jogos de linguagem e a filosofia clínica

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Tamara Machado Fracalanza Quais as contribuições de Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas, para a filosofia clínica? Palavras, expressões, termos não são simplesmente a denominação de um objeto por simples correspondência. A criança pequena, ao começar a falar, aprende uma série de palavras associando-as aos objetos, como o cachorro, o gato, etc. Apesar de isso fazer parecer que o aprendizado aconteça por correspondência – se digo que há uma cadeira, é porque há uma cadeira na minha frente – Wittengenstein demonstra em Investigações Filosóficas uma perspectiva diferente. Para o filósofo, a palavra poderia ser uma representação correspondente se fossemos máquinas de repetição de frases. No entanto, a entonação, a gesticulação, o uso circunstancial da linguagem fazem deste um instrumento, um utensílio da comunicação. Uma criança pequena que passa pelo treinamento de repetição de palavras (o treinamento ostensivo de palavras) – vale ressaltar que não se quer dizer aqui quaisquer palavras – fala e repete sons de frases e termos que estão sempre contextualizadas e que fazem parte de um repertório de falantes que a antecede. As crianças pequenas começam falando palavras pronunciadas conforme as suas possibilidades. Imaginemos algumas delas, para o cachorro é o ‘au-au’, para o almoço ‘pa-pa’, para o verbo querer ‘té’, e assim por diante. Muitas vezes ainda, a criança pequena emite sons a respeito das coisas que sonoramente não captamos, mas nem por isso deixamos de compreender o sentido dela, já que faz parte de um contexto que a significa. Dessa forma, é possível dizer que a criança comunica-se desde muito pequena, seja por gestos, expressões faciais, balbucios e que as palavras não são determinantes para se estabelecer uma troca com os adultos e outras crianças.

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Trabalho para o curso de filosofia clínica sobre jogos de linguagem

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Tamara Machado FracalanzaQuais as contribuies de Wittgenstein, nas Investigaes Filosficas, para a filosofia clnica?Palavras, expresses, termos no so simplesmente a denominao de um objeto por simples correspondncia. A criana pequena, ao comear a falar, aprende uma srie de palavras associando-as aos objetos, como o cachorro, o gato, etc. Apesar de isso fazer parecer que o aprendizado acontea por correspondncia se digo que h uma cadeira, porque h uma cadeira na minha frente Wittengenstein demonstra em Investigaes Filosficas uma perspectiva diferente. Para o filsofo, a palavra poderia ser uma representao correspondente se fossemos mquinas de repetio de frases. No entanto, a entonao, a gesticulao, o uso circunstancial da linguagem fazem deste um instrumento, um utenslio da comunicao. Uma criana pequena que passa pelo treinamento de repetio de palavras (o treinamento ostensivo de palavras) vale ressaltar que no se quer dizer aqui quaisquer palavras fala e repete sons de frases e termos que esto sempre contextualizadas e que fazem parte de um repertrio de falantes que a antecede. As crianas pequenas comeam falando palavras pronunciadas conforme as suas possibilidades. Imaginemos algumas delas, para o cachorro o au-au, para o almoo pa-pa, para o verbo querer t, e assim por diante. Muitas vezes ainda, a criana pequena emite sons a respeito das coisas que sonoramente no captamos, mas nem por isso deixamos de compreender o sentido dela, j que faz parte de um contexto que a significa. Dessa forma, possvel dizer que a criana comunica-se desde muito pequena, seja por gestos, expresses faciais, balbucios e que as palavras no so determinantes para se estabelecer uma troca com os adultos e outras crianas. Ento, qual o papel da linguagem num processo comunicativo que a antecede, dela independe e considerando-se que no possvel afirmar que as coisas so o que so porque assim as nomeamos? Uma cadeira no uma cadeira porque assim a denominamos. Em outros pases, sua lngua as denomina de outra forma e apenas por aproximao identificamos que queremos dizer a mesma coisa. Wittgenstein nos conta que a criana no aprende a denominar as coisas puramente, mas aprende o uso das palavras, quando as utiliza e em quais circunstncias. Um exemplo para isso se escuto algum dizer chove, mas no sei se ouvi o incio e o fim do perodo, ento esta frase ainda no para mim um meio de comunicao (W., p. 35). Ele enfatiza que o emprego das palavras depender do antes e do depois, daquilo que a torna necessria e o que a significa. A necessidade dos signos, palavras e frases, da linguagem de modo geral, pode estar circunscrita ao poder dizer o que se quer dizer para que o outro a entenda conforme o que se desejou ter dito. somente numa linguagem que posso dizer algo como algo (Wittgenstein, p. 41). Porm, isso s possvel se os signos, palavras e frases no forem tomados como instrumentos descritivos, mas como utenslios de significao conforme sua aplicao e seu uso, [...] j que a elucidao uma espcie de moldura aparente que nada contem (Wittgenstein, p. 38). No seu livro, o filsofo pergunta se a palavra nmero seria necessria para a definio de dois. Essa pergunta foi formulada ao procurar pela definio ostensiva de dois. Tratando de dar-lhe um lugar gramatical para evitar mal-entendidos, dois seria um nmero. Ou seja, dois (uma palavra) elucidado por nmero (outra palavra). Se para buscarmos definies utilizssemos apenas palavras do dois passaramos palavra nmero que passaria palavra algarismo e assim por diante chegaramos a um processo infinito. Assim, para responder a pergunta do comeo do pargrafo, Wittegenstein responde: Isto depende do fato de que, sem essa palavra, algum a compreenda de modo diverso do que eu desejo. E isto depender, sem dvida, das circunstncias sob as quais ela dada, e dos homens aos quais eu a dou. Ou seja, Wittgenstein d a palavra dois uma funo no processo de comunicao e tira-lhe o carter denominativo ostensivo, representado pelo seu lugar descritivo da palavra nmero. Para evitar mal-entendidos, Wittegenstein est mais preocupado com as circunstncias e o emprego da palavra do que sua elucidao evidente. A circunstncia e o uso das palavras que propiciam uma comunicao s fazem sentido numa perspectiva social. Uma linguagem no poderia ser considerada como tal se fosse exclusiva a uma nica pessoa, j que no seria possvel, atravs dela, querer dizer algo. A linguagem deve ser sempre compartilhada, os signos, palavras e frases devem ser mutuamente assimilados. O que seria de uma comunicao se a cada criana nascida uma nova linguagem fosse engendrada? O que ocorre na nossa sociedade uma propagao do uso da linguagem. A criana pequena comea a pronunciar palavras desde uma tenra idade. So palavras aprendidas com os adultos j habituados a um contexto e significado. Assim sendo, o que ensinado s crianas no so apenas denominaes, mas sentidos e significados. Uma cadeira, por exemplo, no um objeto apenas com 4 ps, um tampo e um encosto, sendo este nome cadeira correspondente forma mais perfeita daquilo que idealmente existe como uma cadeira. Chama-se cadeira por que se quis dizer que isto se chamava cadeira a outrem como forma de demarcao. H um livro infantil sob o ttulo Marcelo, marmelo, martelo, escrito pela Ruth Rocha, que conta a histria de um garoto que desenvolveu uma linguagem prpria. O primeiro dilogo do livro assim: Mame, por que que eu me chamo Marcelo? Ora Marcelo foi o nome que eu e o seu pai escolhemos. E por que eu no me chamo martelo? Ah, meu filho, martelo no nome de gente! nome de ferramenta... Por que no escolheram marmelo? Porque marmelo nome de fruta, menino! E a fruta no podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo?. O interessante deste livro que o garoto pergunta aos adultos os porqus de todos os nomes das coisas, os adultos no conseguem achar explicaes e acabam por sentirem-se irritados. Talvez, Wittegenstein diria a esse garoto que os nomes das coisas assim o so porque assim queramos dizer e fazendo-o dessa forma acabamos por definir, por meio da linguagem, uma certa ordenao nas coisas do mundo. Posto isso, passamos a aproximar-nos do que Wittegenstein chamou de jogos de linguagem. Por termos o hbito de denominar as coisas, acabamos por construir um parmetro norteador, um emaranhado de regras que contextualiza a linguagem e o seu uso. Os jogos de linguagem so assim famlias de significaes, so objetos de comparao por meio de semelhanas e diferenas. Partindo do pressuposto dos jogos de linguagem, qualquer afirmao feita como objeto de comparao, como um critrio e no como um pr-juzo dogmtico ao qual a realidade corresponde.

Em vez de indicar algo que comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que no h uma coisa comum a estes fenmenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra mas sim que esto aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causa deste parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de linguagens. (W., p. 52).

Conta-nos Wittegenstein: Os jogos de linguagem s tm sentido porque aquilo que temos de dizer previsvel (w., p). Tal sentena pode ser percebida no caso da histria de Ruth Rocha. Ao pronunciar o imprevisvel, o protagonista da histria despertou a comunidade comunicativa para a reviso dos hbitos do jogo de linguagem prevalecente questionando as significaes e circunstncias. O garoto questiona o critrio empregado e se pergunta: Pois , est tudo errado mesmo. Bola bola, porque redonda. Mas bolo nem sempre redondo. E por que ser que a bola no a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deveriam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, no cadeira, que no quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lgico! Tambm, agora, s vou falar assim. O resultado dessa mudana de hbito causou um profundo estranhamento nos demais personagens da histria. Uma fala de seu pai exemplifica: Marcelo, todas as coisas tm um nome. E todo mundo tem que chamar pelo mesmo nome, porque seno, ningum se entende. Para todos, Marcelo estava falando errado e passou a se comportar estranhamente, pois fugia do compreensvel, era diferente do que os falantes estavam habituados.Wittegenstein retrata uma situao que nos remeteria ao caso de Marcelo quando estabelece que saber de algo o mesmo que ser autorizado a dizer algo, no necessariamente compreender algo, [...] so certas circunstncias que autorizam a compreenso. Na histria, o que Marcelo faz criar um novo jogo de linguagem, no totalmente novo, mas, a partir da linguagem j em uso, ele tratou de usar novos critrios circunstanciais para o emprego e uso da palavra. Para ele, o seu pai e sua me no sabiam de nada e, por outro lado, para o seu pai e sua me, o menino estava desatinado, por causa da divergncia do jogo de linguagem que havia entre eles. Para Wittegenstein, A linguagem um labirinto de caminhos. Voc entra por um lado e sabe onde est, chega ao mesmo ponto por outro lado e no sabe onde est. Nesse sentido, os jogos de linguagem esto relacionados aos sistemas de referncias sociais que culminam num modo de agir comum a todos. A ao corresponde a uma regra, a um norte, para o filsofo uma regra uma prxis. Ao contextualizar os jogos de linguagem, Wittegenstein lana-os no horizonte da vida cotidiana e suas implicaes. Ele diz Para uma compreenso por meio da linguagem, preciso no apenas um acordo sobre as definies, mas um acordo sobre os juzos.

Na filosofia clnica, o conceito de jogos de linguagem desenvolvido por Wittengenstein tem uma importante contribuio, pois O pensamento o elemento singular de cada partilhante exteriorizado pelas linguagens (Silva, 2005, p. 107), e o pensamento a matria-prima do trabalho teraputico, no h outra forma de chegar a ele sem a linguagem, sem o utenslio que viabilize a comunicao. Quando o partilhante conta a sua histria, o filsofo, com sua escuta atenta, investiga, dentre outros aspectos, os termos que utiliza para cont-la. Aps ouvir a historicidade, o atendimento passa a etapa dos enraizamentos. Tal etapa importante, pois neste momento que interessa ao processo teraputico a compreenso dos significados dos termos que esto em jogo, por exemplo, qual o termo que o partilhante utiliza para referir-se a sua esposa e, mais importante, qual o significado que ele mesmo, o partilhante, d a este termo. Apenas o partilhante que poder desvelar o significado do termo, j que, como nos sugere Wittegenstein, so muitos os jogos de linguagem - a lngua viva - e so mltiplos os sentidos possveis.

S quando enraizamos que encontramos o verdadeiro sentido do termo e s quando encontramos o verdadeiro sentido do ato de fala que podemos usar procedimentos para desconstruir o ndulo existencial causado pelo pr-juzo. (Silva, 2005, p. 101)No trecho extrado do artigo de Mariluze Silva, a autora argumenta que a compreenso dos significados no atendimento clnico no se encerra no compreender, seno podem ser eles mesmos, os significados aqui como os conceitos viabilizados pela linguagem, aquilo que pode ser analisado, clarificado, revisado e, finalmente, modificado. No entanto, estes novos conceitos no advm da interpretao e no resultam em imposies do filsofo, ao contrrio Quem cria novos conceitos o usurio da linguagem. A anlise da linguagem feita tomando como base os contedos da linguagem expressa. O analtico nada acrescenta ao que est enunciado, apenas analisa o que est enunciado. A medida que o partilhante modifica seus conceitos, modifica a sua leitura de mundo e modificando sua leitura de mundo, modifica o seu comportamento e a sua conduta.

Em suma, a linguagem tem um papel fundamental no processo teraputico e s possvel adot-la como tal se for compreendido o seu funcionamento como transitrio e fluido.