jenkins k a história repensada

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Keith Jenkins A HISTÓRIA REPENSADA TRADUÇÃO MAmo VILELA REVISÃO TÉCNICA MARGARETH RAGO CONTEXTO

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Page 1: JENKINS K a História Repensada

Keith Jenkins

A HISTÓRIA REPENSADA

TRADUÇÃO

MAmo VILELA

REVISÃO TÉCNICA

MARGARETH RAGO

CONTEXTO

Page 2: JENKINS K a História Repensada

Copyright@ 2004 Keith Jenkins

Todos os direitos reservados. Tradução autorizada da edição em inglêseditada por Roudedge, membro da Taylor & Francis Group.

TraduçãoMário Vilela

Revisão TécnicaMargareth Rago

DiagramaçãoFábio Amancio

RevisãoCamila Kinrzel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jenkins, Keith.A História repensada / Keirh [enkins, tradução de Mário

Vilela, 2. ed. - São Paulo: Conrexro, 2004.

Bibliografia.ISBN 85-7244-168-9

1. História - Estudo e ensino. 2. História - Filosofia.3. História - Metodologia. 4. História - Teoria critica. 1.Título

01-1280 CDD - 901

Índices para catálogo sistemático:1. História: Filosofia e teoria 901

Proibida a reprodução total ou parcial.Os infratores serão processados na forma da lei.

2004

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.).

Diretor editorial Jaime Pinsky

Rua Acopiara, 199 - Alto da Lapa05083-110 - São Paulo - sp

PABX: (1 I) 3832 5838FAX: (11) 3832 1043

[email protected]

Para Maureen, Philip e Patrick

Page 3: JENKINS K a História Repensada

tue é a História?

~~l"'I ' .apitulo, quero tentar responder à pergunta que lhe\1\ 1111 rk . Para fazer isso, vou de início examinar o que a111 1111'1:, " na teoria; depois, examinar o que ela é na prática;\ , pm fim, juntar teoria e prática em uma definição - umaI 1I ,I I\I .:,) ética e irônica, construída metodologicamente -,\ I' lI' 'SI ro ser abrangente o bastante para proporcionar a

111 (' um razoável conhecimento não apenas da "questão da111 .1orla'', mas também de alguns dos debates e posições que\ 11 I I -iam.

I) 'fEORIA

No nível da teoria, gostaria de apresentar dois argumen-II lho primeiro (que esboço neste parágrafo e desenvolvo,'111 S > zu ida) é que a história constitui um dentre uma série de.!Li °ur,os~S eito do mundo. Embora esses discursos nãoI 11 -m o mundo (aquela coisa física na qual aparentementev v 'mos), eles se apropriam do mundo e lhe dão todos osilpnificados que têm. O pedacinho de mundo que é o objeto

(1)1' .tendido) de investigação da história é o passado. A histó-1:1 'Ol1!.Q ..sljscl!,rso está, ortanto numa cate oria diferente

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da uela sobre a ual discursa. Ou seja, passado e história sãocoisas diferentes. Ademais, o passado e a história não estiOunidos um ao outro de tal maneira que se possa ter uma, eapenas uma leitura histórica do passado. O passado e a histó-ria existem livres um do outro; estão muito distantes entre sino tempo e no espaço. Isso porque o mesmo objeto de in-vestigação pode ser interpretado diferentemente por diferen-tes práticas discursivas (uma paisagem pode ser lida/inter-pretada diferentemente por geógrafos, sociólogos, historia-dores, artistas, economistas et al.), ao mesmo tempo que, emcada uma dessas práticas, há diferentes leituras interpretativasno tempo e no espaço. No que diz respeito à história, ahistoriografia mostra isso muito bem.

O parágrafo acima não é fácil. Fiz um monte de afirmações,mas, na realidade, todas giram em torno da distinção entre pas-sado e história. Essa distinção é, portanto, essencial. Se for com-preendida, ela e o debate que suscita ajudarão a esclarecer oque a história é na teoria. Por conseguinte, vou examinar asafirmações que acabo de fazer, analisando com alguma minúciaa diferença entre passado e história e, depois, considerandoalgumas das principais consequências dessa diferença.

Deixe-me começar pela idéia de que a história, emboraseja um discurso sobre o passado, está numa categoria dife-rente dele. Isso pode lhe parecer estranho, porque talvezvocê não tenha notado essa distinção antes ou, do contrário,talvez ainda não tenha se preocupado muito com ela. Umadas razões para que isso aconteça - ou seja, para que emgeral a distinção seja deixada de lado - é que tendemos aperder de vista o fato de que realmente existe essa distinçãoentre a história - entendida como o que foi escrito/registradosobre o passado - e o próprio passado, pois a palavra "histó-ria" cobre ambas as coisas. 1 Portanto, o preferível seria sempre marcar essa diferença usando o termo "o passado" paratudo que se passou antes em todos os lugares e a palavra"historiografia" para a história; aqui, "historiografia" se refere

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I I I(I,' I< historiadores. Também seria um bom critérioI I .11 11) , mo o objeto da atenção dos hi~tori~dores, aI 1111I I.t!'ia orno a maneira pela qual os hístoriadores o

"IIIII! ti ixar a palavra "História" (com H maiú~c~lo) paraII 1\ ti tod . No entanto, é difícil livrar-se do hábito, e e~

III1I t.ilv z use "história" para me referir ao passado, aI 11\I 't'l.lfia e a ambas as coisas. Mas lembre .q~e, ~ee quand~

I II I I iss ,estarei levando em conta tal distinção - e voceI '1.\ pr ceder da mesma maneira. .

t I\I I) pode muito bem ser que esse esclareCimento111I , . _II1I1 ,I li tinção entre passado e história pareça COisav~.

I li t ,VO ,A pense: "E daí? Que importância tem isso?" Perml-I 1111't Ifer cer três exemplos de por que é importante enten-I I \ distinção entre passado e história.

( ) passado já aconteceu. Ele já passou: e os histo~iado-I ('S S conseguem trazê-lo de volta medlado por vel~ulosmuit diferentes, de que são exemplo os livros, artigos,tio 'umentários ete., e não como acontecimentos pr~se~-I 'S. O passado já passou, e a história é o que ~s hístorí-,I I res fazem com ele quando põem mãos a obra. Ahistória é o ofício dos historiadores (e/ou daquele~ qu~.\g m como se fossem historiadores). Quando os histori-:1 lores se encontram, a primeira coisa que perguntam1It1 aos outros é: "No que vocês estão trabalhand~?" Essetrabalho, expresso em livros, periódicos ete., e o .qu/ev cê lê quando estuda história. Isso significa ~u~ a histó-ria está muito literalmente, nas estantes das blbhotecas ele outros lugares. Assim, se você começar a fazer um

curso de história espanhola seiscentista (por exemplo),não vai precisar ir ao século XVII ne~ à,Es?a~ha; co~ ~ajuda de uma bibliografia, vai, isto sim, a blbhotec~. E alique está a Espanha seiscentista, ~atalogada pelo sístemadecimal Dewey, pois aonde mais os professores man-dam você ir para estudar? Claro, você poderia ir:- ?utroslugares onde é possível encontrar outros vestígios do

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passado - por exemplo, aos arquivos spanhóis, Mas,aonde quer que vá, sempre terá de I r/int 'I r tar. Essaleitura não é espontânea nem natural. Ela " apr ndida(em vários cursos, por exemplo) e informa Ia ( u seja,dotada de significado) por outro t tos. J\ hi tória(historiografia) é um constructo Iíngüí tico int .rt xtual.

2. Digamos que você esteja estudand parte 10 1assadoinglês (o século XVI, por exemplo) no S' undári britâni-co. Vamos imaginar que você u um r .nomado com-pêndio: England under the Tudo r., I' eoffr y Elton.Na aula em que se trata de aspect 5 10 sé ul XVI, vocêfaz anotações em classe. Mas, para os trabalh s e o gros-so da revisão da matéria, usa Elt n. Na hora do exame,escreve à sombra de Elton. A pas a r, li aprovado em.história inglesa, ou seja, e tá qualifl '1 I na análise decertos aspectos do "passado". No ntant ,s ria mais acer-tado dizer que você passou não em hí t' ria ingl a, masem Geoffrey Elton - pois, nessa fas, qu 'sua "leitu-ra" do passado inglês senão uma leitura de Elton?

3. Esses dois rápidos exemplos da distinção entre pa sadoe história talvez façam parecer que se trata de algo semmaiores conseqüências. Na realidade, porém, aquela dis-tinção pode ter efeitos enormes. Eis outro exemplo parailustrar isso: embora milhões de mulheres tenham vividono passado (na Grécia, em Roma, na Idade Média, naÁfrica, nas Américas ... ), poucas aparecem na hi tória,isto é, nos textos de história. As mulheres, para itarmosuma frase, foram "escondidas da história", u S j , i te-maticamente excluídas da maioria do r lat s d hi t ria-dores. Por conseguinte, as feministas stã agora ngaja-das na tarefa de "fazer as mulher s voltar J'l1 r '11"l a histó-ria", ao mesmo tempo que tanto h /TI ns juantc n ulhe-res vêm examinando os con tru tos I' JlWS .ulini ladeque são correlatos ao terna.' N sta altura, vo .r; talvez

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pare para considerar quantos outros grupos, pessoas,povos, classes foram e/ou são omitidos das histórias epor quê; e quais poderiam ser as conseqüências se tais"grupos" omitidos dominassem os relatos históricos e seos grupos hoje dominantes ficassem à margem.

Posteriormente, diremos mais sobre a importância e aspossibilidades de trabalhar a distinção entre passado e histó-ria. Por ora, eu gostaria de analisar outro argumento daqueleparágrafo anterior (p, 24) no qual digo que precisamos en-tender que o passado e a história não estão unidos um aooutro de tal modo que se possa ter uma, e apenas uma leiturade qualquer fenômeno; que o mesmo objeto de investigaçãoé passível de diferentes interpretações por diferentes discur-sos; e que, até no âmbito de cada um desses discursos, háinterpretações que variam e diferem no espaço e no _tempo.

Para começar a exemplificar isso, vamos imaginar quepossamos ver uma paisagem inglesa através de uma janela(não toda a paisagem, pois a janela a "enquadra" muito lite-ralmente). No primeiro plano, estão várias estradínhas. maisalém, outras estradinhas, ladeadas por casas; há campos on-dulantes e, neles, casas de fazenda. Na linha do horizonte, aalguns quilômetros, vemos uma sucessão de morros baixos.No plano intermediário, uma cidadezinha com uma feira. Océu é de um azul pálido.

Não há nada nessa paisagem gue diga " eogra~a". ~entanto, está claro gue um geógrafo pode 'ul á-la em termosgeográfic<2s. Assim, ele pode "ler" que a terra exibe práticas epadrões de uso específicos; as estradinhas podem tornar-separte de uma série de redes de comunicação local e/ou regi-onal; as fazendas e a cidade podem ser "lidas" em termos deuma distribuição populacional específica; cartas topográficaspodem mapear o terreno; geógrafos especializados, explicaro clima e, digamos, os tipos decorrentes de irrigação. Dessamaneira, o panorama poderia virar outra coisa: geografia. Demaneira semelhante, um sociólogo poderia pegar a mesm~

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paisagem e elaborá-Ia em termos sociológicos: as pessoas naci a e poaeriam tornar-se dados para estruturas ocupacionais,tamanho. das unidades familiares etc., a distribuiçãopopulacional, ser considerada em termos d classe, renda,idade, sexo; o clima, ser visto como algo que af ta a possibi-lidades de lazer; e assim por diante.

Os historiadores também conseguem tran f rmar a mes-ma paisagem em discurso próprio. Os atuais padrões euso da terra po em ser comparados com o da fas anterioraos Grandes Cercamentos; a população atual com a de 1831ou 1871; pode-se analisar como a propri lade fundiária e opoder político evoluíram no decorrer d t mpo, examinarcomo um pedacinho da paisagem adentra um parque nacio-nal, quando e por que a ferrovia e o canal fluvial deixaramde funcionar etc.

Ora dado que aquele anorama não t m nada de intrínse-, . -co que grite "Geografia!", "Sociologia!"; "Hi tória!" etc., pode-mos ver claramente que, embo@ o historiadores e to os osóiJtrõS não inventem a paisagem (todas aquelas coisas pare-cemestar mesillõ á), eles realmente formulam todas as Cãte-gorias descritivas dêssa paisagem e quaisquer significados qGesêPo~ dizer que ela tem. Eles elaboram as ferramentas ~-líticas e metodológicas para extrair dessa matéria-prima as suasmaneirasPróprias de lê-Ia e falar a~ respeito: o discurs~ énesseseniido que lemos o mundo como um texto, e tais leitu-ras são, pela lógica, infinitas. Não quero dizer com isso quenós simplesmente inventamos histórias sobre o mundo ou so-bre o passado (ou seja, que travamos conhecimento do mun-do ou dopassado e então inventamos narrativas sobre ele);mas si~ que a afirmação ê muito mais forte: qu o mundo ou~_Rassado sempre nos chegam como narrativa e que não _po emoS sair essas narrativas para verificar s orr pondemao mundo ou ao passa o reais, pois elas con titu m a "r alída-de". No exemp o que rã1TIosvendo, isso signifi a qu a pai-~m (a qual ganha significado apenas quando lida não con-

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~

segue estabelecer definitivamente tais leituras; assim, osgeógrafos podem interpretar e reinterpretar (ler e reler) a pai-sagem até não mais poderem, ao mesmo tempo que discor-dam do que está sendo dito "geograficamente". Ademais,~que a geografia nem sempre existiu como discurso, então nãoapenas as interpretações dos geógrafos tiveram e começarum ia e oram sempre diferindo no tem o e es a o, mastambém os ró rios geógrafos entende- lêem diferente;:nen:-te o que constitui o discurso no âmbito do ual trabalham. Ouseja, a própria geografia como maneira de ler o m~J2recisa

e interpretação istonazaçã.Q. E o mesmo se dá com a socio-logia e a história. Sociólogos e historiadores díferentes íiüer-pretam de maneira distinta o mesmo fenômeno, por meio deoutros discursos que estão sempre mudando, sempre sendodecompostos e recompostos, sempre posicionados e sempreposicionando-se, e que por isso precisam que aqueles que osusam façam uma autocrítica constante.

Nesta altura, vamos então presumir já termos demonstra-do o argumento de que a história como discurso se encontranuma categoria diferente daquela na qual o passado está. Nocomeço do capítulo, porém, eu disse que, no nível da "teo-ria" com relação à pergunta "O que ê a história?", eu apresen-taria dois argumentos. Eis o segundo. ------

Dada a distinção entre passado e história, o problema parahistoriador que de algum modo quer captar o passado em

seu discurso histórico torna-se este: como se conciliam aque-las duas coisas? Obviamente, a maneira com a qual se tentaessa conexão - a maneira com a qual o historiador tentaentender o passado - é crucial para determinar as possibili-dades do que a história é e pode ser, até porque a pretensãoda história ao conhecimento (em vez de considerar-se sim-ples fé ou alegação) é o que a torna o discurso que é (comisso, quero dizer que os historiadores não costumam consi-derar-se ficcionistas, embora possam sê-lo sem se darem con-ta)." No entanto, se existe diferen a entre assado e história,

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e se o ob'eto da investigação em que os historiadores traba-lham está ausente na maioria e suas manifestações- (pois sórestam vestígios do passado), então claramente há todo ti ode imite contro ãi1doãSP'fétensões'que os historiadores os-sam ter aoConhecimento. E, nesse conciliar o passado com ahistória, surgem ara mim três campos teóricos muito proble-máticos. São áreas c8:__epistemologia, na metodologia e daideolo ia, .s:adauma das q~ais reêisã serexplicada se quere-~s ve~ o que é a história.

A e istemolo ia (do grego episteme, "conhecimento") serefere ao campo filosófico das teorias do conhecimento. Essaárea diz respeito a como sabemos o qu quer que seja. Nessesentido, a história integra outro discurso, a filosofia, tomandoparte na questão geral do que é possív 1 saber com referên-cia à própria área de conhecimento da história - o passado. Eaqui você talvez já veja o tamanho do probl ma, pois, se ecomplicado ter conhecimento de algo que existe, então ficaespecialmente difícil dizer alguma coisa sobre um tema efeti-vamente ausente como é "o passado na história". Portanto,parece óbvio que todo esse conhecimento é provavelmentecircunstancial e elaborado por historiadores que trabalhamsob todo tipo de pressuposto e pressão, coisas que, é claro,não atuam sobre as pessoas do passado. Não obstante, aindavemos historiadores tentarem invocar ante nossos olhos oespectro do passado real, um passado objetivo sobre o qual~relatos desses historiadores seriam precisos e até verda-deiros, na acepção mais ampla da palavra. Pois bem: achoue tais I2.!:etensõesà verdade não são - e nunca foram -

Rassíveis de realizar::§~, e eu diria que em nossa atual situa- .ção isso já deveria ser óbviõ:conforme argum nt i no capí-tulo 3. Não obstante, está claro que aceitar isso - p rmitir quea dúvida se instale - afeta o que você pode p n ar que ahistória seja, isto é, dá a você uma parte da r po ta para oque a história é e pode ser. Porque, ao reconh rmos quenão sabemos realmente, ao vermos a história c mo sendo

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(pela lógica) qualquer coisa que queiramos que ela seja (adistinção entre fato e valor, além da circunstância de ter havi-do tantas histórias, possibilita isso), nós vamos colocar a ques-tão de como histórias específicas vieram a ser elaboradassegundo um e não outro molde, em termos não só episte-mológicos, mas também metodológicos e ideológicos. Nesseponto, o que é possível saber e como é possível saberinteragem com o poder. Em certo sentido, porém, isso sóacontece - e trata-se agora de algo que precisamos enfatizar_ por causa da fragQidade e istemológica da história. Por-que, se fosse possível saber de uma vez por todas, hoje esempre, então não haveria mais necessidade de escrever his-tória, pois qual seria o propósito de um sem-número de his-toriadores ficarem repetindo a mesmíssima coisa darríesmíssima maneira o tempo todo? A história (os constructoshistóricos, e não o "passado e/ou futuro") pararia. E, se vocêacha absurda a idéia de parar a história (ou seja, parar oshistoriadores), saiba que não é: isso é parte não apenas doromance 1984, por exemplo, mas também da Europa dosanos 30 - a época e o lugar mais imediatos que fizeram GeorgeOrwell considerar aquela idéia.

Portanto, a fragilidade_epistemológica permite_ ue as inter-pretações dos historiadores sejam multíplices (um só p~ssado,muitos historiadores). Mas o ue torna a história tão frágil emt~ ;-istemológicos? Hã quatro respostas básicas.\ Em primeiro ugar (e agora eu recorro bastante aos argu-mentos de David Lowenthal em seu livro Tbe past is a foreigncountry),4 nenhum historiador cQns~ue abarcar .§_assim~C\J-

perar a totalidade dos acontecimentos pa~sa<!os,2.orgu~ "C?,E-teúdo" desses acontecimentos é praticamente ilimitado. Não épOs"sívelrelatar m?-~ u~ fração~do 9-uejá ·õc~1!.eu,e orelato de um historiador nunca corresponde eJSatamente aopassado: o simples-volume desse último inviabiliza a históriatotal. A maior parte das informações sobre o passado nunca foiregistrada, e a maior parte do que permaneceu é fugaz.

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Em segundo lugar, nenhum relato consegue recuperar opassado tal qual ele era, porque o passado são acontecimen-tos, situações etc., e não um relato. Já que o passado passou,relatos só poderão ser. confrontados com outros relatos, nun-~a com o passado. Julgamos a "precisão" dos relatos de histo-riadores vis-à-vis as interpretações de outros historiadores, enão existe nenhuma narrativa, nenhuma história "verdadei-~a", que, ao fim..n9s possibilite confrontar todos os outrosrelatos com ela - isto é, não existe nenhum texto fundamen-talmente "correto" do qual as outras interpretações sejamapenas variações; o que existe são meras variações. O críticocultural Steven Giles resume bem esse aspecto, quando co-menta que o passado é sempre percebido por meio das ca-madas sedimentares das interpretações anteriores e por meiodos hábitos e categorias de "leitura" desenvolvidos pelos dis-cursos interpretativos anteriores e/ou atuais." Esse insighttam-bém nos possibilita afirmar que tal maneira de ver_as coisastorna o estudo da história (o passado) necessariamente um'*' ~udo' da historiografia (os historiadoresr, por conseguinte, a ~historiografia passa a ser considerada não um adendo ao es-tudo da história, mas a própria matéria constituinte dessaúltima. É um campo ao qual voltarei no capítulo 2. Por en-quanto, vamos à terceira razão para que a história se mostrefrágil em termos epistemológicos.

Essa razão é que, 0ão importando o quanto a história~~ja autenticada, amR.~mente aceita ou verificável, ela estáfadada a ser um constructo pessoal, uma manifestação daperspectiva do historiador como "narrador". Ao contrárioda memória direta (que em si já é suspeita), a história de-pende dos olhos e da voz de outrem; vemos por intermédiode um intérprete que se interpõe entre os acontecimentospassados e a leitura que deles fazemos. É claro que, confor-me diz Lowenthal, a história escrita reduz a liberdade lógicado historiador para escrever tudo que lhe der na telha, poisnos permite o acesso às suas fontes. No entanto, o ponto de

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vista e as predileções do historiador ainda moldam a esco-lha do material, e nossos próprios constructos pessoais de-terminam como o interpretamos. 9 passado que "conhece-mos" é sempre condicionado por nossas próprias visões,!l0sso próprio "presente". Assim como somos produtos dopassado, assim também o passado conhecido (a história) éum artefato noss(). Ning-uém, não importando quão imersoesteja no passado, consegue despojar-se de seu conheci-mento e de suas pressuposições. "Para explicarem o passa-do, os historiadores vão além do efetivamente registrado eformulam hipóteses seguindo os modos de pensar do pre-sente", diz Lowenthal. "Maitland nota que somos modernose que nossas palavras e pensamentos só podem ser moder-nos. Segundo ele, 'já é tarde demais para sermos inglesesmedievais'i'" Portanto, existem poucos limites à influênciade discursos interpretativos que procuram recuperar o pas-sado pela imaginação. "Vejam", diz o poeta russo VelemirKhlebnikov em seus Decretos aosplanetas, "o sol obedece àminha sintaxe."? Vejam, diz o historiador, o passado obede-ce ~ minha interpretação.- - - - - -

É possível que isso pareça um tanto poético. Portanto,talvez possamos ilustrar com um exemplo mais simples esseargumento de que as fontes impedem a liberdade total dohistoriador e, ao mesmo tempo, não fixam as coisas de talmodo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações,Eis o exemplo: existe muito desacordo sobre as intençõesde Hitler após ele ter conquistado o poder e sobre as causasda Segunda Guerra Mundial. Nesse campo, uma discordânciade longa data e muito famosa se deu entre A. J. P. Taylor eHugh Trevor-Roper. Ela não se baseava nos méritos dessesdois historiadores ingleses. Ambos eram muito experientes,ambos tinham "habilidades", ambos sabiam ler documentos(e, no caso em pauta, os dois frequentemente liam os mes-mos). Apesar disso, um não concordava com o outro. As-sim, embora as fontes/acontecimentos possam simplesmen-

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te impedir que se diga tudo que se queira, eles também nãoimplicam que se deva seguir uma única interpretação.

As três razões citadas acima para a fragilidade epistemo-lógica da história se baseiam na idéia de que a história émenos que o passado - ou seja, a idéia de que os historiado-res só conseguem recuperar fragmentos. Mas ª quarta razão,:em enfatizar q~e, graças à_possibilidade de ver as coisas emretrospecto, nós de certa maneira sabemos mais sobre o pas-sado do que as2essoa~ qu~ viveram lá. Ao traduzir o passa-do em termos modernos e usar conhecimentos que talveznão estivessem disponíveis antes, o historiador descobre nãosó o que foi esquecido sobre o passado, mas também "recons-titui'~ coisas que, antes, nunca estiveram constituídas comotal. Assim,~ p~ssoas e formações sociais são captadas emprocessos que só E.0.gem ser vi tos retrospectivamente, en-quanto documentos e outros vestígio do passado são tiradosde seus propósitos e funções originais para ilustrar, por exem-plo, um padrão que nem remotam nte tinham significadopara seus autores. Conforme diz Lowenthal, tudo isso é ine-vitável. A história sempre dá nova feição às coisas. Ela mudaou exagera aspectos do passado. "O tempo é escorçado; o~_detalhes, selecionados e realçados; a ação, resumida; as rela-ções, simplificadas, não para alterar [de caso pensado] os acon-tecimentos, mas para [.. .l dar-Ihes significado."

Até o cronista mais empírico precisa criar estruturas narra-tivas para dar forma ao tempo e ao espaço. "O [relato] podeaté ser apenas uma maldita coisa atrás da outra [' . .J mas nãopode parecer ser apenas isso, pois aí todo o significado seriaexpurgado dele."? E, dado que as narrativas enfatizam os ne-xos e minimizam o papel das rupturas, Lowenthal concluique os relatos históricos tal como os conhecemos parecemmais abrangentes e-perceptivos do que o passado nos dá

'motivospara crer -que tenha sido.- Esses, portanto, são os limites epistemológicos principais(todos bem conhecidos). Eu os tracei de modo rápido e su-

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perficial, e você pode ir além e ler Lowenthal e os outros.Mas agora pretendo seguir adiante. Porque, se esses são oslimites epistemológicos para o que se pode saber, então elesobviamente se inter-relacionam com as maneiras pelas quaísos historiadores tentam descobrir o máximo possível. E, tanto1)os métodos historiográficos quanto na_epistemologia, nãoexiste um procedimento definitivo que se possa usar or serele o cor~eto; 9~ métodos dos historiadores são semRre tãofrágeis ~anto as suas e istemologias.

Até aqui, sustentei que a história é um discurso em constan-te transformação construído pelos historiadores e que da exis-tência do passado não se deduz uma interpretação única: mudeo olhar, desloque a perspectiva, e surgirão novas interpreta-ções. No entanto, embora...5!.shistoriadores sajba~de todasessas coisas, a maioria arece desconsiderá-Ias d~ cas<?pensa-do e se empenha em alcançar-ª-objetividade e a verdade mes-mo assim. E_essabusca pela verdade transcende posições !9~0-lógicas e/ou metodológicas._

Assim, naquilo que (de certo modo) poderíamos denomi-nar direita em iricista, Geoffrey Elton (em Tbe practice ofbistory) afirma no início do capítulo sobre pesquisa: "O estu-do da história equivale a uma busca pela verdade" .10 E, em-bora aquele mesmo capítulo se conclua com uma série deressalvas ("o historiador sabe que o que está estudando éreal, [mas] sabe que nunca conseguirá recuperar todo o real[. . .l ele sabe que o processo da pesquisa e reconstituição his-tórica não termina nunca, mas também está cônscio de queisso não torna seu trabalho irreal ou ilegítimo"), é óbvio quetais advertências não afetam seriamente aquela antiga "buscapela verdade".

No que (também de certo modo) poderíamos chamar deesguerda marxjsta1..E.P. Thompson escreve em A miséria dateoria: "Já faz algum tempo [...l, a concepção materialista dahistÓria [' . .J vem ganhando autoconfiança. Na qualidade deprática madura l. ..l, ela é talvez a disciplina mais forte a ter

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surgido da tradição marxista. Mesmo nessas últimas poucasdécadas [. . .l os avanços têm sido consideráveis, e supõe-seque sejam avanços do conbecirnento"," Embora Thompsonreconheça que isso não quer dizer que tal conhecimento sejapassível de "prova científica", ele mesmo assim o tem porconhecimento real.

E, naquilo que (ainda de certo modo) poderíamos consi-derar o centro empiricista, A. Marwick reconhece em Tbenature of history o que ele denomina a "dimensão subjetiva"dos relatos historiográfícos." Mas, para Marwick, essa dimen-são está não na postura ideológica do historiador (por exem-plo), e sim na natureza das provas apresentadas, pois os his-toriadores se vêem "forçados pela imperfeição de suas fontesa exibirem um grau maior de interpretação pessoal". Assimsendo, Marwick ·argumenta que é trabalho dos historiadoresdesenvolver "severas regras metodológicas", pelas quais elespossam reduzir suas intervenções "morais". Marwick estabe-lece aí uma conexão com Elton: este "insiste em que, só por-que a explicação histórica não é determinada por leis univer-sais, isso não quer dizer que ela não seja regida por regrasmuito estritas".

Para todos esses historiadores, portanto, o conhecimento<.: a legitimidade ~dvêm de regras e procedimentos metodo-lógicos rígidos, É isso que limita a liberdade interpretativados historiadores.- .

Meu argumento é diferente. Para mim, o que em últimaanálise determina a interpretação está para além do método~ das provas - está na ideologia. Porque, embora a maioriados historiadores concorde que um método rigoroso é im-:portante, existe o problema de saber a qual método rigorosoeles se referem. Em Tbe nature of history, Marwick passa emrevista uma seleção de métodos, entre os quais (supõe-se?podemos escolher nosso favorito. Quem você gostaria deseguir? Há Hegel, Marx, Dilthey, Weber, Popper, Hempel, Aron,Collingwood, Dray, Oakeshott, Danto, Gallie, Walsh, Atkinson,

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Leff, Hexter. .. Ou você prefere os empiricistas modernos, asfeministas, a escola dos Annales, os neomarxistas, os neo-estilistas, os econometristas, os estruturalistas, os pós-estrutu-ralistas ou mesmo o próprio Marwick? Já citamos 25 possibi-lidades, e trata-se de uma lista curtinha! A questão é que,mesmo se conseguirmos fazer uma escolha, quais seriam oscritérios? Como poderíamos saber qual método nos conduzi-ria ao passado mais "verdadeiro"? Claro que cada um dessesmétodos seria rigoroso, ou seja, sistemático e coerente, masele também remeteria sempre a seu próprio quadro de refe-rências. Isto é, ele poderia nos dizer como apresentar argu-mentos válidos segundo suas diretivas, mas, dadas todas aque-las opções para tanto, o problema de discriminar de algumamaneira entre 25 escolhas simplesmente teima em não serresolvido. Thompson é rigoroso, mas Elton também. Combase em que vamos escolher? Em Marwick? Mas por que ele?Acaso não será provável que, no fim de contas, escolhamosThompson (por exemplo) porque gostamos do que Thompsonfaz com seu método? Gostamos de suas razões para trabalharcom a história - pois, se outros fatores não intervierem, peloque mais faremos nossa escolha?

Resumindo: é enganoso falar do método como o caminhopara a verdade. Há uma ampla gama de métodos, sem q~leexista nenhum critério consensual para escolhermos dentreeles. Com freqüência, pessoas como Marwick argumentamque, não obstante todas as diferenças metodológicas entreempiricistas e estruturalistas (por exemplo), eles estão de acor-do no fundamental. De novo, porém, as coisas não são as-sim. O fato de os estruturalistas chegarem a extremos paraexplicar com muita minúcia que não são empiricistas - maiso fato de terem formulado suas abordagens específicas justa-mente para diferenciar-se de todo mundo - parece ter sidoum tanto desconsiderado por Marwick et al.

Agora, quero tratar rapidamente de apenas mais um argu-mento referente ao método, um argumento que aparece tom

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freqüência em textos introdutórios sobre a "natureza da his-tória". Ele se refere a conceitos e é o seguinte: tudo bem,talvez as diferenças metodológicas não possam ser elimina-das, mas ainda assim não existem conceitos fundamentaisque todos os historiadores usam? E disso não se conclui queeles tenham algum terreno metodológico em comum?

Ora, por certo é verdade que, em todos os tipos de história,de aramos continuamente com os supostos "coIlceitos históri-cos" ( or não serem denominados "conceitos de historiado-res", eles parecem impessoais e objetivos, como se pertences-sem a uma história que, de algum modo, surgiu por geraçãoespontânea.) E não é só isso: com bastante regularidade, taisconceitos são chamados os "alicerces" da história. Trata-se decoisas como, por exemplo, tempo, prova/corroboração,empatia, causa e efeito, continuidade e mudança etc,

Não vou argumentar que não se devam "trabalhar" concei-tos, mas me preocupo com o fato de que, quando se apre-s~ntam 5:sses conceitos específicos, têm-se a forte impressãode que eles são mesmo óbvios e eternos e constituem oscomponentes básicos e universais do conhecimento históri----co. No entanto, isso é irônico, pois uma das coisas que aabertura das perspectivas historiográficas para horizontes maisamplos devia ter feito era justamente historicizar a própriahistória - ver que todos os relatoshistóricos n-· são prisio'=-

-:;::J neiros do ~mpo e _do espaço e, assim, ver que os conceitos/' Y historiográficos não são alicerces universais, mas expressões

localizadas e particulares. É fácil demonstrar a historicizaçãono caso dos conceitos "em comum".

Num artigo sobre novos desdobramentos no campo dahistória, o pedagogo britânico Donald Steel ponderou de quemaneira certos conceitos se tornaram "alicerces", mostrandoque, na década de 1960, cinco grandes conceitos foram iden-tificados como elementos constitutivos da história: o tempo,o espaço, a cronologia, o juízo moral e o realismo social. 13

Steel assinala que, em 1970, esses elementos já haviam sido

refinados (até por ele mesmo) para fornecerem os "conceitosfundamentais" da história: tempo; prova; causa e efeito; con-tinuidade e mudança; e semelhança e diferença. Steel explicaque, na Inglaterra, foram esses conceitos que se tornaram abase do currículo histórico nas escolas e que influenciaram, econtinuam influenciando, tanto os cursos de graduação quantoo sistema educacional de modo mais geral. Aparentemente,portanto, aqueles "velhos" alicerces estão há cerca de trêsdécadas apenas, não são universais e se originaram não dosmétodos historiográficos em si, mas do pensamento pedagó-gico geral. Obviamente, esses alicerces conceituais tambémsão ideológicos, pois o que poderia acontecer se outros fos-sem usados para organizar o campo dominante - por exem-plo, conceitos como estrutura/agente, sobredeterminação, con-juntura, desenvolvimento desigual, centro/periferia, dominan-te/marginal, base/superestrutura, ruptura, genealogia, men-talidade, hegemonia, elite, paradigma etc.? É hora de abor-darmos a ideologia diretamente.

Deixe-me começar com um exemplo. Neste ponto do tem-po e do espaço, poderíamos muito bem implantar em qual-quer currículo 'do ensino médio ou universitário inglês umcurso de história que seria bastante "histórico" (no sentido deque se pareceria com outras histórias), mas no qual a escolhatemática e metodológica seria feita de uma perspectiva ne-gra, marxista e feminista. Entretanto, eu duvido que haja talcurso em algum lugar da Inglaterra. Por quê? Não porquenão seja história - ele é -, mas porque na realidade as femi-nistas marxistas negras não têm poder de proporcionar a essecurso o tipo de inserção pública que existe em nossas insti-tuições de ensino. Contudo, se fôssemos perguntar às pesso-as com poder de decidir o que constitui um "currículo ade-quado" - às pessoas com poder de efetuar tais inclusões e/ouexclusões -, elas provavelmente argumentariam que a justifi-cativa para tal exclusão está em que aquele curso seria ideo-lógico. Ou seja, que as motivações de tal história viriam de

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preocupações alheias à história propriamente dita - que aquelahistória seria um veículo para expressar determinada posiçãocom objetivos propagandísticos. Ora, essa distinção entre a"história ideológica" e a "história propriamente dita" é inte-ressante porque implica, e é esta sua intenção, que certashistórias em geral as dominantes) não são de modo algümideológicas, nem expressam visões do passado que seiarnalheias ao tema. Mas já vimos que os significados d;dos àshistórias de todo tipo são necessariam:eirte isso mesmo - sig-nifica os que vem e fora. Não significado;-Tn'trínsecos 'dopassado (não mais do que a paisagem já tinha em si os nos-sos significados antes de os termos colocado lá), .mas signifi-cados dados ao passado Ror a~ntes externos. A história nuncase oasta;elâ' sempre s; destina a alguém. - - -

Por conseguinte, parece plausível que as formações so-ciais específicas querem que seus historiadores expressemcoisas específicas. Também parece plausível que as posiçõespredominantemente expressas serão do interesse dos blocosdominantes dentro daquelas formações sociais (não que taisposições surjam automaticamente e depois sejam assegura-das para sempre, ponto-final, sem sofrerem nenhuma contes-tação). O fato de que a história propriamente dita seja um

1I constructo ideológico significa que ela está sendo constante-mente retrabalhada ereordenada por todos aqueles que,_emdiferentes graus, são afetados pelas relações de poder - pois

I os dominados, tanto quanto os dominantes, têm suas própri-as versões do passado para legitimar suas respectivas práti-~s, versões que precisam ser tachadas de impróprias e assimexcluídas de qualquer posição no projeto do discurso domi-nante. Nesse sentido, reordenar as mensagens a serem trans-mitidas (com freqüência, o mundo acadêmico chama de "con-trovérsias" muitas dessas reordenações) é algo que precisa"ser continuamente elaborado, pois as necessidades dos do-

'\ minantes e/ou subordinados estão sempre sendo retrabalhadasno mundo real à medida que eles procuram mobilizar pes-

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soas para apoiarem seus interesses. A história se forja em talconflito, e está claro que essas necessidades conflitantesincidem sobre os debates (ou seja, a luta pela posse) do queé a história.

Assim, nesta altura, já fica claro que responder à pergunta"O que é a história?" de modo que ela seja realista está emsubstituí-Ia por esta outra.: ":~ra qu:m é a história?" Ao faz:~- \J/mos isso, vemos que a história esta fadada a ser problema~l-,if\ca ois se trata de um termo e um discurso em litígio, com,diferentes significados para diferentes grupos. Uns queremuma história asséptica, da qual o conflito e a angústia estejamausentes; outros, que a história leve à passividade; uns que-rem que ela expresse um vigoroso individualismo; outros,que proporcione estratégias e táticas para a revolução; outrosainda, que forneça base para a contra-revolução ... E por aívai. É fácil ver que, para um revolucionário, a história sópode ser diferente daquela almejada por um conservador.Também é fácil ver que a lista de usos da história é infinita,tanto pela lógica quanto pela prática. Afinal, que aspecto te-ria uma história com que todos pudessem concordar de umavez por todas? Permita que eu ilustre esses comentários comum rápido exemplo.

No romance 1984, Orwell escreveu que quem controla opresente controla o passado e quem controla o passado con-trola o futuro. Isso parece ser também provável fora da fic-ção. Assim, as pessoas no presente necessitam de anteceden-tes para localizarem-se no agora e legitimarem seu modo devida atual e futuro. (A bem dizer, dada a distinção fato/valor,os "fatos" do passado, ou tudo mais, não legitimam absoluta-mente nada. Mas o ponto é que as pessoas agem como selegitimassem.) Portanto, elas sentem a necessidade de enrai-zarem o hoje e o amanhã em seu ontem. Recentemente, esseontem tem sido procurado (e achado, já que o passado sepredispõe sustentar incontáveis narrativas) por mulheres,negros, grupos regionais, minorias diversas et al. Esses passa-

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dos são usados para explicar existências presentes e projetosfuturos. Remontando um pouco mais no tempo, veremos quea classe trabalhadora também procurou enraizar-se medianteuma trajetória elaborada em termos históricos. Remontandoainda mais, a burguesia descobriu sua genealogia e começoua elaborar uma história para si (e para outros). Nesse sentido,todas as classes e/ou grupos escrevem suas respectivas auto-biografias coletivas. A história é a maneira pela qual as pes-soas criam, em parte, suas identidades. Ela é muito mais queum módulo no currículo escolar ou acadêmico, embora pos-samos ver que o que ocorre nesses espaços educacionaistem importância crucial para todas aquelas partes diversa-mente interessadas.

Mas será que não estamos cientes disso o tempo todo? Nãofica óbvio que um fenômeno "legitimador" tão importante como'é a história tem raízes em necessidades e poderes reais? Achoque sim, mas com uma ressalva: quando o discurso dominantese refere ao constante processo de reescrita da história, ele ofaz de maneiras que sublimam aquelas necessidades. Aí, odiscurso dominante produz a anódina reflexão de que todageração reescreve sua própria história. A pergunta, entretanto,é como e por quê. E uma resposta possível, à qual Orwellalude, é que as relações de poder produzem discursos ideoló-gicos do tipo "a história como conhecimento" (por exemplo)que, em termos de projetos conflitantes de legimitimação, sãonecessários para todas as partes envolvidas.

~ Agora, vamos concluir a exposição sobre o que a história éna teoria. Argumentei que a história se compõe de episte-

J mologia, metodologia e ideologia. A epistemologia mostra quenunca poderemos realmente conhecer o passado - que a dis-

, crepância entre o passado e a história. (historiografia) éontológica, ou seja, está de tal maneira presente na naturezadas coisas que nenhum esforço epistemológico, não importan-do quão grande, conseguirá eliminá-Ia. Os historiadores ela-boram modos de trabalhar para reduzir a influência do histori-

ador interpretativo, desenvolvendo métodos rigorosos que elestentam universalizar das mais variadas maneiras, mas semprepretendendo que, se todos seguíssemos esses métodos, umalicerce de habilidades, conceitos, rotinas e procedimentospoderia permitir chegar à objetividade. No entanto, existemmuitas metodologias; os supostos "alicerces conceituais" sãode construção recente e parcial, e eu argumentei que as dife-renças que vemos estão lá porque a história é basicamente umdiscurso em litígio, um (~ampo d~ batalha onde pessoas, clas~ses e grupos elaboram autobiograficamente suas interpreta-ções dó passado para agradarem a si mesmos. Fora dessasp-ressões, pão existe história definitiva. Todo consenso (tem-porário) só é alcançado quando as vozes dominantes conse-guem silenciar outras, seja pelo exercício explícito de poder,.seja pelo ato velado de inclusão e/ou anexação. Ao fim, ahistória é teoria, e a teoria é ideologia, e a ideologia é pura esimplesmente interesse material. ~ideologia penetra to_dos osaspectos da história, aí incluídas as práticas cotidianas paraprõdUzir histórias naquelas instituições que, em nossa socieda-de, são destinadas pnncípalmente a tal Qropósito_- em espe~i-aI as univ~rsidades. Agora, vamos olhar a história como partedesse tipo de prática.

DA PRÁTICA

Acima, eu acabei de concluir que a história foi, é -e seráproduzida em muitos lugares e por muitas razões diferentes,e que um desses tipos de história é a profissional, ou seja, aproduzida por historiadores que (em geral) são assalariadose (no mais das vezes) trabalham no ensino superior, especial-mente nas universidades.

Em Tbe death of the past." o historiador J. H. Plumb des-creveu tal história profissional ("à Elton") como o processode tentar estabelecer a verdade do que aconteceu no passa-

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do e que poderia ser contraposto aos "passados" da memóriapopular, do "senso comum" e dos estereótipos, para nos de-sembaraçarmos desses constructos mal acabados, mal digeri-dos e (para Plumb) mal concebidos. Em On living in an oldcountry= Patrick Wright argumentou que a meta de Plumb énão apenas impossível, pois (como já vimos) inexistem ver-dades históricas não-problemáticas, mas também provavel-mente indesejável, pois pode muito bem ser que na históriapopular (por exemplo) haja virtudes e leituras alternativasque, de quando em quando, talvez seja necessário opor àshistórias "oficiais". Aqui, ele sugere que tenhamos em menteo processo de memória dos proles de 1984.

Wright igualmente assinala que o único tipo de instituiçãona qual o desarraigamento proposto por Plumb poderia efetu-ar-se é o educacional (e este, por sua vez, já está intimamenteenvolvido nos processos de socialização do gênero "memóriapopular"). Porque, embora a esmagadora maioria dos historia-dores de carreira se declare imparcial, e embora de certa ma-neira eles realmente consigam um "dístanciamento", é aindaassim esclarecedor ver que esses profissionais nem de longeestão fora do conflito ideológico e que eles até ocupam posi-ções bem dominantes dentro de tal conflito - em outras' pala-vras, é esclarecedor ver que as histórias "profissionais" sãoexpressões de como as ideologias dominantes formulam a his-tória em termos "acadêmicos". Parece bastante óbvio que, vis-tos sob uma perspectiva cultural e "histórica" mais ampla, in-vestimentos institucionais multimilionários como aqueles fei-tos em nossas universidades (por exemplo) são essenciais parareproduzir a presente formação social e, portanto, estão navanguarda das forças da tutela cultural (padrões acadêmicos) edo controle ideológico. Seria certo descuido do campo domi-nante se as coisas não fossem assim.

Dado que até agora tentei situar a história entre osinterstícios de interesses e pressões reais, também precisolevar em conta as pressões "acadêmicas", não só porque é,

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sobretudo, o seu tipo de História que define o campo do que"a História realmente é", mas ainda porque é esse o tipo dehistória estudado no ensino médio e nos cursos de gradua-ção. Nestes cursos, com efeito, você é, na prática, iniciado nahistória acadêmica; você deve ficar como os profissionais.Mas como são os profissionais e como é que eles produzemhistórias?"

Vamos começar assim: a história é produzida por um gru-po de operários chamados historiadores quando eles vão tra-balhar. É o serviço deles. E, quando vão trabalhar, eles levamconsigo certas coisas identificáveis.

Em primeiro lugar, levam a si mesmos: seus valores, posi-ções, perspectivas ideológicas.

Em segundo lugar, levam seus pressupostos epistemo-lógicos. Estes nem sempre são conscientes, mas os historia-dores terão "em mente" maneiras de adquirir "conhecimen-to". Aqui, entra em ação uma gama de categorias (econômi-cas, sociais, políticas, culturais, ideológicas etc.), uma gamade conceitos que integram essas categorias (dentro da cate-goria política, por exemplo, pode haver muito uso de classe,poder, Estado, soberania, legitimidade etc.) e amplas pressu-posições sobre a constância, ou não, dos seres humanos (algoque, com muita freqüência, é irônica e a-historicamente de-nominado "natureza humana"). Mediante o uso dessas cate-gorias, conceitos e pressuposições, o historiador vai gerarhipóteses, formular abstrações e organizar e reorganizar seumaterial de forma a incluir e excluir.

Os historiadores também empregam vocabulários própri-os de seu ofício, e estes (como se não bastasse serem inevita-velmente anacrônicos) afetam não apenas o que os historia-dores vêem, mas a maneIra ela ual eles vêem. Tcliscatego-rias conceitos e vocabulários são continuamente retrabalhados,mas sem eles os historiadores não conseguiriam nem entenderos relatos uns dos outros, nem elaborar os seus próprios, nãoimportando quanto possam discordar a respeito das coisas.

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Em terceiro lugar, os historiadores têm rotinas e procedi-mentos (métodos, na estrita acepção da palavra) para lidarcom o material: modos de verificar-lhe a origem, a posição, aautenticidade, a fidedignidade ... Essas rotinas se aplicarão atodo material trabalhado, mesmo que com graus variados deconcentração e rigor (ocorrem muitos lapsos e des-acertos).Há aí uma gama de técnicas que vão do extravagantementecomplexo ao prosaicamente direto; tratam-se do tipo de prá-ticas que muitas vezes são denominadas as "habilidades dohistoriador", técnicas que, de passagem, podemos ver comomomentos também "passageiros naquela combinação de fato-res que produzem histórias. (Em outras palavras, a história nãoé questão de "habilidades".) Assim, munidos desses tipos deprática, os historiadores conseguem pôr-se mais diretamente a"inventar" um pouco de história - "produzir histórias".

Em quarto lugar, ao tocarem seu serviço de encontrar ma-teriais diversos para trabalhar e "desenvolver", os historiado-res vão e vêm entre as obras publicadas de outros historiado-res (o tempo de trabalho acumulado em livros, artigos etc.) eos materiais não-publicados. Estes, "quase novos", podemser denominados os vestígios do passado (as marcas que so-braram do passado: documentos, registros, artefatos etc.).

São uma mistura de vestígios conhecidos mas pouco usa-dos; vestígios novos, não-utilizados e possivelmente desco-nhecidos; e vestígios velhos, ou seja, materiais que já foramusados, mas que, em vista dos vestígios novos e/ou quasenovos descobertos, são agora passíveis de inserção em con-textos diferentes daqueles que ocupavam antes. O historia-dor pode, então, começar a organizar todos esses elementosde maneiras novas (e várias), sempre procurando a tão alme-jada "tese original". Ele começa assim a transformar os vestí-gios do que outrora foi concreto em "pensamento concreto",ou seja, em relatos dos historiadores. Nisso, o historiador lite-ralmente re-produz os vestígios do passado numa nova cate-

goria. E esse ato de trans-formação - do passado em história- é o trabalho básico do historiador.

Ernquinto lugar, os historiadores, tendo feito sua pesqui-sa, precisam então colocá-Ia por escrito. É aí que os fatoresepistemológicos, metodológicos e ideológicos voltam a en-trar em ação, inter-relacionando-se com as práticas cotidia-nas, tal qual aconteceu durante todas as fases da pesquisa.Essas pressões do cotidiano variam, é claro, mas algumas sãodadas a seguir:

1. A pressão da família e/ou dos amigos: "Ah, você não vaitrabalhar de novo no fim de semana, vai?" "Será que dápra você tirar uma folguinha disso?"

2. As pressões do local de trabalho, no qual se fazem sen-tir não só as diversas influências de diretores de faculda-de, chefes de departamento, .{:olegas e políticas institu-cionais de pesquisa, mas também (tenhamos a coragemde dizê-lo) a obrigação de lecionar.

3. As pressões das editoras no que se refere a vários fatores:Extensão. As restrições de tamanho são consideráveis e

têm seus efeitos. Pense quanto o conhecimento his-tórico poderia ser diferente se todos os livros fossemum terço mais curtos ou quatro vezes mais longos doque o "normal"!

Formato. A dimensão da página, a impressão e o projetográfico, a presença ou não de ilustrações, exercícios,bibliografia, índice etc., o fato de o texto estar ou nãoem folhas soltas e ser ou não complementado por vídeoou som gravado - tudo isso também tem efeitos.

Mercado. O que o historiador considerar seu mercadovai influenciar o que ele diz e a maneira pela qualele diz. Pense no quanto a Revolução Francesa teriade ser "diferente" para crianças do primário ou dosecundário, não-europeus, "especialistas em revolu-,ção" ou leigos curiosos, para citarmos só alguns pú-blicos diferentes entre si.

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Prazos. O tempo total de que o autor dispõe para fazer apesquisa e escrevê-Ia, mais a alocação desse tempo(uma vez por semana, um semestre de licença, os finsde semana), afeta, por exemplo, a disponibilidade dasfontes, a concentração do historiador etc. Freqüente-mente, o tipo de condição que a editora impõe comreferência à conclusão do trabalho é também crucial.

Estilo literário. O estilo (polêmico, discursivo, exube-rante, pedante, mais as combinações de tudo isso) eo uso gramatical, sintático e semântico do historia-

( dor influenciam o relato e podem ser modificadospara ajustar-se às normas da editora, ao formato deuma série etc.

Leituras críticas. As editoras enviam os originais parauma leitura crítica, e quem a faz pode talvez pedirmudanças drásticas na organização do material (estetexto, por exemplo, era de início duas vezes maislongo). Também há casos em que os chamados "lei-tores criticos" têm interesses pessoais em jogo.

Reescrita. Trata-se de algo que acontece em todos os está-gios, até o livro ir para a impressão. Às vezes, algumaspartes requerem três redações; outras vezes, são treze.Idéias brilhantes que no começo pareciam dizer tudoficam enfadonhas e apagadas quando já se tentouescrevê-Ias uma dúzia de vezes. Além disso, coisas queseriam incluídas acabam não o sendo, e, com freqüên-cia, as que o são parecem ter sido deixadas à própriasorte. Que tipo de critério se faz presente então; quan-do o escritor "trabalha" materiais lidos e anotados (mui-tas vezes imperfeitamente) tanto tempo antes?

E por aí vai. Pois bem: esses são aspectos óbvios (pensequantos fatores externos, ou seja, fatores alheios ao "passa-do", agem sobre você e influenciam o que você escreve nostrabalhos de faculdade, por exemplo), mas aqui o que sedeve enfatizar é que nenhuma de tais pressões, aliás, ne-,

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nhum dos processos comentados neste capítulo, age sobre oque está sendo relatado (por exemplo, o planejamento parauso de recursos humanos na Primeira Guerra Mundial). Maisuma vez, as discrepâncias entre passado e presente se alar-gam imensamente.

Em sexto lugar, o que se escreveu até agora foi a produ-ção de histórias. Mas os textos também precisam ser lidos -consumidos. Assim como se pode consumir bolo das maisdiferentes maneiras (devagar, depressa etc.) e numa série desituações (no trabalho, ao volante, em dieta, num casamentoetc.) e circunstâncias (você já comeu o bastante? a digestão édifícil?), nenhuma das quais se repete de maneira idêntica,assim também o consumo de um texto se dá em contextosque igualmente não vão se repetir. De maneira muito literal,não existem duas leituras idênticas. (Por vezes, fazemos ano-tações à margem de um texto e, voltando a elas tempos de-pois, não conseguimos lembrar do que se tratava. No entan-to, são exatamente as mesmas palavras na mesma página.Assim, como é que significados conservam significado?) Por-tanto, nenhuma leitura, ainda que efetuada pela mesma pes-soa, é passível de produzir os mesmos efeitos repetidamente.Isso quer dizer que os autores não têm como impingir suasintenções/interpretações ao leitor. Inversamente, os leitoresnão têm como discernir por completo tudo que os autorespretendiam. Ademais, o mesmo texto pode inserir-se primei-ro num discurso amplo e depois em outro; não existem limi-tes lógicos, e cada leitura é um escrito diferente. Esse é omundo do texto desconstrucionista, um mundo no qual qual-quer texto, em outros contextos, pode significar muitas coi-sas. Está aí "um mundo de diferença".

Contudo, essas últimas observações parecem suscitar umproblema. (Mas será que na leitura surgiu mesmo algumproblema para você? E será que esse seu problema é diferen-te do meu?) Para mim, ele está nisto: embora o que se disseacima pareça implicar que tudo é um fluxo interpretativo, a

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realidade é que "lemos" de maneira bastante previsível. Nes-se sentido, portanto, o que vem a definir as leituras? Bom,não é um consenso detalhado sobre tudo e todos; pois osdetalhes sempre flutuam livres por aí (pode-se sempre fazerque coisas específicas tenham maior ou menor significado).Mas realmente ocorrem consensos de caráter geral. Isso acon-tece por causa do poder. Aqui, voltamos à ideologia, poispode-se muito bem argumentar que o que impede os livrosde serem usados de maneira totalmente arbitrária é o fato deque certos textos estão mais próximos de outros; são menosou mais classificáveis dentro de certos gêneros ou rótulos;são menos ou mais simpáticos às necessidades que as pesso-as têm e que se expressam em textos. E assim, aprês Orwell,as pessoas encontram afinidades e referências (bibliografias,leituras recomendadas, a classificação decimal Dewey) que,em última análise, são também arbitrárias, mas que atendema necessidades mais permanentes de grupos e classes: vive-mos num sistema social, e não a esmo. Trata-se de um campocomplicado mas essencial para a compreensão, e aqui pode-ríamos mencionar textos de teóricos como Scholes Eagleton, ,Fish e Bennett. 17

Poderíamos também refletir sobre como essa situação umtanto desconcertante (o texto volúvel que na teoria não pre-cisa acomodar-se, mas que na prática o faz) atende a umaaflição interpretativa que se manifesta com freqüência emestudantes. A aflição é esta: se entendemos que a história é oque fazem os historiadores; que eles a fazem com base ~frágeis com rovaç~s; que a história é inevitavelmenteinterpretativa; que há pelõ menos meia dúzia d~' lados emcada discussão eque, or isso, a fiistoriá é relativa ... Se en-tendemos tudo isso, então~pod~~-;;=;nuit'()"1;;'m p~"Bom, se a história~parecesefSõ interpretação e11Ií1güémsa e nada rea mente, <[:iífão.iara-ü'êeStl!Ca~la? S-~ ére ativo, para que fazer história?" Trata-se de um estado deespírito que poderíamos chamar"desventura do relativismo".

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Em certo sentido, essa maneira de ver as coisas é positiva.É uma liberação, pois joga velhas certezas no lixo e possibi-lita desmascarar quem se beneficia delas. E, também em cer-to sentido, tudo é relativo (ou seja, historicista). Mas, libera-ção ou não, trata-se ainda de aIpO ue faz as essoas senti-rem-se num beco sem saída. Não há necessidade disso, en-tretanto. Desconstruirmos 7s histórias de outras pessoas épré-requisito para construirmos a nossa própria, de maneiraque dê a entender que sabemos o que estamos fazendo - ouseja, de maneira que nos faça lembrar que a história é sem-pre a história destinada a alguém. Porque, embora a lógicadiga que todos os relatos são problemáticos e relativ~questão é que alguns são ominantes e outros ficam à mar-gem. m termos 16gk~tõaõsS[õa'mesma éoisa;ãíã5,fiarea lclade, eles são diferentes; estão em hierarquias valorativa~ <f-

-.-:..------;-7"7----.- ._--'. - --(ainda que, em última aná ise, infUnda as .

Por quê? Por ue o conhecimento está relacionado ao odere porque, para atenderem a interesses dentro das formaçõessociais, os que têm mais poder distrib~ e le itimam tantoquanto po em o "con ecimento". A forma de escapar aorêlativismo na teoria é analisar assim o poder na prática. Porconseguinte, uma perspectiva relativista não precisa levar àdesesperança. Ela é o começo de um reconhecimento geral decomo as coisas parecem funcionar. Trata-se de uma emancipa-ção: de modo reflexivo, você também pode produzir história.

DA DEFINIÇÃO DE mSTÓRIA

Acabo de argumentar que, no geral, a história é o que oshistoriadores fazem. Mas então por que tanto rebuliço? A his-tória não é isso mesmo? De certa maneira, é, sim. Mas nãoexatamente. No sentido estritamente profissional, é bastantefácil descrever o ofício dos historiadores. O pro ema, entre-tanto, surge quando essê·~ig..§e ~~-W2ifFlec~a i~~~~- .•..~- - -

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se) nas relações de poder em qualquer formação social deque ele se origine. Ou seja, o problema surge quando dife-rentes pessoas, grupos e classes perguntam: "O que a históriasignifica para mim ou para nós e de que modo se pode usarou abusar dela?" É então, no campo dos usos e significados,que a história ficatãõproblemauca. "O que é a história?" setorna "Para quem é a história?", como já expliquei. O essenci-al está aí. Assim, o que a história é para mim? Eis uma defini-.•.. -----E.Q.;.

---7 A história é um discurso cambiante e problemático, tendo comopretexto um aspecto do mundo, o passado, que é produzido porum grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente (e que,em nossa cultura, são na imensa maioria historiadores assalaria-dos), que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para osoutros (maneiras que estão posicionadas em termos epistemológicos,metodológicos, ideológicos e práticos) e cujos produtos, uma vezcolocados em circulação, vêem-se sujeitos a uma série de usos eabusos que são teoricamente infinitos, mas que na realidadecorrespondem a uma gama de bases de poder que existem naque-le determinado momento e que estruturam e distribuem ao longode um espectro do tipo dominantes/marginais os significados dashistórias produzidas."

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Algumas perguntas ealgumas respostas

Tendo dado uma definição de história, quero agora trabalhá-Ia de modo que ela possa dar respostas para o tipo de per-gunta básica que freqüentemente surge com referência à na-tureza da história. Já que este é um texto curto, meus comen-tários serão breves; mas, breves ou não, espero que as res-postas que vou sugerir apontem tanto uma direção quantouma maneira para que surjam outras respostas, mais sofisti-cadas, nuançadas e adequadas. Ademais, acho que um guiacomo este (uma espécie de "manual básico de história") sefaz necessário, até porque, embora regularmente sejam le-vantadas questões sobre a natureza da história, a tendência édeixá-Ias em aberto para que possamos "concluir por nósmesmos". Ora, eu também quero isto, mas estou ciente deque, com muita freqüência, os diversos debates sobre a "na-tureza da história" são apreendidos de modo muito vago (istoé, parece haver neles uma infinidade de escolhas, ou seja,inúmeras ordenações possíveis dos elementos básicos), deforma que permanece alguma dúvida e confusão. Assim, paravariar, eis algumas perguntas e respostas.

1. Qual é a situação da verdade nos discursçs historio-gráficos?

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Page 19: JENKINS K a História Repensada

se) nas relações de poder em qualquer formação social deque e e se ori ine. u seja, o problema surge quan o i e-rentes pessoas, grupos e classes perguntam: "O que a históriasignifica para mim ou para nós e de que modo se pode usarou abusar dela?" É então, no campo dos usos e significados,que a história fica tão ro ematica. "O que é a história?" setorna "Para quem é a história?", como já expliquei. O essenci-al está aí. ~ssim, o que a história é para mim? Eis uma defini-EQ;..

-7 A história é um discurso cambiante e problemático, tendo comopretexto um aspecto do mundo, o passado, que é produzido porum grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente (e que,em nossa cultura, são na imensa maioria historiadores assalaria-dos), que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para osoutros (maneiras que estão posicionadas em termos epistemológicos,metodológicos, ideológicos e práticos) e cujos produtos, uma vezcolocados em circulação, vêem-se sujeitos a uma série de usos eabusos que são teoricamente infinitos, mas que na realidadecorrespondem a uma gama de bases de poder que existem naque-le determinado momento e que estruturam e distribuem ao longode um espectro do tipo dominantes/marginais os significados dashistórias produzidas. IX

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Algumas perguntas ealgumas respostas

Tendo dado uma definição de história, quero agora trabalhá-Ia de modo que ela possa dar respostas para o tipo de per-gunta básica que freqüentemente surge com referência à na-tureza da história. Já que este é um texto curto, meus comen-tários serão breves; mas, breves ou não, espero que as res-postas que vou sugerir apontem tanto uma direção quantouma maneira para que surjam outras respostas, mais sofisti-adas, nuançadas e adequadas. Ademais, acho que um guiaorno este (uma espécie de "manual básico de história") se

faz necessário, até porque, embora regularmente sejam le-vantadas questões sobre a natureza da história, a tendência édeixá-Ias em aberto para que possamos "concluir por nósmesmos". Ora, eu também quero isto, mas estou ciente de)ue, com muita freqüência, os diversos debates sobre a "na-

tureza da história" são apreendidos de modo muitovago (isto" parece haver neles uma infinidade de escolhas, ou seja,inúmeras ordenações possíveis dos elementos básicos), deforma que permanece alguma dúvida e confusão. Assim, paravariar, eis algumas perguntas e respostas.

1. Qual é a situação da verdade nos discursos historío-gráficos?

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