r)existe, apesar de todos.—

O reconhecimento do Coque como Zeis, em 1983, tinha o objetivo de estabelecer para os moradores da área instrumentos legais de acesso ao solo e a benefícios urbanos. Em outras palavras, a lei propunha a promoção da regularização jurídica, bem como a sua integração à estrutura da cidade com a per-spectiva de implantação de infra-estrutura e serviços urbanos, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população ben-eficiária.

Com o Plano de Regularização das Zeis (Prezeis), criado em 1987, foram instituci-onalizados mecanismos de gestão participa-tiva na condução de projetos de recuperação urbana e regularização, como, por exemplo, a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Este recente instrumento jurídico – que tem validade de 50 anos, podendo ser renovado – permite transferir para o morador das Zeis o direito real de uso da terra, ou seja, o dire-ito de permanecer na área pública ocupada,

desde que não alterada a finalidade para a qual a concessão foi dada.

No entanto, além de não haver registro da entrega de nenhum CDRU aos moradores do Coque até hoje, as ações de urbanização pre-vistas para as Zeis não chegaram a consti-tuir uma mudança significativa para o Coque. O bairro tem sido pouco beneficiado no que diz respeito às prioridades da comunidade – sobretudo saneamento e lazer – necessi-dades expostas nas plenárias do Orçamento Participativo (instrumento previsto pelo Prezeis para a participação das lideranças comunitárias na elaboração dos vários pro-jetos de intervenção urbanística das Zeis).

Medidas como o tratamento do canal que corta a comunidade, na rua Ibiporã, que é transmite várias doenças, sempre foram adiadas, por falta de recursos – já que seria necessário deslocar e indenizar as famílias que ocupam a sua margem.

Além disso, dentre as obras realizadas desde 2001 pela Prefeitura do Recife (PCR), apenas uma é referente ao lazer – o campo de fute-bol da avenida Martin Luther King, que se encontra em péssimo estado atualmente. Informações da PCR dão conta de que R$ 12,6 milhões já foram investidos na área nos últimos cinco anos, sobretudo em obras de infra-estrutura.

Porém, os investimentos nem sempre con-templaram diretamente os interesses da comunidade. A obra do Complexo Viário Joana Bezerra que, sozinha, custou cerca de R$ 8 milhões, por exemplo, é uma ação pri-oritariamente direcionada aos que não vivem no Coque.—

Assim como muita gente na comunidade do Coque, vivo com uma grande interrogação: até quando o Coque será de quem vive no Coque? Será que o setor imobiliário não tem interesse em ocupar a área? Será que os mo-radores não correm o risco de expulsão?

Acho que essas perguntas que me faço são bastante parecidas com as que os integrant-es do chamado Grupão, que reúne lideranças do bairro, faziam há 20 anos. Naquela época, a estratégia para expulsar os moradores do Coque era mais explícita. A elite não acei-tava que os pobres ocupassem uma área tão nobre: uma área praticamente central, bem próxima de praias e hospitais, além de viz-inha de uma das principais avenidas do Re-cife, a Agamenon Magalhães. O tamanho da área ocupada por essa comunidade também desperta cobiça.

Diante dessa área tão valorizada, começar-am a aparecer muitos “donos”, reivindicando a posse de terrenos com a intenção de con-struir suas empresas. Felizmente, a comuni-dade, com a ajuda do Grupão, conseguiu se organizar, resistiu e lutou até que a área foi

decretada Zeis. Mas, será que por ser Zeis a permanência da comunidade está completa-mente assegurada? Por que até hoje ninguém recebeu seus títulos de posse? Por não ter esses títulos, a comunidade até hoje tem medo de perder o que lhe pertence histori-camente.

Será que esse medo que os moradores do Coque demonstram de ser expulsos – ou fu-turamente “indenizados” – não tem funda-mento, como dizem alguns? Será que vamos conseguir resistir às novas estratégias de pressão? Será que hoje a grande estratégia não é o descaso e a divulgação de uma ima-gem ruim da comunidade?

A meu ver, a mais nova e cruel estratégia de pressão sobre os moradores do Coque é o abandono da comunidade por parte dos pod-eres públicos. Um abandono que gera muitos problemas sociais, sendo o principal deles a violência. Uma violência que gera o pre-conceito; um preconceito que gera a desval-orização da comunidade; desvalorização que faz até quem mora dentro do Coque duvidar do seu valor. E será que uma comunidade tão

sem valor merece estar numa área de tanto valor?

É por isso que os moradores do Coque pre-cisam acreditar e mostrar todo o seu valor. Essa deve ser uma nova estratégia de luta da comunidade. Mas, para que o próprio morador do Coque possa se valorizar e ser valorizado pelos outros, é preciso que ele tenha as mesmas oportunidades dos outros, que tenha acesso ao menos à educação e ao emprego. —

José Ferreira, 22 anos, é trabalhador informal e estudante do 2º ano do Ensino Médio. É também aluno do Curso de Agente de Desenvolvimento Comunitário da ONG Neimfa.

O Coque para quem vive no CoquePor José Ferreira

Por José Juvino, Luísa Abreu e Mônica Alcântara

Zeis favorece, mas não soluciona problemas

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(colaborador)

permanência

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A regularização fundiária no Coque é uma reivindicação histórica dos moradores do Coque. Nos últimos dez anos, a crescente valorização imobiliária da área aumentou ainda mais o medo de expulsão entre seus moradores. O vice-prefeito Luciano Siqueira, que trabalhou como médico no Coque entre os anos de 1981 e 1982, assegurou, no en-tanto, que a permanência da população está garantida por lei, e a lei será cumprida nessa gestão. Luciano Siqueira recebeu em seu gabinete os estudantes do curso de jorna-lismo da UFPE e jovens moradores do Coque para uma entrevista, na qual também falou sobre as formas de combate à violência no bairro.

Os moradores do Coque afirmam temer ser expulsos da área em função da espe-culação imobiliária. A PCR já sofreu algum tipo de pressão de setores interessados nessa desocupação?

Eu desconheço e saberia se houvesse. Pela arrumação de funcionamento do governo, e por uma relação de grande confiança mútua, nesses cinco anos de convivência, quando surge esse tipo de pressão, ou conflitos des-sa ordem, a porta de entrada é no meu gabi-nete. O Recife, porém, enfrenta um problema sério: nós somos um milhão e meio de habit-antes acomodados em apenas 220 quilômet-ros quadrados. Por isso, há historicamente alguns conflitos de interesse entre os em-preendedores econômicos e a população mais pobre em torno do uso e da ocupação do solo. A lei da Zeis foi uma grande conquista da população mais pobre porque deteve em muitas áreas o processo de desocupação. Esse assunto é, no entanto, motivo de ten-são permanente e é compreensível essa pre-ocupação da população. Se você chegar em Brasília Teimosa ainda hoje, com toda aquela estabilidade conquistada, as pessoas ainda se sentem inseguras. Seja lá ou no Coque, isso tem a ver também com a falta de cla-

reza das informações que circulam no meio da comunidade, mas não há esse risco.

O Coque vem sendo tratado de modo com-patível com a condição de Zeis?

A condição de Zeis é uma lei específica que dá garantias à população, preserva o direito dos moradores em áreas cobiçadas por grandes empreendimentos para eles não saírem dali. Se, porventura, houver qualquer tentativa de intervenção na área estável do Coque, a população está protegida pela lei e na nossa gestão ela será cumprida.

O que o senhor achou da decisão do Pólo Médico de cercar a área para se isolar do Coque?

O pólo médico se queixa bastante que há muito assalto ali. Você troca, por exemplo, a luz e logo ela é roubada. Outro dia, fui a uma consulta no Hospital Português e o médico que me atendeu disse: “Rapaz, olha, é um pedido pessoal, a gente só sai daqui em comboio; quando termina o trabalho, sai uma fila de carro porque, se não, é as-saltado em baixo do viaduto. Troca aquelas lâmpadas.” Eu disse: “Rapaz, a gente troca quase toda semana.” Aí ele perguntou: “Por que não bota a Guarda Municipal ali?” Eu respondi: “ Não resolve também.” Então, há realmente uma pressão nesse sentido. Em relação a essa proposta do Governo do Es-tado de colocar câmaras e o gradeado, cabia à Prefeitura apenas autorizar ou não. O pre-feito João Paulo considerou que não devia desautorizar, contanto que se preservassem os acessos à população. Acho, porém, que es-

sas medidas são de alcance muito precário, além de terem um simbolismo negativo, que é de um apartheid na cidade. Na prática, não se conhece resultados consistentes a médio e longo prazo.

O que a PCR tem feito para combater a vio-lência em comunidades como o Coque?Existe, há cerca de dois anos, um consórcio metropolitano de prevenção à violência, en-volvendo o Governo do Estado, o Governo Federal, as 14 prefeituras da área metro-politana e uma série de outras entidades. Eu presido esse consórcio, cujas ações se dão com base em conceitos atualizados sobre segurança urbana. Segurança, no período do Regime Militar, era segurança para proteger o Estado das ameaças que eram os cidadãos insatisfeitos com o governo autoritário. Com a redemocratização da América Latina, esse tema está sendo discutido com base no conceito de “Segurança Cidadã”, cujo ob-jetivo final é a segurança do cidadão, e não a defesa do Estado. Nessa concepção, toda ênfase está na prevenção, embora se con-sidere que a repressão ao chamado crime organizado é necessária. Infelizmente, o que predomina ainda em algumas instâncias governamentais é essa visão policialesca.

Nesses cinco anos de gestão, no entanto, nós desenvolvemos quase 50 programas que, ao juízo da Unesco e das instituições que es-tudam o fenômeno da violência urbana, são ações que ajudam a diminuir a violência e a criminalidade. Fazemos inclusive o mapea-mento dos bolsões de violência na cidade, mas não divulgamos à imprensa porque isso afeta, por exemplo, a auto-estima da comu-nidade. Por que fazemos isso? Para direcio-

nar o banco do povo e outros programas da Prefeitura a essas áreas. Quais são os nos-sos defeitos? A falta de integração dessas ações governamentais para que elas pos-sam dar melhores resultados e a falta de um sistema de avaliação dos resultados. Várias prefeituras já avaliam essas ações – progra-mas de distribuição de renda, de geração de emprego, de integração da juventude, mel-horia do padrão educacional, etc. – e estão comprovando que prevenção dá resultado.

Quem é o cidadão, de fato, do que é cha-mado “Segurança Cidadã”?

O Recife é uma cidade com aparência de vaca malhada do ponto de vista da distribuição da criminalidade, é tudo muito misturado. Quan-do você verifica os dez principais bolsões de violência criminal, eles se distribuem de ma-neira mais ou menos equilibrada na cidade. Na parte que toca ao poder público munici-pal, cuja atribuição não é combater bandido, nem prender ninguém, mas sim ajudar com a prevenção, o foco é a população como um todo, mas priorizando a juventude no dire-cionamento das nossas ações preventivas.

Na sua visão, o que o Coque representa para o Recife?

O Coque é uma das áreas de assentamento subnormal de maior tradição de luta na ci-dade do Recife.—

Participaram da entrevista: Ana Carolina Senna, Gustavo Neves da Silva, João do Vale Neto, Luís Henrique Leal,Mônica Alcântara, Rafael Alves da Silva, Ridivaldo Procópio da Silva, Yvana Fechine. Colaboração: José Juvino, Isabel Sougarret.

Permanência garantida por lei

permanência

Entrevista : Luciano Siqueira

“Se houver qualquer tentativa de intervenção, a população

está protegida pela lei.”

“ O Coque é uma das áreas de maior tradição de luta na

cidade do Recife. “