joe bullet o urso de ouro foi para “taxi”. em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por...

16
JOE BULLET Publicado 23 de fevereiro de 2015 por André Dib. No último dia da Berlinale assisti “Joe Bul- let”. É uma produção sul-africana de 1973, completamente influenciada pelo blaxploi- tation, subgênero norte-americano forma- do por filmes feitos por negros, para ne- gros. No entanto, “Joe Bullet” é feito por dois brancos, o diretor Louis de Witt e o produtor Tonie van der Merwe, que fize- ram, de maneira frágil e pueril, um tributo ao cinema norte-americano de ação e es- pionagem. Mais informações ao redor: trata-se do pri- meiro filme da África do Sul com elenco 100% formado por atores negros, estrelado por Ken Gampu, um dos primeiros africa- nos a atuar em produções de Hollywood; e em 1974, após algumas poucas exibições, o filme foi censurado pelo Apartheid até ser restaurado e relançado agora, 40 anos de- pois, pelo projeto Plano B (que ainda trou- xe para a Berlinale o faroeste “Umbango”, de 1988), formado por instituições como a Cimatheque – Alternative Film Centre in Cairo; The Bioscope (Johannesburg), Geba Filmes (Bissau); e o Arsenal, um dos braços da Cinemateca Alemã. Boa parte de “Joe Bullet” foi rodada em canteiros de obras, nos fins de semana. A história é que Merwe tinha uma construto- ra e, estimulado por Louis de Witt, resolveu investir no ramo de filmes. “Não me lem- bro exatamente, mas os motivos da censu- ra são ridículos, como ‘um negro com uma arma na mão pode ensinar os outros’. Nor- malmente censores pedem alguns cortes ou colocam restrição de idade. Acho que a única razão para a proibição é que eles não souberam o que fazer com esse filme”, diz Tonie van der Merwe, em entrevista publi- cada no catálogo da seção Forum do Festi- val de Berlim. A história tem como pano de fundo a máfia do futebol, que quando começa a perder o controle do campeonato, mata um jogador do time mais forte. Desesperado, o pre- sidente do clube manda chamar Joe Bul- let, figura mítica e temida no submundo. A reação cartunesca dos bandidos quan- do ouvem seu nome dá o tom do que virá a seguir. Merwe diz que a ideia era criar uma espécie de mistura entre James Bond (talvez daí o JB) e “Shaft” (1971), com ce- nas de romance, mistério e violência, mas o que se vê tem um tanto de Papa Léguas e Scooby-Doo. O que há de curioso e divertido em “Joe Bullet” vem da apropriação de códigos do cinema de ação hollywoodiano – como fez o próprio Blaxploitation dentro dos EUA. O filme provoca risos, mais pela inconsistên- cia do que pela intenção de entretenimen- to, é verdade. Mas do que realmente se ri? Da fragilidade periférica em reproduzir a indústria de bens simbólicos, ou da própria cultura hegemônica? Um pouco de cada, creio eu. * filme visto em 15/02/2015 na Akademie der Künste, Berlin-Tiergarten

Upload: lamnga

Post on 29-May-2018

214 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

JOE BULLET Publicado 23 de fevereiro de 2015 por André Dib.

No último dia da Berlinale assisti “Joe Bul-let”. É uma produção sul-africana de 1973, completamente influenciada pelo blaxploi-tation, subgênero norte-americano forma-do por filmes feitos por negros, para ne-gros. No entanto, “Joe Bullet” é feito por dois brancos, o diretor Louis de Witt e o produtor Tonie van der Merwe, que fize-ram, de maneira frágil e pueril, um tributo ao cinema norte-americano de ação e es-pionagem.

Mais informações ao redor: trata-se do pri-meiro filme da África do Sul com elenco 100% formado por atores negros, estrelado por Ken Gampu, um dos primeiros africa-nos a atuar em produções de Hollywood; e em 1974, após algumas poucas exibições, o filme foi censurado pelo Apartheid até ser restaurado e relançado agora, 40 anos de-pois, pelo projeto Plano B (que ainda trou-xe para a Berlinale o faroeste “Umbango”, de 1988), formado por instituições como a Cimatheque – Alternative Film Centre in

Cairo; The Bioscope (Johannesburg), Geba Filmes (Bissau); e o Arsenal, um dos braços da Cinemateca Alemã.

Boa parte de “Joe Bullet” foi rodada em canteiros de obras, nos fins de semana. A história é que Merwe tinha uma construto-ra e, estimulado por Louis de Witt, resolveu investir no ramo de filmes. “Não me lem-bro exatamente, mas os motivos da censu-ra são ridículos, como ‘um negro com uma arma na mão pode ensinar os outros’. Nor-malmente censores pedem alguns cortes ou colocam restrição de idade. Acho que a única razão para a proibição é que eles não souberam o que fazer com esse filme”, diz Tonie van der Merwe, em entrevista publi-cada no catálogo da seção Forum do Festi-val de Berlim.

A história tem como pano de fundo a máfia do futebol, que quando começa a perder o controle do campeonato, mata um jogador do time mais forte. Desesperado, o pre-sidente do clube manda chamar Joe Bul-

let, figura mítica e temida no submundo. A reação cartunesca dos bandidos quan-do ouvem seu nome dá o tom do que virá a seguir. Merwe diz que a ideia era criar uma espécie de mistura entre James Bond (talvez daí o JB) e “Shaft” (1971), com ce-nas de romance, mistério e violência, mas o que se vê tem um tanto de Papa Léguas e Scooby-Doo.

O que há de curioso e divertido em “Joe Bullet” vem da apropriação de códigos do cinema de ação hollywoodiano – como fez o próprio Blaxploitation dentro dos EUA. O filme provoca risos, mais pela inconsistên-cia do que pela intenção de entretenimen-to, é verdade. Mas do que realmente se ri? Da fragilidade periférica em reproduzir a indústria de bens simbólicos, ou da própria cultura hegemônica? Um pouco de cada, creio eu.

* filme visto em 15/02/2015 na Akademie der Künste, Berlin-Tiergarten

Page 2: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

A SEMANA DA CRÍTICA DE BERLIMPublicado 17 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Paralelamente à Berlinale foi realizada a primeira Semana da Crítica de Berlim, ini-ciativa da Associação de Críticos da Alema-nha, em parceria com a Heinrich Böll Foun-dation. Contraponto ao engessamento dos grandes eventos, a Semana da Crítica se espelha nos modelos de Cannes, Veneza e Locarno, ao permitir ambiente favorável ao relacionamento com filmes e ideias de uma forma mais livre do que sob as imposições políticas e mercadológicas que tantas vezes definem a grade de festivais, milionários ou não.

Em busca de um campo mais autônomo para a fruição e discussão de filmes, no úl-timo Festival de Obenhausen foi escrito um manifesto a favor do ativismo crítico, com o compromisso de se criar uma semana da crítica em Berlim, formada por filmes e mesas em torno das seguintes perguntas: “Quais normas definem a atual produção, seleção e percepção de filmes? Onde os filmes são exibidos, por quem e em que circunstâncias? Quem quer escrever sobre eles, e como?”

Movido pela curiosidade, fugi da Berlinale e fui ao Hackesche Höfe Kino assistir “Un Jeu-ne Poète” (A Young Poet, 2014), sobre Rémy, um rapaz de 18 anos em busca de inspira-ção em pequena cidade do sul da França. Ele vai ao cemitério e conversa sozinho em frente ao túmulo de Paul Valéry. E em um amor platônico elege sua musa.

A maneira inocente e corajosa com que se comporta, reproduzindo um amontoado de clichês românticos como fossem ideias ori-ginais, tornam o personagem interessante e, de certa forma, comovente. Desprovido de timidez, ele enfrenta limitações de for-ma ao mesmo tempo destemida e desas-trada, gerando uma sequência de situações

constrangedoras e quase sempre cômicas. Se, como o título leva a supor, Rémy é uma versão contemporânea de Franz Kappus, a quem Rainer Maria Rilke escreve suas “Car-tas a um jovem poeta”, ele parece não ter entendido nada, procurando no mundo o que deveria ser uma busca interior.

Exibido no último Festival de Locarno “Un Jeune Poète” é o longa de estreia de Da-

mien Manivel e traz um frescor narrativo que condiz com a condição de seu perso-nagem. O ambiente sonoro e visualmente rico, somado ao tempo dos planos estendi-dos parecem dizer a ele que a inspiração que procura está praticamente em todos os lugares, mas principalmente em si mesmo. Só que para acessá-la, é preciso desbloque-ar os sentidos e olhar, como nos ensina o cinema.

Page 3: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

A POLÍTICA DOS URSOSPublicado 17 de fevereiro de 2015 por André Dib.

E o Urso de Ouro foi para “Taxi”.

Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl, Bong Joon-ho, Martha De Laurentiis, Claudia Llosa, Audrey Tautou e Matthew Weiner con-cedeu ao diretor iraniano Jafar Panahi, o Urso de Ouro de melhor filme da 65ª Berlinale. O filme também foi eleito o melhor pela Fede-ração Internacional de Críticos de Cinema – FIPRESCi.

Impossibilitado de deixar seu país, Panahi foi representado pela sobrinha Hanna Saei-di, que participa do filme como passageira e co-diretora. Durante o filme ela recebe a missão escolar de realizar seu primeiro cur-ta. Indiretamente fornece imagens para o tio, proibido de usar uma câmera.

Hanna e Panahi foram ovacionados durante o evento. Em lágrimas, Hanna não conseguiu falar em nome do tio. “Taxi” foi um dos pri-meiros filmes a serem mostrados na compe-tição oficial. Escrevi sobre ele aqui.

É interessante ver um evento do porte da Berlinale se colocar com ênfase frente ao caso de Panahi. Está sendo testado o poder de influência de um festival de cinema sobre

um governo autoritário. Em 2011, o diretor foi convidado para integrar o júri da Berlinale, presidido por Isabela Rossellini, que elegeu o iraniano “A separação”. Desde então, o fes-tival o convida anualmente, e assim continu-ará, até que ele possa estar aqui. Em 2013, Panahi ganhou o prêmio de melhor roteiro da Berlinale por “Cortina Fechada”.

“Taxi” é um filme com várias qualidades es-téticas, mas se torna inevitável observar o contexto político se sobrepor. A competição trouxe bons candidatos, como os chilenos “El Club” (Grande Prêmio do Júri) e “El Botón Na-car” (Melhor roteiro), ou o russo “Under Elec-tric Clouds” (melhor fotografia).

Brasil - O prêmio de público foi para o brasi-leiro “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muyla-ert, também eleito o melhor pelo CICAE, a Confederação Internacional de Cinemas de Arte. No fim de janeiro, as atrizes Regina Casé e Camila Márdila foram premiadas no Festival de Sundance. Um belo começo para um filme inteligente e emocionante, que per-mite uma compreensão das mudanças so-ciais brasileiras a partir da história de duas famílias. Precisa ser visto por vários motivos, mas principalmente por ser um ótimo filme.

LISTA DE PREMIADOSUrso de Ouro para o melhor filmeTaxi, Jafar Panahi

Urso de Prata – Grande Prêmio do JúriPablo Larrain, El Club

Urso de Prata – Prêmio Alfred Bauer para o filme que abre novas pers-pectivasIxcanul, dir: Jayro Bustamante

Urso de Prata para melhor diretorRadu Jude, Aferim!Małgorzata Szumowska, Body

Melhor atrizCharlotte Rampling, 45 Years

Melhor atorTom Courtenay, 45 Years

Melhor roteiroPatricio Guzman, The Pearl Button

Urso de Prata para contribuição artística nas categorias câmera, edição, música, figurino ou direção de arteSturla Brandth Grovlen, por VictoriaSergey Mikhalchuk and Evgeniy Privin, por Under Electric Clouds

Melhor filme de estreia600 Miles, dir: Gabriel Ripstein

Prêmio do Público / Panorama1º lugar – Que Horas Ela Volta? (The Second Mother), Anna Muylaert, Brazil2º lugar – Stories Of Our Lives, Jum Chuchu, Kenya3º lugar – Härte (Tough Love), dir: Rosa von Praunheim, Germany

Page 4: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

E A ALA URSA DE OURO VAI PARA….Publicado 16 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Encorajado pelo amigo Marcos Buccini de-claro oficialmente criado o troféu Ala Ursa de Ouro para filmes gaiatos, que chegam sem propósito algum, a não ser bagunçar o coreto. No melhor clima de Carnaval, o ganhador é “Eisenstein in Guanajuato”.

Peter Greenaway demonstrou atitude ao não apenas transformar o conceito de montagem do diretor russo em confete, lantejoula e serpen-tina, como ao reduzir o próprio Einsenstein a personagem de samba-enredo, um virgem en-rustido que se realiza na virilidade do amante mexicano.

O Ala Ursa de Ouro 2015 vai para “Eisenstein in Guanajuato” com a certeza de que, se compara-do com os demais filmes da competição, sérios e voltados para injustiças e mazelas, o filme de Greenaway é um desfile da Sapucaí, superficial, às vezes divertido, mas na maioria do tempo te-dioso e esquecível.

Foto: Pedro Severien

Page 5: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

AO LONGO DO TEMPOPublicado 14 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Além de Fassbinder, outro grande nome do cinema alemão prestes a completar 70 anos é Wim Wenders. Em homenagem, a Berlinale organizou uma retrospectiva com os principais filmes restaurados e o concedeu a ele um Urso de Ouro honorá-rio, entregue com toda a pompa na últi-ma quinta, antes da sessão de “O amigo americano” (1977). Familiares, amigos e colegas de trabalho estiveram presentes. Também estavam lá o prefeito de Berlim e a ministra da cultura de Alemanha. Wen-ders foi ovacionado, merecidamente, pe-los serviços prestados.

Coube ao brasileiro Walter Salles fazer o discurso de homenagem, ou melhor, de agradecimento, pois declarou ter decidi-

do pelo cinema depois de assistir “Alice nas Cidades” (1973). E evocou a emoção de ter visto no cinema “Paris, Texas” e se sentir parte de um inconsciente coletivo. A cerimônia completa pode ser assistida aqui.

“O amigo americano” está tinindo em ver-são restaurada. Um prazer reencontrar Dennis Hooper, Bruno Ganz, Nicholas Ray e Samuel Fuller. Outra pérola recuperada em 4K é “Kings of the road”, cujo título em alemão, “Ao longo do tempo”, traduz com precisão o cinema de Wim Wenders, recebido nos anos 1970 e 80 como uma necessária renovação. Nos últimos anos ele tem se destacado em documentários como “Buena Vista Social Club” (2000),

“Pina” (2012) e “Salt of the earth” (2014), todos indicados ao Oscar.

Seu novo trabalho, a ficção “Tudo vai fi-car bem”, teve première mundial aqui na Berlinale. Estrelado por James Franco e Charlotte Gainsbourg, o filme dá conti-nuidade às investigações em 3D iniciadas em “Pina” e “Catedrais da Cultura”. O fil-me tem bons momentos, mas há tempos Wenders não faz uma boa ficção e não será desta vez que veremos isso mudar. É justamente no uso do 3D que o filme se mostra interessante e revela a contribui-ção mais recente de Wenders para a arte cinematográfica: o estudo da estereosco-pia como elemento narrativo.

Page 6: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

BERLIM, PERNAMBUCOPublicado 13 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Acabo de sair da segunda sessão de “Brasil S/A” no Festival de Berlim. “Brazilian Dream”.

Bonito ver o público acompanhando o debate por cerca de uma hora. Foi assim também na estreia, no Cubix / Alexanderplatz. Ainda haverá mais duas projeções, uma no HAU (Potsdamer Platz) e outra no Arsenal Kino, sala oficial da Deutsche Kinemathek.

A Berlinale sempre olhou para o Brasil, mas este é um ano atípico. Se por um lado não há um con-corrente ao Urso de Ouro – como em 2014 ti-vemos “Praia do Futuro” – contamos com filmes em todas as outras seções do festival. “Na Mos-tra Panorama temos quatro maravilhosos filmes brasileiros este ano, com visões urbanas e rurais com as quais aprendemos muito, não somente sobre o Brasil, que para nós é como um sub-continente, mas principalmente com o poder de expressão cinematográfica”, diz Wieland Speck, curador da seção Panorama.

Para o cinema de Pernambuco a Berlinale 2015 é algo histórico, com quatro longas espalhados pela Mostra Panorama (“Sangue Azul”), Forum (“Brasil S/A”), “As Hiper Mulheres” e “O Mestre e o Divino” (NATIVe). Não bastasse, temos Irandhir Santos no elenco de “Ausência” (SP) e boa parte da equipe de “Que horas ela volta?”, o excelente novo longa de Anna Muylaert: Karen Harley, Tha-les Junqueira, Stefania Régis, Fabio Trummer e Vitor Araújo. E Paulo Caldas está aproveitando o festival para gravar depoimentos para o novo projeto, “Saudade”, que vai gerar produtos para cinema e TV.

Para um dos curadores da seção Forum, Ansgar Vogt, “Brasil S/A” é um caso único entre os 1500 filmes assistidos por uma equipe de nove pessoas comandada por Christoph Terhechte, que assistiu o filme de Pedroso durante o evento Encontros com o Cinema Brasileiro, realizado pela Ancine para promover filmes nacionais no exterior.

Na entrevista a seguir, Pedroso elogia a iniciativa pelo fato dela despersonalizar o processo de se-leção de filmes, fala sobre o filme e as primeiras impressões sobre a Berlinale.

É a primeira vez que um filme seu é sele-cionado para o Festival de Berlim. Quais são suas impressões sobre o festival?Me parece um festival muito tradicional, no senti-do de segmentar os filmes em várias mostras. No entanto, isso não cria, como acontece em outros festivais, uma espécie de hieraquização. Eles en-contram uma zona de convergência entre os filmes e os colocam juntos, mas uma mostra não é neces-sariamente melhor do que a outra. Isso é muito legal pois existe um público enorme e para todo o tipo de filme, dos filmes mais experimentais aos longas da competição é sempre sala cheia. Isso é muito raro, geralmente há muita disputa pelas mostras princi-pais porque é onde os filmes teriam mais atenção. Aqui isso é completamente isonômico, pois seu fil-me não está numa mostra porque é mais ou menos importante, mas porque teu filme vai identificar um determinado gesto político ou estético que vai dia-logar melhor com determinado público, que vai se conectar a ele.

Você já teve filmes selecionados para festivais estrangeiros, mas este é o maior de todos. Como se deu o convite?

Acho muito sintomático que tenha sido da forma como foi, pela Ancine, que tem um programa que facilita o processo de curadoria, tornando o proces-so isento de qualquer lobby ou influência pessoal. A partir dos trailers o curador escolhe e assiste os filmes no cinema, em condições ideais de projeção.

Tematicamente seu filme trata dos processos pelos quais passam não apenas o Brasil, mas países como China e Rússia, que também fazem filmes sobre essas transformações. O que há de diferente em “Brasil S/A” talvez seja sua forma, em nada parecida com a maior parte do que se faz atualmente.

Essa é a parte mais difícil, porque o projeto foi ela-borado a partir de um pensamento crítico emba-sado em teses, pressupostos cinematográficos e sociológicos. Mas essas teses se diluiram e se tor-naram experiências de imagem, com as quais você se relaciona com elas como quiser. A ideia central, acho, é se apropriar de um conjunto de elementos narrativos ligados ao cinema clássico e à publici-dade para de alguma forma embaralhar os signos. Reproduzir e se apropriar para criar uma polifonia, introduzir instabilidade e ruído na organização dos signos. Minha intenção é que essa instabilidade e ambiguidade se efetivem como experiência para quem assiste.

Seu longa anterior, “Pacific” é o oposto for-mal de “Brasil S/A”, no sentido de que este é ultraencenado, enquanto o anterior se apro-pria de imagens alheias e completamente instáveis.São pesquisas totalmente distintas do ponto de vista formal, mas que talvez involuntariamente en-contrem interseção na tentativa de compreender as transformações do Brasil.

Page 7: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

300 MIL, ATÉ AGORAPublicado 13 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Ainda faltam três dias para acabar a Berlina-le e já estamos em clima de despedida. Após uma semana convivendo com a boa e nem sempre justa luta para acessar cinemas, co-letivas e um computador na sala de impren-sa, o festival vai adquirindo uma dimensão mais humana, sem tanta pressa.

Ainda assim, há muita gente. A assessoria de imprensa do festival acaba de comunicar que até ontem a contagem era de 310 mil ti-

ckets emitidos, o que aponta para um possí-vel recorde. Domingo será o Kinotag, em que a Berlinale se despede com sessões exclusi-vas para o público, geralmente lotadas. Algo importante para um festival que, se por um lado é milionário e luxuoso, por outro tem no poder de convocação popular uma bandeira política.

As premiações também se aproximam. Logo mais será revelado o vencedor do prêmio

Caligari, concedido pela Federação Interna-cional a filmes da seção Forum. “Brasil S/A”, de Marcelo Pedroso, está no páreo. Também será divulgado o vencedor do prêmio Teddy, voltado a filmes que tematizam a diversidade sexual. Entre eles concorre “Sangue Azul”, de Lírio Ferreira. O resultado do júri oficial, presidido por Daren Aronovsky, será revelado amanhã.

Foto: Gabi Saegesser.

Page 8: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

FASSBINDERPublicado 13 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Na coletiva de imprensa de seu novo filme, “Eisenstein in Guanajuato”, Peter Greenaway encurralou um repórter russo, perguntando por que seu país ainda não fez um bom filme sobre Einsenstein. O repórter se calou, mas poderia ter respondido que, para atingir a compreen-são de um grande artista, é preciso tirá-lo do pedestal.

É uma tarefa difícil, principalmente quando o projeto envolve pessoas próximas. É o caso de “Fassbinder – amar sem exigências”, belo do-cumentário que percorre a vida e obra do diretor alemão, resconstruídas a partir do olhar de um amigo dinamarquês, Christian Braad Thomsen.

O filme se estrutura em torno de uma entre-vista inédita feita com Fassbinder durante o festival de Cannes, poucos antes de sua morte, em 1982. Avesso à ideia de expor Fassbinder embriagado, fazendo auto-análise em frente à

câmera, Thomsen tomou a postura respeitosa de esquecer o arquivo, até que retornou a ele, agora, com Fassbinder prestes a completar 70 anos de nascimento.

Fassbinder produziu como poucos, 43 filmes em menos de 15 anos. Bons filmes, antes de tudo. Trazia os amigos e familiares para fazer filmes com ele, de outra forma, não haveria convivência. “Sinto que existo apenas quando trabalho”, confessa. Sua inclinação pelo ci-nema americano era assumida, sempre quis distância do rótulo “art haus” no qual insistem em classificá-lo. “Quero fazer filmes tão lindos e maravilhosos quanto os de Hollywood, mas não tão desonestos”.

A conversa serve de guia para uma série de explicações para o posicionamento estético, político e ideológico de Fassbinder, anarquista convicto, devoto do melodrama. Depoimentos

de parentes, amigos e colegas de trabalho tra-zem informações preciosas sobre sua história pessoal e buscas artísticas que o levaram, por exemplo, a colocar a própria mãe para atuar em seus filmes.

A predilação pelo melodrama se explica logo no início, quando fala para a imprensa que seu pri-meiro filme, “O amor é mais frio que a morte” (1969). “Sentimentos são sufocados para que haja o controle social”. E que, para além dos temas, seus filmes são sobre seu compreensão de outros filmes.

O documentário ainda faz uma bela menção a “Bourbon street blues”, último filme de Douglas Sirk, um curta-metragem de 1979 em que Fas-sbinder participa como ator. Com ele, encerro este texto.

* filme visto em 12/02/2015 no Colosseum Kino, Berlin–Prenzlauer Berg

Page 9: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

LESTE-OESTEPublicado 12 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Faz parte do discurso patriótico alemão a no-ção de que, entre ocidente e oriente, esta-mos exatamente no centro. Ou no meio, se preferir. E do conceito da Berlinale ser esse lugar, um “top of the mountain” de onde se tem visão privilegiada de um mundo formado não por culturas sedimentadas, mas por es-téticas em movimento, de correntes migrató-rias e alguns refugiados.

No caminho se sobressai “Under a Electric Sky”, de Alexey German Jr. Esta co-produ-ção Rússia / Ucrânia / Polônia renova o olhar sobre um tema recorrente: um painel social da decadência de valores em paisagens gé-lidas após o fim do regime soviético. Há um abandono da abordagem realista em voga, por exemplo, no recente “Leviathan”, e uma guinada para o território do sonho e fanta-sia, com aspecto de ficção científica distópi-ca, marcada pela descontinuidade temporal e narrativa e um aumento significante da profundidade psicológica e interpessoal dos personagens.

Também na competição, a produção inglesa “Eisenstein in Guanajuato”, de Peter Gree-naway, celebra o diretor russo ao derrubá-lo do pedestal e envolvê-lo em paisagens de morte e sexo. Com um pé na pintura renas-centista e outro na fragmentação multimídia que engole e espetaculariza a montagem einsensteniana, Greenaway mostra Serguei como um gênio vacilante que, um donzelo enrustido que, se por um lado não conse-gue finalizar seu projeto mexicano, encontra a verdade na vida mundana e no amor ho-mossexual. “Dez dias que abalaram Einsens-tein”, ironiza o cineasta, milhas distante da cinebiografia convencional e fascinado pela plenitude sintetizada cinematograficamente pela ordem “AÇÃO”.

Já o chinês “Gone With The Bullets” materia-liza o desejo da China em entrar pesado no

circuito internacional de cinema. Com chan-cele da Columbia Pictures / Sony, a produção é dirigida por Jiang Wen, realizador surgido nos anos 1990 como parte da chamada sex-ta geração, que tem Zang Yimou como nome mais conhecido. Coreografado, artificial e histérico como um Baz Luhrmann elevado à décima potência, o longa é baseado numa história real, que por sua vez gerou o primei-ro filme de ficção chinês.

Curioso olhar para a apropriação dos chine-ses dos códigos não apenas do cinema, mas do entretenimento norte-americano. A pri-meira leitura é a da submissão cultural, um reconhecimento da força simbólica de uma expressão artística forjada no século 20. Mas imaginemos o contrário: uma potência eco-nômica reduzindo toda uma indústria a con-teúdo, um repertório infinito de referências a serem utilizadas.

Page 10: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

CATOLICISMO LÚGUBREPublicado 11 de fevereiro de 2015 por André Dib.

O cinema chileno está em alta na Berlinale, com dois bons longas na competição oficial. “O botão de pérola”, de Patricio Guzmán, e “O Clube”, de Pablo Larraín. Escrevi sobre o primeiro no post anterior. Sobre o segundo, trata-se de uma visão lúgrube e impiedosa sobre a Igreja Católica, a partir de um pe-queno núcleo de padres banidos em região invernal, um insólito Asilo Arkham, esquecido pelo próprio Vaticano – até que um dos inter-nos comete suicídio.

A partir de então os demais desajustados são obrigados a conviver com um emissário

papal, escalado para investigar o ocorrido e avaliar é necessário fechar o local. A sequên-cia de entrevistas com os moradores forma um painel de perversões, culpas, demências, vícios e comportamentos desviantes. A co-munidade, exposta há décadas aos padres, também tem seus transtornos, sendo o mais evidente o de um homem sem teto, abusado sexualmente desde criança.

Violência física e psicológica se espalha por uma atmosfera de abandono, obtida não apenas pela singularidade da locação, uma casa no topo de uma pequena vila litorânea,

mas principalmente pelo aspecto das ima-gens, parecem ter sido captadas por câmera que sempre esteve ali, com a lente embaça-da pela maresia e por vezes sem foco.

“O Clube” contrasta bastante com a atual ambição progressista do Vaticano, em plena campanha para melhorar a imagem e am-pliar sua influência no mundo contemporâ-neo. Ex-católico, o que Larraín nos lembra é que, independente das atuais intenções, tra-ta-se de uma instituição erigida sob séculos de repressão e crime.

Page 11: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

A MEMÓRIA DA ÁGUAPublicado 9 de fevereiro de 2015 por André Dib.

O diretor Patricio Guzmán apresentou on-tem “El botón de nacar”, documentário de invenção que dá contiuidade às investiga-ções de “Nostalgia da Luz” (2011) ao colo-car em perspectiva a história da violência no Chile, da colonização à ditadura de Pino-chet. Ele começa, no entanto, estabelecen-do conexões aparentemente aleatórias, da pré-história à exploração intergalática, ten-do como fio condutor o que considera ser o elemento universal: a água.

A relação com a água pautou os arboríge-nes da Patagônia, massacrados sistema-ticamente pelos europeus; assim como os milhares de desaparecidos na ditadura mi-litar, lançados ao mar com os corpos amar-rados a trilhos da linha férrea. Em sua visão poética, Guzmán busca compor uma ode cósmica ao conjugar cenas da natureza, de-poimentos, imagens de arquivo e da mais pura fantasia.

A narrativa é fluente, forjada por uma no-ção estética incomum, traduzida na mesa de edição e que leva a uma cobrança ética dos crimes que se repetem e que insistimos em negar. Como um dos entrevistados diz,

não punir os responsáveis é matar as vítimas duas vezes”. Como encará-las?

* Filme visto em 8/02/2015 na sala Cinema-xX 9, Berlin, Potsdamer Platz

Page 12: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

ISTO NÃO É UM TAXIPublicado 8 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Câmera de segurança no painel do carro, dispositivos operados por passageiros, uma volta por Teerã e estamos adentrando o novo filme de Jafar Panahi. “Taxi” é seu tercei-ro trabalho desde que o governo iraniano o proibiu de deixar o país e de dirigir filmes. Desde então, com o apoio de amigos como Dieter Kosslick, diretor da Berlinale, ele tem buscado formas criativas de driblar a censu-ra, como foi visto em “Isto não é um filme” e “Cortina Fechada”.

“Taxi” forma um conjunto de crônicas de fundo político, em que temas como religião, amizade, violência e educação se alternam no fluxo de passageiros. Enquanto isso, sem manipular uma câmera e aparentemente deixando os atores à vontade, Panahi dirige

o carro. E parece ele mesmo ser guiado pe-los acontecimentos e compromissos: pegar a sobrinha na escola, encontrar um velho ami-go.

A estrutura e a ambientação lembram “Night on earth” (1991), de Jim Jarmush, sendo que nele táxis e taxistas mudam a cada episódio. E mais fortemente “Ten” (2002), do também iraniano Abbas Kiarostami. Em ambos, o ex-celente uso do extra-campo nos transporta para aquela realidade, na qual olhamos para Teerã sempre a partir do carro-câmera.

Críticas ao governo do Irã surgem de pratica-mente todos os personagens, como a profes-sora contra a pena de morte; a sobrinha que tem como tarefa de casa realizar um curta

“distribuível”, dentro de preceitos bizarros estipulados por uma cartilha; de um vende-dor de DVDs piratas, que lucra com a proibi-ção dos filmes norte-americanos.

Panahi novamente não pode estar em Berlim para a première do seu filme. Escreveu um statement: “Tenho que continuar a fazer fil-mes em quaisquer circunstâncias, para con-tinuar me respeitando e me sentir vivo”.

De acordo com a revista especializada Scre-en, “Taxi” já tem distribuição garantida pela distribuidora Memento, baseada na França. Dieter Kosslick mantém a promessa de con-vidar Panahi anualmente para a Berlinale.

* Filme visto em 7/02/2015 no Berlinale Pa-last, Berlin, Potsdamer Platz

Page 13: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

O VAZIO E NADA MAISPublicado 8 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Urso de Ouro por “Além da Linha Vermelha” (1999), Terrence Malick está de volta à Ber-linale para apresentar seu novo longa, “Kni-ght of Cups”. O título (Valete de Copas) faz referência direta ao tarô, consultado a certa altura pelo personagem principal, um astro de Hollywood (Christian Bale) em busca de algo que justifique a própria vida. O filme incorpora a estrutura das cartas, nomean-do cada sequência com “O enforcado”, “A morte”, “O eremita”, etc.

Fui à sessão com alguma expectativa. Foi difícil chegar ao fim.

Malick continua a direcionar seu cinema para conferir certa consciência divina à per-

cepção humana, dentro da visão esotérica de que todo ser vivo pode não perceber, mas guarda em si o universo em sua plenitude. Em “Knight of Cups”, o vazio existencial do personagem é colocado em contraste com a abundância e o mistério da vida natural, representada em steadycam, grande angu-lar e música melancólica quase ininterrupta.

Bale age como um semideus, anestesiado com a riqueza e a fama. Frequenta festas, alterna mulheres, viaja para onde quer. Lem-bra ele próprio no papel de playboy adotado por Bruce Wayne em “Batman”. A seu redor há um desfile de astros: Natalie Portman e Cate Blanchett orbitam um pouco mais

tempo. Se externamente ele parece feliz e satisfeito, isso nunca é assumido pelo filme, que o observa sob o ponto de vista é o de uma consciência ao mesmo tempo interna e superior, uma voz constante que clama por sentido, que divaga sobre o fluxo cósmico.

Malick tenta criticar não apenas Hollywood, mas os valores que guiam o mundo capita-lista, olhando, ainda que rapidamente, para suas desigualdades. No entanto, ele se per-de na própria fórmula. E seu cinema, que já foi grande, hoje clama por uma razão de ser.

* Filme visto em 8/02/2015 no Berlinale Pa-last, Berlin, Potsdamer Platz

Page 14: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

UMA ILHA NO MEIO DO MUNDOPublicado 7 de fevereiro de 2015 por André Dib.

A estreia internacional de “Sangue Azul” se deu em ótimas condições. O novo filme de Lírio Ferreira lotou quatro salas do complexo CinemaxX, abrin-do o programa de 60 longas da Mostra Panorama do Festival de Berlim. Três longas brasileiros ainda serão exibidos nesta seção: “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, “Ausência”, de Chico Teixeira, e Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, de Walter Salles.

Após a apresentação conversei com o curador da mostra, Wieland Speck, sobre o que o levou a es-colher o filme pernambucano para abrir a mostra. “Temos pela frente filmes muito diversos, de do-cumentários a contos de fadas e o primeiro filme estabelece o tom, dando um gosto do que virá em seguida. Acho que “Sangue Azul” começa bem o nosso programa, pois trata do passado de uma fa-mília separada, do encontro entre dois mundos. E esses elementos são vistos em outros filmes do programa”.

Outra ambição de Speck, evidente pelo contraste climático, foi fazer um contraponto com o longa que abre a competição oficial, “Nobody wants the night”, onde personagens morrem de frio no Pólo Norte. “Pensei: vamos levar a Berlim a luz do sol e um belo filme do Brasil”.

Esta é a primeira vez de Lírio Ferreira em Berlim, que já estive em Amsterdã e Munique com “O ho-mem que engarrafava nuvens”, no Festival de Ve-neza com “Árido Movie” e em Toronto com “Baile Perfumado”.

Em entrevista à Revista Continente, ele fala sobre a experiência e adianta seu próximo projeto. Antes, no entanto, as atenções vão para a estreia comer-cial de “Sangue Azul” no Brasil, que deve estrear em abril, com distribuição da Imovision.

Após a estreia internacional, o que pode sur-gir de bom para “Sangue Azul” a partir de agora?Não fico na expectativa, pois as coisas acontecem tão do nada, retornos que jamais poderia imagi-nar, então não penso muito nisso. Mas acho muito bacana que o público de fora do Brasil assista um filme sem estigmas, extremamente universal, pois poderia acontecer em Madagascar para para tratar de cinema, circo e amor.

Há um tanto de cinema italiano no filme. Felli-ni, Pasolini…Sim, tem cinema italiano e uma certa influência do cinema russo. Quero muito falar de cinema. Esta-mos passando por uma forte transição, me pergunto como será o cinema daqui a cinco anos, se daqui a dez anos haverá esse ritual coletivo, pois os filmes estão abandonando a fisicalidade. “Sangue Azul” certamente é o meu último filme feito em película. Dá para fazer um paralelo com o circo, que é uma arte que também está caminhando para a morte, se é possível que uma arte possa morrer. Acho que o cinema vai passar um pouco por isso.

Você provoca uma temporalidade própria e faz da ilha um laboratório, uma forma onírica, mais livre, onde pode se experimentar novas formas de se relacionar com a vida. A ilha suscita isso. O imagem principal é a ilha dentro da ilha, uma que aparentemente não se move e outra que se move, em que as pessoas se relacionam dentro da família mesmo, porque não têm para onde sair. E outra, a do circo, porque viajam muito juntos. E o filme ganha força quando escolhemos Fernando de Noronha, uma ilha con-tinental, no meio do caminho entre Brasil e África, isolamento a mais nessa volta pródiga onde se perde a noção do tempo, gerando em determina-das pessoas certo tipo de loucura. Daí a necessi-dade de promover esse isolamento com a própria equipe, como uma preparação para o filme. É um circo que chegou ali, um circo de cinema, para fa-zer um cinema que fala de circo.

O confinamento é forma de suspender o tempo. E esse isolamento pode levar máscaras a cair, fazer com que pessoas olhem para si e o outro de outras formas.

Mas o Ruy Guerra (que atua no filme) diz que a ilha se move, só que as pessoas não sentem. Ela é aparentemente estática, mas é fruto de uma ex-plosão de magma. A ilha é o topo de um vulcão.

Que filmes você quer assistir em Berlim?Os novos filmes de Peter Greenaway, Wim Wen-ders, Terrence Mallick, Andreas Dresden e do chi-leno Patricio Guzmán (“Nostalgia da Luz”, 2010). “Entre os brasileiros quero assistir “Ausência” e o filme da Anna. Já vi o filme do Pedroso, acho “Bra-sil S/A” um filmaço. E quero me perder e me achar aqui, ter umas surpresas.

O que acha da grande presença de brasileiros no festival?Berlim sempre foi muito atenta ao Brasil e esse ano tem esse tsunami de filmes, o que é mui-to bacana. Houve uma época que se dizia que o cinema argentino é interessante e no Brasil so-mente havia documentários, raramente um bom filme de ficção, o que era verdade. Agora temos vários filmes de ficção invadindo Berlim e fico fe-liz de fazer parte desse time.

Qual será o seu próximo projeto?Tenho várias ideias mas minha maneira de tra-balhar é diferente. Fico ruminando e coloco para fora em poucas semanas. Uma coisa que está muito próxima é o “Aquamovie”, que é o “Árido Movie” dez anos depois. Hoje, com a transposi-ção do São Francisco invadindo os sertões e a seca em São Paulo, talvez eu coloque o discurso resguardado no subtexto do “Árido” de forma mais evidente. Um filme entre ficção e docu-mentário, em que alguns personagens voltam e discurso entre “Iracema, uma transa amazôni-ca” e Jia Zhang-ke.

Lírio Ferreira apresenta “Sangue Azul” ao lado do produtor Renato Ciasca (dir) e do curador Wieland Speck (esq).

Foto: Gabi Saegesser.

Page 15: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

BALDE DE ÁGUA FRIAPublicado 6 de fevereiro de 2015 por André Dib.

E a temporada de caça ao Urso de Ouro co-meça com… uma caça ao urso.

Esta é literalmente a primeira cena de “No-body wants the night”, co-produção Espa-nha / França / Bulgária dirigida por Isabel Coixet (“A vida secreta das palavras”), que abriu agora há pouco a competição oficial do Festival de Berlim. Juliette Binoche vive Josephine, esposa fiel e conservadora es-posa que enfrenta o inverno polar para estar ao lado do marido, o explorador do Ártico Robert Peary, no ano de 1908.

Trata-se da adaptação de uma história real para uma narrativa calcada em ilusões de

grandeza, apesar de tão frágil e previsível quanto se mostra a personagem principal. Esta ao menos aprende algo ao sofrer com a intempérie invernal ao lado de uma esqui-mó. Já o filme, nada o salva da ruína.

Há uma nobre tentativa, a de criticar a so-cidade arrogante e ultrapossessiva que nos tornamos. Isso, aliado a boas imagens da natureza bruta e impassível aos anseios hu-manos, só aumentam a sensação de des-perdício. Primeiro, por Juliette Binoche, que apesar de colecionar belos trabalhos, de vez em quando vacila na escolha de um pa-pel. Segundo, por tornar um tema relevan-

te, o choque de culturas, em um dramalhão apressado e mal dirigido.

Ironicamente, em “Acima das Nuvens”, de Olivier Assayas, ela interpreta uma atriz que passa por esse dilema. Aceitar ou não um papel? Neste caso, a resposta deveria ser não. A sequência em que ela rola na neve e chupa pedaços de gelo enquanto sofre a ausência do marido já está entre as mais constrangedoras de sua carreira.

* Filme visto em 5/02/2015 na sala Cinema-xX 7, Berlin, Potsdamer Platz

Page 16: JOE BULLET o Urso de Ouro foi para “Taxi”. Em cerimônia na noite de ontem, o júri for-mado por Darren Aronofsky, Daniel Brühl,

BERLIM, ANO 5Publicado 5 de fevereiro de 2015 por André Dib.

Hoje começa 65º Festival de Berlim. A prin-cípio, o que pode ser dito é que autores como Terence Malick, Werner Herzog, Wim Wenders e Peter Greenaway tornam mais atraente a mostra oficial, que ainda conta com novos filmes de Joshua Oppenheimer (“O Ato de Matar”), Jafar Panahi (“Isto não é um filme”), além de filmes da China, Chi-le, Romênia, Alemanha, Guatemala, Polônia, França e outros países.

Se por um lado há o tapete vermelho e seu desfile de famosos, por outro há uma inten-ção genuína em privilegiar relações entre estética e política em filmes que, se em sua maioria não alcançam o pretendido, formam um panorama do que está sendo feito nesse sentido ao redor do mundo. Destes, alguns em breve ganharão as telas o mundo, como na edição do ano passado ocorreu com “Boyhood” e “Grande Hotel Budapeste”.

Com 95% das 2500 sessões exibidas em DCP (Digital Cinema Package), a Berlinale continua na vanguarda das tecnologias de projeção, potencializando ao máximo a expe-riência cinematográfica, inclusive dos clás-sicos. Isso justifica a nova identidade visual do festival, uma cortina virtual, quadricula-da, que se desenha geometricamente sobre o fundo vermelho, gerando uma mistura de beleza e vertigem.

Tudo a ver com a retrospectiva deste ano, que traz a primeira série de filmes colori-dos, feitos em Technicolor, como “Cantando na Chuva”, “O mágico de Oz” e “E o vento levou”. Homenageado, Wim Wenders ganhou uma retrospectiva própria.

Mais do que nos últimos anos, a Berlinale também é dos brasileiros. O pernambucano “Sangue Azul”, de Lírio Ferreira, abre a Mos-tra Panorama, que ainda conta com “Que ho-ras ela volta?”, novo filme de Anna Muylaert, e “Ausência”, de Chico Teixeira, com Irandhir Santos no elenco.

Na Mostra Forum, dedicada a filmes es-teticamente radicais, temos o pernambu-cano “Brasil S/A”, de Marcelo Pedroso, o gaúcho “Beira Mar”, de Filipe Matzemba-cher e Marcio Reolon e o novo trabalho de Felipe Bragança, “Fuja dos meus olhos”. E na mostra de curtas, após alguns anos de ausência, o Brasil volta a estar representa-

do por “Mar de Fogo”, onde Joel Pizzini re-cria a visão do pioneiro do cinema nacional Mario Peixoto.

MEIA DÉCADA – Chego ao quinto ano na Berlinale graças à parceria entre Revista Continente e Centro Cultural Brasil-Alema-nha / Instituto Goethe, dois exemplos da vitalidade da cultura no Recife.