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Jornada do Percurso de Escola XI (I)
julho. 2013
Gestão 2013-2014
Presidência Marta Pedó1ª Vice-Presidência Liz Nunes Ramos2ª Vice-Presidência Eduardo Ely Mendes Ribeiro1ª Secretaria Gerson Smiech Pinho 2ª Secretaria Fernanda Breda Maria Elisabeth Tubino 1ª Tesouraria Marcia Helena de Menezes Ribeiro 2ª Tesouraria Ieda Prates da Silva
Mesa DiretivaAlfredo Néstor JerusalinskyAna Laura GiongoAna Maria Medeiros da CostaBeatriz Kauri dos ReisDeborah Nagel PinhoEduardo Ely Mendes RibeiroFernanda BredaGerson Smiech PinhoLúcia Alves MeesLucia Serrano PereiraMarcia Helena de Menezes RibeiroMaria Ângela BulhõesMaria Ângela Cardaci BrasilNorton Cezar dal Follo da Rosa JúniorRenata Maria Conte de AlmeidaRobson de Freitas PereiraSidnei Artur GoldbergSilvia Raimundi FerreiraSimone Goulart KasperSimone Madke BrennerTatiane Reis Vianna
Correio da APPOA / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. – Ano. 1, n. 1 (1993). – Porto Alegre, APPOA, 1993 –
Mensal ISSN 1983-5337 1. Psicanálise 2. Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA.
CDU 159.9(05)
Bibliotecária Responsável: Luciane Alves Santini CRB10/1837
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editorial.
O Final do Percurso de Escola da APPOA é brindado com uma Jornada
de trabalhos, em que cada um dos autores compartilha conosco um recorte
de sua elaboração da trajetória.
Em maio deste ano, a Turma XI responsabilizou-se pelo trabalho de
construir essa jornada, que se desdobrou em uma noite e um dia, quando
pudemos assistir e usufruir de sentar na platéia, escutar e debater.
O trabalho da associação, em sua responsabilidade com o ensino e a
transmissão, dando lugar aos tempos de estudo em seminários, de trabalho
em cartéis, bem como do acompanhamento da escrita de cada um, inclui
ainda o de publicar os textos produzidos a partir do Percurso.
A sessão temática deste Correio traz, assim, mais uma oportunidade
de compartilhar os efeitos desse tempo de trabalho conjunto. Conforme
lemos, nas palavras dos autores:
Ao nos aproximar do campo psicanalítico, não somos mais os
mesmos. Nos projetamos no que lemos, nos compomos no que lemos, e o
que lemos, então, nos inclui.
Boa leitura!
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notícias.
III Jornada do Instituto APPOA
Psicanálise e Intervenções Sociais
Desamparo e Vulnerabilidades
23 e 24 de agosto de 2013
Hotel Continental – Porto Alegre
Largo Vespasiano Julio Veppo, 77,
Centro, Porto Alegre, RS
O desamparo é uma experiência
fundamental da condição humana e é em
torno dela que se constitui a posição do
sujeito no laço social. Freud faz do estado
de desamparo (hilflosigkeit) um conceito
de referência em sua obra, enfatizando-o
como o protótipo das situações traumáti-
cas, geradoras de angústia no adulto, pois o confronta, no tempo presente,
com a impotência de seu estado de desamparo infantil originário. Segundo
Imagem: Nem tudo são fl ores, de Betinha Trevisan, 1997.
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notícias.
ele, o mal-estar, a infelicidade e as situações traumáticas nos chegam de
três direções: do sofrimento de nosso próprio corpo, do mundo externo
e das insatisfações ou da violência desencadeadas pelas relações com os
outros. O sofrimento proveniente desta última talvez seja o mais penoso
de todos eles.
A cultura com que procuramos fazer frente à condição humana e seu
inevitável mal-estar nos defronta com inúmeras situações de vulnerabilida-
de em seu movimento permanente de conflito entre civilização e barbárie.
Em todas estas situações, o sujeito está diretamente implicado. Quando
somos atingidos, o catastrófico se articula com o desamparo estrutural e
somos confrontados com o trauma do real irrepresentável.
O desamparo e as diferentes vulnerabilidades colocam um desafio
para a clínica da psicanálise em extensão. Propomos com esta III Jornada
do Instituto APPOA abrirmos o debate sobre nossas intervenções fundadas
no desejo do analista e na ética da Psicanálise.
Valores para inscrição:
Antecipadas até 17/08 Após e no evento
Associados R$ 70,00 R$ 90,00
Estudantes de Graduação
ou recém formado* R$ 80,00 R$ 100,00
Profissionais R$ 90,00 R$ 110,00
Informações e inscrições:
• Na sede da APPOA.
• Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: De segunda a
quinta-feira, das 8h30 às 12h e das 12h às 21h30 e sextas-feiras das 8h30
às 12h e das 12h às 20h.
* Estudantes de GRADUAÇÃO e recém formados até 2 anos devem enviar com-provante por e-mail ou fax.
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
• Inscrições pelo site www.appoa.com.br. Após efetuar o pagamento
da sua inscrição pelo site, enviar por fax ou por e-mail o comprovante de
pagamento devidamente preenchido.
• Inscrições mediante depósito bancário, para Banco Itaú, agência
0604, conta-corrente: 32910-2 ou Banco Banrisul, agência 0032, conta-cor-
rente 06.039893.0-4. Neste caso, enviar, por fax ou e-mail, o comprovante
de pagamento devidamente preenchido, para a inscrição ser efetivada.
• Inscrições para grupos, informe-se na Secretaria da APPOA.
• As vagas são limitadas.
Atividades preparatórias à III Jornada do Instituto são divulgadas por
e-mail e nas linhas de trabalho disponíveis no site http://www.appoa.com.
br/instituto_appoa
Correio digital
A transição do Correio da APPOA de exemplares de papel para versão
digital está sendo preparada e prevista para o começo do próximo ano;
serão finalizadas as assinaturas de não associados, que já não estão sendo
renovadas.
Neste período de transição, serão noticiados maiores detalhes deste
novo perfil do Correio da APPOA.
e-mail Correio da APPOA
A Comissão editorial do Correio da APPOA informa seu email para
contatos diretos:
Mudança de telefone
Carla Cumiotto comunica que o número do seu telefone celular foi
alterado 9914.6431.
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temática.
Há exatamente um ano atrás, em julho de 2012, publicamos o Correio
número 214 com as produções dos participantes da Turma X do Percurso de
Escola que haviam concluído uma das formas de transmissão e estudo de
nossa instituição que é a experiência do Percurso de Escola. Na sequência,
o número 215 do Correio, com mais trabalhos dando conta da experiência.
Pois bem, passado esse tempo, estamos novamente presentes no
Correio da APPOA. Neste número, contamos com uma parte dos escritos –
outros virão – dos alunos da Turma XI, cujos trabalhos foram apresentados
e debatidos nos dias 17 e 18 de maio na 11ª Jornada de encerramento do
Percurso de Escola em Psicanálise. Ressaltamos essas datas para perce-
bermos a importância e a consistência da trajetória de estudos que é tão
cara para todos aqueles que com ela se envolvem.
A publicação destes trabalhos vai muito além do que aqui toma
forma. Ela diz de um longo caminho de estudos em pequenos cartéis, de
um trabalho minucioso de construção coletiva, onde cada um compar-
tilhou suas ideias com todo grupo, de momentos de interlocução com
um psicanalista, cuja transferência pode sustentar uma escrita, de um
trabalho de planejamento da Jornada contando com a colaboração da
Comissão de Eventos. Enfim, com esses escritos podemos dar testemunho
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temática.
da potência da palavra e da forma singular pela qual nos responsabili-
zamos pelo nosso desejo. Alunos, professores, colega s, instituição, todos
estamos aqui implicados.
Então, enfatizamos que a experiência do Percurso de Escola é bem mais
extensa que a circunscrita pelo tempo do próprio Percurso, pela Jornada
e pela publicação dos trabalhos. São momentos que demarcam um antes
e um depois que se enlaça com o terminável e o interminável próprio da
formação analítica.
Coordenação do Pecurso de Escola
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temática.
Narrativas da clínica: a transferência recompondo laços
Iana Stadulne Aquino
No começo era o amor
É assim que Lacan introduz seu seminário sobre a transferência. E
será daí que também eu partirei, já que é nele – no amor – que esse escrito
se engendra: no amor de transferência que sustenta a minha escolha pela
clínica, pela psicanálise e pelo Percurso na Appoa.
Voltando ao começo, lembro que na carta endereçada à Appoa, no
momento da inscrição, eu dizia que buscava na instituição e no Percurso
algo que produzisse em mim o efeito de me sentir “em companhia” neste
caminho tantas vezes solitário que é o da clínica. Estou certa de que neste
tempo, em muitos momentos, esse efeito se produziu, principalmente
quando foi verdadeiramente possível escutar a palavra enunciada, não só
por quem conduzia os seminários, mas pelos colegas.
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temática.
Penso que talvez o que de mais valioso tem me sido transmitido
pela possibilidade de experimentar a transferência, seja na análise, na
supervisão ou na instituição, é que não há saída possível que não passe
pela construção de laço com o outro. Qualquer ideia de autossuficiência
é apenas um vislumbre, já que são os laços tecidos com o outro e as suas
palavras, que em nós fazem marca, o que torna possível estarmos sós e
ainda assim acompanhados. É assim também a relação que estabelecemos
com a produção daqueles que nos antecederam: a palavra deles nos faz
companhia. A marca da Appoa me parece ser esta: o amor e o respeito às
palavras destes (Freud e Lacan) que dedicaram a vida a tentar traduzir em
texto suas experiências inovadoras e desbravadoras de trabalho. O amor
e o respeito a esta herança é o que percebo como o fio que dá unidade à
instituição e que enlaça também a quem chega.
O tema do meu trabalho se construiu assim: em laço. Em laço, prin-
cipalmente, com a experiência de supervisão, onde foi possível perceber
que, em diferentes casos que atendo, há um eixo em comum: trata-se de
sujeitos que, embora estruturados em uma posição neurótica, se consti-
tuíram a partir de bases muito precárias; sujeitos cujos laços primários
se constituíram de forma pouco firme, frouxa, deixando-lhes com pouca
confiança na consistência desses laços. Alguns são sujeitos cuja infância
foi marcada não só pela precariedade material, mas principalmente pela
precariedade simbólica. Foram crianças, em certa medida, desacompanha-
das de palavra e de história – matéria nobre no trabalho de constituição
subjetiva.
Foi neste contexto que insistiram em mim as palavras da supervisora
acerca do que estaria sustentando o trabalho nesses casos: o que se vive
em transferência, o sujeito jamais esquece; a palavra que ganha corpo na
transferência produz marcas que não se apagam. Acompanhada por estas
palavras, lanço-me assim ao exercício de percorrer os trilhos da transferên-
cia no tratamento de sujeitos cujo padecimento se produziu, justamente,
pela inconsistência dos laços que os fundaram.
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
À deriva – é nesta expressão que encontro um nome possível para o
que M. tem podido reconstruir do que teria sido sua travessia da infância.
Sobre aquele tempo, há poucas histórias. Somente a partir de um outro
tempo, que o convite à fala instaura, é que as lembranças e as histórias
têm se fabricado. As imagens das antigas casas onde viveu, e que insis-
tem em se escrever em seus sonhos, ganham forma de palavra no texto
que é convidada a produzir. Essas casas vão lhe servindo de guia e lhe
ajudando a contar-se a si própria tendo por referência um tempo. Cada
casa corresponde a uma diferente época da vida. Assim, tempo e espaço
vão se delineando.
Foi justamente o desconforto em relação aos espaços que lhe fez buscar
o tratamento. Eles vinham se situando para ela como uma zona de risco.
Na rua, lhe invadia o medo de que lhe faltasse o chão, de que a terra não
fosse suficientemente firme. E em casa, o temor da invasão. A casa não
era segura. A casa, nos sonhos, também não era segura. Suas lembranças
revelam a solidão da infância, a dificuldade de encontrar os primeiros
amigos, a tristeza que morava nela desde cedo. Lembra-se de chorar muito.
A perda precoce do pai, quando ela ainda era criança, parece ter
agravado a inconsistência materna que se materializava em ausência.
Mesmo presente, a mãe não estava. Costumava acompanhar os pais na
intensa vida boêmia que levavam. Ficava junto no bar, dormia em uma
cadeira. Mesmo presentes, os pais não estavam. Ausentavam-se de sua
função de oferecer algum contorno, de se fazerem continente em meio
a tanto mar.
Seus sonhos e seus sintomas, em transferência, vão podendo contar
essa história e vão revelando uma casa que se construiu frágil, com poucos
recursos, com fendas... Frente a uma casa que não serve como abrigo, de
que forma construir um?
Freud, no lindo texto Construções em análise (1937), indica um
caminho que ajuda a percorrer esta questão. Usando como instrumento
o material vivo que são os sonhos, os fragmentos de lembranças e as as-
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temática.
sociações, vai sendo possível ao psicanalista construir ou reconstruir, a
partir dos restos que sobrevivem, uma edificação que só existe em ruínas.
Assim, falar oferece ao sujeito a possibilidade de, de resto em resto, de
palavra em palavra, fabricar uma história que o aloje em algum lugar que
lhe sirva de abrigo.
Manoel de Barros, em suas Memórias Inventadas, de certo modo,
conversa com o texto freudiano acerca do que se constrói em uma análise
e, principalmente, sobre o que guardam as palavras:
Escova
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na
terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não ba-
tiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando
osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que
eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam
encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam
enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar pa-
lavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram
conchas de clamores antigos.
Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro
das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo
muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas.
Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar
de cada uma (...) (2003).
Mas as palavras não nascem assim. Não é da natureza de todas elas se
fazer concha de clamores antigos e de remotas oralidades e significâncias.
Para isso, é preciso muito escová-las; é preciso tratá-las. Escovar as palavras
é reconhecer a potência de transmissão que elas carregam, é fazê-las ao
mesmo tempo instrumento de criação e de preservação. Escovar as palavras
é cuidá-las bem, dar-lhes polimento e oferecê-las ao outro. Oferecê-las ao
outro em forma de história, entrelaçada junto a outras palavras dando vida
a uma narrativa. Escovar as palavras é também torná-las instrumento que
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
contorna e dá borda ao corpo do outro: dá vida ao outro. Assim como osso,
palavra também se escova por amor.
Os laços primários se constituem dessas tantas palavras escovadas
que, junto ao olhar e a voz de quem as pronuncia, chegam até o pequeno
sujeito. É deste tecido simbólico que é feito o laço com o outro. Para que
alguém efetivamente nasça é fundamental banhá-lo em histórias, dar-lhe
um nome que lhe situe em um lugar neste emaranhado de narrativas que
o precedem e que, no presente, lhe fazem marca. É este lugar na história
o que dá morada ao sujeito.
Tomo emprestadas as palavras da personagem de Mia Couto, em
Confissão da Leoa, para fazer falar Diana:
A minha escola, de fato, nasceu antes: aprendi a ler foi com os ani-
mais. As primeiras histórias que escutei falavam de bichos selvagens.
Fábulas me ensinaram, a vida inteira, a distinguir o certo do errado,
a destrinçar o bem do mal. Numa palavra, foram os animais que
começaram a fazer-me humana.
Diana aprendeu a morte muito cedo. Antes mesmo de saber o tama-
nho da vida. Aprendeu a morte a cada dia em que não via se mover o
chapeuzinho de palha da irmã pendurado na parede. Desta imobilidade,
ela aprendeu um pouco mais sobre o incontornável, sobre a aridez de
uma ausência perene. Muito cedo, ela aprendeu que crianças pequenas
se desprendem da mão do pai e se lançam em caminhos que não sabem
perigosos. Muito cedo, ela aprendeu a violência de um adulto tomando
seu corpo como um objeto. Muito cedo, ela aprendeu a insuficiência de
seus pais em protegê-la. Assim, ela foi aprendendo o medo de percorrer
os trajetos e a desconfiança. Tem gente que tem medo de bicho, eu tenho
medo de gente.
Cedo ela também descobriu que a terra, solo de trabalho dos pais, é
lugar onde vida e morte se entrelaçam. Lugar que serve de berço para as
sementes, mas que também se faz leito para os mortos. Enquanto os pais
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temática.
trabalhavam, sua ocupação era “trabalhar” de enterrar seus mortos. Diana
brincava de cemitério com suas bonecas que não sobreviviam inteiras;
a existência delas se dava aos pedaços. Brincava de fabricar sepulturas.
Agora, adulta, encontra, na terra fértil dos sonhos, terreno para seguir
brincando de enterrar os mortos.
E da vida? Da vida, as notícias lhe chegavam pela beleza da natureza
e pela companhia dos bichos. Com os cachorros, companheiros em sua
espera pelo fim do dia de trabalho dos pais, foi aprendendo a permanência.
Foi aprendendo, a cada vez que eles se distanciavam na brincadeira de
fazê-los ir e voltar, a confiar na volta e na sua própria existência durante
o intervalo.
Da vida, desta que acontece dentro dela, que move seus sonhos, que
silenciosamente usa seu corpo como forma de expressão para o que não foi
dito e que produz seu medo de tomar o caminho errado, de não encontrar
saída, desta vida ela tem tido notícias a partir do que se produz no tempo,
e ao tempo, da transferência. Tempo em que passado e presente confluem,
situando o sem-tempo inconsciente; tempo em que a insistência do que
não ganhou palavra toma forma de um eterno agora, de um sempre atual
que transborda em agir. Arriscar-se a falar e a contar uma história ende-
reçada a um Outro, a sua história, é arriscar-se à possibilidade do novo, a
encontrar um outro jeito de dizer, a descobrir um sentido inédito para a
mesma palavra de sempre.
Diana, que aprendeu a vida, desde cedo, muito frágil, sujeita a aci-
dentes definitivos e que decorou uma posição paterna anêmica e sem vi-
talidade, ao percorrer algumas ruas de sua história, na companhia de uma
escuta em transferência, tem encontrado um pai que não foi só desproteção
e debilidade. Pelo contrário, um pai que lhe doou, além de alguma refe-
rência, um pouco da força que hoje ela descobre também como sendo sua.
“Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei
que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu?” Pergunta-se
G.H., personagem de Clarice Lispector.
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
Sim, G.H., terás, para te reviver, que criar. Criar-te a ti própria com
as palavras que te forem possíveis; terás que confeccionar tuas palavras e
fazer delas tua própria vestimenta. Mas isso não farás sozinha. Endereçarás
teu dizer ao Outro, a quem vais supor o saber sobre tudo o que de ti não
sabes. Mas, G.H., à medida que fores falando, perceberás que ele também
não sabe. Perceberás que o que há de saber nele aponta para o que há de
saber em ti, ainda que tu não saibas. Perceberás que o que esperavas de
respostas te chegará revestido de enigma. O que pensas tu sobre isso? O
que te lembras? E os teus sonhos? Sim, os teus sonhos serão de interesse
dele. Também o serão o silêncio entre tuas palavras e aquilo que disseres
sem saber que queres dizer. E assim, G.H., vais perceber que o que ele
sabe é que, em ti, dentro de ti, há algo que tu ainda não conhecias. E então
vais escutar, em tudo o que ele não te diz, o essencial: G.H., ocupa-te de
tua alma.
Referências bibliográficasBARROS. Manoel. Memórias inventadas: a Infância. São Paulo: Planeta, 2003.
FREUD, Sigmund. 1934-1939. Construcciones en psicoanalisis. Madrid: Biblioteca Nueva, 2003.
LACAN, Jacques, 1901-1981. O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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temática.
O correr da escrita: “Às suas marcas, já!”1
Márcio Fransen Pereira2
Gostaria de agradecer à APPOA e aos coordenadores dos seminários
por terem oferecido espaço de “percurso em psicanálise” e aos colegas pe-
las diversas interlocuções que aconteceram. Nesta apresentação trago um
material ainda incompleto; na verdade, algumas ideias que me ocorreram
a partir do tema da escrita. Busco trabalhar, assim, dentro das discussões
que serviram de guia para nossos estudos ao longo do ano passado3. Para
tanto, parto de alguns trechos do livro Do que eu falo quando eu falo de
corrida, do escritor Haruki Murakami (2010).
1 Este escrito foi produzido com o objetivo de ser apresentado oralmente na Jornada do Percurso de Escola da APPOA do presente ano. Optei por manter o mesmo formato nesta versão textual. 2 Psicólogo Clínico.3 Cartel “Arte, corpo e linguagem” (2012) – realizado no último ano de percurso da Turma XI.
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temática.
O cotidiano vacilante, um corredor de palavras
Na primeira parte deste livro, sobre as experiências desse escritor
enquanto corredor, ele nos dá o seu ritmo: “No momento meu objetivo é
aumentar a distância percorrida, de modo que a velocidade não vem tanto
ao caso” (p. 13). O autor japonês narra, ao longo do livro, os treinamentos,
maratonas e desafios que envolvem seu hábito de correr, adquirido com a
mudança radical que fez ao se decidir escritor. Ocorre que este livro pode
ser lido como uma metáfora do autor para o seu trabalho como escritor.
No livro, ele ficciona sua vida, mostrando que é possível fantasiar com
uma suposta narrativa sobre a corrida:
Para mim, correr é tanto um exercício como uma metáfora. Correndo
dia após dia, colecionando corridas, pouco a pouco, elevo o meu
patamar, e cumprindo cada nível aprimoro a mim mesmo. Pelo
menos é nisso que deposito meu empenho, dia após dia: elevar
meu próprio nível. Não sou um grande corredor, de modo algum.
Estou mais para um nível comum – ou, antes, mediano. Mas isso
não vem ao caso. A questão é se melhorei ou não em relação ao
dia anterior. Em corridas de longa distância, o único oponente que
você tem de derrotar é você mesmo, o modo como você costumava
ser (2010, p. 16).
Murakami, além de escritor, é também tradutor. Nos últimos anos,
vem ganhando destaque no cenário das literaturas juvenil e popular,
aproximando situações fantásticas aos fatos cotidianos. Cada novo livro
lançado é intensamente aguardado em seu país de origem, o que produz
realmente uma corrida às livrarias. O número de leitores de seu trabalho
é grande por lá, destacando-se sua trilogia 1Q84, que brinca com uma so-
noridade da língua japonesa que remete ao livro 1984, de George Orwell.
Na versão portuguesa de seu livro, que aqui destaco para comentar, o tí-
tulo saiu da seguinte forma: Autorretrato do escritor enquanto corredor de
fundo. Acredito que essa escolha de palavras dê um contorno que ajuda a
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
melhor definir meu encontro com o tema da escrita. Essa ideia do escritor
como um corredor de fundo é o que me remeteu ao texto de Freud (1908)
– Escritores criativos e devaneios. Retomando-se o texto de 1908, pode-se
perceber que Freud fala sobre os poetas através da noção de fantasia. Ele
inicia o texto da seguinte forma:
De que fontes esse, estranho ser, o escritor criativo, retira seu
material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e
despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos
capazes (1908, p. 135).
O texto nos lança ainda a uma questão que não poderia ser mais atual
e que, talvez, possamos ampliar para todo o campo das artes. Ele nos pro-
voca dizendo que são os próprios poetas que frequentemente asseguram,
no íntimo de cada um, a existência do espirito poético. Aliás, Freud ainda
afirma que só a morte do último homem levará o último escritor criativo.
Uma das atualidades dessa afirmação está em notar que o cotidiano do
poeta e do homem comum, por vezes, é o mesmo.
Se ampliássemos essa análise para um grupo de trabalhos de artistas
que surgiram a partir da década de 50, tais como Christian Boltanski,
Kawamata Tadashi, Jenny Holzer e, principalmente, Allan Kaprov, encon-
traríamos “uma aproximação da arte à vida cotidiana como um dos objeti-
vos do trabalho” (Tessler, 1996, p. 1). Se escrever sobre correr – tema que
pareceu ser vago a Murakami – pode ganhar lugar nas prateleiras, é porque
já existe,anterior ao seu trabalho, uma tendência, não só na literatura, de
assegurar o que é corriqueiro como material de interesse. Nesse sentido,
o interesse parece não estar no material cotidiano em si, mas na vida con-
tada literalmente, passo a passo. Um outro trecho do livro de Murakami:
Já faz cerca de dez anos que tive a ideia de escrever um livro sobre
corrida, mas ao longo do tempo tentei uma abordagem e outra sem
nunca de fato parar e escrever. Correr é meio que um tema vago [...]
correio APPOA l julho 201320.
temática.
Uma coisa que notei foi que escrever honestamente sobre correr e
escrever honestamente sobre mim mesmo são quase a mesma coisa
(2010, p. 9).
Pensando alguns elementos da noção de fantasia articulada no texto
sobre os escritores, pode-se ler que Freud vai procurar na infância os pri-
meiros traços da atividade imaginativa do trabalho do escritor. Temos os
jogos e os brinquedos como processos criativos; o mundo mágico do faz
de conta das crianças como alternativa à realidade. As ameaças do real
teriam algum amparo no objeto brinquedo. O carrinho ou a boneca, no rasto
de Freud, tratariam de assegurar o faz de conta através de uma constante
substituição de objetos. No entanto, na vida adulta, podemos perguntar:
como ocorre a vida imaginativa a partir da ausência desses objetos?
O que Freud diz remete à noção de fantasia: no texto sobre os escri-
tores, ele trabalha com a ideia de que, para a criança, o brincar (o faz de
conta) não é deixar de levar o mundo a sério, mas sim uma invenção na
relação com o mundo real. Existe certa datação de algumas ideias do texto,
contudo, elas podem ser revisadas. Por exemplo, no artigo “O inconsciente
entre o escrito e o escritor”, o psicanalista e professor Edson Luiz André
de Sousa (1998) aponta que a psicanálise se depara com as perguntas “que
é um autor?”, “como se constitui um autor?” e, principalmente, “quais
as fronteiras entre aquele que escreve e o sujeito-autor desse ato, entre o
escrito e (...) o leitor suposto?”, pensando a noção de sujeito e sua relação
com a linguagem (p. 8). Nesse sentido, define-se que a relação entre escrito
e escritor é marcada por perdas.
Um outro elemento que Freud expõe é que “as fantasias das pessoas
são menos fáceis de observar do que o brincar das crianças”. Diferente
da criança, o adulto se “envergonha de suas fantasias, escondendo-as das
outras pessoas” (p. 137); mas ambos os verbos – fantasiar e brincar – são
determinados por outro verbo, o desejar. Dessa forma, é possível afirmar
que a atividade imaginativa não está somente na base do brincar das crian-
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
ças, de uma etapa do desenvolvimento, mas também no infantil enquanto
marca inconsciente. Esse infantil, que é próprio da linguagem, tem o corpo
como metáfora, como quadro. E é sobre o corpo, pela gramática que o atra-
vessa, que uma escrita da fantasia parece poder se grafar. Nesse sentido,
o texto de Freud é um texto clínico, pois vem a situar o desejo na relação
entre a fantasia e o tempo, redimensionando a atividade imaginativa para
a própria constituição de um sujeito.
No livro A clínica da fantasia (2010), Marco Antonio Coutinho Jorge
reserva uma pequena parte de seu estudo para tratar do texto sobre os
escritores. O autor apresenta a reflexão sobre o poeta e o fantasiar4 como
sendo produto de um pensamento que se abriu com a Gradiva. Após
extinguir nossa curiosidade sobre o contexto de produção desse texto,
Coutinho Jorge escreve que a relação entre a fantasia e o tempo opera um
entrelaçamento que, justamente, abole a noção de tempo ao marcar na
consciência o funcionamento inconsciente (p. 46). A relação entre sonho
e futuro pode ser estudada no ensaio sobre a Gradiva. No texto sobre os
escritores, o sonho (formação inconsciente) é definido em seu enlace com
o conceito aqui discutido. Escreve Freud:
Não posso ignorar a relação entre as fantasias e os sonhos. Nossos
sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como
podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem,
com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza
básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações
da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro
o significado de nossos sonhos, isto é, por causa da circunstância de
que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonha-
mos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram consequentemente
reprimidos, empurrados para o inconsciente. Tais desejos reprimidos
4 Nesse trecho do livro, Coutinho Jorge discorre sobre sua escolha do termo fantasia em vez de fantasma, bem como se prefere utilizar no sul do Brasil pelos psicanalistas lacanianos. Optei por utilizar o termo fantasia nesse trabalho, em função da tradução realizada pela Imago Editora (1969).
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temática.
e seus derivados só podem ser expressos de forma muito distorcida.
Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de
distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos noturnos são re-
alização de desejo, da mesma forma que os devaneios – as fantasias
que todos conhecemos tão bem (1908, p. 139).
Murakami escreve que seu objetivo é a distância percorrida e não a
velocidade. Ora, no texto de Freud encontramos, por sua vez, o seguinte
excerto: “O desejo aproveita uma ocasião do presente para construir,
segundo moldes do passado, um quadro do futuro” (1908, p. 139). Esse
quadro do futuro, imagem que Freud nos proporciona, ao ser quadro, ou
seja, ao ter uma determinada moldura, não é outra coisa a não ser um
tipo de escrita.
Escrita de um percurso que não termina
Lembro que, quando entrei no Percurso, pensava sobre a importância
das palavras, afirmava as palavras. Tive boas conversas com Thales Abreu
sobre isso. Noto, agora, que, ao longo destes três anos, o que pude subtrair
dessa certeza é que as palavras falham e, assim, falam. De alguma forma,
as corridas de Murakami me levaram ao final desse percurso. Ele não narra
suas maratonas sem mencionar os tropeços, as quedas e as marcas de suas
experiências de corredor. Entretanto, há nisso um jogo com o leitor. Existe
no livro um determinado apelo que, depois de lê-lo, pude perceber um
pouco melhor: o livro de Murakami não escapa do gênero de autoajuda.
Minha surpresa foi não ter percebido esse aspecto enquanto o lia.
Na época em que encontrei o livro de Murakami, estava à procura de
uma leitura paralela para intercalar com as minhas leituras de mestrado.
Na verdade, estava enfrentando alguns obstáculos em minha pesquisa, os
quais impediam o andamento do trabalho. Estudo, no mestrado, o teatro
de Brecht, que é um dramaturgo alemão que viveu quinze anos em exílio,
passando por vários países a partir de 1933, na ascensão do nazismo.
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
Bom, um tema como a corrida me pareceu apropriado para buscar um
novo ritmo, ao passo que eu estava precisando me afastar um pouco de
minha dissertação. Saí para um pequeno exílio, corri com Murakami até
o final de seu livro. Quando o terminei, pude voltar à minha pesquisa, do
mesmo modo que pude perceber que Murakami é muito habilidoso em
sua escrita. Quem sabe!, em breve precisarei de um outro livro seu, quem
sabe?. Antes, porém, ao retornar para minha pesquisa, que é produto de
minha formação em psicanálise, penso a escrita tal qual a marcação de um
tempo presente. Às suas marcas, já!. Que tem no passado a experiência
como um ritmo que marca as passadas. Ainda há o futuro, um futuro de
logo em seguida que o percurso em psicanálise provoca inscrever.
Uma possível linha de largada
No livro Quando as imagens tomam posição5, George Didi-Huberman
(2008) faz uma análise da imagem ancorada na estética brechtiana. No texto
de apresentação, o autor articula o tema do exílio para além de uma questão
geográfica. Nesta primeira parte, problematiza o exílio como uma tomada
de posição enunciativa, de exposição das contradições. Didi-Huberman
escreve: “Para saber é preciso tomar posição”. Na produção deste texto,
enquanto buscava relacionar escritas e marcas, pensava na vida cotidiana.
Em nossas corridas que talvez pareçam não merecer um livro, mas, por
vezes, uma tomada de posição no sentido de uma atividade imaginativa,
seja para seguir correndo, seja para parar.
Por exemplo, no cinzento contexto de guerra em que Brecht produz sua
arte, seu movimento foi de crítica ao entretenimento e à arte pela arte que
objetivava a catarse. Pergunto-me: como criticar sua frieza, como criticar
suas escolhas estéticas? Afinal, o ar de seu tempo parece ter lhe exigido esta
tomada de posição. Mas ocorre que as marcas não são restritas a situações
5 Utilizo a tradução realizada por Mariana Schorn, a título de estudos internos da linha de trabalho Passagem – sujeito e cultura da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Este material foi trabalhado durante um dos seminários do Percurso.
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temática.
extremas como as que o dramaturgo e tantos outros passaram na primeira
parte do século XX; o limite entre o representável e o irrepresentável per-
passa os corpos em acontecimentos corriqueiros, nos encontros da vida
comum. Buscando algum sentido, retorno ao livro de Didi-Huberman. Ele
escreve que tomar posição se trata:
(...) de afrontar alguma coisa; mas, diante desta coisa, é preciso
também contar com tudo isso de que nós nos desviamos, o “fora
do campo” que existe atrás de nós, que nós recusamos talvez, mas
que, em grande parte, condiciona nosso próprio movimento [nosso
movimento mesmo], então nossa posição (2008, p. 11).
Didi-Huberman desenvolve assim uma problematização entre o desejo
e o tempo. Para o autor, tomar posição é ainda:
(...) se situar no tempo. Tomar posição, isso é desejar, isso é exigir
alguma coisa, isso é se situar no presente e visar um futuro. Mas
tudo isso existe somente sobre o fundo de uma temporalidade que
nos precede, nos engloba, chama à nossa memória até nas nossas
tentativas de esquecimento, de ruptura, de novidade absoluta. Para
saber, é necessário saber o que a gente quer, mas é necessário, tam-
bém, saber onde se situa nosso não-saber, nossos medos latentes,
nossos desejos inconscientes (2008, p. 11).
Finalizo esta apresentação sem a pretensão de concluir as ideias aqui
levantadas, apenas faço uma referência ao ensaio A história como trau-
ma de Márcio Seligman-Silva (2000); neste ensaio, ao passo de Walter
Benjamin, o autor vê uma materialização da catástrofe, da experiência
do homem moderno em choque na vida cotidiana. Noto uma confluência
das questões trabalhadas por Didi-Huberman e o estudo de Seligman-
-Silva que merecem um trabalho futuro. Parece haver na literalização do
cotidiano a tentativa de forjar experiências, produzir marcas onde ainda
não se consegue imaginar.
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Referências bibliográficasDIDI-HUBERMAN, George. Cuando Las Imágenes Toman Posición. Madrid: A. Machado Libros, 2008.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
____________. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. Vol. 2: A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
MURAKAMI, Haruki. Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal. Tradução: Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
SELIGMAN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000.
SOUSA, E. O inconsciente entre o escrito e o escritor. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Psicanálise e literatura. Ano VIII, n. 15, novembro de 1998, p. 28-35.
TESSLER, Elida. Formas e formulações possíveis entre a arte e a vida: Joseph Beuys e Kurt Kurt Schwitters (1996). Disponível em: http://elidatessler.com/textos_pdf/textos_artista/formulacoes.pdf (acesso: 25 de maio de 2013).
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temática.
O pulso ainda pulsa e o corpo ainda é pouco:1 Toxicomania, desamparo e pulsão de morte
Flávia de Toledo Oliveira Lucas2
Proponho revisitar algumas formulações psicanalíticas fundamentais
que permitirão articular, através dos fragmentos de um caso de toxicoma-
nia, os desdobramentos clínicos do desamparo pelo viés do ódio materno
e a noção de compulsão à repetição que é subjacente a pulsão de morte.
Inicio com o clássico texto de Freud de 19203, Além do Princípio do Prazer,
que até hoje nos inquieta e surpreende4.
1 Fragmento de refrão da música dos Titãs, composição de Arnaldo Antunes.2 Psicóloga. Especialista em Problemas do Desenvolvimento na Infância e Adolescência: Abordagem Interdisciplinar pelo Centro Lydia Coriat. 3 A proposição brilhante, apresentada parcialmente à Sociedade Psicanalítica de Viena, da psicanalista russa Sabina Spielrein em 1911, a respeito do componente destrutivo da pulsão sexual sob o título A destruição como causa do devir deixa pistas para pensarmos a origem do conceito de pulsão de morte entendido por pesquisadores como antecipador do percurso freudiano.4 O historiador e psicanalista Peter Gay (2012) expõe que o cenário que se delineava em 1920 era de um pós-guerra, prenúncio de muitas mortes no círculo íntimo de Freud. Em 1919 havia feito o esboço do escrito Mais além do princípio do prazer.
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temática.
No trabalho de 1920, Freud segue o curso metapsicológico dos pro-
cessos psíquicos. Parte do pressuposto que estes são regulados automa-
ticamente pelo princípio do prazer. Logo, estimulados por uma tensão
desprazerosa, tomarão uma direção tal, a qual, consequentemente acar-
retará a diminuição dessa tensão, culminando ou num impedimento do
desprazer ou numa geração do prazer. Propõe relacionar prazer e desprazer
com a quantidade de excitação, sendo o desprazer correspondente a um
aumento, e o prazer, a uma diminuição de tal quantidade. Sob o ponto de
vista econômico, formulará que o Princípio do Prazer deriva do Princípio
de Constância5.
O termo Compulsão à Repetição ganha espaço, diante da elaboração
freudiana, por um questionamento singular acerca dos sonhos que ob-
serva nos traumatizados de guerra. Freud conjetura que, pelo princípio
do prazer, eles não deveriam ocorrer, pois são repetições de lembranças
traumáticas. Ele questiona diante disso: Como o princípio do prazer po-
deria nesse caso responder? Além dos sonhos traumáticos, nota que as
repetições proferidas pelos pacientes e a observação que faz do bebê, no
clássico jogo do carretel, apontam uma compulsão à repetição de cenas que
não conceberiam prazer, sugerindo que o princípio do prazer não impera
em todo o aparelho psíquico.
Frente à observação do jogo do carretel6, no qual encenava-se a alter-
nância entre presença/ausência materna, Freud dirá que a criança viverá
ativamente o que sofrera passivamente, tendo no carretel a representação
de sua mãe. Entre desaparecimento e reaparição se fundava a brincadeira
No ano seguinte subitamente recebe a triste notícia de que sua “querida Sophie em fl or”, não sobreviveu à gripe agravada por pneumonia. Cabe notar, que o termo Todestrieb (Pulsão de Morte) entrou em sua correspondência uma semana depois do falecimento de sua querida fi lha. Freud continuou suas produções mais escassamente, o trabalho ainda era o modo de enfrentar o luto. Em setembro de 1920, no primeiro congresso psicanalítico internacional após a guerra, apresentou algumas revisões acerca da teoria dos sonhos bem como esboçou a ideia da compulsão à repetição que tomava corpo para a próxima publicação. 5 Assemelha-se ao princípio fechneriano da tendência à estabilidade. Neste princípio Fechner relaciona sensações de prazer--desprazer. 6 Executado por Ernest, seu neto de um ano e meio, verbalizando Fort (ir embora) para o afastamento do objeto e Da (ali) quando ele reaparecia.
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
por repetidas vezes, estando o prazer maior no segundo ato. Este movi-
mento, além de simbolizar a ausência do corpo materno, permitiu, diante
das sucessivas observações, que o menino experimentasse desaparecer a
si próprio. Ao final de uma nota de rodapé temos a seguinte descrição:
“(...) Descobrira seu reflexo num espelho de corpo inteiro que não chegava
inteiramente até o chão, de maneira que, agachando-se podia fazer uma
imagem no espelho ir embora” (Freud, 1996, p. 26).
Além do desaparecer a si próprio, Freud também considerará a possi-
bilidade de o menino ocupar uma posição de desafio. Constrói a hipótese
dizendo que ao lançar o objeto para que desapareça, poderia constituir a
satisfação de um impulso de vingança por esta mãe tê-lo deixado. Com
isto ilustra: “Sim, vá embora, não preciso de você, eu mesmo a mando
embora” (p. 174).
Partindo da proposição de tornar consciente o que estaria inconsciente,
Freud refere o texto de 1914 Repetir, recordar e elaborar para sugerir que o
que não pode ser recordado pelo paciente é repetido. Analisando o meca-
nismo da resistência, aponta que esta decorre do Eu, pois o reprimido não
resiste, ao contrário, luta por manifestar-se pelo mecanismo da repetição
que deve ser conferida ao reprimido inconsciente. Em decorrência disso,
o autor menciona que a repetição se contrapõe ao princípio do prazer ao
passo que a resistência estaria a serviço do mesmo.
Através das observações clínicas no manejo da transferência e do
destino das pessoas, ou seja, o eterno retorno do mesmo, Freud anima-se ao
supor que “(...) na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição,
que sobrepuja o princípio do prazer” (Freud, p. 183). Outrossim, permitirá
pensar na ligação desta compulsão com os sonhos dos traumatizados de
guerra e ao impulso que leva as crianças ao brincar. Além disso, irá inferir
o caráter pulsional desta compulsão que, em oposição ao princípio do
prazer, terá um caráter demoníaco7.
7 Demoníaco – Designando um “poder superior” e não diabólico (2010, p. 181).
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temática.
No curso de sua elaboração, Freud observa as histórias infantis con-
tadas pelos adultos, nas quais as crianças querem ouvir frequentemente
as mesmas com o intuito da repetição. Sendo estas o reencontro com o
idêntico, fonte de prazer. Questionando o modo de relacionamento contido
no caráter pulsional, bem como na compulsão à repetição, deduz que esta
compulsão seria característica inerente ao movimento da pulsão, estando
sua justificativa na tendência a restabelecer algo anterior.
Freud diz que as pulsões conservadoras induzem à repetição, pro-
duzindo a falsa impressão de forças que aspiram à transformação e ao
progresso objetivando alcançar uma antiga meta. Isso leva a supor que
terá de ser um antigo estado inicial o qual o sujeito abandonou certa vez,
ao qual se esforça por voltar. E ainda, lembra que todo ser vivo morre por
razões internas, retornando ao estado anterior, inorgânico, sendo o objetivo
de toda vida a morte, ou seja, nota que o “inanimado existia antes que o
vivente” (Freud, p. 204).
Instigado pelas observações, propõe uma nova concepção para as
pulsões, preservando a oposição entre elas e ratificando a luta existente
desde o princípio. Transformará as pulsões sexuais em pulsões de vida
– Eros, tendo como característica a união. Logicamente, reproduzem os
estados primitivos do sujeito estando o objetivo calcado na fusão de duas
células germinativas diferenciadas. Entretanto, quando não se realiza essa
união, morre a célula e, neste sentido, pode a função sexual prorrogar a
vida, dando aparência de imortalidade.
As pulsões de morte – Thanatos conterão o caráter conservador, re-
gressivo da pulsão o qual corresponderá a uma compulsão de repetição. Por
conseguinte, essas pulsões decorrem da matéria inanimada pressionando
no sentido da morte com o intento de restituir esta condição.
Aprimorando suas descobertas, dirá que parte das pulsões do Eu se-
rão de natureza libidinal, tendo tomado o próprio Eu como objeto. Dessa
maneira, incluirá as pulsões de autoconservação nas pulsões sexuais. A
disparidade entre as pulsões do ego e as sexuais transforma-se naquela
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
entre pulsões do Eu e do objeto, surgindo em seu lugar outra diferença
agora, entre as pulsões do Eu e do objeto e outras pulsões estabelecidas
no Eu que, possivelmente, constituam as pulsões de destruição. A partir
destes derivados, estabeleceu-se a oposição entre Pulsão de Vida e Pulsão
de Morte.
Ao final do trabalho, acrescentará que o Princípio do Prazer é uma
tendência que se acha a serviço de uma função: a de tornar o aparelho
psíquico sem excitação, ou ainda, cultivar a quantia de excitação dentro
dele constante ou a mínima possível. À vista disto, o Princípio do Prazer
parece estar a serviço da Pulsão de Morte.
Com o intuito de articular tais noções freudianas, compartilho um
caso clínico: Bruno, 20 anos, dependente químico, usuário de maconha e
craque. Passou por seis internações, foi diversas vezes resgatado da rua,
onde vivia com mendigos e outros dependentes. Para sustentar o vício,
aprendeu a roubar. A mãe diz não compreender o que aconteceu: “Ele era
um menino querido, obediente e grudado em mim” (SIC).
Bruno, irritado, recorda que, na infância, a mãe o banhara até os 10
anos e dormira na cama com ela até os 12 anos. O pai, segundo ele, não
existia. “Minha mãe não me deixava fazer nada. Qualquer coisa que eu
fosse fazer era coisa de maconheiro. Aí um dia, eu tinha uns 13 anos, pedi
pra andar de skate na praça em frente a minha casa. Ela não deixou. Desse
dia em diante, eu me enfureci, saí e fui andar. Ela saiu atrás me chaman-
do, me envergonhando pros meus amigos. Nesse dia, eu tirei as algemas.
Tempos depois larguei o skate e comecei a me drogar” (SIC).
Nos dois primeiros anos de análise, conseguiu elaborar projetos
profissionais abrindo uma empresa de informática que foi tendo uma
interessante ascensão. As drogas, durante este período, não lhe faziam
mais questão. Concomitante ao surgimento e crescimento da empresa,
iniciou um relacionamento com uma moça, que acabou sendo sua glória
e sua ruína ao mesmo tempo. Um relacionamento conturbado, alicerçado
na paranóia, possessão e agressividade. Era tomado por um ciúme que
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temática.
conforme descrevia lhe queimava por dentro, atribuía a isso o fato de ter
sido o primeiro namorado dela, aliás, primeiro em tudo. Não suportava a
idéia de perdê-la ou ser desejada por outra pessoa. Quanto a ela, não era
diferente. O acusava de estar cuidando mulheres na rua. A agressividade
crescia no calor das discussões, xingamentos como vagabunda, prostituta
e chinelona eram de uso corriqueiro de Bruno. Certo dia, depois de mais
uma briga, resolvem encerrar o relacionamento.
Bruno a persegue pelas redes sociais – ela também o faz – até descobrir
que ela já tem outra pessoa. A partir de então, se entrega a outra perdição,
a cocaína. Iniciam os desaparecimentos. Ele some por três, quatro dias
reaparecendo com a metade de seus objetos pessoais. Conta que, por estes
dias, perdeu a noção do tempo, ficando na vila por este período sem dor-
mir, usando drogas e negociando seus objetos pessoais com os traficantes.
Ao chegar em casa, se refazia, dormia dois dias, chorava outros dois,
solicitava aos pais que permitissem que ele pudesse dormir num colchão
ao lado deles e por ali ficava, em posição fetal, conforme relato dos pais.
Certo dia, após mais um desaparecimento, seu pai recebe uma ligação do
guarda de uma obra, avisando que seu filho estava ali, fétido e somente de
cueca. Desta vez, havia sido feito refém, estava devendo para os traficantes,
mas conseguiu fugir. Conta que, por um dia, se escondeu numa manilha
de concreto a fim de despistar os perseguidores. Lembra que a mãe faz
questão de dizer que ele é um estorvo, um lixo, que fica aguardando o dia
que ligarão para ir reconhecer o corpo.
A pedido seu, foi para uma fazenda, ficou por alguns meses. Retornou,
voltou às sessões, desapareceu. Apareceu novamente e, em um desses
retornos, conta da sua sensação ao utilizar a droga: “Dá vontade de morrer
porque a sensação de culpa é enorme e me dá uma angústia. E aí, eu uso
mais para melhorar, para ter aquela sensação que eu já tive a primeira vez
que usei, aquela sensação boa. Só que quando eu uso, fico mal, daí eu
elaboro as minhas teorias: fiquei assim, porque dessa vez dei técos grandes,
vou fazer outra vez e dar técos pequenos, daí faço e fico mal, então penso
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
que tenho que intercalar os técos e assim vou experimentando e, quando
vejo, já me perco! Quando uso, deixo de existir por uns instantes. Às vezes
eu tenho vontade de deixar de existir, só que eu não tenho coragem de
morrer! É como se eu deixasse de existir e naquele momento, não preciso
de mais nada, só de droga! Não tenho obrigação com nada, nenhuma
obrigação com a sociedade, ninguém me encontra!” (SIC).
A partir das falas que circundam esse caso, proponho alguns desdo-
bramentos teóricos. Percebo em Bruno uma fratura naquilo que, no jogo do
Fort Da, é estruturante da separação e, consequentemente, do processo de
simbolização. Além disso, neste jogo proposto por Bruno de sumir/reapa-
recer fica posta uma tentativa à moda, custe o que custar, de desaparecer
a si próprio, correndo o risco de sucumbir.
Seguindo a vertente da pulsão, Michele Benhaïm (2007), lembra
que um dos destinos propostos por Freud é a transformação do amor em
ódio, afirmando ser este o centro da ambivalência. O ódio, como relação
possível com o objeto, é mais antigo que o amor. Sendo o primeiro objeto
do amor o de incorporar ou devorar, podemos vislumbrar tal inscrição,
indissociável do amor e presumir que amar é, finalmente, aniquilar. Neste
sentido, o amor sem ambivalência, no qual não se preservam as distâncias,
transforma-se em amor total, primeiro, ou seja, mortífero.
O paciente em questão parece ainda estar cativo de uma relação fu-
sional com a mãe. Isso reporta ao momento de inscrição, nos primeiros
instantes de incorporação significante da mãe no aleitamento, onde a cena:
mamar, dormir satisfeito e acordar de fraldas, reaparece compulsivamente
na toxicomania, no cachimbar, anestesiar e acordar de cueca, buscando
o impossível do encontro nessa alucinação. Na tentativa de obter essa
satisfação desde sempre perdida, maneja de diferentes formas a droga.
Benhaïm (2007) irá propor, à ambivalência materna, duas possibi-
lidades: uma negativa e outra positiva. Sustentará que a ambivalência é
uma necessidade estruturante cuja falta ou induz uma patologia ou pode
evoluir para uma. Sendo assim, o ódio terá viés destruidor e mortífero
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temática.
enquanto ódio patológico evoluindo no registro do abandono, ou vital e
estruturante, simbolizando-se como amor materno.
No dizer de Bruno fica evidente a tentativa fracassada de separação
desta mãe, no sentido de furar o imperativo materno que o convoca à
inércia, pois nesta relação não há espaço para a diferença. A autora acima
citada lembra que, se as sucessivas perdas maternas permanecem no cam-
po do não elaborável, o movimento de ódio, ou não pode se engajar, ou o
faz em demasia. Em decorrência disso, o sujeito, ao invés de conceber a
separação, arrisca-se em mostrar-se já separado deste corpo materno, rom-
pendo brutalmente a sedução, só podendo ser odiado, ou destruído sob a
eminência de assolar sua mãe. É como se Bruno ao invés de dizer “Sim, vá
embora, não preciso de você, eu mesmo a mando embora”, dissesse “Sim,
fica aí, eu me torno o que tu quiseres... mas sem eu saber!”
Seguimos a transmissão do psicanalista Charles Melman (1992) sobre
a formulação da questão: Afinal do que é que alguém goza na toxicoma-
nia? Lembra que o objeto primordial, o objeto perdido é efetivamente o
Outro, apresentado-se também como corpo materno, impossível de ser
apreendido, o qual somos levados a renunciar. Somos ligados a este Outro
por esta perda, pela separação de uma parte de nosso corpo. Propõe que
na toxicomania haveria a tentativa de assegurar este gozo do Outro e, na
falta de conseguir apreender o Outro, o sujeito tenta ao menos garantir
esta parte que representaria o objeto a.
Retomando as formulações do Além do Princípio do Prazer, Bruno,
para amenizar a tensão, o desprazer, forja uma suspensão do existir
momentânea, na qual alivia a dor do existir com sua morte, mesmo que
temporária. Melman (1992), sobre a clínica da toxicomania, diz que para
o sujeito é como se fosse o preço de um renascimento, no entanto não
chega a renascer, a se validar. Então, se engaja numa busca contínua por
essas mortes sucessivas, na espera por outro nascimento, e depois mais
outro, numa identificação com o objeto, obedecendo ao imperativo de
caráter absoluto.
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
No seminário A ética da psicanálise, Lacan (1997) referindo-se
acerca da pulsão elaborada no trabalho Além do Princípio do Prazer,
articula que:
A pulsão, como tal, e uma vez que é então pulsão de destruição,
deve estar para além da tendência ao retorno ao inanimado. O
que ela poderia ser? – senão uma vontade de destruição direta,
se assim posso expressar-me para ilustrar o que está em questão
(1988, p. 259).
Lacan (1997) prosseguirá compondo que esta pulsão, não só é de des-
truição, por colocar em causa tudo o que existe, como também, é vontade
de criação a partir de nada, vontade de recomeçar. Neste sentido, para
Bruno, a droga é o fio de acesso à pulsão de destruição. Tal destruição, não
teria um caráter de vontade de recomeçar? A partir de nada, como sugere
Lacan? Bruno, por repetidas vezes, pôs a perder tudo o que construiu: os
objetos pessoais, os laços de amizade, a credibilidade de seu trabalho e até
mesmo a empresa. Nas situações de resgate, socorro, desamparo, o apelo
é feito sempre ao pai, em sua função.
Mario Eduardo Pereira (2008) revê a concepção freudiana de desampa-
ro (Hilflosigkeit) e sugere que ela pode ser pensada através da relação entre a
função do pai e as condições de possibilidade do processo de simbolização.
No início da obra freudiana, o desamparo fazia referência à incapacidade
real do recém nascido em satisfazer suas próprias necessidades vitais. O
autor menciona que, para o fim de sua vida, Freud tratará a questão do
desamparo como a falta de garantia do sujeito.
A direção da cura, no caso compartilhado, tem sido no sentido de
enlaçar a pulsão a um discurso significante no qual Bruno possa romper
com o inanimado de um pulso que ainda pulsa; de um corpo que ainda
é pouco, morrendo antes, para o inédito do corpo que pulsa em tempo
de ser outro. Pois, os momentos em que Bruno se desloca, no sentido de
escapar da compulsão ao mesmo, são aqueles em que não se suspende
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temática.
enquanto sujeito, permitindo se representar sustentando-se em outros
lugares, refazendo-se.
Referências bibliográficasBENHAÏM, Michele. Amor e Ódio: A ambivalência da Mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007.
CHARLES, Melman. Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta, 1992.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
____________. Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. XX.
GAY, Peter. Freud: Uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
LACAN, Jacques. Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
PEREIRA, Mario Eduardo Costa. Pânico e Desamparo. São Paulo: Escuta, 2008.
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temática.
Da vida o verso – Psicanálise e alguma poesia de Paulo Leminski
Roberta Trombini Pires1
A psicanálise aproxima-se da literatura em função de ambas terem
como fundamento o trabalho com a linguagem, onde cada ato implica uma
ética do dizer. Freud (1907/1996) já se interessara pela potência da arte
da escrita, destacando que nenhuma força mental é significativa se não
possuir a característica de despertar sentimentos. A própria construção
teórica de Freud se dá a partir de um lugar que ele ocupa como autor e
narrador, a partir da mediação da leitura, da prática e da escrita, concebida,
neste caso, como exercício do eu e como possibilidade de criação. Ferrei-
ra (2007, p. 57) afirma que “A literatura, como escrita da fala do desejo,
aponta para a existência de um sujeito singular, cuja insígnia é marcada
1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.
correio APPOA l julho 201338.
temática.
por um significante que tem como função a nomeação de um autor.” A
autora ainda ressalta que “o autor, enquanto nome próprio, transforma-se
em significante e vai morar no campo do Outro, tornando-se imortal.”
Foucault (1992) refere que o autor é uma das especificidades possíveis
da função do sujeito. Pensando na possibilidade de nos colocarmos como
autores de nossas próprias vidas, destacando-se autoria como possibili-
dade de inscrevermo-nos na vida criando e (re)inventando possibilida-
des, aproxima-se este estudo à psicanálise, uma vez que o ato analítico
possibilita a abertura ao novo, assim como faz o poeta, quando através de
metáforas possibilita novos sentidos às palavras e à vida. Autor-atuante,
autor e ao mesmo tempo ator-personagem, portanto. Segundo Kehl (2002),
a psicanálise toma parte na empresa de criação desse sujeito como autor
de si mesmo.
Cultivei meu ser, fiz-me pouco a pouco: constituí-me. Letras me
nutriram desde a infância, mamei nos compêndios [...] Compulsei
índices, e consultei episódios [...] tropecei nas vírgulas, caí no abis-
mo das reticências, jazi no cárcere dos parênteses, rolei a mó das
maiúsculas, emagreci o nó górdio das interrogações, o florete das
exclamações me transpassou, enchi de calos a mão fidalga torcendo
páginas (Leminski, 2010, p. 30).
Freud e Lacan, ao fazerem de alguns textos literários objetos de seus
estudos, nos mostraram que não devemos ousar tentar aplicar a psicanálise
à arte, mas sim o contrário: aplicar a arte à psicanálise, considerando que
o artista sempre precede o psicanalista e lhe abre os caminhos.2 Segundo
Chemama (apud Fleig, 2002, p. 70), “a questão está sempre para ser reto-
mada: mas afinal, sobre o quê o escritor nos ensina?”
2 “A única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, ainda que essa lhe tenha sido reconhecida como tal, é a de recordar com Freud que, em sua matéria, o artista sempre o precede, e que não há por que fazer-se psicólogo ali onde o artista lhe trilha o caminho” (Lacan, 1965, p. 8-9 apud Regnault, 2001, p. 20).
julho 2013 l correio APPOA .39
Jornada do Percurso de Escola XI (I).
A partir destes pressupostos, lancei-me ao encontro de Paulo Leminski,
o conhecendo através da obra artística que deixou como legado: uma obra
escrita. Navegando à deriva em sua procura, ancorei em seu Catatau,
romance-ideia onde encontrei, literalmente, a lógica não-cartesiana. “O
mundo não quer que eu me distraia, distraído, estou salvo” (Leminski,
2010, p. 61).
Esta frase faz parte do seu livro Catatau, escrito por ele ao longo de
oito anos e publicado em 1975. Neste, relata a fictícia vinda de Descartes
ao Brasil, durante o período do domínio holandês no século XVII, onde,
sob efeito de ervas alucinógenas e ancorado por uma luneta, desbravava
o território que descobrira. Esta frase talvez seja a frase-semente de onde
brotou a ideia central e o título de outro livro seu, de 1987, chamado
Distraídos Venceremos, expressão que coloca em cena um trocadilho ao
brincar com o jargão “unidos venceremos”, frase memorável utilizada em
campanhas políticas desde o final dos anos 60. “Unidos venceremos” diz-se
também, em forma de gíria, do arroz que, ao ser cozido demais, passa do
ponto e amolece, compactando-se. A partir do bordão desconstruído por
Leminski, que deu origem ao título de seu livro (Distraídos Venceremos),
retomamos o significado das palavras distrair e unir. A primeira significa
desviar a atenção, não se focar em um ponto específico, e sim, ser atraído
para diversas partes, significando exatamente o contrário da segunda, ou
seja, daquilo que converge, que une. Deste modo, esta definição acaba por
vir ao encontro de um termo precioso para o fazer psicanalítico: o termo
atenção flutuante.
A ativação de uma atenção à espreita – flutuante, concentrada e
aberta [...] entendida como um músculo que se exercita e sua aber-
tura precisa sempre ser reativada, sem jamais estar garantida. [...] é
a busca reiterada de um tônus atencional, que evita dois extremos:
o relaxamento passivo e a rigidez controlada (Passos; Kastrup; Es-
cóssia, 2009, p. 48).
correio APPOA l julho 201340.
temática.
Freud, no texto intitulado Recomendações aos médicos que exercem
a psicanálise (1912/1996d, p. 126), escreve sobre a importância de, ao se
realizar uma escuta clínica, manter-se a atenção uniformemente suspensa
diante do que é narrado, a fim de evitar “um perigo que é inseparável do
exercício da atenção deliberada”. Diz ainda que quando deliberadamente
concentra-se a atenção em pontos específicos da narrativa do paciente,
corre-se o risco de negligenciar outros pontos importantes, e que, ao fazer
esta seleção, o analista estará seguindo suas expectativas ou inclinações e,
deste modo, “estará arriscado a nunca descobrir nada além do que já sabe”
(Ibid, p. 126). Chemama (1995, p. 167) retoma o significado do conceito
de atenção flutuante no Dicionário de Psicanálise, dizendo que o mesmo
se refere à recomendação de Freud de que o psicanalista “permaneça com
a maior receptividade, abertura e disponibilidade possíveis em relação ao
que o paciente possa dizer.”
Ancorados na digressão acima a partir do título do livro de Leminski,
Distraídos Venceremos, e a partir do conceito de atenção flutuante, é possí-
vel falar sobre a própria metodologia deste estudo, que nasceu a partir de
um desejo de navegar, à deriva, na obra de Leminski e, assim, ir tecendo
possíveis enlaces com a psicanálise. Não se partiu de um “índice” fechado,
com tópicos pré-estabelecidos a serem abordados, ou com hipóteses a serem
testadas. As questões aqui levantadas foram construídas à medida que o
pesquisador e a obra a ser pesquisada encontraram-se. Assim, aproxima-se
este processo à situação de análise, no sentido de lançarmo-nos a associar
livremente, sem saber aonde iremos chegar. Portanto, nas palavras de
Barthes (2005, p. 49), “trata-se aqui de um Discurso, não da Explicação,
nem mesmo da Interpretação, mas da Ressonância.”
Catatau é refação de enredo, rede de signos, condensação, onde uma
palavra-imagem se mistura à outra, desdobra-se, re-vela-se. Segundo Ha-
roldo de Campos, no ensaio intitulado Uma Leminskíada Barrocodélica,
Leminski teria dito que:
julho 2013 l correio APPOA .41
Jornada do Percurso de Escola XI (I).
O Catatau é a história de uma espera. O personagem (Cartésio) es-
pera um explicador (Artyschewsky). Espera redundância. O leitor
espera uma explicação. Espera redundância, tal como o personagem
(isomorfismo leitor/personagem). Mas só recebe informações novas.
Tal como Cartésio (1989, p. 4).
Evidencia-se assim a primazia não do sentido, mas sim da conse-
quência, onde palavras não são só palavras. O leitor não receberá uma
explicação, pelo contrário. É convidado a experimentar uma entrega a um
texto onde se desencontra com o sentido “convencional”. Se desencontra
com o sentido e isso lhe proporciona abrir os sentidos. Aqui, torna-se
possível uma articulação com a psicanálise, com o fazer clínico, onde não
se pode garantir ao analisando a ação do tratamento baseada em uma ver-
dade prévia, e sim no convite a apostar em algo que só poderá ser sentido
a posteriori, como consequência. “O analista empresta consequência às
palavras do analisando” (Forbes, 2009, p. 19).
Retomando Leminski, ao fazer o trocadilho com a frase “unidos ven-
ceremos”, evidencia-se uma possível relação entre os seus livros Catatau
e Distraídos Venceremos. Ambos denunciam, cada qual da sua maneira,
a falência da razão sobre o acaso. Em ambos, Leminski coloca em cena
que a percepção do mundo baseada somente na razão impossibilita uma
infinidade de outras maneiras de desbravar a vida e, exatamente por isto,
a lógica cartesiana-ocidental teme o distraído, uma vez que ele é quem
denuncia o fracasso da razão. A distração, portanto, como aquela capaz
de salvar o sujeito da ditadura da razão, que tanto nos limita.
A partir desta digressão, é possível uma associação com a banda de
Moebius, onde direito e avesso se misturam em uma só linha. A experi-
ência de passar de um lado para o outro sem percebermos como e quando
exatamente se dá esta passagem remete-me também à escuta clínica psi-
canalítica. Qual é o avesso? Qual é o direito? Será o avesso o marginal da
margem? Será possível fazer esta diferenciação?
correio APPOA l julho 201342.
temática.
Ao traçarmos um caminho pela fita de Moebius, ficamos “perdidos”:
onde é dentro, onde é fora, onde começa, onde termina? Assim como no
encontro com certas obras literárias, é preciso entrar em contato com a falta
de sentido imediato, para que o novo possa enunciar-se. É preciso estar
dentro e fora do texto, assim como na experiência clínica, ao escutarmos
alguém. Leminski, tão marginal e tão erudito – como explicitado no próprio
título de sua biografia, escrita por Toninho Vaz, O Bandido que Sabia Latim
–, demonstra no ato de existir a impossibilidade de separação destas ins-
tâncias “avessas e direitas”. Assim o poeta, ser de fronteiras, que é “quem
conhece os caminhos do signo [...] pode entrar no fogo sem se queimar
na água sem se molhar na redundância sem se banalizar”, como escreve
numa carta a Régis Bonvincino em 29/09/78 (1999, p. 95). O ato poético,
então, poderia ter um efeito de percurso por uma fita de Moebius, onde
escritor e leitor lançam-se num caminho que os conduz à transgressão?
O exercício de tocar os limites linguísticos é como uma prática (des)
construtora, uma vez que opera impulsionando o sentido a movimentar-
-se e amplia os horizontes para além do já sabido. Uma imagem da língua
como um labirinto, onde se caminha sem conhecer aonde se chegará, é
compartilhada como algo em comum entre o filósofo Wittgenstein e o poeta
Leminski, onde o primeiro diz que:
A língua é um labirinto de caminhos.
Você vem de um lado,
e se sente por dentro;
você vem de outro lado para o mesmo lugar,
e já não se sente mais por dentro
(Wittgenstein, 1996, p. 203).
E o segundo diz:
Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
(Leminski, 1995, p. 18).
No limite da poesia, grita o indizível. Silêncio que carrega o poema,
potência do que pode (des)conter. Nos limites da palavra, transbordam à
margem os significantes. Transgressora poesia, marginal, linhas escritas
do limite, na margem, nem lá, nem cá, como quem cala e fala ao mesmo
tempo. Na poesia, a possibilidade da língua ser modificada pela potência
de demarcar um lugar de desterritorialização. Nas palavras de Leminski:
Poesia, aliás, é território limítrofe entre o verbo e outras artes. Um
poeta, embora use palavras, está mais próximo de músicos e artistas
plásticos do que de ficcionistas que usam, aparentemente, as mes-
mas palavras que ele [...] O negócio da poesia é ficar brincando nas
fronteiras (Leminski; Bonvincino, 1999, p. 195).
Leminski nos adverte: “Repara bem no que não digo”, (2010, p. 74).
Ao dizer uma coisa falando outra, ou ainda ao escutar naquilo que silen-
cia, podemos pensar que a poesia se caracteriza por re-velar uma verdade
(impossível de ser dita). Re-velar como velar novamente, como denunciar a
impossibilidade da retirada total de um véu. Retiramos um véu na medida
em que o substituímos por outro. O desnudamento absoluto é impossível,
assim como é impossível à palavra traduzir todo o real. A re-velação da
poesia é sua potência de lutar contra um esmagamento pelo absoluto. É
valorizar mais os vestígios ao invés das provas. Assim também propõe a
escuta psicanalítica, ao permitir que se possa falar o impossível de dizer. O
inconsciente fala através de incógnitas, desvela-se através de outros véus
que o discurso coloca em cena. Diante deste impossível, abre-se espaço
para a invenção, para a criação, para a poesia, para a arte, que fala como
uma associação-livre entre desvelar e re-velar. O (não) saber inconsciente
correio APPOA l julho 201344.
temática.
denuncia o desmoronamento do saber absoluto, da verdade universal, ao
operar fora do cogito, no que há de tão estrangeiro e por isso tão íntimo em
cada um de nós, propiciando o encontro com o Outro tão desconhecido
que nos habita e constitui. A poesia edifica-se neste não-lugar, assim como
a psicanálise, onde a verdade desmorona, enfrentando ao invés do óbvio,
o novo a cada instante – mesmo que dentro de uma lógica de repetição.
Referências bibliográficas BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
LEMINSKI, Paulo; BONVINCINO, Régis. Uma carta uma brasa através. São Paulo: Iluminuras, 1992.
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WITTGENSTEIN, L. Investigações fi losófi cas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
julho 2013 l correio APPOA .45
temática.
Cegos que, vendo, não veem
Joana Martins Costa Bohmgahren1
Sentindo-me convocada a escrever sobre minha experiência no Per-
curso de Escola da APPOA, me uni com alguns colegas no cartel “Arte,
corpo e linguagem” e após alguns encontros despertou-me um antigo
desejo de escrever sobre o cinema e a questão do olhar na contempo-
raneidade. Vendo alguns filmes para inspirar e compor minha escrita,
ocorreu-me assistir Ensaio sobre a cegueira baseado na premiada obra,
de mesmo nome, de José Saramago. No entanto, me pareceu mais interes-
sante primeiramente ter a experiência de leitura desta obra, o que mudou
quase completamente os rumos deste texto. Propus-me então, após essa
árdua leitura, a pensar sobre a importância do olhar na civilização e os
modos paradoxais de sua função na sociedade: do olhar constitutivo que
1 Psicóloga.
correio APPOA l julho 201346.
temática.
tem o olhar do Outro ao olhar mortífero da sociedade com toda sua carga
espetacular e racional.
Em sua trama, Saramago nos guia, em meio à cegueira, com os olhos
de uma personagem: a mulher de um médico oftalmologista. Nos mos-
tra o caos em que sucumbe a sociedade diante de uma cegueira branca,
inexplicável, sem causa aparente, mas que contagia rapidamente a todos,
menos a mulher do médico. O grande primeiro grupo a cegar e os que
tiveram contato com estes são condenados à quarentena e confinados nas
dependências de, acredito que não por acaso, um manicômio. A mulher
do médico se passa por cega para poder acompanhar seu marido e é a
testemunha ocular do sentimento mais belo e da ação mais terrível que o
homem é capaz de cometer. O médico parece já anunciar isto no início do
livro dizendo “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença
e metade de ruindade” (p. 40). Estes sujeitos cegos são obrigados, então,
a encontrar estratégias e acordos para garantir sua sobrevivência entre
tantos desconhecidos e conseguir suportar o horror da brancura, tão mais
assustadora que a escuridão que vivenciam os cegos “normais”.
Sabemos da importância que tem o olhar materno na constituição e
no desenvolvimento de um bebê, deste Outro primordial que o inscreverá
na linguagem, indicará a função paterna e transmitirá os significantes
culturais que fazem parte da família e da sociedade em que vive. Portan-
to, esse olhar comporta muito mais que ter alguns cuidados com o bebê,
comporta uma condição subjetiva de se implicar nesta função e apostar
que outro sujeito advirá, com desejos, muitas vezes, diferentes dos seus.
Nesta relação, como nos explicita Quinet (2004), é a pulsão escópica que
confere o caráter de beleza ao objeto desejado do mundo sensível e per-
mite que o sujeito o “toque com os olhos” e o desnude com o olhar. Nos
desenvolvemos na relação com o Outro pelo toque, pela voz e pelo olhar,
este último muitas vezes podendo fazer falar e fazer sentir. Nos diz o autor,
além disso, que o gozo escópico, a Schaulust que esta pulsão proporciona,
é o gozo dos espetáculos, mas traz também, ao ser desvelado, o objeto, o
julho 2013 l correio APPOA .47
Jornada do Percurso de Escola XI (I).
horror, pois o olhar não pode se ver senão ao preço do desaparecimento
do sujeito, pois toda pulsão é, também, pulsão de morte.
Freud (1927) em seu escrito O Futuro de uma Ilusão nos apresenta
dois aspectos da civilização: primeiro o que inclui todo o conhecimento e
capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da na-
tureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas
e, segundo, o que inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as
relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição
da riqueza disponível. Os cegos de Saramago são orientados pelo Governo
a seguir algumas normas e, o que ficasse fora disso, seria problema deles:
O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que
considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios
as populações na crise que estamos e atravessar, quando parece
verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira,
provisoriamente designado por mal-branco, e poder contar com o
civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a pro-
pagação do contágio [...] O Governo está perfeitamente consciente
de suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensa-
gem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que
devem de ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando
que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de
quaisquer outras considerações pessoais, um ato de solidariedade
para com o resto da comunidade nacional” (Saramago, 1995, p. 49).
Essas condições se assemelham com o modo de funcionamento da
nossa sociedade, regida por leis e deveres impostas a todos cidadãos, no
entanto, sabemos que na prática esse exercício é arbitrário.
Quinet, em sua obra Um olhar a mais nos auxilia com a leitura de
Freud e aponta sobre seu texto do “mal-estar” que a civilização exige de
cada um a renúncia pulsional, portanto, toda civilização tem de se erigir
sobre a coerção e a renúncia à pulsão. O mal-estar na civilização seria um
retorno de gozo que a civilização não é capaz de represar. Quinet se utiliza,
correio APPOA l julho 201348.
temática.
então, da expressão “mais-de-olhar” como a modalidade do supereu que
vigia, observa e mortifica o sujeito, exigindo dele transparência e retidão.
Para o autor é o gozo escópico excluído que retorna sob a forma de mal-
-estar. “Olhar como objeto de gozo que escapa da simbolização, portanto da
civilização, já que a cultura comporta o processo civilizatório que equivale
ao registro simbólico e à articulação significante” (Quinet, 2004). A expe-
riência dos cegos é vivenciada dentro de um prédio em modelo panóptico,
vigiados por aqueles que ainda temem seu olhar branco e cego, como se
uma rápida olhada para o outro também pudesse torná-los cegos. Aqui,
se relacionar com o outro é sinônimo de perigo e fragilidade. Em meio às
atrocidades que ocorrem entre as pessoas que estão no manicômio, há um
grupo que consegue firmar um laço e sobreviver, agraciados, acreditam
eles, com os olhos saudáveis da mulher do médico. No entanto ela lhes
diz “[...] é que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num
mundo de cegos, não sou rainha, não, sou simplesmente a que nasceu para
ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o...” (Saramago, 1995, p.
262). Aqui conto com as reflexões de Didi-Huberman sobre quando ver
também é perder. Ele nos coloca que:
A experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes
dar ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impres-
são de ganhar alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se
inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é
sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é
perder (1998, p. 34).
O médico diz para sua esposa “Tu continuas a ver” e ela lhe responde
“Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei
mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja” (Saramago,
1995, p. 302). Ao mesmo tempo, o grupo vai sentindo as mudanças desta
experiência, e as mulheres respondem ao serem perguntadas sobre a morte
de uma de seu grupo “Morreu, e nós já não somos as mesmas mulheres
julho 2013 l correio APPOA .49
Jornada do Percurso de Escola XI (I).
que daqui saímos, as palavras que elas diriam, já não as podemos dizer
nós, e quanto às outras, o inominável existe, é esse o seu nome, nada
mais.” (Saramago, 1995, p. 179). A condição de cegueira no mundo de
Saramago também revela uma verdade sobre o sujeito, sobre o homem:
ele sempre foi cego, há algo inominável que o constitui e que ele sempre
está em busca; talvez uma busca no olhar do outro, onde pode encontrar
algo familiar e acolhedor (como ocorre entre o grupo sobrevivente) ou
encontrar o insuportável, algo pior que a própria morte. Não estaríamos
vivendo sempre uma espécie de cegueira? Algumas vezes conseguimos
produzir encontros sensíveis e diálogos possíveis com toda a diversidade
e diferença que circula no meio social e abrimos os olhos para opiniões
engessadas que tínhamos sobre certo assunto; por outro lado, a cegueira
insiste em se instalar, principalmente naqueles que tem o poder de governar
e dirigir o olhar dos outros. Portanto, no olhar capturado pela racionali-
dade justificada dos favorecidos ou pelo espetáculo (seja na mídia ou nas
relações), a sensação de ganhar de que nos falava Didi-Huberman é um
engano e o que se perde é encoberto pelos excessos.
Entre tantas falas, discursos e diálogos, a principal transmissão deste
percurso de psicanálise, que acredito sempre interminado, é o da transmis-
são de uma ética, ética do olhar-vendo, do olhar-reparando cada sujeito,
cada situação que presenciamos ou vivenciamos. A ética da psicanálise,
segundo Quinet (2004) é uma ética do desejo e não do gozo. Uma ética do
olhar consiste em mostrar o semblante de ser que o olhar encarna.
A ética do olhar é a que corresponde ao desejo de saber que não visa o
gozo escópico da completude, mas que afirma que a falta de saber é cons-
tituinte do desejo que a anima (Quinet, p. 291). Precisamos assumir que
estamos cegos, enquanto sociedade, enquanto civilização, pois somente
assim conseguiremos abrir os olhos e continuar produzindo mudanças.
Porém, nem sempre abrir os olhos é o mesmo que ver, já nos diz Didi-
-Huberman (1998) em sua filosofia das imagens que “devemos fechar os
olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que
correio APPOA l julho 201350.
temática.
nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.”
Uma personagem do livro diz: “Dentro de nós há uma coisa que não
tem nome, essa coisa é o que somos” (Saramago, 1995, p. 262). Essa coisa
poderíamos chamar de inconsciente, dessa verdade aparentemente oculta
que irrompe inesperadamente nas ações e no verbo de cada um de nós.
Saramago encontra Freud quando este cita Christian Grabbe, autor
de Aníbal: “Sim, não pularemos para fora deste mundo. Estamos nele de
uma vez por todas.”
Saramago coloca isto em cena no diálogo entre o médico e sua
mulher:
– Por que foi que cegamos
– Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão,
– Queres que te diga o que penso
– Diz
– Penso que não cegamos, penso que estamos cegos
– Cegos que veem
– Cegos que, vendo, não veem
(Saramago, 1995, p. 310)
Neste momento o narrador continua:
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo,
para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam.
Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco. Chegou a
minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade
ainda ali estava.
(Saramago, 1995, p. 310)
Penso que é por aí que a psicanálise nos transmite algo: precisa-se
encarar o mundo e assumir-se enquanto sujeito nele para que se possa
transformá-lo e fazer alguns deslocamentos. Enfrentar o real insuportável
da vida pelos atravessamentos da arte é uma importante forma de articu-
julho 2013 l correio APPOA .51
Jornada do Percurso de Escola XI (I).
lação entre o real, o simbólico e o imaginário. Assim como a mulher do
médico baixou os olhos e ali continuou a ver a cidade, ao levantarmos os
olhos do livro também nos deparamos com a cidade de cada um.
Referências bibliográficasDidi-Huberman, G. A inelutável cisão do ver. In: O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
Freud, S. (1927). O Futuro de uma Ilusão. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
Quinet, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
julho 2013 l correio APPOA .53
resenha.
Psicanálise e Educação: uma criação a partir de um não saber
O impacto da Psicanálise na EducaçãoOrg.: Leny Magalhães MrechSão Paulo: Editora Avercamp, 2005
O Impacto da Psicanálise na Educação, obra organizada pela psica-
nalista, socióloga e professora Leny Magalhães Mrech, da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, apresenta um trabalho coletivo;
uma investigação emergida da constatação de que nos últimos anos pro-
fessores e psicanalistas vêm demonstrando um crescente interesse pelas
possíveis articulações entre a Psicanálise e a Educação. Chama a atenção da
autora a subvalorização da Educação pela sociedade, em uma atitude que
beira a desqualificação e, muitas vezes, à sua invalidação. Não escaparia
desse processo uma boa parte dos educadores, psicólogos e psicanalis-
tas, os quais, por se deixarem tomar pelo engessamento das discussões,
inviabilizam a escuta mais precisa e pontual desse momento vivido pela
correio APPOA l julho 201354.
resenha.
Educação e pelos educadores. Em consequência, Leny Mrech se interroga
sobre a possibilidade de estarmos diante de um novo sintoma, uma surdez
simbólica para a escuta das questões educativas.
Seu trabalho inicial com professores da rede pública e particular do
Estado de São Paulo partiu de duas temáticas – a da fala e a da escuta
do professor. Temáticas paralelas e complementares, pois que ao dar a
palavra aos professores para que esses relatassem suas dificuldades, o
passo seguinte, e fundamental, seria o de oportunizar-lhes a escuta dessa
palavra, fazendo com que o(s) sentido(s) pudesse(m) se articular(em) e
serem tecidos de uma maneira singular; portanto, fora das representações
e significações prévias, como foi o caso com a própria palavra professor.
Como parte do trabalho realizado, e no sentido de ampliar as discus-
sões desenvolvidas, pesquisadores educacionais, psicanalistas, sociólogos,
alguns do Brasil, outros da França, foram convidados a contribuir com uma
leitura mais ampla dos contextos educativos e das dificuldades enfrenta-
das pelos professores. Reunidos em um encontro em 02 de julho de 2002,
motivados pela pergunta central: Os professores escutam a psicanálise?
cada pesquisador buscou estruturar sua posição através de recortes de
interesses particulares de análise e reflexão. O resultado desse trabalho
coletivo ensejou, então, o livro organizado por Leny, no qual encontramos
deslocada, de modo estratégico, a pergunta originalmente formulada, isto
é, passou-se da pergunta à resposta ao eleger como temática mais ampla
o impacto da Psicanálise na Educação, titulo da obra, publicada no ano
de 2005, pela editora Avercamp.
Ao todo compõem a obra oito capítulos, todos trazem uma rica e mati-
zada leitura das articulações mais importantes entre a Psicanálise e Educa-
ção e dos impactos, direto e indireto, da Psicanálise no campo da Educação.
Ao perscrutar os capítulos, nos deparamos com a extrema capacidade de
transmissão que as autoras e autores – todos docentes e pesquisadores re-
nomados – revelam. Transmitem suas experiências, inclusive em clinicas,
trabalhando os dados e recortes com densidade teórica e inventiva, como
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
bem o demonstra o conhecido e renomado sociólogo Bernard Charlot, em
seu texto O sociólogo, o psicanalista e o professor. Propõe aí, em um gesto
ousado, diríamos transgressor enquanto pesquisador no campo da Socio-
logia, uma sociologia do sujeito, condição para que possamos compreender
o que acontece hoje na escola. Ao se colocar uma questão de Sociologia da
Educação, transgredindo uma proibição fundadora da Sociologia, aquela
que segue a tradição de Durkheim, o professor Charlot é levado a construir
uma teoria, segundo ele, um trabalho em curso de teorização, da relação
com o saber exposta detalhadamente em outras obras suas, e retomada no
texto acima mencionado para embasar sua reflexão sobre a compreensão
do aluno como sujeito. Sujeito – noção que interessa à Psicanálise, mas
que afirma saber que para a Psicanálise o sujeito é “um ser dependente
da linguagem”, citando o desenvolvimento que faz o psicanalista Marcelo
Ricardo Pereira, em outro capítulo da presente obra: Subversão docente ou
para além da “realidade do aluno”.
Bernard Charlot, ao desenvolver a problemática da reinterpretação
dos discursos científicos (como é o caso da Sociologia da Reprodução na
leitura que dela fazem os professores nas décadas de 70 e 80, do século
XX, ou mesmo da própria Psicanálise, naquilo que as revistas retêm, por
exemplo), vai além, apontando aí os limites do saber; do saber da Sociologia
da Educação, mais precisamente da Sociologia da Reprodução, proposta
por Pierre Bourdieu. Limite visto não como insuficiência de análise, por
que essa tem por foco as desigualdades sociais e não o sujeito; não também
porque, acrescenta Charlot, Bourdieu na realidade diz do psíquico o que
tem necessidade de dizer enquanto sociólogo, ou seja, diz que “as dispo-
sições psíquicas são estruturadas pelas condições sociais de existência”
(p. 42). Fica, portanto, em aberto como se constroem esses habitus, como
psicologicamente isso acontece.
Pois bem, questão que Bourdieu talvez respondesse não ser da sua
alçada porque é um sociólogo e não um psicólogo. Estamos diante de uma
das grandes contribuições do professor Charlot ao debate das articulações
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resenha.
entre Psicanálise e Educação: configurar um não-saber, fundante dos di-
versos campos do conhecimento, da ciência.
Prestemos atenção ao modo como conclui essa parte de seu texto/
capítulo para tematizar a noção, mais adiante: “Se se recusa esse direito
ao não-saber, todo o trabalho deve ser revisto por meio da questão: como
o sujeito se constrói ao mesmo tempo em uma lógica psíquica e nas re-
lações sociais? Mas aí está um outro problema, que não é o problema de
Bourdieu.” (p. 42).
Devido à pregnância da questão podemos indagar se esse problema não
se tornou nos tempos contemporâneos crucial para professores, pesqui-
sadores educacionais e psicanalistas? Enfim, para aqueles que se sentem
concernidos pelas inter-relações, pelos cruzamentos entre Psicanálise e
Educação.
Esta é uma dentre as várias contribuições preciosas da obra O im-
pacto da Psicanálise na Educação, organizada por Leny Mrech. Difícil
neste espaço abarcar a extensão da obra. Mas passemos a outro recorte
da mesma. A contribuição de Mireille Cifali, no capítulo II – Psicanálise
e escritura da história em Michel de Certeau, de fato, amplia a discussão
ao trazer para o debate algo da sua experiência como orientanda que foi
de Michel de Certeau, historiador e psicanalista francês. Mireille Cifali
parte dessa experiência, situando a convivência de respeito e admiração
por seu mestre. Podemos acompanhar os detalhes às páginas 57-58, e
também na reflexão, a título de conclusão, às páginas 69 e 70. A convi-
vência com Michel de Certeau lhe deixou marcas, e reconhece “ter com
ele uma dívida” que tenta “saldar dia após dia”. São essas marcas que
evoca ao longo do capítulo, dando destaque à concepção de Psicanálise e
História; o lugar da escrita na construção do saber; a escritura da ciência;
como também o lugar da ficção e do poema, que ensejam para de Certeau
a “poética de uma ética”.
Muitas são as contribuições que Mireille Cifali traz ao debate das ar-
ticulações entre Psicanálise e Educação. Da sua tocante convivência com
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Jornada do Percurso de Escola XI (I).
Michel de Certeau podemos extrair não somente outros sentidos para as
relações entre professores e alunos – relações entre mestre e discípulos,
temática abordada por Eliane Maria Teixeira Lopes, no capítulo III – O
professor é um mestre? valendo-se, sobretudo, da experiência evocada
por Mireille Cifali; mas, como também dar corpo “a uma clinica da ação”,
por meio da escritura do cotidiano profissional, “aliando singularidade,
subjetividade, afeto e escritura” (p. 65). Escritura que marca “não o lugar,
mas a falta”, porque esburacada e sempre “em movimento em direção
àquilo que não atinge (...)”. (p. 69).
Ou ainda, esburacada porque “[...] para o inconsciente há sempre
um rombo, um rasgo no saber. Um processo que não acontece por acaso.
Fazendo com que ele se encontre estreitamente articulado ao registro do
real. [...] há um limite em relação a um tudo saber” (p. 145), conforme
aponta Leny Mrech, no capítulo VII – O impacto do Terceiro Ensino de
Lacan: novas contribuições para algumas articulações possíveis entre
Psicanálise e Educação.
Neste capítulo, há um longo e detalhado desenvolvimento acerca do
que se tem dito acerca do terceiro ensino de Jacques Lacan. A autora nele
reflete sobre as possibilidades do impacto futuro do mesmo no campo
educativo; vai deslocando uma a uma das temáticas educacionais, a co-
meçar pela noção de teoria, a qual diz tender “ a se fechar nela mesmo”,
ao passo que à luz do ensino desenvolvido por Lacan, da sua posição na
transmissão da Psicanálise, “o ensino se abre e apresenta um furo diante
do real” (p. 146).
Há desdobramentos importantes desta questão (e de outras tantas
trazidas nos demais capítulos) que não cabem no espaço desta resenha.
Deixamos o convite aos leitores, aqueles que se sintam tocados pelas
articulações Psicanálise e Educação, a percorrerem a obra por inteiro
e por si mesmo atestar as possibilidades que a mesma introduz como
desafio à educação e à escola contemporâneas. Como bem enfatiza Leny
Mrech, na introdução do livro, intitulada Mas, afinal o que é educar?,
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resenha.
quase um desabafo, talvez. Abaixo citamos a passagem, ainda que lon-
ga, porque nos parece dizer algo sobre o tom que os autores visaram
imprimir à obra:
O ofício de educar, ao contrário do que pretendem muitos professo-
res, não termina nunca e está em constante reformulação. Por esse
motivo, ele não apresenta diretrizes, regras fixas e ‘cartilhas’ ou
guias de ação. A Educação é um constante processo de vir a ser. Algo
da ordem do tosco, do incompleto. A psicanálise tornou evidente
que nunca houve nem haverá como se atingir a prática perfeita, a
Educação perfeita, o professor perfeito. O que se tem a cada dia são
professores atuando. É a Educação se fazendo e se refazendo no dia-
-a-dia. Uma prática limitada, uma Educação limitada e um professor
limitado. Uma visão da qual muitos educadores procuram se afastar
para ficar com o ‘ideal’ da Educação: o modelo ideal, o professor como
ideal, a escola como ideal, a Educação como ideal (p. 29).
Sonia Mara M. Ogiba
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agenda.
agenda
dia hora atividade
próximo número
05, 12, 19 e 26 14h Reunião da Comissão da Revista
05 e 19 16h30min Reunião da Comissão de Aperiódicos
08 e 22 20h30min Reunião da Comissão do Correio
04, 11, 18 e 25 19h30min Reunião da Comissão de Eventos
11 e 18 19h Reunião da Comissão da Biblioteca
04 e 21h Reunião da Mesa Diretiva
18 e 21h Reunião da Mesa Diretiva aberta aos membros
julho. 2013
eventos do ano
data evento local
23 e 24 de agosto III Jornada do Instituto APPOA Hotel Continental – Porto Alegre – RS
26 e 27 de outubro Jornada clínica Plaza São Rafael – Porto Alegre – RS
2013
Jornada do Percurso de Escola XI (II)
normas editoriais do Correio da APPOA
O Correio da APPOA é uma publicação mensal, o que pressupõe um trabalho de seleção temática – orientado tanto pelos eventos promovidos pela Associação, como pelas questões que constantemente se apresentam na clínica –, bem como de obtenção dos textos a serem publicados, além da tarefa de programação editorial.
Tem sido nosso objetivo apresentar a cada mês um Correio mais elabo- rado, quer seja pela apresentação de textos que proporcionem uma leitura interessante e possibilitem uma interlocução; quer pela preocupação com os aspectos editoriais, como a remessa no início do mês e a composição visual.
Frente à necessidade de uma programação editorial, solicitamos que sejam respeitadas as seguintes normas:
1) os textos para publicação na Seção Temática, Seção Debates, Seção Ensaio e Resenha deverão ser enviados por e-mail para a secretaria da APPOA ([email protected]);
2) a formatação dos textos deverá obedecer às seguintes medidas: – Fonte Times New Roman, tamanho 12 – O texto deve conter, em média, 12.000 caracteres com espaço – Notas de rodapé em fonte tamanho 103) as notas deverão ser incluídas sempre como notas de rodapé;4) as referências bibliográficas deverão informar o(s) autor(es), título da
obra, autor(es) e título do capítulo (se for o caso), cidade, editora, ano, volume (se for o caso);
5) as aspas serão utilizadas para identificar citações diretas;6) citações diretas com mais de 3 linhas devem vir separadas do corpo do
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palavras estrangeiras que não sejam de uso corrente ou títulos de livros;8) não utilizar negrito (bold) ou sublinhado (underline);9) a data máxima de entrega de matéria (textos ou notícias) é o dia 05,
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deve ser apresentado. A Comissão do Correio se reserva o direito de sugerir alterações ao(s) autor(es) e de efetuar as correções gramaticais que forem ne-cessárias para a clareza do texto, bem como se responsabilizará pela revisão das provas gráficas;
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Temática 9
Narrativas da clínica: a transferência recompondo laços 9 Iana Stadulne Aquino
O correr da escrita: “Às suas marcas, já!” 17 Márcio Fransen Pereira
O pulso ainda pulsa e o corpo ainda é pouco: Toxicomania, desamparo e pulsão de morte 27 Flávia de Toledo Oliveira Lucas
Da vida o verso – Psicanálise e alguma poesia de Paulo Leminski 37 Roberta Trombini Pires
Cegos que, vendo, não veem 45 Joana Martins Costa Bohmgahren
Resenha 53
Psicanálise e Educação: uma criação a partir de um não saber 53
Agenda 59