jane eyre - charlotte brontë
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Charlotte Brontë
JANE EYRE
Tradução Marcos Santarrita
Francisco Alves
Título original. Jane Eyre
Revisão Tipográfica: Márcia Cherman, Jorge A. Uranga
1983
Todos os direitos desta tradução reservados à:
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S/A
Rua Sete de Setembro, 177 — Centro 20050 — Rio de Janeiro — RJ
DAS ABAS DO LIVRO:
As irmãs Brontë - Charlotte e Emily sobretudo — constituem um exemplo clássico do
que se quer dizer quando se fala na palavra gênio. Filhas de um pároco de aldeia, criadas
numa região rural da província inglesa de Yorkshire - que até hoje guarda algumas
semelhanças com o nordeste brasileiro - dificilmente essas moças simples poderiam ter a
experiência de vida e sociedade que demonstram, Charlotte em seus famosos Jane Eyre e
Shirley, e Emily não menos célebre Morro dos Ventos Uivantes. Talvez por isso haja, em ambas as autoras, uma certa ingenuidade, que leva literatos
mais esnobes a fazerem-lhes restrições; mas pode-se dizer que é por isso mesmo que suas
obras são tão famosas. O público sabe reconhecer o autêntico, e não vai atrás de
sofisticações gratuitas, artifícios literários ou filosóficos, filigranas de beletrista. Jane Eyre é uma narrativa simples, direta — a história de uma jovem órfã pobre e
nada bonita (como a própria Charlotte, que por pouco não chegava a ser feia), e sua luta
em busca de afirmação e dignidade, numa época - a vitoriana — e num país - a Inglaterra
de até hoje — onde o sentimento de classe se ergue como uma barreira imposta não
apenas de cima para baixo, mas também de baixo para cima. Quando se fala em literatura vitoriana, geralmente se pensa em hipocrisia e
moralismo, características que marcaram sobretudo essa época da história inglesa.
Acontece, porém, que o grande artista jamais se submete às fronteiras e preconceitos de
sua época: quando não sabe, intui "que os valores morais mudam, e que o que é crime
hoje pode vir a ser obrigatório amanhã - é isso que constitui a sua grandeza. A uma primeira leitura, Jane Eyre parece conformar-se inteiramente aos padrões
morais de sua época. A heroína, ao descobrir que seu amado é casado com uma louca,
impõe um terrível freio à sua paixão e vai-se embora, com a afirmação de que as leis são
feitas para os momentos de crise, e não podem ser mudadas nesses momentos — uma
total inversão, bem vitoriana, do bom senso, como se os homens fossem feitos para as leis,
e não o contrário. Mas, no fim, mesmo sem saber que o amado está desimpedido, ela
volta, disposta a arrostar todo o desprezo de sua sociedade. Assim, a contenção e a
obediência iniciais servem apenas para acentuar a coragem de sua decisão final. Se há
uma concessão, na eliminação do entrave, isso parece resultar mais de necessidades
estruturais do romance do que de coerções morais. Para um vitoriano convicto, nem por
isso o crime de Jane Eyre seria menor. De qualquer modo, Jane Eyre, que a autora publicou inicialmente sob um
pseudônimo masculino - Currer Bell — tornou-se um dos romances mais lidos da
literatura universal, vencendo inclusive em reedições obras de autores mais prestigiados
da época. Já mereceu pelo menos duas versões cinematográficas, uma americana e uma
inglesa, além de uma grande superprodução da televisão BBC inglesa. E o seu segredo é
um só: como todo grande romance, é a história de uma educação, o que significa de uma
luta pela liberdade. Marcos Santarrita
A
W.M. Thackeray, Esq.,
esta obra é
respeitosamente
dedicada
pelo Autor*
* As primeiras edições de Jane Eyre foram publicadas sob um pseudônimo — Currer Bell —
masculino, e assim, as referências de Charlotte Brontë a si mesma, na dedicatória e nos prefácios,
são feitas neste gênero. — N.T.
PREFÁCIO
COMO ERA desnecessário um prefácio à primeira edição de Jane Eyre, não
apresentei nenhum; esta segunda edição, porém, exige algumas palavras, tanto
de reconhecimento como de observações variadas.
Devo agradecimentos a três setores.
Ao Público, pela indulgente atenção que prestou a uma história simples, de
poucas pretensões.
À Imprensa, pelo bom espaço que seu honesto sufrágio abriu a um aspirante
obscuro.
Aos meus Editores, pela ajuda que seu tato, energia, senso prático e franca
liberalidade concederam a um Autor desconhecido e sem recomendações.
A Imprensa e o Público são apenas vagas personificações para mim, e devo
agradecer-lhes em termos vagos; mas meus Editores são bem definidos; como o
são alguns críticos generosos, que me encorajaram como só os homens de grande
coração e espírito elevado sabem encorajar um estranho esforçado; a eles, isto é,
a meus Editores e aos seletos críticos, digo cordialmente: Cavalheiros, agradeço-
lhes de coração.
Tendo assim reconhecido o que devo àqueles que me ajudaram e aprovaram,
volto-me para outra classe: uma classe pequena, até onde sei, mas que nem por
isso deve ser esquecida. Refiro-me aos poucos tímidos ou descontentes que
duvidam da tendência de livros como Jane Eyre: a cujos olhos tudo que seja
incomum é errado; cujos ouvidos detectam em cada protesto contra a
intolerância — mãe do crime — um insulto à religião, essa regente de Deus na
terra. Eu gostaria de sugerir a esses insatisfeitos algumas distinções óbvias; de
lembrar-lhes certas verdades simples.
Convencionalismo não é moralidade. Farisaísmo não é religião. Atacar os
primeiros não é agredir as últimas. Arrancar a máscara do rosto de um fariseu
não é erguer mão ímpia contra a Coroa de Espinhos. Essas coisas e fatos são
diametralmente opostos; tão distintos como o vício da virtude. As pessoas muitas
vezes os confundem, e não se deve confundi-los; não se deve tomar a aparência
pela verdade; não se deve substituir o credo de Cristo, que redime o mundo, por
tacanhas doutrinas humanas, que apenas tendem a ensoberbecer e glorificar uns
poucos. Existe — repito — uma diferença; e é uma boa ação, e não má,
estabelecer ampla e< nitidamente uma linha de separação entre eles.
O mundo talvez não goste de ver essas idéias separadas, pois está
acostumado a confundi-las; achando conveniente fazer a aparência externa
passar por valor autêntico — fazer paredes caiadas passarem por santuários
limpos. Talvez odeie aquele que ousa examinar e denunciar, descascar o dourado
e mostrar o vil metal por baixo, penetrar no sepulcro e revelar relíquias carnais;
porém, por mais que o odeie, tem uma dívida com ele.
Ahab não gostava de Miquéias, porque jamais profetizava coisas boas a seu
respeito, só más; provavelmente gostava mais do filho bajulador de Chenaannah;
e no entanto ele poderia ter escapado a uma morte sangrenta, se tapasse os
ouvidos à lisonja e os abrisse ao conselho fiel.
Existe um homem em nossos dias cujas palavras não se destinam a acariciar
ouvidos delicados; que, em minha opinião, vem antes dos grandes da sociedade,
do mesmo modo como Imlah precedia os reis entronizados de Judá e Israel, e que
diz uma verdade tão profunda, com um poder tão semelhante ao dos profetas, tão
vital, e com uma expressão tão destemida e ousada, quanto ele. O salirista de
Feira das Vaidades é admirado em altos círculos? Não sei dizer; mas creio que,
se alguns daqueles entre os quais ele lança o fogo grego do seu sarcasmo, e
sobre os quais fulmina o raio de sua denúncia, levassem suas advertências a
sério, eles mesmos ou sua progênie escapariam ainda de um fatal Ramoth-
Gilead.
Por que me referi a este homem? Referi-me a ele, Leitor, pon que julgo ver
nele um intelecto mais profundo e mais exclusivo que o reconhecido por seus
contemporâneos; porque o encaro como o primeiro regenerador social de nossa
época, como o próprio líder daquele grupo ativo que devolveria a retidão ao
distorcido sistema de coisas; porque acho que nenhum comentarista de seus
escritos descobriu a comparação que lhe serve, os termos que caracterizam
corretamente seu talento. Dizem que ele é como Fielding; falam de seu espírito,
seu humor, seus poderes cômicos. Ele se assemelha a Fielding como uma águia a
um abutre; Fielding curva-se até a carniça, mas Thackeray não. Seu espírito é
brilhante, seu humor atraente, mas ambos mantêm com seu gênio sério a mesma
relação que o simples reflexo do relâmpago na borda de uma nuvem de verão
mantém com a mortal faísca elétrica em seu bojo. Finalmente, referi-me ao Sr.
Thackeray porque a ele — se ele aceitar o tributa de um total estranho —
dediquei esta segunda edição de Jane Eyre.
CURRER BELL
21 de dezembro de 1847
NOTA À TERCEIRA EDIÇÃO
VALHO-ME da oportunidade que me apresenta uma terceira edição de Jane
Eyre, de novamente dirigir uma palavra ao Público, para explicar que meu direito
ao título de romancista se apóia nesta obra apenas. Assim, se a autoria de outras
obras de ficção me tem sido atribuída, trata-se de honra concedida a quem não a
merece, e, em conseqüência, subtraída a quem justamente devida.
Esta explicação servirá para corrigir enganos que talvez já se tenham
cometido, e para prevenir futuros erros.
CURRER BELL
13 de abril de 1848
CAPÍTULO 1
NÃO HAVIA possibilidade de dar um passeio naquele dia. Na verdade, pela
manhã, tínhamos andado durante uma hora entre os arbustos desfolhados; mas
depois do jantar (a Sra. Reed jantava cedo, quando não tinha visitas), o frio vento
do inverno trouxera consigo nuvens tão sombrias, e uma chuva tão penetrante,
que não se podia pensar em mais exercícios ao ar livre.
Isso me agradava; jamais gostara de longas caminhadas, especialmente em
tardes frias; era terrível para mim voltar à casa no gélido crepúsculo, com os
dedos das mãos e dos pés congelados, o coração entristecido pelas repreensões de
Bessie, a babá, e humilhada pela consciência de minha inferioridade física em
relação a Eliza, John e Georgiana Reed.
Os ditos Eliza, John e Georgiana reuniam-se agora em torno da mãe, na sala
de estar: ela, reclinada num sofá diante da lareira, com seus queridos em volta (no
momento nem brigando nem chorando), parecia inteiramente feliz. A mim,
proibira-me de juntar-me ao grupo, dizendo que "Lamentava a necessidade de
manter-me à distância; mas enquanto não falasse com Bessie e não descobrisse
por si própria se eu tentava seriamente adquirir uma natureza mais sociável e
infantil, maneiras mais atraentes e alegres — algo mais leve, mais franco, mais
natural, por assim dizer — realmente tinha de me excluir dos privilégios
destinados apenas a crianças contentes e felizes".
— Que foi que Bessie disse que eu fiz? — perguntei.
— Jane, eu não gosto de objeções e perguntas; além disso, existe alguma
coisa de realmente desagradável numa criança que se dirige aos mais velhos dessa
forma. Sente-se em alguma parte; c enquanto não souber falar de um modo
agradável, fique calada.
Havia uma pequena sala de desjejum vizinha à sala de estar, e me esgueirei
para lá. A sala continha uma biblioteca; logo me apoderei de um volume,
cuidando de que fosse um livro cheio de figuras. Subi para o batente da janela;
recolhendo os pés, sentei-me de pernas cruzadas, como um turco; e, tendo quase
fechado a cortina de morim vermelho, fiquei abrigada em duplo retiro.
As dobras de tecido escarlate tapavam minha visão à direita; à esquerda,
estavam as límpidas lâminas de vidro, que me protegiam, mas não me separavam,
do melancólico dia de novembro. A intervalos, quando virava as páginas do livro,
eu estudava o aspecto daquela tarde de inverno. À distância, ela apresentava uma
pálida cortina de neblina e nuvem; perto, um cenário de grama molhada, com a
chuva incessante açoitando selvagemente, impelida por uma longa e lamentosa
ventania.
Retornava a meu livro — a História dos Pássaros Britânicos, de Bewick: com
o texto, importava-me pouco, em geral; e no entanto, havia certas páginas de
introdução que, apesar de criança, eu não podia passar inteiramente por cima.
Eram as que tratavam das áreas de aves marinhas; das "solitárias rochas e
promontórios" só por elas habitados; da costa da Noruega, pontilhada de ilhas
desde o extremo sul, as Lindeness, ou Naze, até o Cabo Norte...
Onde o Mar do Norte, em enormes redemoinhos,
Fervilha em torno das nuas e melancólicas ilhas
Da distante Thule; e a vaga do Atlântico
Se despeja entre as tempestuosas Hébridas.
Tampouco poderia eu deixar de notar a sugestão das sombrias praias da
Lapônia, Sibéria, Spitzbergen, Nova Zembla, Islândia, Groenlândia, com "o vasto
círculo da Zona Ártica, e aquelas desoladas regiões de lúgubre espaço — aquele
reservatório de gelos e neves, onde firmes campos de gelo, acumulados por
séculos de invernos, vitrificados em alturas alpinas, cercam o pólo, e concentram
os múltiplos rigores do frio extremo". Desses reinos brancos como a morte eu
formava uma idéia própria: sombria, como todas as idéias mal compreendidas que
pairam difusas no cérebro de uma criança, mas estranhamente impressionante. As
palavras naquelas páginas de introdução se relacionavam com as sucessivas
vinhetas, e davam significado à rocha que se erguia solitária num mar de ondas e
espuma; ao barco despedaçado encalhado numa costa deserta; à lua fria e
espectral que espiava por entre barras de nuvens um náufrago afundando.
Não sei dizer que sentimento rondava aquele cemitério solitário, com sua
lápide inscrita; seu portão, suas duas árvores, seu baixo horizonte, rodeado por um
muro quebrado, e seu crescente recém-saído, testemunhando a hora do entardecer.
Os dois navios retardados num mar entorpecido, eu julgava serem fantasmas
marinhos.
O demônio levando a mochila de ladrão às costas, eu passava por cima
rapidamente: era motivo de terror.
O mesmo acontecia com a coisa negra, de chifres, sentada à parte num
rochedo, vigiando a distante multidão que cercava um patíbulo.
Cada figura contava uma história; muitas vezes misteriosa para meu
entendimento não desenvolvido e meus sentimentos imperfeitos, mas apesar disso
sempre de um profundo interesse:' tão interessante mesmo quanto as histórias que
Bessie às vezes contava nas noites de inverno, quando acontecia estar de bom
humor; quando, tendo trazido sua tábua de passar para o quarto das crianças,
deixava que nos sentássemos ao redor, e enquanto aprontava os babados de renda
da Sra. Reed, e pregueava as abas de suas toucas de dormir, alimentava nossa
ávida atenção com trechos de amor e aventura extraídos de velhos contos de fadas
e de baladas ainda mais antigas; ou (como descobri numa época posterior) das
páginas de Pamela e Henry, Conde de Moreland.
Com Bewick sobre os joelhos, eu me sentia feliz então; feliz pelo menos à
minha maneira. Temia apenas a interrupção, e essa veio cedo demais. A porta da
sala de desjejum abriu-se.
— Bah! Senhora Pateta! — exclamou a voz de John Reed; depois ele parou,
achou o quarto aparentemente vazio.
— Onde diabos está ela? — continuou. — Lizzy! Georgy! (chamando suas
irmãs). Jane não está aqui, diga a mamãe que ela saiu para a chuva... animal ruim!
"Ainda bem que corri a cortina", eu pensava, e desejava ardentemente que ele
não descobrisse o meu esconderijo; e John Reed não o descobriria por si mesmo;
não tinha nem a vista nem a mente rápidas; mas Eliza acabava de pôr a cabeça na
porta, e foi logo dizendo:
— Ela está no batente da janela, certamente, Jack.
E eu saí logo, pois temia à idéia de ser arrastada para fora pelo dito Jack.
— Que quer você? — perguntei, com desajeitada insegurança.
— Diga: "Que quer o senhor, Amo Reed" — foi a resposta. — Quero que
você venha aqui — e, sentando-se numa poltrona, sugeriu por um gesto que eu me
aproximasse e ficasse de pé à sua frente.
John Reed era um colegial de quatorze anos; quatro anos mais velho que eu,
que tinha apenas dez; grande e gordo para sua idade, tinha uma pele fosca e
doentia; grossas dobras no rosto amplo, membros pesadões e extremidades
grandes. Costumava se empanturrar à mesa, o que o tornava bilioso e o deixava
com os olhos turvos e as bochechas flácidas. Devia estar nesse momento na
escola; mas a mãe o trouxera para casa por um ou dois meses, "devido à sua saúde
delicada". O Sr. Miles, o professor, afirmava que ele passaria muito bem se
comesse menos os bolos e doces que lhe enviavam de casa; mas o coração
materno recusava uma opinião tão severa, e inclinava-se mais para a idéia mais
refinada de que a amarelidão de John se devia ao excesso de aplicação e, talvez, à
saudade de casa.
John tinha um grande afeto pela mãe e as irmãs, e uma grande antipatia por
mim. Castigava-me e maltratava-me; não duas ou três vezes por semana, nem
uma ou duas vezes por dia, mas continuamente; eu o temia com todos os meus
nervos, e cada fibra de carne em meus ossos se encolhia quando ele se
aproximava. Havia momentos em que me espantava com o terror que ele me
inspirava, porque eu não tinha nenhum recurso contra suas ameaças ou castigos;
os criados não gostavam de ofender o jovem amo tomando meu partido contra ele,
e a Sra. Reed era cega e surda a esse respeito, nunca o via me bater nem o ouvia
me maltratar, embora ele fizesse ambas as coisas de vez em quando na frente
dela; mais freqüentemente, porém, pelas suas costas.
Acostumada a obedecer a John, aproximei-me de sua cadeira: ele passou uns
três minutos dando-me a língua, até onde pôde fazê-lo sem prejuízo para as raízes
daquele órgão: eu sabia que logo me bateria, e enquanto temia o golpe, pensava
na repugnante e feia aparência daquele que terminaria por desferi-lo. Imagino se
ele leu essa idéia em meu rosto; porque, de repente, sem falar, bateu rapidamente
e com força. Eu cambaleei, e ao recuperar o equilíbrio recuei um passo ou dois de
sua cadeira.
— Isto é por sua impudência em responder à mamãe há pouco — ele disse —
e por seu jeito furtivo de se enfiar por trás das cortinas, e pela expressão que tinha
nos olhos há dois minutos, sua rata!
Acostumada aos maus tratos de John Reed, não tive idéia de responder-lhe;
minha preocupação era sobre como agüentar o golpe que certamente
acompanharia o insulto.
— Que estava fazendo atrás da cortina? — ele perguntou.
— Estava lendo. — Mostre o livro.
Voltei à janela e apanhei-o.
— Você não tem nada que pegar nossos livros; é uma dependente, mamãe
disse; não tem dinheiro; meu pai não lhe deixou nenhum; você tem de pedir
esmola, e não viver aqui com filhos de cavalheiro, como nós, e comer as mesmas
comidas que nós, e usar roupas às custas de mamãe. Agora eu vou lhe ensinar a
mexer em minhas estantes: porque elas são minhas; a casa toda me pertence, ou
pertencerá dentro de poucos anos. Fique de pé ao lado da porta, longe do espelho
e das janelas.
Obedeci, sem perceber a princípio as intenções dele; mas quando o vi erguer e
depor o livro, e levantar-se para atirá-lo, instintivamente me desviei para um lado
com um grito de alarme; e não foi sem tempo; o volume foi lançado, atingiu-me,
eu caí, batendo a cabeça na porta e ferindo-a. O corte sangrou, a dor foi aguda:
meu terror ultrapassara seu clímax; seguiram-se outros sentimentos.
— Menino mau e cruel! — eu disse. — Você é como um assassino... é como
um capataz de escravos... como os imperadores romanos!
Eu lera a História de Roma, de Goldsmith, e formara minha opinião de Nero,
Calígula, etc. Também estabelecera paralelos em silêncio, que jamais pensara em
declarar assim em voz alta.
— Quê? Quê? — ele gritou. — Ela disse isso a mim? Vocês a ouviram, Eliza
e Georgiana? Não vou dizer a mamãe? Mas primeiro...
Lançou-se de cabeça para mim, senti-o agarrar-me o cabelo e o ombro;
atacava como um desesperado. Realmente o vi como um tirano: um assassino.
Senti uma ou duas gotas de sangue de minha cabeça me escorrerem pelo pescoço,
e tive consciência de uma dor pungente: no momento, tais sensações
predominaram sobre o medo, e recebi-o num estado frenético. Não sei muito bem
o que fiz com as mãos, mas ele me chamava de "Rata! Rata!" e berrava. O socorro
estava perto, Eliza e Georgiana haviam corrido a chamar a Sra. Reed, que fora lá
para cima; e agora ela chegava ao cenário, seguida por Bessie e sua criada Abbot.
Apartaram-nos: ouvi as palavras:
— Cara! Cara! Que fúria contra o Amo John!
— Será que alguém já viu um tal imagem de furor? Então a Sra. Reed
acrescentou:
— Levem-na para o quarto vermelho e tranquem-na lá. Quatro mãos se
abateram imediatamente sobre mim, e fui levada para cima.
CAPÍTULO 2
RESISTI até o fim, coisa nova em mim, e que muito fortaleceu o mau
conceito em que Bessie e a Srta. Abbot se dispunham a ter-me. A verdade é que
eu estava um pouco fora de mim; ou antes, inteiramente fora de mim, como
diriam os franceses. Sabia que aquele instante de revolta já me tornara sujeita a
estranhas punições, e, como qualquer outro escravo rebelde, sentia-me decidida,
em meu desespero, a ir até o fim.
— Segure os braços dela, Srta. Abbot; parece uma gata brava.
— Que vergonha, que vergonha! — exclamou a criada da senhora. — Que
conduta chocante, Srta. Eyre, bater num jovem cavalheiro, filho de sua benfeitora!
Seu jovem amo.
— Amo! Quem é meu amo? Eu sou criada?
— Não; é menos que uma criada, porque não faz nada para se manter. Vamos,
sente-se, e pense melhor em sua maldade.
Haviam-me introduzido a essa altura no aposento indicado pela Sra. Reed, e
me colocado sobre um tamborete; meu impulso foi de saltar dele como uma mola,
mas os dois pares de mãos me detiveram no mesmo instante.
— Se você não se sentar quieta, terá de ser amarrada — disse Bessie. — Srta.
Abbot, empreste-me suas ligas; ela quebraria as minhas logo.
A Srta. Abbot virou-se, para privar a gorda perna da necessária ligadura. Esse
preparativo para me amarrar, e mais a ignomínia que pressupunha, tirou um pouco
de minha excitação.
— Não as tire — gritei. — Não me moverei.
Para provar o que dizia, apeguei-me ao assento com as mãos.
— Veja lá se não vai sair — disse Bessie; e quando se certificou de que eu
estava realmente cedendo, soltou-me; ela e a Srta. Abbot ficaram paradas de
braços cruzados, olhando sombria e desconfiadamente o meu rosto, como
incrédulas de minha sanidade.
— Ela nunca fez isso antes — disse finalmente Bessie, voltando-se para
Abigail.
— Mas estava o tempo todo nela — foi a resposta. — Eu já disse muitas
vezes à patroa minha opinião sobre essa menina, e ela concordou comigo. É uma
coisinha traiçoeira; nunca vi uma menina da idade dela com tanta sonsidão.
Bessie não respondeu; mas em breve, dirigindo-se a mim, disse:
— Deve saber, senhorita, que tem obrigações para com a Sra. Reed: ela a
mantém; se lhe desse as costas, a senhorita teria de ir para um asilo de indigentes.
Eu nada tinha a dizer a essas palavras; não eram novidade para mim, minhas
primeiras lembranças da vida incluíam insinuações do mesmo tipo. Essa censura à
minha dependência tornara-se uma vaga cantilena em meus ouvidos; muito
dolorosa e arrasadora, mas apenas meio inteligível. A Srta. Abbot acrescentou:
— E não deve se julgar em pé de igualdade com as Srtas. Reed e o Amo
Reed, porque a patroa tem a bondade de deixar que seja criada com eles. Eles
terão muito dinheiro, e a senhorita nenhum; cabe-lhe ser humilde e tentar tornar-
se agradável a eles.
— O que estamos dizendo é para seu bem — acrescentou Bessie, com voz
branda. — Deve tentar ser útil e agradável, e então, talvez, tenha um lar aqui; mas
se se torna apaixonada e rude, a patroa a mandará embora, tenho certeza.
— Além disso — disse a Srta. Abbot — Deus a punirá: Ele pode fulminá-la
no meio de seus faniquitos, e então onde estará ela? Vamos, Bessie, vamos deixá-
la; eu não quereria ter o coração dela por nada neste mundo. Diga suas preces,
Srta. Eyre, quando ficar sozinha; pois se não se arrepender, pode-se deixar que
alguma coisa ruim desça pela chaminé para pegá-la.
Saíram, fechando a porta, a chave, atrás de si.
O quarto vermelho era um aposento de reserva, em que muito raramente se
dormia; eu poderia dizer nunca, na verdade, a não ser quando uma invasão
incomum de visitantes em Gateshead obrigava a utilizar todas as acomodações da
casa, e no entanto, era um dos quartos maiores e mais suntuosos da mansão. Uma
cama apoiada em maciças colunas de mogno, guarnecida com cortinas de um
damasco vermelho-escuro, destacava-se como um tabernáculo no centro, e as
duas grandes janelas, com seus estores sempre fechados, ficavam meio veladas
por festões e cortinas de um tecido semelhante; o tapete era vermelho; a mesa ao
pé da cama era coberta com um tecido púrpura; as paredes, de um marrom suave,
tendendo para o róseo; o guarda-roupa, a mesa de toalete, as cadeiras, de mogno
coberto de verniz escuro. Dessas profundas sombras circundantes, emergiam altos
e brancos os colchões empilhados e os travesseiros da cama, cobertos com uma
alvíssima colcha de Marselha. Pouco menos proeminente, uma poltrona ampla e
acolchoada à cabeceira da cama, também branca, com um descansa-pés na frente,
assemelhava-se, em meus pensamentos, a um pálido trono.
Esse quarto era frio, porque raramente se acendia a lareira; silencioso, porque
ficava distante do quarto das crianças e da cozinha; solene, porque se sabia que
quase nunca se entrava ali. Só a arrumadeira entrava nos sábados, para espanar
dos espelhos e móveis o silencioso pó de uma semana; e á própria Sra. Reed, a
grandes intervalos, visitava-o para examinar o conteúdo de uma certa gaveta
secreta no guarda-roupa, onde se guardavam diversos documentos, seu estojo de
jóias e uma miniatura de seu finado marido; e nestas últimas palavras repousa o
segredo do quarto vermelho — o sortilégio que o fazia tão solitário apesar de sua
grandiosidade.
O Sr. Reed morrera havia nove anos; naquele quarto, ele exalara seu último
suspiro; ali ficara o seu corpo exposto; dali fora levado pelos agentes funerários;
e, desde aquele dia, uma sensação de lúgubre consagração protegera-o de
intrusões freqüentes.
Meu assento, ao qual Bessie e a raivosa Srta. Abbot me tinham deixado
pregada, era uma otomana baixa perto do batente de mármore da lareira; a cama
erguia-se à minha frente; à minha direita ficava o guarda-roupa alto e escuro, com
reflexos baços e fragmentados fazendo variar o lustro de seus painéis; à esquerda
ficavam as janelas com as cortinas fechadas; um grande espelho entre elas
duplicava a vazia majestade da cama e do quarto. Eu não sabia exatamente se elas
tinham fechado a porta; e quando ousei me mover, levantei-me e fui ver. Ai, sim!
Nenhum cárcere seria mais seguro. Voltando, tive de passar diante do espelho;
meu olhar fascinado explorou involuntariamente a profundidade que ele revelava.
Tudo parecia mais frio e sombrio naquele vazio visionário que na realidade; e a
estranha figurinha a olhar-me ali com um rosto e uns braços brancos pontilhando
a penumbra, e olhos reluzentes de medo movendo-se em meio à completa
quietude em volta, teve o efeito de um verdadeiro espírito; achei-a parecida com
um dos pequenos fantasmas, meio fada, meio diabinho, que as histórias noturnas
de Bessie apresentavam como brotados de solitárias encostas cobertas de fetos nas
charnecas, surgindo aos olhos de viajantes retardatários. Voltei a meu assento.
A superstição estava comigo naquele momento mas ainda não chegara o
momento de sua vitória total, eu ainda tinha o sangue quente; o ânimo de escrava
revoltada ainda me reforçava com seu irado vigor; eu tinha de desviar um fluxo de
pensamento retrospectivo antes de recuar para o sombrio presente.
Todas as violentas tiranias de John Reed, toda a soberba indiferença de suas
irmãs, toda a aversão de sua mãe, toda a parcialidade das criadas se agitavam em
minha mente perturbada como um negro depósito em um poço revolto. Por que
estava eu sempre sofrendo, sempre sendo repreendida, sempre acusada, para
sempre condenada?
Por que não agradava nunca? Por que era inútil tentar conquistar os favores de
qualquer um? Eliza, obstinada e egoísta, era respeitada. Georgiana, que tinha um
temperamento mimado, um despeito bastante acre, um porte capcioso e insolente,
era universalmente tolerada. Sua beleza, suas faces róseas, seus cachos dourados
pareciam deliciar todos que a olhavam, e comprar indenização para todas as
faltas. A John ninguém contrariava, e muito menos punia, embora ele torcesse os
pescoços dos pombos, matasse os pavõezinhos, soltasse os cachorros contra as
ovelhas, despisse as vinhas de estufa de seus frutos e quebrasse os rebentos das
plantas mais exclusivas do conservatório; e chamava à mãe de "velha", também;
às vezes a insultava por sua cor morena, idêntica à dele próprio; ignorava
grosseiramente os desejos dela; não poucas vezes rasgava e sujava suas vestes de
seda; e ainda assim era "seu queridinho". Eu não ousava cometer falta alguma;
esforçava-me por cumprir todos os deveres; e era chamada de desobediente e
chata, rabugenta e traiçoeira, de manhã ao meio-dia, de meio-dia à noite.
Minha cabeça ainda doía e sangrava da pancada e da queda; ninguém
repreendera John por me bater arbitrariamente; e porque eu me voltara contra ele,
para evitar mais violências irracionais, era objeto de opróbrio geral.
"É injusto!... Injusto!", dizia minha razão, obrigada, por aquele agônico
estímulo, a desenvolver um poder precoce, embora transitório; e uma decisão,
igualmente arrancada a força, instigava-me a algum estranho expediente para
conseguir escapar daquela opressão insuportável — como fugir de casa, ou, se
isso não fosse possível, não comer nem beber mais, e deixar-me morrer.
Como minha alma estava consternada naquela triste tarde! Como todo meu
cérebro estava em tumulto, e todo meu coração em insurreição! E no entanto, em
que escuridão, em que densa ignorância se travava a batalha mental! Eu não podia
responder à incessante pergunta íntima — por que sofria assim? Hoje, à distância
de — não direi quantos anos — vejo-o claramente.
Eu era uma discórdia em Gateshead Hall; não era como ninguém ali; nada
tinha em harmonia com a Sra. Reed ou seus filhos, ou com sua seleta vassalagem.
Se não me amavam, eu, na verdade, tampouco os amava. Não iam encarar com
afeição uma coisa que não simpatizava com nenhum deles; uma coisa
heterogênea, oposta a eles por temperamento, capacidade, propensões; uma coisa
inútil, incapaz de servir a seus interesses ou aumentar seus prazeres; uma coisa
nociva, que alimentava os germes da indignação com seu tratamento, e do
desprezo pela sua opinião. Eu sei que se fosse uma criança ativa, brilhante,
descuidada, exigente, bonita, traquina — mesmo dependente e sem amigos —, a
Sra. Reed teria tolerado minha presença com mais complacência; seus filhos
teriam sentido por mim mais cordialidade e companheirismo; os criados
tenderiam menos a fazer de mim o bode expiatório das crianças.
A claridade do dia começava a deixar o quarto vermelho; passava das quatro,
e a tarde nublada descambava para o sombrio crepúsculo. Eu ouvia a chuva ainda
açoitando continuamente a janela da escada, e o vento uivando na alameda atrás
da sala; fui ficando fria como uma pedra, e aí minha coragem afundou. O habitual
estado de humilhação, insegurança e depressão em que eu vivia se abateu, frio,
sobre as brasas de meu ardor em declínio. Todos diziam que eu era má, e talvez
fosse mesmo, que idéia tivera eu, se não a de me imaginar deixando-me morrer de
fome? Isso certamente era um crime e estava eu preparada para morrer? Ou seria
a cripta sob o coro da Igreja de Gateshead um destino convidativo? Naquela
cripta, tinham-me dito, jazia enterrado o Sr. Reed; e levada por esse pensamento a
lembrá-lo, demorei-me nisso com crescente temor. Não me lembrava dele, mas
sabia que era meu tio — irmão de minha mãe —, que me trouxera consigo, uma
criança sem pais, para sua casa; e que em seus últimos momentos exigira da Sra.
Reed a promessa de que me diária e manteria como um de seus filhos. A Sra.
Reed provavelmente considerava que tinha mantido a promessa; e tinha mesmo,
eu diria, tanto quanto lhe permitia a sua natureza; mas como poderia realmente
gostar de uma intrusa, que não era de sua raça, e sem nenhuma relação com ela,
após a morte do marido, por nenhum laço? Deve ter sido desagradável descobrir-
se presa por uma promessa arrancada de substituir a mãe de uma criança a quem
não podia amar, e ver uma estranha destoante permanentemente instalada em seu
grupo familiar.
Ocorreu-me então uma idéia singular. Não duvidava — nunca duvidei — de
que, se o Sr. Reed estivesse vivo, me trataria com bondade; e agora, sentada ali
olhando a cama branca e as paredes ensombrecidas — e ocasionalmente, também,
volvendo um olhar fascinado para o espelho de brilho baço — comecei a lembrar-
me de que tinha ouvido falar que os mortos, perturbados em suas tumbas pela
violação de seus últimos desejos, revisitavam a terra para punir os perjuros e
vingar os oprimidos; e pensei que o espírito do Sr. Reed, atormentado pelos maus
tratos à filha da irmã, podia abandonar sua morada — na cripta da igreja ou no
mundo desconhecido dos que se foram — e erguer-se à minha frente ali no
quarto. Enxuguei as lágrimas e abafei os soluços, temendo que algum sinal de dor
violenta despertasse alguma voz sobrenatural para consolar-me, ou evocasse
algum rosto aureolado, curvando-me sobre mim com estranha piedade. Senti que
essa idéia, consoladora em teoria, seria terrível se realizada; esforcei-me por
sufocá-la com toda a minha força — esforcei-me por ser firme. Afastando os
cabelos dos olhos, ergui a cabeça e tentei olhar corajosamente em volta do quarto
escuro; nesse momento, uma luz fulgiu na parede. Perguntei-me se seria um raio
de lua que penetrava por alguma abertura na veneziana. Não; o luar era parado, e
aquilo se movia; vi a luz subir deslizando para o teto e tremular acima de mim.
Posso conjeturar agora que aquele raio era, com toda probabilidade, a luz de uma
lanterna levada por alguém que atravessava o gramado; mas naquele momento,
preparada como estava a minha mente para o horror, abalados como estavam
meus nervos pela agitação, pensei que o rápido raio era o anúncio de alguma
visão próxima do outro mundo. Meu coração disparou, minha cabeça ficou
quente; encheu-me os ouvidos um som que julguei ser o bater de asas; parecia
haver alguma coisa perto de mim; sentia-me oprimida, sufocada; a resistência
cedeu; corri para a porta e sacudi a maçaneta, num esforço desesperado. Ouvi
passos que se aproximavam correndo pelo corredor externo; a chave girou, e
Bessie e Abbot entraram.
— Srta. Eyre, está doente?
— Que barulho terrível! Me penetrou até as entranhas! — exclamou a Srta.
Abbot.
— Deixem-me sair! Deixem-me ir para o quarto das crianças! — foi o meu
grito.
— Para quê? Está machucada? Viu alguma coisa? — perguntou de novo
Bessie.
— Oh! Eu vi uma luz, e pensei que vinha um fantasma. — Apoderara-me da
mão de Bessie, e ela não a retirou.
— Ela gritou de propósito — declarou Abbot, com certa repugnância. — E
que grito! Se estivesse com alguma dor forte, seria desculpável, mas era só para
nos trazer aqui; conheço os truques baixos dela.
— Que confusão é essa? — perguntou outra voz, peremptória; e a Sra. Reed
veio pelo corredor, a touca ampla esvoaçando, o vestido farfalhando
ruidosamente. — Abbot e Bessie, creio que dei ordens para que Jane Eyre fosse
deixada no quarto vermelho até que eu própria viesse vê-la.
— A Srta. Jane gritou tão alto, madame — suplicou Bessie.
— Solte-a — foi a única resposta. — Solte as mãos de Bessie, filha; não
conseguirá sair por esses meios, pode estar certa disso. Detesto artifícios,
particularmente em crianças; é meu dever mostrar-lhe que os truques não
funcionam; agora você ficará aqui uma hora mais, e só a libertarei sob a condição
de total submissão e silêncio.
— Oh, tia! Tenha piedade! Perdoe-me! Eu não agüento... que eu seja
castigada de outra forma! Morrerei se...
— Silêncio! Essa violência é quase repulsiva. — E era, sem dúvida, o que ela
sentia. A seus olhos, eu era uma atriz precoce; sinceramente, encarava-me como
um misto de paixões violentas, espírito mesquinho e perigosa duplicidade.
Tendo-se Bessie e Abbot retirado, a Sra. Reed, impaciente com a minha agora
frenética angústia e meus desenfreados soluços, empurrou-me abruptamente para
trás e me trancou, sem maiores delongas. Ouvi-a afastar-se; e pouco depois de ela
se ir, suponho que tive uma espécie de ataque, a inconsciência encerrou a cena.
CAPÍTULO 3
APROXIMA coisa de que me lembro é que despertei sentindo-me como se
tivesse tido um medonho pesadelo, e vi diante de mim um terrível clarão
vermelho, cortado por grossas barras negras. Ouvia vozes também, falando com
um som cavo, e como abafadas por uma rajada de vento ou de água: agitação,
incerteza, e uma sensação de terror que predominava sobre tudo confundiam
minhas faculdades. Logo tomei consciência de que alguém me pegava, erguendo-
me e mantendo-me sentada, e de uma maneira mais terna do que fora erguida ou
segurada antes. Recostei a cabeça num travesseiro ou braço, e me senti à vontade.
Dentro de mais uns cinco minutos, a nuvem de confusão se dissolveu; eu
sabia muito bem que estava em minha própria cama, e que o clarão vermelho era
a lareira do quarto das crianças. Anoitecera, uma vela ardia sobre a mesa, Bessie
estava ao pé da cama com uma bacia na mão, e um cavalheiro sentava-se numa
cadeira à minha cabeceira, curvando-se sobre mim.
Senti um alívio inexprimível, uma apaziguante certeza de proteção e
segurança, quando soube que havia um estranho no quarto, um indivíduo que não
pertencia a Gateshead nem era parente da Sra. Reed. Desviando o olhar de Bessie
(embora sua presença me fosse muito menos odiosa do que a de Abbot, por
exemplo, teria sido), examinei o rosto do cavalheiro, reconheci-o; era o Sr. Lloyd,
um boticário que a Sra. Reed chamava, às vezes, quando os criados estavam
doentes. Para si mesma e as crianças, ela chamava um médico.
— Bem, quem sou eu? — ele perguntou.
Pronunciei o nome dele, oferecendo-lhe ao mesmo tempo minha mão; ele a
tomou, sorrindo e dizendo:
— Vamos ficar bons pouco a pouco.
Depois, me deitou e, dirigindo-se a Bessie, disse-lhe que tivesse muito
cuidado para que eu não fosse perturbada durante a noite. Tendo dado mais
algumas instruções, e dizendo que viria novamente no dia seguinte, partiu, para
meu pesar: eu me sentia tão protegida e querida com ele ali sentado perto de
minha cabeceira; e quando fechou a porta atrás de si, todo o quarto escureceu e
meu coração afundou de novo. Uma tristeza inex-primível pesava sobre ele.
— Está com vontade de dormir, senhorita? — perguntou Bessie, baixinho.
Mal ousei responder-lhe; pois temia que a próxima frase pudesse ser rude.
— Vou tentar.
— Gostaria de beber, ou poderia comer alguma coisa?
— Não, obrigada, Bessie.
— Então eu acho que vou para a cama, pois já passa da meia-noite; mas pode
me chamar se quiser alguma coisa durante a noite.
Maravilhosa civilidade aquela! Encorajou-me a fazer uma pergunta:
— Bessie, que é que há comigo? Estou doente?
— Creio que a senhorita ficou doente de tanto chorar no quarto vermelho; vai
ficar boa logo, sem dúvida.
Ela passou para o quarto de empregada que ficava ao lado. Ouvi-a dizer:
— Sarah, venha dormir comigo no quarto das crianças; não ouso por nada
neste mundo ficar sozinha com essa pobre criança esta noite; ela poderia morrer; é
uma coisa tão estranha que tenha tido esse ataque, imagino se viu alguma coisa. A
patroa foi um pouco dura demais.
Sarah veio com ela; as duas foram para a cama; e ficaram sussurrando por
uma meia hora, antes de adormecerem. Peguei fragmentos da conversa, dos quais
pude inferir muito distintamente o principal assunto em discussão.
— Uma coisa passou por ela, toda de branco, e desapareceu.
— Com um grande cão negro atrás.
— Três batidas fortes na porta do quarto.
— Uma luz no cemitério bem em cima da cova dele. Afinal, ambas
adormeceram; o fogo e a vela se apagaram.
Para mim, as vigílias daquela longa noite passaram-se em horrível
consciência: ouvidos, olhos e mente bem tensos pelo medo, como só as crianças
podem sentir.
Nenhuma doença séria ou prolongada se seguiu a esse incidente do quarto
vermelho: apenas causou um impacto sobre meus nervos, um choque cuja
reverberação até hoje sinto. Sim, Sra. Reed, à senhora eu devo algumas medonhas
pontadas de angústia mental. Mas devo perdoá-la, pois a senhora não sabia o que
fazia: quando me atormentava o coração, julgava estar apenas extirpando minhas
más tendências.
No dia seguinte, ao meio-dia, eu estava de pé e vestida, e sentava-me envolta
num xale em frente à lareira do quarto das crianças. Sentia-me fisicamente fraca e
alquebrada; mas meu pior mal era uma inexprimível infelicidade mental; uma
tristeza que me arrancava contínuas lágrimas silenciosas. Assim que enxugava
uma gota salgada da face, logo outra surgia. E no entanto, eu sentia que devia
estar feliz, pois nenhum dos Reeds se achava ali — tinham saído todos de
carruagem com a mãe. Também Abbot costurava em outro quarto, e Bessie,
movendo-se de um lado para outro, guardando brinquedos e arrumando gavetas,
me dirigia de vez em quando uma palavra de desusada bondade. Esse estado de
coisas devia ser para mim um paraíso de paz, acostumada como estava a uma vida
de incessantes repreensões e ingrata exploração; na verdade, porém, meus nervos
despedaçados se achavam agora em tal estado, que nenhuma calma podia aliviá-
los, e nenhum prazer excitá-los agradavelmente.
Bessie descera à cozinha, e trazia consigo uma torta num certo prato de
porcelana lindamente pintado, cuja ave do paraíso, aninhada numa grinalda de
convólvulos e botões de rosa, sempre me provocava a mais entusiástica
admiração. Muitas vezes eu pedira para ter aquele prato nas mãos, a fim de
examiná-lo mais de perto, mas sempre, até então, fora julgada indigna de tal
privilégio. Aquele vaso precioso fora agora colocado em meus joelhos, e
convidavam-me cordialmente a comer a rodinha de delicada confeitaria dentro
dele. Inútil favor!, vindo, como a maioria de outros favores há muito adiados e há
muito desejados, tarde demais! Eu não podia comer a torta e a plumagem da ave,
as cores das flores pareciam estranhamente desbotadas! Afastei o prato e a torta.
Bessie perguntou se eu queria um livro. A palavra livro agiu como um estímulo
passageiro, e pedi-lhe que apanhasse As Viagens de Gulliver na biblioteca. Eu
folheara repetidas vezes esse livro, com prazer. Considerava-o uma narrativa de
fatos, e descobria nele uma veia de interesse mais profunda que a que encontrava
nos contos de fada: pois, tendo procurado em vão os duendes entre as folhas e
campânulas das dedaleiras, debaixo dos cogumelos e das trepadeiras que cobriam
os muros velhos, chegara finalmente à triste verdade de que haviam todos deixado
a Inglaterra por algum país selvagem, onde os bosques eram mais ignotos e
densos, e a população mais escassa; ao passo que, sendo Liliput e Brobdingnag,
em minha crença, sólidas partes da superfície da terra, eu não duvidava de que
poderia um dia, fazendo uma longa viagem, ver com meus próprios olhos os
minúsculos campos, casas e árvores, as diminutas pessoas, vacas, carneiros e
pássaros de um daqueles reinos; e os campos de milho da altura de uma floresta,
os enormes mastins, os gatos monstruosos, os homens e mulheres do tamanho de
torres, do outro reino. Contudo, quando aquele adorado volume me foi posto nas
mãos — quando virei suas páginas, e busquei em suas maravilhosas gravuras o
encanto que até então jamais deixara de encontrar — tudo se revelou sinistro e
lúgubre; os gigantes eram desolados gobelinos, os pigmeus malévolos e
medonhos diabinhos, Gulliver um tristíssimo viajante em regiões as mais
pavorosas e perigosas. Fechei o livro, que não ousei mais folhear, e o pus sobre a
mesa, ao lado da torta intacta.
Bessie acabava agora de espanar e arrumar o quarto, e, tendo lavado as mãos,
abriu uma certa gavetinha, cheia de esplêndidos retalhos de seda e cetim, e
começou a fazer uma nova touca para a boneca de Georgiana. E cantava,
enquanto isso; sua canção dizia:
"Nos dias em que andávamos jeito ciganos,
Muito tempo atrás".
Eu ouvira muitas vezes essa canção antes, e sempre com vivo deleite; pois
Bessie tinha uma voz doce — pelo menos, assim eu pensava. Mas agora, embora
a voz continuasse doce, eu descobria em sua melodia uma indescritível tristeza.
Às vezes, preocupada com seu trabalho, ela cantava o refrão bem baixinho, bem
arrastado: '"Muito tempo atrás" soava como a mais triste cadência de um hino
fúnebre. Ela passou para outra balada, desta vez uma realmente melancólica.
"Tenho os pés doloridos, e as pernas cansadas;
Extenso é o caminho, e as montanhas, selvagens;
Em breve virá o crepúsculo, sem lua e triste,
Sobre o caminho da pobre criança órfã.
Por que me mandaram tão longe e tão só,
Aqui onde os pântanos tudo cobrem e se amontoam
os cinzentos rochedos
Os homens têm corações duros, e só os anjos bons
Velam sobre os passos de uma pobre criança órfã.
Contudo, distante e suave, a brisa da noite sopra,
Nuvens, não há nenhuma, e claras estrelas brilham adoráveis;
Deus, em Sua misericórdia, demonstra proteção,
Conforto e esperança para a pobre criança órfã.
Mesmo que eu caísse sobre a amurada da ponte quebrada;
Ou me perdesse nos charcos, atraída por falsas luzes,
Ainda assim meu Pai, com promessas e bênçãos,
Tomaria em Seu seio a pobre criança órfã.
Há um pensamento que, por sua força, me valerá;
Mesmo privada de abrigo e família;
O céu é um lar, e um repouso não me negará;
Deus é um amigo da pobre criança órfã."
— Vamos, Srta. Jane, não chore — disse Bessie, quando acabou. Podia muito
bem ter dito ao fogo: "Não queime!" Mas como poderia adivinhar o mórbido
sofrimento do qual eu era presa? Enquanto eu chorava, o Sr. Lloyd entrou.
— Que, já de pé? — ele disse, entrando no quarto. — Bem, babá, como está
ela?
Bessie respondeu que eu ia indo muito bem.
— Então devia parecer mais animada. Venha cá, Srta. Jane. Seu nome é Jane,
não é?
— Sim, senhor; Jane Eyre.
— Bem, você esteve chorando, Srta. Eyre: pode me dizer por quê? Está
sentindo alguma dor?
— Não, senhor.
— Oh! Eu diria que ela está chorando porque não pôde ir com a patroa na
carruagem — interpôs Bessie.
— É claro que não! Ora, ela já está grandinha demais para tal criancice.
Eu também pensava assim; e, como minha auto-estima fora ferida por uma
falsa acusação, respondi prontamente:
— Eu nunca chorei por uma coisa dessas em minha vida, cdeio sair de
carruagem. Estou chorando porque me sinto infeliz.
— Oh, que vergonha, senhorita! — disse Bessie.
O bom boticário pareceu um pouco intrigado. Eu estava de pé diante dele, que
fixou os olhos em mim com muita firmeza: tinha os olhos pequenos e cinzentos,
não muito brilhantes; mas aposto que os julgaria espertos hoje; um rosto de
feições duras, mas bondoso. Tendo-me examinado à vontade, disse:
— Que a fez adoecer ontem?
— Ela levou uma queda — disse Bessie, novamente se interpondo.
— Queda? Ora, é como se fosse um bebezinho de novo! Será que ela não
consegue caminhar nessa idade? Deve ter oito ou nove anos.
— Fui derrubada — foi a explicação sem rodeios, arrancada de mim por outra
pontada de orgulho mortificado. — Mas não foi isso que me deixou doente —
acrescentei, enquanto o Sr. Lloyd se servia de uma pitada de rape.
Quando ele repunha a caixa no bolsinho do colete, ouviu-se um alto toque da
sineta que chamava para o jantar dos criados; ele sabia o que era.
— Isso é para você, babá — disse. — Pode descer. Vou ter uma conversinha
com a Srta. Jane até você voltar.
Bessie preferiria ficar, mas tinha de ir, porque a pontualidade nas refeições era
algo rigidamente imposto em Gateshead Hall.
— A queda não a deixou doente; então que foi? — prosseguiu o Sr. Lloyd,
quando Bessie saiu.
— Elas me trancaram num quarto onde há um fantasma, até a noite.
Vi o Sr. Lloyd sorrir e franzir o cenho ao mesmo tempo.
— Fantasma! Que, então você é mesmo um bebê, afinal! Tem medo de
fantasmas?
— Do do Sr. Reed eu tenho; ele morreu naquele quarto, e ficou exposto lá.
Nem Bessie nem qualquer outra pessoa entra lá à noite, se puder evitar; e foi cruel
trancar-me sozinha sem uma vela... tão cruel, que acho que jamais vou esquecer.
— Bobagem! E é isso que a faz tão infeliz? Está com medo agora, em plena
luz do dia?
— Não, mas a noite virá outra vez em breve; e além disso, eu sou infeliz...
muito infeliz, por outras coisas.
— Que outras coisas? Pode-me dizer algumas delas? Como eu desejaria
responder plenamente a essa pergunta!
Como era difícil formular qualquer resposta! As crianças podem sentir, mas
não podem analisar seus sentimentos; e embora efetuem a análise parcialmente
em pensamento, não sabem como expressar o resultado desse processo em
palavras. Temendo, contudo, perder essa primeira e única oportunidade de aliviar
minha dor compartilhando-a com alguém, eu, após uma perturbada pausa,
consegui formular uma resposta tíbia, se bem que verdadeira.
— Um dos motivos é que não tenho pai nem mãe, irmãos ou irmãs.
— Você tem uma tia e primos bondosos.
Tornei a fazer uma pausa; depois, desajeitadamente, enunciei:
— Mas }ohn Reed me derrubou, e minha tia me trancou no quarto vermelho.
O Sr. Lloyd pegou mais uma vez sua caixa de rape.
— Você não acha Gateshead Hall uma casa muito bonita? — perguntou. —
Não está muito agradecida por ter um lugar tão bom onde viver?
— Não é minha casa, senhor; e Abbot diz que tenho menos direito a estar aqui
que um criado.
— Bah! Você não pode ser tola a ponto de deixar um lugar tão esplêndido?
— Se eu tivesse qualquer outro lugar para onde ir, eu o deixaria com prazer;
mas não posso jamais sair de Gateshead até tornar-me uma mulher feita.
— Talvez possa... quem sabe? Você tem outros parentes além da Sra. Reed?
— Acho que não, senhor.
— Nenhum do lado de seu pai?
— Não sei; perguntei à Tia Reed uma vez, e ela disse que era possível que eu
tivesse alguns parentes pobres e inferiores chamados Eyre, mas nada sabia a
respeito deles.
— Se os tivesse, gostaria de ir morar com eles?
Eu refleti. A pobreza parece triste às pessoas adultas, e ainda mais às crianças;
elas não têm muita idéia da pobreza indus-triosa, trabalhadora, respeitável; só
pensam na palavra relacionada com roupas esfarrapadas, comida escassa, lareiras
sem fogo, maneiras grosseiras e vícios vis; pobreza para mim era sinônimo de
degradação.
— Não; eu não gostaria de pertencer a gente pobre — foi minha resposta.
— Nem mesmo se fossem bons com você?
Balancei a cabeça; não conseguia ver como gente pobre teria os meios de ser
bondosa, e depois, aprender a falar com eles, adotar suas maneiras, não ter
educação, crescer como uma daquelas mulheres pobres que eu via às vezes
amamentando suas crianças ou lavando suas roupas nas portas dos casebres da
aldeia de Gateshead, não, eu não era suficientemente heróica para comprar a
liberdade ao preço da casta.
— Mas serão os seus parentes tão pobres? São trabalhadores braçais?
— Não sei dizer; Tia Reed diz que, se tenho algum, devem ser uma gente
miserável; eu não gostaria de sair mendigando.
— Gostaria de ir para uma escola?
Refleti de novo; mal sabia o que era uma escola; Bessie às vezes falava nelas
como um lugar onde mocinhas se sentavam em bancos, usavam encostos e se
esperava que fossem excessivamente delicadas e precisas; John Reed odiava sua
escola e insultava seu professor; mas os gostos dele não constituíam regras para
mim, embora as histórias de Bessie sobre a disciplina escolar (recolhidas das
jovens de uma família com quem vivera antes de vir para Gateshead) fossem um
tanto apavorantes, os detalhes que ela dava de certos dons adquiridos por aquelas
mesmas moças não deixavam de ser, a meu ver, igualmente atraentes. Ela falava
de lindas pinturas de paisagens e flores executadas por elas; de músicas que
sabiam cantar e peças que sabiam tocar, de bolsas que sabiam tricotar, de livros
franceses que podiam traduzir; até que meu espírito era levado à emulação,
ouvindo-a. Além disso, a escola seria uma completa mudança; implicava uma
longa jornada, uma total separação de Gateshead, uma entrada numa nova vida.
— Eu gostaria realmente de ir para a escola — foi a audível conclusão de
minhas reflexões.
— Bem, bem, quem sabe o que pode acontecer? — disse o Sr. Lloyd,
levantando-se. — A menina deve ter uma mudança de ares e cenário —
acrescentou, falando consigo meSmo. — Não está com os nervos em boas
condições.
Bessie retornava agora; ao mesmo tempo, ouvia-se a carruagem rolando no
cascalho lá fora.
— Ê a sua patroa, babá? — perguntou o Sr. Lloyd. — Eu gostaria de falar
com ela antes de partir.
Bessie convidou-o a passar para a sala de desjejum e saiu na frente. Na
entrevista que se seguiu entre ele e a Sra. Reed, presumo pelos acontecimentos
subseqüentes que o boticário se aventurou a recomendar que me enviassem para a
escola; e a recomendação foi sem dúvida muito prontamente adotada, pois como
disse Abbot, ao discutir o assunto com Bessie, quando as duas costuravam,
sentadas, no quarto das crianças, certa noite, depois que eu já estava na cama e,
pensavam elas, adormecida:
— Apostava que a patroa estava bastante satisfeita por livrar-se de uma
criança tão aborrecida e mal-educada, que sempre parecia estar vigiando todo
mundo, e tramando coisas às escondidas.
Creio que Abbot me tomava por uma espécie de Guy Faw-kes infantil.
Nessa mesma ocasião eu soube pela primeira vez, através da comunicação da
Srta. Abbot a Bessie, que meu pai fora um pobre clérigo; que minha mãe se casara
com ele contra a vontade dos amigos, que consideravam o casamento abaixo dela;
que meu avô Reed ficara tão irritado com a desobediência dela, que a deserdara,
deixando-a sem um xelim; que um ano após o casamento de minha mãe com meu
pai, este contraíra a febre tifóide, quando visitava os pobres de uma grande cidade
fabril onde se situava seu curato, e onde a doença grassava então; que minha mãe
pegara a doença dele, e ambos haviam morrido com uma diferença de um mês.
Bessie, ao ouvir essa narrativa, suspirou e disse:
— A pobre Srta. Jane é digna de pena também, Abbot.
— Sim — respondeu Abbot — se ela fosse uma criança boazinha e bonitinha,
podia-se ter compaixão de sua miséria; mas ninguém pode se importar muito com
uma coisinha tão detestável dessas.
— Não muito, claro — concordou Bessie. — De qualquer modo, uma beleza
como a Srta. Georgiana seria mais comovente, nas mesmas condições.
— Sim, eu sou louca pela Srta. Georgiana! — exclamou a espalhafatosa
Abbot. — Queridinha! Com aqueles longos cachos e aqueles olhos azuis, e com
aquela cor tão adorável; igual-1
zinha a uma pintura! Bessie, eu gostaria de um
coelho galés para a ceia.
— Eu também... com cebola frita. Vamos, vamos descer. Desceram.
CAPÍTULO 4
DE MINHA conversa com o Sr. Lloyd, c da conferência acima relatada entre
Bessie e Abbot, recolhi bastante esperança para desejar ficar boa; parecia próxima
uma mudança — eu a desejava e esperava em silêncio. Mas demorou; dias e
semanas passaram-se; eu readquirira meu estado normal de saúde, mas não se fez
nenhuma nova alusão ao assunto sobre o qual eu meditava. A Sra. Reed às vezes
me examinava com um olhar severo, mas raramente se dirigia a mim; depois de
minha doença, traçara uma linha de separação mais acentuada que nunca entre
mim e seus filhos, designando-me um cantinho onde dormir sozinha,
condenando-me a fazer minhas refeições sozinha, e a passar todo o meu tempo no
quarto das crianças, enquanto meus primos estavam constantemente na sala de
estar. Não fez nenhuma insinuação, contudo, sobre minha ida para a escola; mas
eu sentia uma instintiva certeza de que ela não me toleraria por muito tempo sob o
mesmo teto consigo; pois seu olhar, agora mais do que nunca, quando se voltava
para mim, manifestava uma insuperável e arraigada aversão.
Eliza e Georgiana, evidentemente agindo sob ordens, falavam-me tão pouco
quanto possível; John empurrava a bochecha para fora com a língua sempre que
me via, e uma vez tentou me castigar; mas como eu no mesmo instante investi
contra ele, inflamada pelo mesmo sentimento de profunda ira e desesperada
revolta que causara minha explosão anterior, achou melhor desistir e correu de
mim, soltando pragas e jurando que eu lhe quebrara o nariz. Na verdade, eu tinha
desferido contra aquele destacado órgão um golpe tão forte, com os nós dos
dedos, quanto poderia infligir-lhe; e quando vi que isso, ou minha expressão, o
assustava, senti a maior vontade de explorar minha vantagem com decisão, mas
ele já estava com a mãezinha. Ouvi-o começar sua história, num tom lacrimoso,
contando que "aquela malcriada da Jane Eyre" voara sobre ele como uma gata
brava; foi contido um tanto duramente:
— Não me fale dela, John, eu lhe disse para não se aproximar dela, não é
digna de atenção. Não gosto que nem você nem suas irmãs se associem com ela.
Neste ponto, debruçando-me sobre o corrimão, eu gritei de repente, e sem
pensar de modo algum em minhas palavras:
— Eles não são dignos de se associar comigo.
A Sra. Reed era uma mulher um tanto gorda; mas, ao ouvir essa estranha e
audaciosa declaração, correu lepidamente escada acima, arrastou-me como um pé
de vento para o quarto das crianças, e espremendo-me contra minha cama,
desafiou-me em voz enfática a levantar-me daquele lugar, ou a falar uma única
sílaba, durante o resto do dia.
— Que diria o Tio Reed à senhora, se estivesse vivo? — foi a minha pergunta,
dificilmente voluntária. Digo dificilmente voluntária porque foi como se a língua
pronunciasse as palavras sem o consentimento da vontade; era algo em mim,
sobre o qual eu não tinha controle, que falava.
— Quê? — disse a Sra. Reed, contendo a voz; seus olhos geralmente frios,
comedidos, cinzentos, ficaram perturbados com uma expressão de temor; ela
retirou a mão de meu braço e me fitou como se realmente não soubesse se eu era
uma criança ou um demônio. Eu estava agora disposta a tudo.
— Meu Tio Reed está no céu, e pode ver tudo que a senhora faz e pensa; e o
mesmo acontece com papai e mamãe; eles sabem que a senhora me tranca o dia
inteiro, e que me deseja morta.
A Sra. Reed logo se recuperou, sacudiu-me com força, deu-me tapas nos
ouvidos, e depois me deixou sem uma palavra. Bes-sie preencheu o hiato com
uma homilia de uma hora de duração, na qual provou sem sombra de dúvida que
eu era a criança mais malvada e perversa já criada debaixo de um teto. Eu quase
acreditava nela, pois só sentia na verdade maus sentimentos inchando-me o peito.
Novembro, dezembro e metade de janeiro passaram-se. O Natal e o Ano-novo
foram comemorados em Gateshead Hall com a costumeira animação festiva;
haviam-se trocado presentes, e dado jantares e festas noturnas. Eu fui excluída de
todos os prazeres, é claro; minha parte da alegria consistiu em assistir à arrumação
diária de Eliza e Georgiana, e vê-las descer para a sala de estar, embonecadas em
vestidos de musselina e faixas escarlate, os cabelos elaboradamente cacheados; e
depois, em ouvir o som do piano ou da harpa lá embaixo, as idas e vindas do
mordomo e do lacaio, o tinir dos copos e da louça quando se serviam as bebidas,
o zumbido fragmentário das conversas quando as portas da sala de visita se
abriam e fechavam. Quando me cansava dessa ocupação, retirava-me do alto da
escada para o solitário e silencioso quarto das crianças; ali, apesar de um pouco
triste, não me sentia infeliz. Para falar a verdade, não tinha a menor vontade de
juntar-me aos outros, pois entre eles raramente me notavam; e se Bessie ao menos
fosse boa e amigável, eu acharia um deleite passar as noites tranqüilamente com
ela, em vez de passá-las sob o formidável olhar da Sra. Reed, numa sala cheia de
damas e cavalheiros. Mas Bessie, assim que vestia suas jovens damas, costumava
retirar-se para as animadas regiões da cozinha e do quarto do chefe dos criados,
geralmente levando a vela consigo. Eu então me sentava com minha boneca nos
joelhos, até que o fogo morria, olhando de vez em quando em redor para
assegurar-me de que nada pior que eu mesma assombrava o quarto escuro; e
quando as brasas se reduziam a um rubro mortiço, despia-me às pressas, puxando
os cordões e laços o melhor que podia, e buscava refúgio do frio e da escuridão
em meu catre, para o qual sempre levava minha boneca; os seres humanos
precisam amar alguma coisa, e, na falta de objetos mais dignos de afeição, eu
conseguia encontrar prazer amando e acariciando uma desbotada imagem pintada,
esfarrapada como um espantalho em miniatura. Intriga-me hoje lembrar-me com
que absurda sinceridade eu adorava àquele pequeno brinquedo, meio imaginando-
o vivo e capaz de sensações. Eu não podia dormir se não tivesse a boneca envolta
em minha camisola; e quando ela lá estava, protegida e aquecida, eu me sentia
relativamente feliz, julgando-a igualmente feliz.
Longas pareciam as horas em que eu esperava a partida das pessoas, e ficava à
escuta do som dos passos de Bessie na escada. Às vezes ela vinha no intervalo
para pegar o dedal ou a tesoura, ou talvez para trazer-me algo à guisa de ceia —
um bolo ou um pudim de queijo — e então se sentava na cama enquanto eu
comia, e quando eu acabava, ela ajeitava os cobertores à minha volta, beijava-me
duas vezes e dizia:
— Boa-noite, Srta. Jane.
Quando era assim bondosa, Bessie me parecia a melhor, a mais bonita, a mais
bondosa pessoa do mundo; e eu desejava intensamente que ela sempre fosse tão
agradável ou amigável, e jamais me apoquentasse, ou ralhasse comigo, ou me
sobrecarregasse de trabalho, como muitas vezes costumava fazer. Acho que
Bessie Lee deve ter sido uma moça de boas tendências naturais, pois era esperta
em tudo que fazia, e tinha um jeito notável para contar histórias; pelo menos, era
o que eu achava da impressão que me causavam suas histórias da carochinha. Era
bonita também, se minhas lembranças de seu rosto e pessoa são corretas. Lembro-
a como uma jovem esbelta, de cabelos negros, olhos negros, feições muito bonitas
e uma tez boa e clara; mas tinha um temperamento caprichoso e brusco, e idéias
indiferentes do princípio da justiça; mesmo assim como era, eu a preferia a
qualquer outra pessoa em Gateshead Hall.
Era a 15 de janeiro, cerca de nove horas da manhã. Bessie descera para o
desjejum; meus primos ainda não tinham sido chamados pela mãe; Eliza punha
sua touca e um quente avental de jardim para ir alimentar suas galinhas — uma
ocupação de que gostava, e não menos de vender os ovos para a governanta e
amealhar o dinheiro assim obtido. Tinha uma vocação para o comércio e uma
acentuada propensão para a poupança — demonstradas não apenas na venda de
ovos e frangos, mas também nas duras negociações que fazia com o jardineiro
sobre raízes de flores, sementes e mudas de plantas — tendo aquele empregado
ordens da Sra. Reed para comprar da jovem todos os produtos de seu canteiro que
ela desejasse vender; e Eliza
teria vendido os cabelos da cabeça se pudesse obter um bom lucro com isso.
Quanto ao seu dinheiro, ela primeiro o escondera em estranhos recantos, envoltos
em trapos ou em velhos papelões enrugados; mas, como alguns desses
esconderijos foram descobertos pela arrumadeira, Eliza, temendo um dia perder
seu valioso tesouro, consentiu em confiá-lo à mãe, a uma taxa de juros usurária —
cinqüenta ou sessenta por cento — que ela extorquia a cada trimestre, mantendo
sua contabilidade num livrinho com ansiosa precisão.
Georgiana sentava-se num banquinho alto, penteando os cabelos no espelho, e
entremeando seus cachos com flores artificiais e penas descoradas, das quais
descobrira um monte numa gaveta do sótão. Eu fazia minha cama, pois recebera
ordens estritas de Bessie para arrumá-la antes de ela voltar (pois Bessie agora
freqüentemente me usava como uma espécie de criada assistente do quarto das
crianças, para arrumar o quarto, espa-nar as cadeiras e coisas assim). Tendo
estendido a colcha e dobrado minha camisola de dormir, fui até o batente da
janela para pôr em ordem alguns livros ilustrados e móveis de bonecas espalhados
por ali; uma abrupta ordem de Georgiana, para deixar seus brinquedos em paz
(pois as minúsculas cadeiras e espelhos, os pratos e xícaras em miniatura eram de
sua propriedade), deteve meus movimentos; e então, por falta de outra ocupação,
passei a bafejar os cristais de neve que cobriam a janela, abrindo assim espaço na
vidraça para poder olhar os arredores, onde tudo estava quieto e petrificado sob a
influência de uma severa geada.
Dessa janela, viam-se o alojamento do porteiro e a estrada de carruagens, e no
momento mesmo em que eu dissolvia o bastante das prateadas ramificações que
velavam as vidraças para me permitir ver lá fora, vi os portões abrirem-se e uma
carruagem passar. Observei-a subir o caminho com indiferença; sempre vinham
carruagens a Gateshead Hall, mas nenhuma trazia jamais visitantes em que eu
estivesse interessada; parou em frente da casa, a campainha da porta vibrou alto, o
recém-chegado foi admitido. Como tudo isso nada representava para mim, minha
atenção distraída logo encontrou interesses mais animados no espetáculo de um
pequeno tordo faminto, que veio chilrear sobre os galhos da cerejeira desfolhada
pregados na parede perto do caixilho da janela. Os restos de meu desjejum de pão
e leite estavam sobre a mesa, e, tendo esfarelado um pedacinho de pão, eu puxava
o caixilho para pôr os farelos no batente, quando Bessie subiu correndo as escadas
e entrou no quarto.
— Srta. Jane, tire seu avental. Que está fazendo aqui? Lavou o rosto e as mãos
esta manhã?
Dei outro puxão, antes de responder, pois queria que o pássaro tivesse seu
pão; o caixilho cedeu, espalhou os farelos — alguns no batente de pedra, outros
no ramo da cerejeira; e então, fechando a janela, respondi:
— Não, Bessie; acabei agorinha mesmo de espanar.
— Menina encrenqueira, desmazelada! E que está fazendo agora? Está muito
corada, como se estivesse metida em alguma traquinagem; para que estava
abrindo a janela?
Fui poupada do trabalho de responder, porque Bessie parecia ter muita pressa
para ouvir explicações; ela me arrastou para a bacia, infligiu-me uma esfregadela
impiedosa, mas felizmente rápida, no rosto e nas mãos, com sabão, água e uma
áspera toalha; disciplinou-me os cabelos com uma escova dura, despiu-me o
avental, e depois, empurrando-me para o alto da escada, ordenou-me que descesse
imediatamente, pois me queriam na sala de desjejum.
Eu teria perguntado quem me queria — teria exigido saber se a Sra. Reed
estava lá; mas Bessie já se tinha ido, e fe-: chara a porta do quarto das crianças em
minha cara. Desci lentamente. Durante quase três meses, eu nunca fora chamada à
presença da Sra. Reed; confinada por tanto tempo ao quarto das crianças, as salas
de desjejum, jantar e de visitas se haviam tornado para mim regiões terríveis, nas
quais me constrangia intrometer-me.
Estava agora no vazio saguão; à minha frente ficava a porta da sala de
desjejum, e parei, intimidada e trêmula. Que miserável covardezinha tinha o
medo, engendrado pelo castigo injusto, feito de mim naquele tempo! Eu temia
voltar ao quarto das crianças, e temia seguir em frente até o parlatório; dez
minutos ali fiquei, em agitada hesitação; o soar veemente da sineta da sala de
desjejum me decidiu; eu tinha de entrar.
"Quem poderia me querer?" perguntava-me intimamente, enquanto, com as
duas mãos, girava a dura maçaneta que, por um segundo ou dois, resistiu aos
meus esforços. "Quem vou ver além da Tia Reed no aposento... um homem ou
uma mulher?" A maçaneta girou, a porta abriu-se, e passando por ela e fazendo
uma vênia, ergui os olhos para... uma pilastra negra! Assim, pelo menos, me
pareceu à primeira vista a forma reta, estreita e enlutada, parada ereta sobre o
tapete; o rosto sombrio em cima era como uma máscara esculpida, colocada sobre
a coluna à guisa de capitel.
A Sra. Reed ocupava sua costumeira cadeira diante da lareira; fez-me um
sinal para que me aproximasse; obedeci, e ela me apresentou ao pétreo estranho
com as palavras:
— Esta é a menina sobre a qual me dirigi ao senhor.
Ele — pois era um homem — volveu lentamente a cabeça para onde eu estava
parada e, tendo-me examinado com os dois olhos cinza de aparência inquisitiva,
que reluziam sob um par de hirsutas sobrancelhas, disse solenemente, numa voz
de baixo:
— É pequena; que idade tem?
— Dez anos.
— Isso tudo? — foi a duvidosa resposta; e ele prolongou seu escrutínio por
alguns minutos. Finalmente, dirigiu-se a mim:
— Seu nome, menininha?
— Jane Eyre, senhor.
Ao emitir estas palavras, ergui os olhos; ele me parecia um cavalheiro alto,
mas também eu era muito pequena; tinha feições grandes e, como todas as linhas
de sua constituição, igualmente duras e empertigadas.
— Bem, Jane Eyre, você é uma boa menina? Impossível responder a isso na
afirmativa; meu pequeno mundo tinha uma opinião contrária: fiquei calada. A
Sra. Reed respondeu por mim com um expressivo movimento de cabeça, logo
acrescentando:
— Talvez, quanto menos se disser sobre esse assunto, melhor, Sr.
Brocklehurst.
— É uma pena mesmo saber disso! Ela e eu devemos ler uma conversinha. —
E, curvando-se da perpendicular, ele instalou sua pessoa na poltrona defronte à
Sra. Reed.
— Venha cá — disse.
Atravessei o tapete; ele me colocou diretamente à sua frente. Que rosto tinha,
agora que estava quase no mesmo nível com o meu! Que narigão! E que boca! E
que dentes grandes e saltados!
— Não há nada tão triste quanto uma criança levada — começou —
especialmente uma menininha levada. Sabe para, onde vão os maus após a morte?
— Vão para o inferno — foi minha pronta e ortodoxa resposta.
— E que é o inferno? Pode me dizer isso?
— Um poço cheio de fogo.
— E você gostaria de cair nesse poço, e ficar lá queimando para sempre?
— Não, senhor.
— Que deve fazer para evitar isso?
Eu pensei por um momento; minha resposta, quando veio, era contestável:
— Devo me manter em boa saúde, e não morrer.
— Como pode se manter em boa saúde? Crianças mais novas que você
morrem diariamente. Enterrei uma criança de cinco anos há apenas um ou dois
dias... uma boa criancinha, cuja alma agora está no céu. É de se temer que não se
possa dizer o mesmo de você, se fosse chamada desta vida.
Não estando em condições de afastar a sua dúvida, apenas baixei os olhos
para os dois grandes pés plantados no tapete e suspirei, desejando estar muito
longe dali.
— Espero que esse suspiro venha do coração, e que você se arrependa de
algum dia ter sido motivo de aflição para sua excelente benfeitora.
"Benfeitora! Benfeitora!" eu disse comigo mesma. "Todos chamam a Sra.
Reed de minha benfeitora; se assim é, uma benfeitora é uma coisa desagradável."
— Você faz suas orações à noite e pela manhã? — prosseguiu meu
interrogador.
— Sim, senhor.
— Lê a Bíblia?
— Às vezes.
— Com prazer? Gosta dela?
— Gosto das Revelações, e do Livro de Daniel, e do Gênese, e de Samuel, e
um pouco do Êxodo, e algumas partes de Reis e Crônicas, e de Jó e de Jonas.
— E dos Salmos? Espero que goste deles?
— Não, senhor.
— Não? Oh, que chocante! Eu tenho um garotinho, mais novo que você, que
conhece seis Salmos de cor e quando se pergunta a ele o que prefere, comer um
pedaço de bolo de gengibre ou aprender um Salmo, responde: "Oh, o verso de um
Salmo! Os anjos cantam Salmos", ele diz. "Eu quero ser um anjinho aqui
embaixo". Aí, recebe dois bolos como recompensa por sua devoção infantil.
— Os Salmos não são interessantes — observei.
— Isso prova que você tem um coração perverso; e deve rezar a Deus para
dar-lhe um novo e limpo; para tirar-lhe seu coração de pedra e dar-lhe um de
carne.
Eu estava para propor uma questão, relativa à maneira na qual se devia
realizar essa operação para mudar meu coração, quando a Sra. Reed interveio,
mandando-me sentar; e então passou a conduzir ela própria a conversa.
— Sr. Brocklehurst, creio ter dado a entender, na carta que lhe escrevi há três
semanas, que essa menina não tem exatamente o caráter e a natureza que eu
desejaria; se o senhor recebê-la na escola de Lowood, eu ficaria satisfeita se a
superintendente e as professoras mantivessem uma severa atenção sobre ela, e,
acima de tudo, se prevenissem contra seu pior defeito, uma tendência à mentira.
Menciono isso diante de você, Jane, para que não tente enganar o Sr.
Brocklehurst.
Eu bem podia temer, bem podia detestar a Sra. Reed; pois estava em sua
natureza ferir-me cruelmente; nunca fui feliz em sua presença. Por mais
cuidadosamente que lhe obedecesse, por mais esforçadamente que lutasse para
agradar-lhe, meus esforços eram sempre repelidos, e retribuídos por sentenças
como esta acima. Ora, feita diante de um estranho, a acusação me feriu até o
coração; percebia vagamente que ela já estava apagando a esperança da nova fase
de existência a que me destinava. Sentia, embora não pudesse ter exprimido o
sentimento, que ela semeava aversão e ruindade ao longo de meu futuro caminho;
vi-me transformada, sob o olhar do Sr. Brocklehurst, numa criança manhosa,
perniciosa, e que podia eu fazer para remediar a injúria?
"Na verdade, nada", pensava, enquanto lutava para reprimir um soluço, e
enxugava às pressas algumas lágrimas, provas impotentes de minha angústia.
— A mentira é deveras um triste defeito numa criança — disse o Sr.
Brocklehurst. — É irmã da falsidade, e todos os mentirosos terão seu quinhão no
lago ardente de fogo e enxofre; mas ela será vigiada, Sra. Reed. Falarei com a
Srta. Temple e as professoras.
— Eu gostaria que ela fosse educada de uma maneira condizente com suas
perspectivas — continuou minha benfeitora. — Que se torne útil, se mantenha
humilde. Quanto às férias, ela as passará sempre, com a sua permissão, em
Lowood.
— Suas decisões são perfeitamente judiciosas, madame — respondeu o Sr.
Brocklehurst. — A humildade é uma graça cristã, e peculiarmente adequada às
alunas de Lowood; eu, por conseguinte, ordeno que se dê especial atenção ao seu
cultivo entre elas. Tenho estudado como melhor mortificar nelas o sentimento
mundano do orgulho, e ainda outro dia tive uma agradável prova de meu sucesso.
Minha segunda filha, Augusta, foi com sua mãe visitar a escola, e ao voltar
exclamou: "Oh, papai querido, como todas as moças em Lowood parecem quietas
e sem atrativos; com os cabelos penteados por trás das orelhas, aqueles longos
aventais e aqueles bolsinhos de linho cru na frente dos vestidos, quase parecem
filhos de gente pobre! E, ela disse, "olharam para meu vestido e o de mamãe
como se nunca tivessem visto um vestido de seda antes".
— Esse é o estado de coisas que eu aprovo — disse a Sra. Reed. — Se tivesse
procurado por toda a Inglaterra, dificilmente teria encontrado um sistema mais
exatamente apropriado a uma menina como Jane Eyre. Coerência, meu caro Sr.
Brocklehurst... defendo a coerência em tudo.
— Coerência, madame, é o primeiro dos deveres cristãos, e tem sido
observada em todos os arranjos relacionados com o estabelecimento de Lowood:
comida simples, roupas simples, acomodações simples, hábitos frugais e ativos:
esta é a ordem do dia na casa e seus habitantes.
— Muito correto, senhor. Posso então confiar em que essa criança será
recebida como aluna em Lowood, e ali educada em conformidade com sua
posição e perspectivas?
— Madame, pode, sim; ela será colocada naquela estufa de plantas
selecionadas, e confio em que se mostrará agradecida pelo inestimável privilégio
de sua escolha.
— Eu a mandarei, então, tão logo seja possível, Sr. Brocklehurst; porque,
garanto-lhe, sinto-me ansiosa por livrar-me de uma responsabilidade que estava se
tornando demasiado cansativa.
— Sem dúvida, sem dúvida, madame. E agora desejo-lhe um bom dia.
Voltarei a Brocklehurst Hall dentro de uma semana ou duas; meu bom amigo, o
Arquidiácono, não me permitirá deixá-lo antes disso. Mandarei à Srta. Temple o
aviso de que) deve esperar uma nova menina, para que não haja problemas para
recebê-la. Até logo.
— Até logo, Sr. Brocklehurst; lembranças minhas à Sra. e à Srta.
Brocklehurst, e a Augusta e Theodore, e ao Sr. Broughton Brocklehurst.
— Darei, madame. Menina, aqui está um livro intitulado Guia da Criança;
leia-o com preces, especialmente a parte que contém "a história da terrível e
súbita morte de Martha G..., uma menina má, dada à falsidade e à mentira".
Com estas palavras, o Sr. Brocklehurst pôs em minha mão um fino folheto
costurado numa capa, e, tendo tocado para pedir sua carruagem, partiu.
A Sra. Reed e eu fomos deixadas sozinhas. Alguns minutos se passaram em
silêncio; ela costurava, eu a observava. A Sra. Reed devia ter nessa época uns
trinta e seis a trinta e sete anos; era um mulher de constituição robusta, ombros
largos e membros fortes, não alta, e, apesar de gorda, não obesa; e bastante sólida.
Tinha a testa baixa, o queixo grande e proeminente, boca e nariz suficientemente
regulares; sob as sobrancelhas claras luziam uns olhos desprovidos de compaixão;
a pele era morena e opaca, o cabelo quase louro. Sua constituição era sadia como
de ferro — a doença nunca se aproximava dela; administradora exigente e esperta,
mantinha a casa e os arrendatários inteiramente sob controle; só os filhos, às
vezes, desafiavam sua autoridade, e sorriam dela com desprezo. Vestia-se bem, e
tinha uma presença e um porte apropriados para receber trajes elegantes.
Sentada num banquinho baixo, a alguns metros da poltrona dela eu examinava
sua figura, estudava suas feições. Nas mãos, tinha o tratado que continha a morte
súbita da Mentirosa; narrativa para a qual minha atenção fora chamada como para
uma advertência adequada. O que acabara de passar-se; o que a Sra. Reed tinha
dito sobre mim ao Sr. Brocklehurst; todo o teor da conversa deles era recente, cru,
e latejava em minha mente; eu sentira cada palavra tão agudamente quanto as
ouvira com clareza, e um fogo de ressentimento ardia agora dentro de mim.
A Sra. Reed levantou as vistas de seu trabalho, os olhos fixaram-se nos meus,
e os dedos, ao mesmo tempo, suspenderam seus ágeis movimentos.
— Vá para o seu quarto; volte para o quarto das crianças — foi a sua ordem.
Minha expressão, ou qualquer outra coisa, deve ter-lhe parecido ofensiva, pois ela
falou com extrema irritação, embora contida. Levantei-me; encaminhei-me para a
porta; tornei a voltar; fui até a janela do outro lado da sala, e depois me aproximei
dela.
Tinha de falar; fora severamente espezinhada, e tinha de retribuir, mas como?
Que força tinha eu para lançar retaliação à minha antagonista? Reuni minhas
energias e lancei-as nesta sentença sem rodeios:
— Eu não sou mentirosa: se fosse, diria que amo a senhora; mas declaro que
não a amo, detesto-a mais que a qualquer pessoa no mundo, com exceção de John
Reed; e este livro sobre a Mentirosa, a senhora deve dar à sua filha Georgiana,
pois ela é quem conta mentiras, não eu.
As mãos da Sra. Reed permaneciam paradas sobre seu trabalho inativo; seu
olhar de gelo continuava gelidamente pousado no meu.
— Que mais você tem a dizer? — ela perguntou, mais no tom que uma pessoa
dirige a um oponente adulto do que o que se usa comumente com uma criança.
Aqueles olhos dela, aquela voz, despertaram toda a antipatia que eu sentia.
Tremendo dos pés à cabeça, tomada de in-controlável excitação, continuei:
— Estou satisfeita por a senhora não ser minha parenta. Jamais a chamarei de
tia outra vez enquanto viver. Jamais virei vê-la quando for adulta; e se alguém me
perguntar o quanto gostava da senhora, e como a senhora me tratou, direi que só a
idéia da senhora me deixa doente, e que a senhora me tratou com miserável
crueldade.
— Como ousa você afirmar isso, Jane Eyre?
— Como ouso, Sra. Reed? Como ouso? Porque é a verdade. A senhora pensa
que eu não tenho sentimentos, e que posso passar sem um pouco de amor ou
bondade; mas não posso viver assim, e a senhora não tem piedade. Eu me
lembrarei de como a senhora me empurrou — me empurrou rude e violentamente
— para dentro do quarto vermelho, e me trancou lá, até o dia de minha morte,
embora eu sofresse agonias, embora eu gritasse, sufocando de desespero: "Tenha
piedade! Tenha piedade, Tia Reed!" E a senhora me fez sofrer esse castigo porque
seu perverso filho me bateu... me derrubou por nada. Direi a quem quer que me
faça perguntas essa história exata. As pessoas a julgam uma boa mulher, mas a
senhora é má, tem o coração duro. A senhora é que é mentirosa.
Antes de acabar essa resposta, minha alma já começara a se expandir, a
exultar, com a mais estranha sensação de liberdade, de triunfo, que já senti. Era
como se uma cadeia invisível se houvesse rompido, e eu tivesse lutado até uma
inesperada liberdade. Esse sentimento não era sem causa, a Sra. Reed parecia
assustada; o trabalho escorregara-lhe dos joelhos; ela erguia ambas as mãos,
balançando-se para a frente e para trás, e con-torcia mesmo o rosto, como se fosse
chorar.
— Jane, você está enganada, que é que há com você? Por que treme de modo
tão violento? Gostaria de um pouco d'água?
— Não, Sra. Reed.
— Há qualquer outra coisa que deseje, Jane? Eu lhe asseguro: quero ser sua
amiga.
— A senhora, não. A senhora disse ao Sr. Brocklehurst que eu tinha um mau
caráter, uma natureza mentirosa, e eu vou dizer a todo mundo em Lowood o que a
senhora é, e o que fez.
— Jane, você não entende essas coisas, as crianças devem ser corrigidas em
suas faltas.
— A mentira não é uma de minhas faltas —< gritei em voz alta e desesperada.
— Mas você é arrebatada, Jane, isso você tem de admitir; e agora volte ao
quarto das crianças... seja boazinha... e se deite um pouco.
— Eu não sou boazinha; não posso me deitar. Mande-me logo para a escola,
Sra. Reed, pois odeio morar aqui.
— Eu a mandarei realmente logo para a escola — murmurou a Sra. Reed,
sotto você; e pegando seu trabalho, deixou abruptamente o aposento.
Fui deixada sozinha, ali — vencedora da batalha. Era a mais dura batalha que
já travara, e a primeira vitória que conquistava. Fiquei algum tempo no tapete,
onde o Sr. Brocklehurst tinha estado, e desfrutei de minha solidão de
conquistador. Primeiro, sorri para mim mesma e me senti exultante; mas esse
prazer feroz diminuiu dentro de mim com a mesma rapidez das batidas aceleradas
de meu pulso. Uma criança não pode discutir com os mais velhos, como eu fizera
— não pode dar a seus furiosos sentimentos descontrolada vazão, como eu dera
aos meus — sem experimentar depois a pontada do remorso e o calafrio da
reação. Um monte de urzes em chamas, vivas, devoradoras, teria sido um grande
símbolo de minha mente quando acusei e ameacei a Sra. Reed; o mesmo monte,
negro e devastado depois de mortas as chamas, teria representado de modo
igualmente apropriado minha condição subseqüente, quando meia hora de silêncio
e reflexão me mostraram a loucura de minha conduta, e a melancolia de minha
odiada e odiosa posição.
Eu provara um pouco de vingança pela primeira vez. Parecia um vinho
aromático, ao ser degustado, cálido e vigoroso; o sabor que deixava depois,
metálico e corrosivo, dava-me a sensação de ter sido envenenada. De boa vontade
eu teria ido agora pedir perdão à Sra. Reed; mas sabia, em parte por experiência, e
em parte por instinto, que esse era o meio de fazê-la repelir-me com duplo
desprezo, reexcitando com isso todo impulso tuburlento de minha natureza.
De bom gosto eu exerceria alguma faculdade melhor que aquela de falar com
ferocidade — de bom gosto encontraria estímulo para algum sentimento menos
demoníaco que aquele de sombria indignação. Peguei um livro — de contos
árabes; sentei-me e tentei ler. Não tinha idéia do assunto; meus pensamentos se
interpunham sempre entre mim e a página que geralmente achava fascinante. Abri
a porta de vidro da sala de desjejum, as moitas estavam inteiramente paradas;
reinava a negra geada, intocada pelo sol ou pela brisa por toda parte. Cobri a
cabeça e os braços com a saia de meu vestido e saí para caminhar por uma parte
da plantação que era bastante isolada; mas não encontrei prazer algum nas árvores
silenciosas, nos cones dos pinheiros, nas congeladas relíquias do outono, folhas
avermelhadas varridas por ventos passados até formarem montes, agora
solidificados. Encostei-me num portão, e olhei um campo vazio onde nenhum
carneiro pastava, onde a grama curta estava queimada e esbranquiçada. Era um
dia muito cinzento; um céu por demais opaco recobria tudo; e dele flocos caíam a
intervalos, assentando-se na dura estrada e no branco prado sem se derreterem.
Fiquei ali de pé, uma criança muito infeliz, murmurando para mim mesma
repetidas vezes: "Que farei? Que farei?"
De repente, ouvi uma voz clara chamar:
— Jane Eyre, onde está você? Venha almoçar!
Era Bessie, eu sabia muito bem; mas não me movi.
— Por que não vem quando a chamam?
A presença de Bessie, comparada com os pensamentos sobre os quais eu
estivera meditando, parecia animada, mesmo estando ela, como de hábito, um
tanto irritada. A verdade é que, após meu conflito e vitória sobre a Sra. Reed, eu
não estava disposta a me preocupar muito com a raiva transitória da babá; e
estava disposta a aquecer-me na leveza juvenil de seu coração. Simplesmente pus
meus dois braços em volta dela e disse:
— Vamos, Bessie, não faça essa carranca!
A ação foi mais franca e destemida que qualquer outra que eu estivesse
habituada a me permitir. Mas, de algum modo, agradou-lhe.
— A senhorita é uma menina estranha, Srta. Jane — disse, baixando os olhos
para mim. — Uma coisinha errante, solitária. E vai para a escola, suponho.
Assenti com a cabeça.
— E não terá pena de deixar a pobre Bessie?
— E Bessie liga para mim? Está sempre me repreendendo.
— Porque a senhorita é uma coisinha esquisita, assustada, tímida. Devia ser
mais ousada.
— Quê? Para levar mais tapas!
— Bobagem! Mas a senhorita é um tanto maltratada, isto é certo. Minha mãe
disse, quando veio me ver na semana passada, que não gostaria de que uma filha
dela estivesse em seu lugar. Agora, vamos, eu tenho boas notícias para a
senhorita.
— Não creio que tenha, Bessie.
— Menina! Que quer dizer? Que olhos tristes põe em mim! Bem, mas a
patroa, as senhoritas e o amo John vão tomar chá fora esta tarde, e a senhorita
tomará chá comigo. Vou pedir à cozinheira para fazer um pequeno bolo, e depois
a senhorita me ajudará a arrumar suas gavetas, pois devo em breve arrumar suas
malas. A patroa pretende que a senhorita deixe Gateshead Hall dentro de um dia
ou dois, e a senhorita vai escolher os brinquedos que gostaria de levar consigo.
— Bessie, você tem de prometer que não ralha mais comigo até eu ir embora.
— Bem, prometo: mas procure ser uma boa menina e não tenha medo de
mim. Não se assuste quando eu por acaso falar um tanto duramente; é tão
provocante.
— Não creio que jamais venha a ter medo de você de novo, Bessie, porque
me acostumei com você; e logo terei outras pessoas a temer.
— Se a senhorita as teme, elas não gostam da senhorita.
— Como você, Bessie?
— Eu não desgosto da senhorita; creio que gosto mais da senhorita do que de
todos os outros.
— Não demonstra.
— Sua coisinha saliente! Arranjou uma maneira bastante nova de falar. Que a
torna tão ousada e corajosa?
— Ora, logo estarei longe de você, e além disso... — Ia dizer alguma coisa do
que acontecera entre mim e a Sra. Reed; mas, pensando bem, achei melhor ficar
calada sobre esse assunto.
— Quer dizer então que está feliz por me deixar?
— De modo algum, Bessie; na verdade, neste momento estou até triste.
— Neste momento! E até! Como minha senhorinha diz isso friamente! Aposto
que, se lhe pedisse um beijo agora, não me daria, diria que até preferia não dar.
— Eu a beijarei de bom gosto, abaixe a cabeça. — Bessie curvou-se, nós nos
abraçamos, e a segui para dentro de casa bastante reconfortada. Aquela tarde
passou em paz e harmonia; e à noite Bessie me contou algumas de suas mais
encantadoras histórias, e cantou algumas de suas mais doces cantigas. Mesmo
para mim, a vida tinha seus raios de sol.
CAPÍTULO 5
MAL tinham soado cinco horas na manhã do dia 19 de janeiro, quando Bessie
trouxe uma vela ao meu canto e já me encontrou desperta e quase inteiramente
vestida. Eu me levantara meia hora antes de ela entrar, lavara o rosto e vestira as
roupas à luz da meia lua que descia no horizonte, e cujos raios jorravam pela
janela estreita perto de meu catre. Ia deixar Gateshead naquele dia, por uma
diligência que passava pelos portões da propriedade às seis horas da manhã.
Bessie era a única pessoa já desperta; acendera a lareira no quarto das crianças,
onde agora preparava meu desjejum. Poucas crianças conseguem comer quando
excitadas com o pensamento de uma viagem; também eu não consegui. Bessie,
tendo insistido em vão para que eu tomasse algumas colheres do leite fervido e do
pão que preparara para mim, embrulhou alguns biscoitos num papel e os pôs em
minha mochila; depois me ajudou com a peliça e a touca, e, envolvendo-se num
xale, deixou comigo o quarto. Ao passarmos pelo quarto da Sra. Reed, ela disse.
— Não vai entrar e se despedir da patroa?
— Não, Bessie; ela veio à minha cama na noite passada, quando você desceu
para cear, e disse que eu não precisava perturbá-la pela manhã, nem a meus
primos; e disse que me lembrasse de que ela sempre foi minha melhor amiga, e
para falar dela e ser grata de acordo com isso.
— Que foi que respondeu, senhorita?
— Nada, cobri o rosto com os cobertores e me virei para a parede.
— Isso foi errado, Srta. Jane.
— Eu estava absolutamente certa, Bessie: sua patroa não tem sido minha
amiga: tem sido minha inimiga.
— Oh, Srta. Jane, não diga isso!
— Adeus a Gateshead! — gritei, quando atravessamos o saguão e saímos pela
porta da frente.
A lua sumira, e estava muito escuro; Bessie levava uma lanterna, cuja luz se
refletia nos degraus molhados e na estrada encharcada por um recente degelo.
Dura e gélida era a manhã de inverno, eu batia os dentes quando desci apressada o
caminho. Havia uma luz no alojamento do porteiro; quando chegamos lá,
encontramos a mulher do porteiro acendendo o fogo; minha mala, que fora
descida na noite anterior, estava amarrada com cordas na porta. Faltavam apenas
uns poucos minutos para as seis, e pouco depois de soar essa hora, o rolar distante
de rodas anunciou a vinda da diligência; fui para a porta e vi suas lâmpadas se
aproximando rapidamente dentro da escuridão.
— Ela vai sozinha? — perguntou a mulher do porteiro.
— Sim.
— E a que distância fica?
— Cinqüenta milhas.
— Que longa viagem! Admira-me que a Sra. Reed não receie deixá-la ir tão
longe sozinha.
A diligência se aproximava; lá estava ela, no portão, com seus quatro cavalos
e cheia de passageiros; o guarda e o cocheiro pediram pressa em voz alta;
guindaram minha mala; arrancaram-me do pescoço de Bessie, à qual eu me
apegava com beijos.
— Tenha muito cuidado com ela — Bessie gritou ao guarda, quando ele me
ergueu para colocar-me lá dentro.
— Sim, sim! — foi a resposta: bateram a porta, uma voz exclamou "Tudo
certo", e partimos. Assim me separaram de Bessie e Gateshead; assim me
lançaram para regiões desconhecidas e, segundo me parecia então, remotas e
misteriosas.
Lembro-me apenas vagamente da viagem; só sei que o dia me pareceu de um
comprimento anormal, e que parecemos rodar por centenas de milhas de estrada.
Passamos por diversas cidades, e' numa delas, uma muito grande, a diligência
parou; desatrelaram os cavalos, e os passageiros saltaram para jantar. Levaram-me
para estalagem, onde o guarda quis que eu jantasse; mas, como eu não tinha
apetite, ele me deixou numa imensa sala com uma lareira em cada ponta, um
candelabro pendente do teto e uma pequena galeria vermelha, no alto da parede,
cheia de instrumentos musicais. Ali passeei por longo tempo, sentindo-me muito
estranha, e mortalmente apreensiva com a possibilidade de alguém vir e me
seqüestrar; pois acreditava em seqüestradores, uma vez que seus feitos
freqüentemente figuravam nas crônicas de Bessie ao calor da lareira. Finalmente,
o guarda voltou, mais uma vez fui acomodada na diligência, meu protetor
retomou seu assento, tocou sua cava cometa, e lá fomos nós pela "rua de pedras"
de L...
A tarde caiu chuvosa e um tanto enevoada; ao fazer-se noite, comecei a sentir
que estávamos chegando muito longe na verdade de Gateshead: deixamos de
atravessar cidades; a paisagem mudou; grandes morros cinzentos elevavam-se no
horizonte; quando o crepúsculo se fechava, descemos um vale escuro de florestas,
e muito depois de a noite ter apagado a perspectiva ouvi um vento forte correndo
entre as árvores.
Acalantada pelo som, caí finalmente no sono; não tinha dormido muito,
quando a súbita cessação de movimento me despertou; a porta da diligência
estava aberta, e alguém parecendo uma criada lá estava de pé; vi o rosto e o
vestido dela à luz das lâmpadas.
— Há uma menina chamada Jane Eyre aqui? — ela perguntou.
Respondi: — Sim. — E então me ergueram e puseram do lado de fora;
baixaram minha mala, e a diligência imediatamente se afastou.
Eu estava rígida, por ter passado tanto tempo sentada, e atordoada com o
barulho e o movimento da diligência; recompondo meus sentidos, olhei em volta.
Chuva, vento e escuridão enchiam o ar; apesar disso, divisei vagamente um muro
diante de mim, e nele uma porta aberta; passei por essa porta com minha nova
guia: ela a fechou e trancou atrás de si. Via-se agora uma casa, ou casas — pois o
prédio estendia-se até longe — com muitas janelas, e luzes brilhando em algumas
delas; subimos um largo caminho de seixos, encharcado, e fomos admitidas numa
porta;
depois uma criada me levou por um corredor para um quarto com uma lareira,
onde me deixou sozinha.
Fiquei parada aquecendo os dedos dormentes sobre as chamas, e depois olhei
em volta; não havia nenhuma vela, mas a luz incerta da lareira mostrava, a
intervalos, paredes empapeladas, tapetes, cortinas, reluzentes móveis de mogno;
era um parlatório, não tão espaçoso ou esplêndido quanto a sala de visitas de
Gateshead, mas bastante confortável. Eu me esforçava para distinguir o tema de
um quadro na parede, quando a porta se abriu e entrou uma pessoa trazendo uma
luz; outra a seguia, logo atrás.
A primeira era uma senhora alta, de cabelos escuros, olhos escuros e uma
testa pálida e grande; tinha o corpo parcialmente envolto num xale, um rosto
grave, porte ereto.
— A menina é muito nova para ter sido mandada sozinha — ela disse, pondo
a vela numa mesa. Examinou-me atentamente por um minuto ou dois, e
acrescentou: — É melhor pô-la na cama logo; ela parece cansada. Está cansada?
— perguntou-me, pousando a mão em meu ombro.
— Um pouco, madame.
— E com fome também, sem dúvida; que coma alguma coisa antes de ir para
a cama, Srta. Miller. É a primeira vez que você deixa seus pais para vir a escola,
minha garotinha?
Expliquei-lhe que não tinha pais. Ela me perguntou há quanto tempo eles
tinham morrido; depois minha idade, qual era meu nome, se sabia ler, escrever e
coser um pouco: em seguida tocou minha face suavemente com o indicador, e
depois, dizendo que "esperava que eu fosse uma boa menina", despediu-me
juntamente com a Srta. Miller.
A senhora que eu deixara devia ter uns vinte e nove anos; a que foi comigo
parecia alguns anos mais jovem; a primeira me impressionara por sua voz,
expressão e aparência. A Srta. Miller parecia mais comum; de compleição rósea,
embora com um rosto preocupado, porte e gestos apressados, como alguém que
sempre tem muitas tarefas a fazer; parecia na verdade, o que depois descobri que
realmente era, uma professora assistente. Conduzida por ela, passei de
compartimento em compartimento, de corredor em corredor, num prédio grande e
irregular; até que, emergindo de um silêncio total e um tanto sombrio, que
impregnava aquela parte da casa que tínhamos atravessado, chegamos a um rumor
de muitas vozes, e finalmente entramos numa sala ampla e comprida, com
grandes mesas, duas em cada extremidade, sobre cada uma das quais ardia um par
de velas, e sentadas em toda a volta, em bancos, uma congregação de meninas de
todas as idades, de nove ou dez até os vinte anos. Vistas à fraca luz das velas de
sebo, pareceram-me incontáveis, embora na verdade não passassem de oitenta;
estavam uniformemente metidas em vestidos de um tecido marrom de estranho
feitio, e compridos aventais de linho cru. Era a hora de estudos; elas faziam seus
deveres do dia seguinte, e o zumbido que eu tinha ouvido era o resultado
combinado de suas murmuradas lições.
A Srta. Miller fez-me um sinal para que me sentasse num banco perto da
porta, e depois se encaminhou para a frente do comprido salão e gritou:
— Monitoras, recolham os livros de lições e os guardem!
Quatro moças altas se levantaram de diferentes mesas e, fazendo a ronda,
recolheram os livros e os levaram. A Srta. Miller deu novamente a ordem de
comando:
— Monitoras, peguem as bandejas da ceia!
As moças altas saíram e retornaram depois de algum tempo, cada uma
trazendo uma bandeja com pedaços de alguma coisa, eu não sabia o quê,
arrumados em ordem, e uma jarra de água e uma caneca no meio de cada bandeja.
Os pedaços foram distribuídos; as que queriam, tomaram um gole d'água na
caneca comum a todas. Quando chegou minha vez, bebi, porque estava com sede,
mas não toquei na comida, pois a excitação e o cansaço me deixavam incapaz de
comer: eu via agora, no entanto, que era um bolo de aveia, dividido em pedaços.
Acabada a refeição, a Srta. Miller leu as preces e a classe formou filas para
sair, duas a duas, em direção ao andar de cima. Dominada a essa altura pelo
cansaço, mal notei que tipo de lugar era o dormitório; a não ser que, como a sala
de aulas, era muito comprido. Naquela noite eu ia dormir com a Srta. Miller; ela
me ajudou a tirar a roupa; quando me deitei, dei uma olhada às longas filas de
camas, cada uma delas rapidamente tomada por duas ocupantes; em dez minutos,
a única luz se apagou; e em meio ao silêncio e à total escuridão, adormeci.
A noite passou rapidamente; eu estava cansada demais até para sonhar;
acordei apenas para ouvir o vento uivando em furiosas rajadas, e a chuva caindo
em torrentes, e para sentir que a Srta. Miller tomara seu lugar a meu lado. Quando
tornei a abrir os olhos, uma sineta forte tocava; as meninas estavam de pé e se
vestiam; o dia ainda não começara a amanhecer, e uma luz ou duas ardiam no
aposento. Também me levantei, relutantemente; estava muito frio, e me vesti o
melhor que pude, em meio aos tremores, e me lavei quando vagou uma bacia, o
que não ocorreu tão cedo, uma vez que havia uma bacia para cada seis meninas,
nos suportes existentes no meio do aposento. A sineta tocou outra vez; todas
fizeram fila, duas a duas, e nessa ordem desceram as escadas e entraram na fria e
mal-iluminada sala de aula; ali, a Srta. Miller leu as preces; depois, ordenou:
— Entrem em forma por classes.
Seguiu-se um grande tumulto por alguns minutos, durante os quais a Srta.
Miller exclamou repetidas vezes "Silêncio!" e "Ordem!" Quando diminuiu a
agitação, vi-as todas formadas em quatro semicírculos, diante de quatro cadeiras,
colocadas às quatro mesas; todas tinham livros nas mãos, e havia um livro grande,
como a Bíblia, em cada mesa, diante do assento vazio. Seguiu-se uma pausa de
alguns segundos, preenchida pelo rumor vago e baixo da multidão; a Srta. Miller
foi de classe em classe, calando esse som indefinido.
Soou uma sineta distante: imediatamente, três senhoras entraram na sala, cada
uma se dirigiu a uma mesa e tomou seu assento; a Srta. Miller assumiu a quarta
cadeira vazia, que era a mais próxima da porta, e em torno da qual se reuniam as
meninas menores; fui chamada a essa classe inferior, e colocada no fim dela.
Começavam as atividades: repetiu-se a oração do dia, e depois recitaram-se
alguns trechos das Escrituras, aos quais se sucedeu uma demorada leitura de
capítulos da Bíblia, que durou uma hora. Quando terminou esse exercício, o dia já
tinha amanhecido plenamente. A incansável sineta soou pela quarta vez, as
classes foram ordenadas e marcharam para outra sala, para o desjejum. Como eu
me sentia contente ao contemplar a perspectiva de conseguir alguma coisa para
comer! Estava quase doente de inanição, tendo comido tão pouco no dia anterior.
O refeitório era uma sala grande, de teto baixo, sombria; nas duas compridas
mesas fumegavam bacias de alguma coisa quente, que no entanto, para minha
consternação, emitiam um odor que estava longe de ser convidativo. Vi uma
manifestação geral de descontentamento quando os vapores do repasto chegaram
às narinas daquelas que deviam engoli-lo; da vanguarda da procissão, as meninas
maiores da primeira classe, ergueram-se as palavras murmuradas:
— Nojento! O mingau de aveia está queimado de novo!
— Silêncio! — ordenou uma voz, não da Srta. Miller, mas de uma das
professoras superiores, uma personagenzinha morena, elegantemente vestida, mas
de aspecto um tanto indolente, que se instalou à cabeceira de uma mesa, enquanto
uma senhora mais clara presidia a outra. Procurei em vão a que eu tinha visto na
noite anterior; não estava à vista. A Srta. Miller ocupou a outra cabeceira da mesa
à qual eu estava; e uma senhora estranha, de aparência estrangeira e idosa, a
professora de francês, como descobri mais tarde, tomou o assento correspondente
à outra mesa. Rezou-se uma longa oração, e cantou-se um hino; em seguida, uma
criada trouxe um pouco de chá para as professoras, e começou a refeição.
Faminta, e agora muito fraca, devorei uma colherada ou duas de minha porção
sem pensar em seu gosto, mas, contida a primeira ânsia de fome, percebi que
tinha diante de mim uma me-leira nauseante — mingau de aveia queimado é
quase tão ruim quanto batatas podres; a própria fome logo esmorece. As colhe-res
moviam-se lentamente; eu via cada menina provar sua comida e tentar engoli-la;
mas na maioria dos casos logo se abandonava esse esforço. O desjejum terminou,
e ninguém tinha des-jejuado. Havendo-se dado graças pelo que não tínhamos
obtido, e após cantar-se um segundo hino, o refeitório foi evacuado para a sala de
aula. Fui uma das últimas a sair, e ao passar pelas mesas, vi uma professora pegar
uma tigela de mingau e prová-la; olhou as outras; todos os rostos delas
manifestavam repugnância, e uma, a gorda, murmurou:
— Coisa abominável! Que vergonha!
Passou-se um quarto de hora antes do reinicio das lições, e nesse tempo a sala
de aula esteve em glorioso tumulto; nesse período, parecia ser permitido falar em
voz alta e mais livremente, e as meninas usavam seu privilégio. Todas as
conversas se centravam no desjejum, que todas denunciavam unanimemente.
Coitadas! Era a única consolação que tinham. A Srta. Miller era agora a única
professora na sala; um grupo de meninas maiores, de pé à sua volta, falava com
gestos sérios e carrancudos. Ouvi alguns lábios pronunciarem o nome do Sr.
Brocklehurst, ao que a Srta. Miller balançou a cabeça desaprovadoramente; mas
não fez muita força para conter a ira geral; sem dúvida, partilhava dela.
Um relógio na sala de aula bateu nove horas, a Srta. Miller deixou seu círculo
e, parada no meio da sala, gritou:
— Silêncio! Para suas cadeiras!
A disciplina prevaleceu: em cinco minutos, a confusa multidão entrou em
ordem, e um relativo silêncio calou o clamor babelesco de línguas. As professoras
das classes superiores retomaram devidamente seus postos; mas todas ainda
pareciam esperar. Enfileiradas em bancos nos lados da sala, as oitenta meninas se
sentavam imóveis e eretas: pareciam um estranho grupo, todas com os cabelos
penteados para trás, sem um cacho visível; em vestidos marrom até o pescoço e
com um lenço apertado em torno da garganta, bolsinhos de linho cru (às vezes
com a forma da mochila de um montanhês da Escócia) na frente dos vestidos,
destinados a servir como bolsa de trabalho; todas usando também meias de lã e
sapatos de camponês, fechados com fivelas. Mais de vinte das que se vestiam
desse jeito eram moças feitas, ou antes mulheres jovens; o traje assentava-lhes
mal, e dava um ar de esquisitice mesmo às mais bonitas.
Eu ainda as olhava, e também examinava de vez em quando as professoras —
nenhuma das quais me agradava exatamente, pois a gorda era um tanto grosseira,
a morena não pouco feroz, a estrangeira dura e grotesca, e a Srta. Miller, coitada!,
parecia roxa, curtida pelo tempo e vítima do excesso de trabalho — quando, meu
olhar vagando de rosto em rosto, toda a escola se levantou simultaneamente,
como movida por uma mola comum.
Que estava havendo? Eu não ouvira ordem alguma; fiquei intrigada. Antes de
recuperar os sentidos, as classes estavam novamente sentadas, mas, como todos
os olhos se voltavam agora para um ponto, os meus acompanharam a direção
geral e encontraram a personagem que me recebera na noite passada. Ela estava
parada no fundo da comprida sala, junto à lareira, pois havia fogo em cada uma
das extremidades; examinava em silêncio as duas filas de meninas, gravemente. A
Srta. Miller, aproximando-se, pareceu fazer-lhe uma pergunta, e, tendo recebido
sua resposta, voltou ao seu lugar e disse alto:
— Monitora da primeira classe, pegue os globos!
Enquanto a ordem era executada, a senhora consultada subia lentamente a
sala. Suponho que tenho um considerável órgão de veneração, pois ainda retenho
o senso de temor e admiração com que meus olhos acompanharam os passos dela.
Vista agora, em plena luz do dia, parecia alta, loura e bem feita; olhos castanhos,
com uma luz benigna nas íris e longos cílios de delicado desenho em volta,
aliviavam a brancura de sua larga fronte; em cada uma das têmporas o cabelo, de
um castanho bastante escuro, se arrepanhava em cachos redondos, de acordo com
a moda daquela época, quando nem bandos lisos nem cachos longos estavam em
moda. O vestido, também à moda da época, era de tecido púrpura, aliviado por
uma espécie de babado espanhol de veludo negro; um relógio de ouro (os relógios
não eram então tão comuns como agora) reluzia em sua cinta. Que o leitor
acrescente, para completar o quadro, feições refinadas; uma tez clara, embora
pálida; e um ar e um porte senhoriais, e terá, pelo menos tão claramente quanto as
palavras podem dá-la, a idéia correta da aparência da Srta. Temple — Maria
Temple, como posteriormente vi o nome escrito num Livro de Orações que me foi
confiado para levar à igreja.
A superintendente de Lowood (pois isto é o que era aquela senhora), tendo
tomado assento diante de um par de globos colocado numa das mesas, chamou a
primeira classe à sua volta e começou a dar uma lição de geografia; as classes
inferiores foram chamadas por suas professoras. Fizeram-se sabatinas de história,
gramática etc. durante uma hora; seguiram-se composição e aritmética, e a Srta.
Temple deu lições de música a algumas das meninas mais velhas. A duração de
cada lição era medida pelo relógio, que afinal bateu doze horas. A superintendente
se levantou.
— Quero dirigir uma palavra às alunas — disse.
Já começava o tumulto do fim das lições, mas cessou à sua voz. Ela
prosseguiu:
— Vocês tiveram esta manhã um desjejum que não conseguiram comer.
Ordenei que se sirva a todas uma merenda de pão e queijo.
As professoras olharam-na com uma espécie de surpresa.
— Isso será feito sob minha responsabilidade — ela acrescentou, num tom
explicativo para elas, e imediatamente a seguir deixou a sala.
O pão e o queijo foram afinal trazidos e distribuídos, para grande deleite e
refrigério de toda a escola. Deu-se então a ordem:
— Para o jardim!
Cada uma pôs um grosseiro chapéu de palha, com tiras de chita colorida, e um
guarda-pó de frisa cinza. Eu fui igualmente equipada e, seguindo a corrente,
cheguei ao ar livre.
O jardim era um amplo terreno cercado por muros tão altos, que excluíam
qualquer vislumbre da paisagem; uma varanda coberta de um lado e amplas
calçadas ladeava um espaço no meio, dividido em dezenas de pequenos canteiros;
esses canteiros eram designados como jardins para as alunas cultivarem, e cada
um tinha uma proprietária. Quando cheios de flores, pareceriam sem dúvida
lindos, mas agora, em fins de janeiro, tudo era seca de inverno e parda
decomposição. Eu tremia, ao ficar ali de pé e olhar em volta: era um dia
inclemente para exercícios ao ar livre — não exatamente chuvoso, mas escurecido
por uma garo-enta neblina amarela; tudo sob os pés estava ainda encharcado pelas
chuvas do dia anterior. As meninas mais fortes corriam em volta e se
empenhavam em, jogos ativos, mas várias das outras, pálidas e magras, se
reuniam em busca de abrigo e calor na varanda; e entre estas, à medida que a
densa neblina penetrava em seus trêmulos corpos, eu ouvia freqüentemente o som
de uma tosse seca.
Eu não tinha falado com ninguém ainda, nem vira ninguém tomar
conhecimento de mim; fiquei ali bastante solitária, mas estava acostumada a essa
sensação de isolamento: não me oprimia muito. Encostei-me a uma coluna da
varanda, apertei minha manta cinzenta em torno de mim e, tentando esquecer o
frio que me comia por fora, e a fome insaciada que me roia por dentro, entreguei-
me à tarefa de observar e pensar. Minhas reflexões eram demasiado fragmentárias
e indefinidas para merecerem registro. Eu mal sabia ainda onde me achava.
Gateshead e minha vida passada pareciam ter sumido, flutuando para uma
imensurável distância. O presente era vago e estranho, e sobre o futuro eu não
podia formar nenhuma conjetura. Olhei em torno o jardim, parecido a um
convento, e depois a casa — um prédio grande, metade do qual parecia cinzenta e
velha, e a outra metade bastante nova. A parte nova, que continha a sala de aula e
o dormitório, era iluminada por janelas com barras e gelosias, que lhe davam um
aspecto de igreja. Uma lápide de pedra sobre a porta trazia a seguinte inscrição:
"Instituição Lowood. — Esta parte foi construída no A.D. de.... por Naomi
Brocklehurst, de Brocklehurst Hall, neste condado." "Que sua luz brilhe de tal
modo perante os homens, que eles possam ver suas boas obras, e glorificar seu
Pai que está no Céu." S. Mat. V.16.
Li essas palavras repetidas vezes. Sentia que tinham uma explicação, e não
conseguia penetrar plenamente em seu significado. Ainda ponderava sobre o
significado de "Instituição", e tentava estabelecer uma relação entre as primeiras
palavras e o versículo das Escrituras, quando o som de uma tosse atrás de mim me
fez voltar a cabeça. Vi uma menina sentada num banco de pedra próximo.
Curvava-se sobre um livro, na leitura do qual parecia absorvida. De onde eu
estava, podia ver o título — era Rasselas — um nome que me pareceu estranho, e
conseqüentemente atraente. Ao virar uma página, ela por acaso ergueu os olhos, e
eu lhe disse diretamente:
— Esse livro é interessante? — Já formara a intenção de pedir-lhe que me
emprestasse a obra um dia.
— Eu gosto dele — ela respondeu, após uma pausa de um segundo ou dois,
durante os quais me examinou.
— De que trata? — continuei. Não sabia onde encontrara a coragem para
iniciar assim uma conversa com uma estranha.
A ação era contrária à minha natureza e hábitos; mas creio que a ocupação
dela tocou uma fibra de simpatia em alguma parte, pois eu também gostava de ler,
embora leituras de um tipo frívolo e infantil. Não podia digerir ou compreender
coisas sérias ou substanciais.
— Pode olhá-lo — respondeu a menina, oferecendo-me o livro.
Olhei. Um breve exame convenceu-me de que o conteúdo era menos
interessante que o título. Rasselas pareceu enfadonho ao meu gosto leviano. Não
vi nada sobre fadas, nada sobre gênios; nenhuma bela variedade parecia espalhar-
se pelas páginas de composição cerrada. Devolvi-o a ela, que o recebeu
tranqüilamente e, sem dizer coisa alguma, preparava-se para recair em sua
estudiosa atitude anterior. Aventurei-me a perturbá-la de novo.
— Sabe me dizer o que significa o que está escrito naquela pedra acima da
porta? Que é a Instituição Lowood?
— Esta casa onde você veio morar.
— E por que a chamam de Instituição? É de alguma forma diferente de outras
escolas?
— É em parte uma escola de caridade. Você e eu, e todo o resto, somos
crianças mantidas pela caridade. Suponho que você é órfã. Seu pai ou sua mãe
não morreu?
— Os dois morreram antes de eu poder sequer me lembrar deles.
— Bem, todas as meninas aqui perderam um ou os dois pais, e esta é chamada
uma Instituição para educação de órfãs.
— Não pagamos dinheiro nenhum? Eles nos mantêm de graça?
— Nós, os nossos amigos, pagamos quinze libras por ano cada.
— Então por que nos chamam de crianças mantidas pela caridade?
— Porque quinze libras não bastam para a pensão e o ensino, e o que falta é
fornecido por contribuições.
— Quem contribui?
— Diferentes damas e cavalheiros de natureza bondosa nesta região e em
Londres.
— Quem foi Naomi Brocklehurst?
— A dama que construiu a parte nova desta casa, como registra aquela lápide,
e cujo filho supervisiona e dirige tudo aqui.
— Por quê?
— Porque ele é o tesoureiro e administrador do estabelecimento.
— Quer dizer que esta casa não pertence àquela senhora alta que usa um
relógio, e que disse que íamos receber um pouco de pão e queijo?
— À Srta. Temple? Oh, não! Eu gostaria que pertencesse. Ela tem de
responder perante o Sr. Brocklehurst por tudo que faz. O Sr. Brocklehurst é quem
compra toda a nossa comida e todas as nossas roupas.
— Ele mora aqui?
— Não... a duas milhas de distância, numa grande casa.
— É um homem bom?
— É um clérigo, e diz-se que faz um bocado de boas obras.
— Você disse que aquela senhora alta se chamava Srta. Temple?
— Foi.
— E como se chamam as outras professoras?
— A de bochechas vermelhas chama-se Srta. Smith; cuida do trabalho e faz
corte, pois nós costuramos nossas próprias roupas, nossos vestidos e peliças, e
tudo mais; a pequenininha de cabelos negros é a Srta. Scatcherd; ela ensina
história e gramática, e ouve as recordações da segunda classe; e a que usa um
xale, e um lenço de bolso atado ao lado com uma fita, é Madame Pierrot; ela é de
Lisle, na França, e ensina francês.
— Você gosta das professoras?
— Bastante.
— Gosta da morena, e de Madame... Não consigo pronunciar o nome dela
como você.
— A Srta. Scatcherd é afobada... você deve ter cuidado para não ofendê-la;
Madame Pierrot não é má pessoa.
— Mas a Srta. Temple é a melhor, não é?
— A Srta. Temple é muito boa, e muito inteligente; está acima do resto,
porque sabe muito mais do que elas.
— Você está aqui há muito tempo?
— Dois anos.
— Ê órfã?
— Minha mãe morreu.
— É feliz aqui?
— Você faz muitas perguntas. Já lhe dei todas as respostas suficientes por
agora. Agora quero ler.
Mas nesse momento a sineta tocou para o jantar. Todas reentramos na casa. O
odor que agora enchia o refeitório dificilmente seria mais apetitoso que o que
regalara nossas narinas no desjejum. O jantar foi servido em duas imensas
vasilhas de estanho, de onde se elevava um forte vapor, que rescendia a banha
rançosa. Descobri que a comida consistia em batatas não escolhidas e estranhos
fiapos de carne escura, misturados e cozinhados juntos. Desse preparado, um
prato consideravelmente abundante era servido a cada aluna. Comi o que pude,
imaginando com meus botões se a comida de todos os dias seria assim.
Após o jantar, passamos imediatamente para a sala de aula. Recomeçaram as
lições, que continuaram até as cinco horas.
O único acontecimento marcante da tarde foi que vi a menina com quem
conversara na varanda ser expulsa humilhante-mente pela Srta. Scatcherd da aula
de história, e posta de pé no meio da grande sala de aula. O castigo me pareceu
ignominioso em alto grau, especialmente para uma menina tão crescida — parecia
ter treze anos ou mais. Esperei que ela mostrasse sinais de grande aflição e
vergonha, mas para minha surpresa nem chorou nem corou. Calma, apesar de
séria, ali ficou, ponto central de todas as atenções. "Como pode ela suportar isso
tão tranqüilamente ... tão firmemente?" eu me perguntava. "Se estivesse no lugar
dela, parece-me que desejaria que a terra se abrisse e me engolisse. Ela parece
estar pensando em outra coisa que não o seu castigo... que não a sua situação; em
alguma coisa que não está à sua volta ou à sua frente. Já ouvi falar em sonhar
acordado... será que ela está sonhando acordada agora? Tem os olhos fixos no
chão, mas tenho certeza de que não o vê... o olhar parece voltado para dentro,
desceu para o coração: está olhando o que consegue lembrar, creio; não o que está
realmente presente. Imagino que tipo de menina é, boa ou má."
Logo depois das cinco da tarde fizemos outra refeição, que consistiu em uma
pequena caneca de café e meia fatia de pão pardo. Devorei meu pão e bebi meu
café com prazer; porém gostaria de muito mais — ainda estava faminta. Seguiu-se
um recreio de uma hora, e depois, estudo; em seguida, o copo d'água e o pedaço
de bolo de aveia, preces e cama. Assim foi meu primeiro dia em Lowood.
CAPITULO 6
O DIA seguinte começou como antes; levantar e me vestir na penumbra, mas
nessa manhã fomos obrigadas a dispensar a cerimônia da lavagem; a água nas
jarras estava congelada. Ocorrera uma mudança no tempo na noite passada, e um
penetrante vento nordeste, soprando pelas fendas das janelas do dormitório por
toda a noite, tinha-nos feito tremer nas camas, e transformara em gelo o conteúdo
das jarras.
Antes que acabasse a longa hora e meia de preces e leitura da Bíblia, eu já
estava para morrer de frio. A hora do desjejum chegou afinal, e nessa manhã o
mingau de aveia não estava queimado; a qualidade era comível, a quantidade
pouca; como parecia pequena a minha porção! Eu desejaria o dobro.
Durante o dia, colocaram-me na quarta classe, e designaram-me tarefas e
ocupações regulares; até então, eu tinha sido apenas espectadora das atividades
em Lowood; agora, ia me tornar participante. A princípio, estando pouco
acostumada a decorar, as lições me pareceram longas e difíceis; a freqüente
mudança de uma tarefa a outra também me confundia; e fiquei, satisfeita quando,
cerca das três horas da tarde, a Srta. Smith me pôs nas mãos um pedaço de
musselina de dois metros de comprimento, juntamente com uma agulha, dedal
etc., e mandou-me sentar num canto tranqüilo da sala de aula, com instruções para
fazer bainha. A essa hora, a maioria das outras estava costurando também; mas
uma classe ainda permanecia lendo em torno da cadeira da Srta. Scatcherd, e
como tudo estava em silêncio, podia-se ouvir o tema da aula delas, juntamente
com a maneira como cada menina se saía, e as repreensões e ordens da professora
sobre os desempenhos. Era história inglesa; entre as leitoras, observei minha
conhecida da varanda: no início da lição, seu lugar era no topo da classe, mas, por
algum erro de pronúncia ou alguma desatenção às pausas, fora de repente
mandada para o ponto mais baixo. Mesmo nessa obscura posição, a Srta.
Scatcherd continuava a fazer dela objeto de constante atenção; dirigia-lhe
constantemente frases como as seguintes:
— Burns (era este o nome dela, as meninas ali eram todas chamadas pelos
sobrenomes, como os meninos em outros lugares), Burns, você está calcanhando
o sapato, ponha as pontas dos pés para fora imediatamente.
— Burns, você adianta o queixo de uma maneira desagradável; encolha-o.
— Burns, insisto em que mantenha a cabeça erguida; não a tolerarei diante de
mim nessa atitude.
E assim por diante. Tendo-se lido duas vezes um capítulo de ponta a ponta, os
livros foram fechados e as meninas sabatinadas. A lição compreendia parte do
reinado de Charles I, e havia várias perguntas sobre tonelagem, libras-peso e
moedas marítimas, que a maioria parecia incapaz de responder; contudo, todas
essas pequenas dificuldades eram instantaneamente solucionadas quando
chegavam a Burns; sua memória parecia ter retido a substância de toda a lição, e
ela tinha respostas prontas em todos os pontos. Eu esperava sempre que a Srta.
Scatcherd elogiasse sua atenção; mas, em vez disso, ela gritou de repente:
— Sua menina imunda, desagradável! Você não limpou as unhas esta manhã!
Burns não deu resposta; admirou-me o seu silêncio.
"Ora", pensei, "ela não explica que não pôde nem limpar as unhas nem lavar o
rosto, porque a água estava congelada?"
Minha atenção foi então atraída pelo fato de a Srta. Smith desejar que eu
segurasse uma meada de linha; enquanto ela a enrolava, falava comigo de quando
em quando, perguntando-me se já estivera numa escola antes, se sabia marcar,
pontear, tricotar etc.; até me dispensar, não pude continuar com a observação dos
movimentos da Srta. Scatcherd. Quando retornei a meu assento, aquela dama dava
uma ordem, que não consegui pegar; mas Burns imediatamente deixou a classe, e,
encaminhando-se para o pequeno quarto interno onde se guardavam os livros,
retornou em meio minuto trazendo nas mãos um feixe de galhos atado numa das
extremidades. Esse sinistro instrumento, ela o entregou à Srta. Scatcherd com uma
respeitosa cortesia; depois, silenciosamente e sem ser mandada, desabotoou seu
avental, e a professora aplicou-lhe no mesmo instante e com força uma dúzia de
vergastadas no pescoço com o feixe de galhos. Nem uma lágrima brotou dos
olhos de Burns e, enquanto eu parava minha costura, porque meus dedos tremiam
diante daquele espetáculo, com um sentimento de inútil e impotente raiva, nem
um traço de seu rosto pensativo alterou a expressão costumeira.
— Menina empedernida! — exclamou a Srta. Scatcherd. — Nada pode
corrigi-la de seus hábitos desmazelados; leve o açoite daqui.
Burns obedeceu, eu a olhei atentamente quando saiu do quartinho dos livros;
recolocava o lenço no bolso, e o vestígio de uma lágrima brilhava em sua magra
bochecha.
A hora do recreio à noite era para mim a parte mais agradável do dia em
Lowood: o pedaço de pão, o gole de café engolido às cinco horas revitalizavam as
energias, embora não saciassem a fome; a longa repressão do dia era aliviada; a
sala de aula estava mais quente do que pela manhã — pois deixavam que as
lareiras ardessem um pouco mais claramente, para compensar, em certa medida, a
falta de velas, ainda não trazidas; o róseo crepúsculo, a livre gritaria, a confusão
de muitas vozes nos dava uma bem-vinda sensação de liberdade.
Na noite do dia em que vi a Srta. Scatcherd açoitar sua aluna Burns, vagueei
como sempre entre os bancos, mesas e grupos sorridentes, desacompanhada, mas
nem por isso me sentindo solitária; quando passava pelas janelas, de vez em
quando levantava um estore e olhava para fora; nevava muito, uma camada de
neve já se formava contra os vidros de baixo; pondo a orelha perto da janela,
podia distinguir do alegre tumulto do lado de dentro o desconsolado lamento do
vento lá fora.
Provavelmente, se eu tivesse deixado pouco antes um bom lar e pais
bondosos, aquela seria a hora em que mais agudamente
teria sentido a separação; aquele vento me teria então entristecido o coração,
aquele caos escuro me teria perturbado a paz; na verdade, porém, eu extraía de
ambos uma estranha excitação, e, inquieta e febril, desejava que o vento uivasse
mais selvagemente, que o lusco-fusco se aprofundasse em trevas, e que a
confusão se erguesse num clamor.
Saltando sobre os bancos e arrastando-me sob as mesas, encaminhei-me para
uma das lareiras; ali, ajoelhada defronte da alta grade protetora, encontrei Burns,
absorvida, calada, distraída de tudo à sua volta pela companhia de um livro, que
lia à pouca claridade das brasas.
— Ainda é Rasselas? — perguntei, aproximando-me por trás dela.
— Sim — ela disse. — E estou acabando-o agora.
Em cinco minutos mais, fechou-o. Fiquei contente com isso. "Agora", pensei,
"talvez possa conversar com ela". Sentei-me a seu lado, no chão.
— Como é seu nome, além de Burns?
— Helen.
— É de muito longe daqui?
— Sou de um lugar mais do norte; bem na fronteira da Escócia.
— Vai voltar algum dia?
— Espero que sim; mas ninguém pode ter certeza do futuro.
— Você deve querer deixar Lowood.
— Não, por que deixaria? Fui mandada para Lowood para receber educação;
e não adiantaria nada ir embora enquanto não atingir esse objetivo.
— Mas aquela professora, a Srta. Scatcherd, é tão cruel com você!
— Cruel? De modo nenhum. É severa; não gosta de meus defeitos.
— Se eu estivesse em seu lugar, não gostaria dela; resistiria a ela; se me
batesse com aquele açoite, eu o tiraria das mãos dela; eu o quebraria debaixo do
nariz dela.
— Provavelmente, você não faria nada disso; mas se fizesse, o Sr.
Brocklehurst a expulsaria da escola; isso seria um grande pesar para seus
parentes. É muito melhor suportar pacientemente uma sova que ninguém sente, a
não ser a gente, do que cometer uma ação apressada cujas más conseqüências se
estenderão a todos os relacionados com a gente; e, além disso, a Bíblia nos manda
retribuir o mal com o bem.
— Mas é vergonhoso ser açoitada, e ser posta de pé no meio de uma sala
cheia de gente; e você é uma menina tão crescida; eu sou muito mais jovem que
você, e não poderia tolerar isso.
— Mas seria o seu dever tolerar, se não pudesse evitar; é fraqueza e tolice
dizer que não pode tolerar o que o destino da gente exige que tolere.
Eu a ouvia maravilhada, não podia compreender essa doutrina de tolerância; e
ainda menos compreender ou simpatizar com a clemência que ela manifestava por
sua algoz. Contudo, sentia que Helen Burns considerava as coisas a uma luz
invisível para meus olhos. Desconfiava de que ela podia estar certa e eu errada;
mas não ia ponderar o assunto profundamente; como Felix, adiei-o para uma
época mais adequada.
— Você diz que tem defeitos, Helen, quais são? A mim você me parece muito
boa.
— Então aprenda comigo a não julgar pelas aparências. Eu sou, como disse a
Srta. Scatcherd, desmazelada; raramente ponho, e nunca mantenho, as coisas em
ordem; sou descuidada; esqueço as regras; leio quando devia aprender minhas
lições; não tenho método; e às vezes digo, como você, que não posso tolerar ser
submetida a arranjos sistemáticos. Tudo isso é muito irritante para a Srta.
Scatcherd, que é naturalmente asseada, pontual e exigente.
— E zangada e cruel — acrescentei; mas Helen Burns não admitiu meu
acréscimo, manteve-se calada.
— A Srta. Smith é tão severa com você quanto a Srta. Scatcherd?
Ao som do nome da Srta. Smith, um suave sorriso pairou pelo seu rosto sério.
— A Srta. Temple é plena de bondade: dói-lhe ser severa .com qualquer uma,
mesmo as piores da escola: ela vê meus erros, e me fala deles delicadamente; e, se
faço alguma coisa digna de louvor, ela me dá meu quinhão liberalmente. Uma
forte prova de minha natureza desgraçadamente defeituosa é que mesmo suas
reprimendas, tão brandas, tão racionais, não têm influência para curar-me de meus
defeitos; e mesmo seus louvores, que valorizo muitíssimo, não podem me
estimular para continuar cuidadosa e previdente.
— Isso é curioso — eu disse. — É tão fácil ser cuidadosa.
— Para você, não tenho dúvida de que seja. Eu a observei em sua classe esta
manhã, e vi que você estava muito atenta, seus pensamentos jamais pareciam
vagar enquanto a Srta. Miller explicava a lição e a interrogava. Ora, o meu se
desvia continuamente; quando devia estar ouvindo a Srta. Scatcherd, e recolhendo
tudo que ela diz com assiduidade, muitas vezes perco até o som da voz dela; caio
numa espécie de sonho. Às vezes, penso que estou em Northumberland, e que os
ruídos que ouço em volta de mim são o borbulhar de um pequeno regato que
atravessa Deepden, perto de nossa casa; depois, quando chega a minha vez de
responder, tenho de ser acordada; e, não tendo ouvido nada do que foi lido, por ter
ficado ouvindo o regato visionário, não tenho resposta para dar.
— E no entanto, como você respondeu bem esta tarde.
— Foi mera sorte; o assunto sobre o qual líamos me interessou. Esta tarde, em
vez de sonhar com Deepden, eu estava pensando como um homem que desejava
agir corretamente pôde agir tão injusta e insensatamente como Charles I às vezes
agiu; e pensava em como era uma pena que, com sua integridade e
conscienciosidade, ele não pudesse ver além das prerrogativas da Coroa. Se pelo
menos pudesse ter visto à distância, e para onde o que chamam o espírito da época
tendia! Contudo, eu gosto de Charles... respeito-o... tenho pena dele, pobre rei
assassinado! Sim, os inimigos dele eram piores, derramaram sangue que não
tinham o direito de derramar. Como ousaram matá-lo!
Helen falava consigo mesmo agora, esquecera de que eu podia não entendê-la
muito bem... que eu era ignorante, ou quase, do assunto que ela discutia. Chamei-
a ao meu nível.
— E quando a Srta. Temple lhe ensina, seus pensamentos vagueiam então?
— Não, certamente, não muitas vezes; porque a Srta. Temple geralmente tem
alguma coisa a dizer que é mais nova que minhas reflexões; a linguagem dela é
singularmente agradável, e a informação que dá muitas vezes é exatamente a que
eu desejo obter.
— Bem, então com a Srta. Temple você é boa?
— Sim, de uma forma passiva; não faço esforço; sigo aonde a inclinação me
leva. Não há mérito nessa bondade.
— Há muito; você é boa para aqueles que são bons com você. É tudo que
desejo ser. Se as pessoas fossem sempre boas e obedientes com aqueles que são
cruéis e injustos, os maus teriam tudo à sua maneira; jamais teriam medo, e assim
jamais se modificariam, mas se tornariam cada vez piores. Quando nos golpeiam
sem motivo, devemos retribuir o golpe com toda força; estou certa de que
devemos... com tanta força, que ensine à pessoa que nos bateu a nunca mais fazer
isso de novo.
— Você mudará de idéia, espero, quando ficar mais velha; ainda é uma
menininha inculta.
— Mas me sinto assim, Helen; tenho de detestar aqueles que, por mais que eu
faça para agradar-lhes, persistem em me detestar; tenho de resistir àqueles que me
castigam injustamente. É igualmente natural que eu ame aqueles que me
demonstram afeição, e que me submeta ao castigo quando acho que é merecido.
— Os infiéis e as tribos selvagens têm essa doutrina; mas os cristãos e os
países civilizados a repelem.
— Como? Não compreendo.
— Não é a violência que melhor vence o ódio... nem a vingança o que mais
justamente sana a injúria.
— Que é então?
— Leia o Novo Testamento, e observe o que Cristo diz, e como Ele age; faça
da palavra d'Ele a sua regra, e da conduta d'Ele o seu exemplo.
— Que é que Ele diz?
— Amai a vossos inimigos; abençoai aos que vos maldizem; fazei o bem aos
que vos odeiam e vos usam despeitosamente.
— Então eu devo amar a Sra. Reed, o que não posso fazer; devo abençoar o
filho dela, John, o que é impossível.
Por sua vez, Helen Buns pediu-me que explicasse; e me pus imediatamente a
despejar, à minha maneira, a história de meus sofrimentos e ressentimentos.
Amarga e truculenta quando excitada, falei como sentia, sem reserva ou
abrandamento.
Helen me ouviu pacientemente até o fim; eu esperava que fosse então fazer
uma observação, mas ela nada disse.
— Bem — perguntei impacientemente — a Sra. Reed não c uma mulher de
coração duro, má?
— Ela foi ruim para você, sem dúvida, porque, sabe, ela não gosta do seu tipo
de caráter, como a Srta. Scatcherd não gosta do meu; mas como você se lembra
nos mínimos detalhes de tudo que ela lhe fez e lhe disse! Que impressão
singularmente profunda a injustiça dela parece ter deixado em seu coração!
Nenhum maltrato deixa tanta marca em meus sentimentos. Você não seria mais
feliz se tentasse esquecer a severidade dela, juntamente com as emoções
apaixonadas que causou? A vida me parece curta demais para ser passada
alimentando-se animosidade, ou anotando-se ofensas. Nós estamos, e devemos
estar, todos, carregados de defeitos neste mundo; mas confio em que chegará o
tempo em que os descarregaremos de nossos corpos corruptíveis; em que a
degradação e o pecado cairão de nós com esta embaraçosa estrutura de carne, e só
restará a centelha do espírito — o impalpável princípio da vida e do pensamento,
puro como quando deixou o Criador para inspirar a criatura; de onde veio, para lá
retornará, talvez para ser de novo comunicado a algum ser superior ao homem...
talvez para passar por gradações de glória, da pálida alma humana para o brilhante
serafim! Certamente jamais se deixará que, ao contrário, degenere do homem para
o demônio? Não, não posso crer nisso, tenho outro credo, que ninguém jamais me
ensinou, e que raramente menciono, mas com o qual me deleito, e ao qual me
apego, pois estende a esperança a todos; torna a eternidade um repouso... um lar
formidável... não um terror e um abismo. Além disso, com esse credo, eu posso
distinguir muito claramente entre o criminoso e seu crime, posso muito
sinceramente perdoar o primeiro abominando o último; com esse credo, a
vingança jamais preocupa meu coração, a degradação nunca me desagrada
demasiado profundamente, a injustiça nunca me esmaga demais; vivo em calma,
olhando o fim.
A cabeça de Helen, sempre caída, afundou um pouco mais quando ela
terminou esta sentença. Vi pela sua expressão que ela não desejava mais
conversar comigo, mas antes com seus próprios pensamentos. Não lhe davam
muito tempo para meditação. Uma monitora, uma menina grande e grosseira,
apareceu afinal, exclamando com um forte sotaque de Cumberland:
— Helen Burns, se você não for arrumar sua gaveta, e dobrar seu trabalho
agorinha mesmo, eu vou dizer à Srta. Scatcherd para vir dar uma olhada nele!
Helen suspirou, enquanto seu devaneio se desfazia, e, levantando-se,
obedeceu à monitora sem responder e sem delongas.
CAPÍTULO 7
MEU PRIMEIRO trimestre em Lowood pareceu uma era, e não a era de ouro,
certamente; compreendeu uma cansativa luta com problemas para habituar-me a
novas regras e tarefas desusadas. O temor do fracasso nesses pontos acossava-me
mais que as durezas físicas de minha sorte, que não eram pouca coisa.
Durante janeiro, fevereiro e parte de março, a neve profunda e, depois do
degelo, as estradas quase intransitáveis impediram-nos de mover-nos além dos
muros do jardim, a não ser para ir à igreja; mas dentro desses limites tínhamos de
passar uma hora todo dia ao ar livre. As roupas não bastavam para proteger-nos
do frio intenso; não tínhamos botas, a neve nos entrava nos sapatos e derretia-se lá
dentro; nossas mãos sem luvas ficavam dormentes e cobertas de frieiras, e o
mesmo nos acontecia aos pés. Lembro-me bem da perturbadora irritação que eu
suportava por isso toda noite, quando meus pés se inflamaram, e a tortura de
enfiar os dedos inchados, em carne viva, rígidos, dentro dos sapatos pela manhã.
Também a pouca comida era angustiante; com o ávido apetite de crianças em
desenvolvimento, mal tínhamos o suficiente para manter vivo um frágil inválido.
Dessa deficiência alimentar resultou uma violência que oprimia duramente as
alunas mais novas; sempre que as meninas maiores, famintas, tinham uma
oportunidade, enganavam ou ameaçavam as pequenas para tomar a parte delas.
Muitas vezes reparti entre duas reclamantes o precioso naco de pão pardo
distribuído à hora do chá, e após ter entregue a uma terceira a metade do conteúdo
de minha caneca de café, engolia o restante com um acompanhamento de
lágrimas secretas, arrancadas pela exigência da fome.
Os domingos eram dias tristes naquele inverno. Tínhamos de andar duas
milhas até a igreja de Brocklebridge, onde nosso patrono oficiava. Partíamos
geladas, e chegávamos à igreja mais geladas ainda; durante o serviço matinal,
ficávamos quase paralisadas. Era longe demais para voltar para o jantar, e servia-
se entre os ofícios uma porção de carne fria e pão, na mesma mísera proporção
observada em nossas refeições comuns.
Ao final do serviço vesperal, retornávamos por uma estrada aberta e
montanhosa, onde o forte vento frio do inverno, soprando por cima de uma cadeia
de cumes gelados ao norte, quase nos arrancava a pele do rosto.
Lembro-me da Srta. Temple caminhando leve e rapidamente ao lado de nossa
frouxa fila, o casaco axadrezado, que o vento gelado fazia flutuar, apertado contra
o corpo, encorajando-nos, pela palavra e o exemplo, a manter o ânimo e marchar
em frente, como ela dizia, "como soldados valentes". As outras professoras,
coitadas, estavam geralmente demasiado abatidas elas próprias para tentar a tarefa
de encorajar os outros.
Como ansiávamos pela luz e o calor de um fogo vivo, quando chegávamos!
Mas, para as menores ao menos, também isso era negado; cada lareira na sala de
aula era imediatamente cercada por uma dupla fila de meninas grandes, e atrás
delas as mais novas se agachavam em grupos, envolvendo os braços famintos em
seus aventais.
Com a hora do chá, vinha um pequeno alívio, sob a forma de uma dupla ração
de pão — uma fatia inteira, em vez de metade — com o delicioso acréscimo de
uma fina camada de manteiga; era o regalo semanal pelo qual todas ansiávamos
de sábado a sábado. Em geral, eu conseguia reservar uma metade desse generoso
repasto para mim; mas o resto, era invariavelmente obrigada a entregar.
A noite de domingo era passada a repetir, de cor, o Cate-, cismo da Igreja, e o
quinto, sexto e sétimo capítulos de São Mateus; e a ouvir um longo sermão lido
pela Srta. Miller, cujos irreprimíveis bocejos atestavam sua exaustão. Um
interlúdio freqüente nessas atuações era a encenação da parte de Eutico por uma
meia dúzia de menininhas, que, vencidas pelo sono, caíam, se não do terceiro
sótão, pelo menos do terceiro banco, e eram retiradas meio mortas. O remédio era
empurrá-las para o centro da sala de aula, e obrigá-las a ficar de pé ali até o
sermão acabar. Às vezes seus pés lhes faltavam, e elas afundavam juntas
formando um monte; eram então escoradas com os tamboretes altos das
monitoras.
Ainda não me referi às visitas do Sr. Brocklehurst; e na verdade esse
cavalheiro esteve fora de casa a maior parte do primeiro mês após a minha
chegada, talvez prolongando sua estada com seu amigo o arquidiácono; essa
ausência foi um alívio para mim. Não preciso dizer que tinha meus próprios
motivos para temer a sua vinda; mas ele veio afinal.
Uma tarde (eu estava então havia três semanas em Lowood), cm que me
sentava com uma lousa na mão, quebrando a cabeça com uma soma numa longa
divisão, meus olhos, erguidos em abstração para a janela, avistaram uma figura
que passava. Reconheci quase instintivamente aquela sombria silhueta; e quando,
dois minutos depois, toda a escola, incluindo as professoras, se levantou en
masse, não me foi necessário erguer o olhar para saber quem era assim
cumprimentado ao entrar. Longas passadas cruzaram a sala de aula, e ao lado da
Srta. Temple, que se tinha levantado, ergueu-se a mesma pilastra negra que me
armara aquela carranca tão sinistra no tapete diante da lareira de Gateshead.
Agora eu olhava de lado aquela peça arquitetônica. Sim, estava certa, era o Sr.
Brocklehurst, abotoado até em cima num sobretudo e parecendo mais comprido,
mais estreito e mais rígido que nunca.
Eu tinha minha própria razão para ficar consternada com aquela aparição;
lembrava-me muito bem das pérfidas insinuações feitas pela Sra. Reed sobre
minha natureza etc.; e da promessa feita pelo Sr. Brocklehurst de informar à Srta.
Temple e a todas as professoras sobre minha natureza perversa. O tempo todo eu
estivera temendo o cumprimento dessa promessa — esperando dia a dia o
"Homem que vem", cujas informações sobre minha vida passada e cuja conversa
iriam qualificar-me para sempre como uma menina má; agora ali estava ele. De
pé, ao lado da Sita. Temple, falava baixo no ouvido dela; eu não tinha dúvidas de
que fazia revelações sobre minha vilania; e observava os olhos dela com dolorosa
ansiedade, esperando a cada momento ver suas negras órbitas lançarem-me um
olhar de repugnância e desprezo. E escutava também; como estava por acaso
sentada bem à frente da sala, captei a maior parte do que ele dizia: isso aliviou
minha apreensão imediata.
— Suponho, Srta. Temple, que a linha que comprei em Lowton dará: pareceu-
me que seria da qualidade certa para as camisolas de chita, e selecionei as agulhas
adequadas. Pode dizer à Srta. Miller que esqueci de fazer um memorando sobre as
agulhas de cerzir, mas lhe enviarão alguns pacotes na próxima semana; e ela não
deve, de modo algum, dar mais de uma a cada aluna de cada vez... se elas tiverem
mais, podem tornar-se descuidadas e perdê-las. E oh, madame! Eu gostaria de que
as meias de lã fossem mais cuidadas também. Quando estive aqui da última vez,
fui à horta e examinei as roupas secando na corda; havia muitas meias em
péssimo estado; pelo tamanho dos buracos nelas, fiquei certo de que não tinham
sido bem remendadas de tempos em tempos.
Fez uma pausa.
— Suas instruções serão seguidas, senhor — disse a Srta. Temple.
— E, madame — ele continuou — a lavadeira me disse que algumas das
meninas têm dois cachecóis limpos por semana: isso é demais; as regras limitam-
se a um.
— Creio que posso explicar essa circunstância, senhor. Agnes e Catherine
Johnstone foram convidadas a tomar chá com algumas amigas em Lowton na
última quinta-feira, e eu lhes dei permissão para usar cachecóis limpos nessa
ocasião.
O Sr. Brocklehurst assentiu com a cabeça.
— Bem, por esta vez passa; mas, por favor, não deixe que a circunstância
ocorra com muita freqüência. E há outra coisa que me surpreendeu: vi nos livros
de contas com a governanta que uma merenda, de pão e queijo, foi servida às
meninas durante a quinzena passada. Como é isso? Olhei os regulamentos, e não
vi menção alguma a uma refeição chamada merenda. Quem introduziu essa
inovação, e com que autoridade?
— Devo me responsabilizar pela circunstância, senhor — respondeu a Srta.
Temple. — O desjejum foi tão mal preparado, que as alunas não puderam comê-
lo; e não tive coragem de deixá-las em jejum até a hora do jantar.
— Madame, permita-me um instante. A senhora está ciente de que meu plano,
ao educar essas meninas, não é acostumá-las a hábitos de luxo e indulgência, mas
torná-las duras, pacientes, resignadas. Se ocorrer alguma decepção acidental do
apetite, como uma refeição estragada, tempere a menos ou a mais num prato, o
incidente não deve ser neutralizado substituindo-se com algo mais delicado o
conforto perdido, mimando-se assim o corpo e removendo o objetivo desta
instituição; deve ser aproveitado para edificação espiritual das alunas,
encorajando-as a demonstrar fortitude sob a privação temporária. Não seria fora
de propósito nessas ocasiões um breve discurso, no qual um instrutor judicioso
aproveitaria a oportunidade para referir-se aos sofrimentos dos primitivos
cristãos; aos tormentos dos mártires; às exortações de Nosso Bendito Senhor,
chamando Seus discípulos a tomarem a cruz e segui-Lo; às Suas advertências de
que nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus;
às Suas divinas consolações: '"Se sofrerdes fome e sede em Meu nome, sereis
felizes". Oh, Madame, quando a senhora põe pão e queijo, em vez de mingau de
aveia queimado, nas bocas dessas crianças, pode na verdade alimentar seus corpos
vis, mas esquece como deixa à míngua suas almas imortais!
O Sr. Brocklehurst fez nova pausa — talvez vencido por seus sentimentos. A
Srta. Temple baixara os olhos quando ele começara a falar; mas agora olhava em
frente, e seu rosto, naturalmente pálido como mármore, pareceu assumir também
a frieza e fixidez desse material; em especial a boca, fechada como se fosse
preciso o cinzel de um escultor para abri-la, e a testa, que assumira pouco a pouco
uma petrificada severidade.
Enquanto isso, o Sr. Brocklehurst, parado diante da lareira com as mãos às
costas, examinava majestosamente toda a escola. De repente, seus olhos piscaram,
como se houvessem encontrado alguma coisa que deslumbrara ou chocara suas
pupilas; voltando-se, ele disse em tom mais rápido que o que usara até então:
— Srta. Temple, Srta. Temple, que... que é aquela menina de cabelos
cacheados? Cabelo ruivo, madame, cacheado... todo cacheado? — E, estendendo
sua bengala, indicava o pavoroso objeto, a mão tremendo enquanto o fazia.
— É Julia Severn — respondeu a Srta. Temple, muito calmamente.
— Julia Severn, madame! E por que tem ela, ou qualquer outra, cabelos
cacheados? Por que, em desafio a todo preceito e princípio desta casa, ela segue o
mundo tão abertamente... aqui, num estabelecimento evangélico, beneficente.... a
ponto de usar o cabelo numa massa de cachos?
— O cabelo de Julia cacheia naturalmente — respondeu a Srta. Temple, ainda
mais calma.
— Naturalmente! Sim, mas não devemos submeter-nos à natureza. Desejo que
essas meninas sejam filhas da Graça; e por que essa abundância? Eu já disse
repetidas vezes que desejo que os cabelos sejam arrumados lisos, modesta,
comumente. Srta. Temple, o cabelo daquela menina deve ser cortado
inteiramente; mandarei um barbeiro amanhã; e vejo outras meninas que têm
demais dessa excrescência... aquela menina grande, diga-lhe para dar uma volta.
Diga a toda a primeira classe para se levantar e virar-se para a parede.
A Srta. Temple passou o lenço pelos lábios, como para desfazer o involuntário
sorriso que os franzia; mas deu a ordem, e quando a primeira classe entendeu o
que se desejava dela, todas obedeceram. Reclinando-me um pouco em meu banco,
eu podia ver as expressões e caretas com que elas comentavam essa manobra: era
uma pena que o Sr. Brocklehurst não pudesse vê-las também; talvez houvesse
sentido que, independente do que fizesse com o exterior da xícara e do pires, o
interior estava muito mais além de sua interferência do que ele imaginava.
Ele examinou o reverso daquelas medalhas vivas por uns cinco minutos, e
depois pronunciou a sentença. Suas palavras soaram como o sino da condenação:
— Todos esses coques devem ser cortados. A Srta. Temple pareceu reagir.
— Madame — ele prosseguiu — eu tenho um Senhor a servir, cujo reinado
não é deste mundo; minha missão é mortificar nessas meninas as luxúrias da
carne, ensinar-lhes a vestirem-se com vergonha e sobriedade, não com cabelos
trançados e vestes caras; e cada uma das jovens diante de nós tem uma mecha de
cabelos feita em trancas, que a própria vaidade poderia ter trançado; essas, repito,
devem ser cortadas; pense no tempo desperdiçado, no...
O Sr. Brocklehurst foi interrompido neste ponto; três outras visitantes
entravam agora na sala. Deviam ter vindo um pouco antes, para ouvir o sermão
dele sobre vestidos, pois estavam esplendidamente trajadas de veludo, seda e
peles. As duas mais jovens do trio (belas garotas de dezesseis e dezessete anos)
usavam chapéus de pele de castor cinza, então na moda, enfeitados com plumas
de avestruz, e de baixo da borda desses graciosos adereços de cabeça caía uma
profusão de trancas louras, elaboradamente cacheadas; a senhora mais velha
estava envolta num caro xale de veludo, debruado de arminho, e usava uma falsa
franja de cachos franceses.
Essas senhoras foram deferentemente recebidas pela Sita. Temple como a Sra.
e as Srtas. Brocklehurst, e conduzidas a assentos de honra na frente da sala.
Parece que tinham vindo na carruagem com seu reverendo parente, e haviam
estado a realizar um escrupuloso exame dos quartos lá de cima, enquanto ele se
entendia com a governanta, interrogava a lavadeira e instruía a superintendente.
Elas agora faziam várias observações e reprovações à Srta. Temple, que era
encarregada de cuidar da roupa branca e da inspeção dos dormitórios; mas não
tive tempo de ouvir o que diziam, pois outros assuntos exigiam e prendiam minha
atenção.
Até então, recolhendo a conversa do Sr. Brocklehurst e da Srta. Temple, eu
não deixara, ao mesmo tempo, de tomar precauções para proteger minha
segurança pessoal, o que achava que podia fazer se pudesse fugir à observação.
Para isso, sentara-se bem atrás da classe, e enquanto parecia ocupada com minha
soma, mantivera a lousa erguida de modo a esconder-me o rosto. Podia ter
escapado de chamar a atenção, se a traiçoeira lousa não me houvesse deslizado de
algum modo das mãos e, caindo com um grande barulho, atraído diretamente
todos os olhares para mim; eu sabia que estava tudo acabado agora, e, ao curvar-
me para apanhar os dois pedaços da lousa, reuni minhas forças para enfrentar o
pior. E foi o que aconteceu.
— Uma menina descuidada! — disse o Sr. Brocklehurst, e imediatamente
depois: — É a nova aluna, percebo. — E, antes que eu pudesse respirar: — Não
devo esquecer que tenho uma palavra a dizer a respeito dela. — Depois, em voz
alta... como me pareceu alta! — Que a menina que quebrou a lousa se adiante!
Por minha própria vontade, eu não poderia ter-me mexido, estava paralisada;
mas as duas meninas grandes que se sentavam a meus lados me puseram de pé e
me empurraram para o terrível juiz, e depois a Srta. Temple me ajudou
delicadamente a chegar aos pés dele; captei seu conselho sussurrado:
— Não tenha medo, Jane, eu vi que foi um acidente; você não será punida.
O bondoso sussurro foi direto ao meu coração, como uma adaga.
"Mais um minuto, e ela me desprezará como uma hipócrita", pensei; e uma
onda de fúria contra Reed, Brocklehurst e Cia. tomou minhas pulsações a essa
convicção. Eu não era Helen Burns.
— Apanhem aquele banco — disse o Sr. Brocklehurst, indicando um banco
muito alto que uma monitora acaba de levantar; trouxeram-no.
— Ponham a menina em cima dele.
E fui posta ali — por quem, não sei. Não estava em condições de observar
minúcias. Só sabia que me haviam guindado à altura do nariz do Sr. Brocklehurst,
que ele estava a uma jarda de mim, e que um borrão de peliças de seda laranja-
vivo e púrpura, e uma nuvem de plumagens prateadas, se estendiam e ondeavam
abaixo.
O Sr. Brocklehurst pigarreou.
— Senhoras — disse, voltando-se para sua família. — Srta. Temple,
professores e meninas, vocês todas vêem esta menina?
É claro que viam; pois eu sentia seus olhares dirigidos como lentes de
queimar contra minha pele crestada.
— Vêem que ainda é nova; observem que possui a forma comum da infância;
Deus graciosamente lhe deu a forma que deu a todos nós; nem uma só
deformidade a assinala como um caráter acentuado. Quem pensaria que o
Daninho já encontrou nela uma serva e uma agente? E no entanto, este, lamento
dizer, é o caso.
Uma pausa — na qual comecei a estudar a paralisia de meus nervos, e a sentir
que o Rubicão já fora atravessado, e que o julgamento, que não mais podia ser
evitado, devia ser firmemente sustentado.
— Minhas queridas crianças — prosseguiu o clérigo de mármore negro com
ardor — esta é uma ocasião triste, melancólica; pois é meu dever adverti-las de
que esta menina, que poderia ser um dos cordeirinhos de Deus, é uma pequena
réproba... não um membro do verdadeiro rebanho, mas evidentemente uma intrusa
e estranha. Vocês devem manter-se em guarda contra ela; devem fugir ao seu
exemplo... se necessário, evitar a sua companhia, excluí-la de suas diversões, e
bani-la de suas conversas. Professoras, vocês devem vigiá-la; trazer de olhos seus
movimentos, pesar bem suas palavras, examinar suas ações, punir seu corpo para
salvar sua alma... se, na verdade, tal salvação for possível, pois (minha língua
fraqueja quando digo isto) esta menina, esta criança, nativa de uma terra cristã,
pior que muitos infieizinhos que dizem suas preces a Brahma e se ajoelham diante
de Crixna... esta menina é... uma mentirosa!
Houve então uma pausa de dez minutos, durante a qual eu — a essa altura em
perfeito domínio de meus sentidos — observei todas as Brocklehurst pegarem
seus lenços e levarem-nos aos olhos, enquanto a senhora mais velha oscilava para
a frente e para trás, e as duas mais novas sussurravam:
— Que coisa mais chocante! O Sr. Brocklehurst reiniciou.
— Eu soube isso da benfeitora dela... da devota e caridosa senhora que a
adotou em sua condição de órfã, criou-a como sua própria filha, e cuja bondade,
cuja generosidade, a infeliz menina pagou com uma ingratidão tão má, tão
terrível, que finalmente sua excelente protetora foi obrigada a separá-la dos filhos,
temendo que seu perverso exemplo contaminasse a pureza deles. Ela a enviou
aqui para ser curada, como os judeus de antanho mandavam seus doentes para o
revolto poço de Bethesda; e, professoras, superintendente, peço-lhes que não
deixem as águas se estagnarem em torno dela.
Com esta sublime conclusão, o Sr. Brocklehurst ajeitou o botão de cima do
sobretudo, murmurou algo para a família, que se levantou, fez uma curvatura para
a Srta. Temple, e depois toda aquela gente importante saiu em grande estilo da
sala. Voltando-se da porta, meu juiz disse:
— Deixem-na ficar meia hora mais de pé nesse banco, e que ninguém fale
com ela pelo resto do dia.
Lá estava eu, assim, trepada lá no alto; eu, que dissera que não poderia
suportar a vergonha de ficar em meus pés naturais no meio da sala, estava agora
exposta à visão geral num pedestal de infâmia. Quais eram minhas sensações,
nenhuma linguagem pode descrever; mas, no momento em que se manifestavam,
sufocando-me a respiração e constrangendo-me a garganta, uma menina se
adiantou e passou por mim; ao passar, ergueu os olhos. Que estranha luz os
inspirava! Que extraordinária sensação aquele raio me enviou! Como essa nova
sensação me sustentou! Era como se um mártir, um herói, houvesse passado por
um escravo ou vítima, e comunicado força ao passar. Dominei minha crescente
histeria, ergui a cabeça e assumi uma posição firme sobre o banco. Helen Burns
fez algumas perguntas sobre seu trabalho à Srta. Smith, foi repreendida pela
trivialidade da consulta, voltou ao seu lugar e sorriu-me ao passar de novo. Que
sorriso! Lembro-o agora, e sei que era a emanação de um belo intelecto, da
verdadeira coragem; iluminou seus traços marcados, seu rosto magro, seus fundos
olhos cinza, como o reflexo da expressão de um anjo! E no entanto, naquele
momento Helen Burns usava no braço o "emblema do desmazelo"; menos de uma
hora atrás eu a ouvira ser condenada pela Srta. Scatcherd a uma refeição de pão e
água na manhã seguinte, porque tinha borrado um exercício ao copiá-lo. Tal é a
imperfeita natureza do homem! Tais manchas estão lá, no disco do mais claro
planeta; e olhos como os da Srta. Scatcherd só podem ver esses minúsculos
defeitos, e são cegos ao brilho pleno da esfera.
CAPÍTULO 8
ANTES de acabar a meia hora, bateram cinco horas; a escola foi liberada, e
todas se dirigiram ao refeitório para o chá. Aventurei-me então a descer; estava
muito escuro; retirei-me para um canto e sentei-me no chão. A magia que me
sustentara até então começou a dissolver-se; veio então a reação, e logo, tão
esmagadora foi a dor que se apoderou de mim, caí prostrada com o rosto no chão.
Chorava agora: Helen Burns não estava ali; nada me amparava; entregue a mim
mesma, abandonei-me, e minhas lágrimas molharam o assoalho. Eu pretendera
ser tão boa, e fazer tanta coisa em Lowood: fazer tantas amigas, e conquistar
afeição. Já fizera visível progresso: naquela mesma manhã chegara ao alto de
minha classe; a Srta. Miller me elogiara calorosamente; a Srta. Temple dera um
sorriso de aprovação; prometera ensinar-me a desenhar, e deixar-me aprender
francês, se eu continuasse me aperfeiçoando assim por mais dois meses: e
também era bem acolhida por minhas colegas; tratada como uma igual pelas de
minha idade, e não molestada por nenhuma; agora jazia ali novamente, esmagada
e espezinhada; poderia algum dia reerguer-me de novo?
"Nunca", eu pensava; e desejava ardentemente morrer. Enquanto soluçava
esse desejo em tons entrecortados, alguém se aproximou; estremeci — Helen
Burns estava novamente junto a mim; os fogos que morriam mal a iluminavam
subindo a sala comprida, vazia; trazia meu café com pão.
— Vamos, coma alguma coisa — ela disse, mas eu os afastei de mim,
sentindo como se uma gota ou uma migalha fossem sufocar-me em minhas atuais
condições. Helen me encarou provavelmente com surpresa: eu não podia agora
conter minha agitação, embora tentasse com todas as forças; continuava a chorar
alto. Ela se sentou no chão junto a mim, abraçou os joelhos e repousou a cabeça
neles; e nessa atitude ficou, calada, como uma índia. Eu fui a primeira a falar:
— Helen, por que você fica com uma menina que todos julgam ser uma
mentirosa?
— Todos, Jane? Ora, existem apenas oitenta pessoas que ouviram você ser
chamada assim, e o mundo contém centenas de milhões.
— Mas que tenho eu a ver com milhões! As oitenta que conheço me
desprezam.
— Jane, você está enganada: provavelmente ninguém na escola a despreza ou
odeia; estou certa de que muitas têm pena de você.
— Como podem ter pena de mim depois do que o Sr. Brocklehurst disse?
— O Sr. Brocklehurst não é um deus; não é sequer um grande homem,
admirado: é pouco querido aqui; nunca tomou medidas para se fazer querido. Se a
tivesse tratado como uma favorita especial, você teria encontrado inimigas,
declaradas ou encobertas, em toda a sua volta; do jeito como estão as coisas, a
maioria lhe ofereceria simpatia, se ousasse. Professoras e alunas podem olhá-la
com frieza por um dia ou dois, mas haverá sentimentos amistosos ocultos nos
corações delas; e se você perseverar em fazer o bem, esses sentimentos não
custarão a se manifestar, e mais evidentes devido à temporária supressão. Além
disso, Jane... — Parou.
— Sim, Helen? — eu disse, pondo minha mão na sua. Ela esfregou meus
dedos delicadamente, para aquecê-los, e prosseguiu:
— Se todo o mundo a odiasse, e a achasse má, mas sua consciência a
aprovasse e a absolvesse de culpa, você não ficaria sem amigos.
— Não; sei que pensaria bem de mim mesma; mas isso não basta; se outros
não me amam, eu preferiria morrer a viver... não posso suportar ser solitária e
odiada, Helen. Olhe aqui; para conquistar alguma verdadeira afeição de você, da
Srta. Temple ou de qualquer outra pessoa a quem realmente amo, eu me
submeteria de boa vontade a ter os ossos de meu braço quebrados, ou a deixar que
um touro me atingisse, ou a ficar atrás de um cavalo escoiceador e deixá-lo bater
com os cascos em meu peito...
— Cale-se, Jane! Você pensa muito no amor dos seres humanos; é impulsiva
demais, veemente demais; a Mão soberana que criou seu corpo e pôs vida nele lhe
proporcionou outros recursos além de seu débil eu, ou de criaturas débeis como
você. Além desta terra, e da raça humana, há um mundo invisível e um reino dos
espíritos; esse mundo está à nossa volta, pois está em toda parte; e esses espíritos
nos observam, pois receberam ordens para vigiar-nos; e mesmo que estivéssemos
morrendo de dor e vergonha, que o desprezo nos cercasse de todos os lados, e o
ódio nos esmagasse, os anjos vêem nossas torturas, reconhecem nossa inocência
(se somos inocentes, como sei que você é dessa acusação que o Sr. Brocklehurst
repetiu débil e pomposamente, em segunda mão, da Sra. Reed, pois leio uma
natureza sincera em seus olhos ardentes e em sua fronte límpida), e Deus espera
apenas uma separação do espírito da carne para coroar-nos com uma recompensa
plena. Por que, então, deveríamos nós algum dia afundar arrasados pela angústia,
quando a vida acaba tão cedo, e a morte é uma entrada tão certa para a
felicidade... a glória?
Fiquei calada: Helen me acalmara; mas na tranqüilidade que ela transmitia
havia um veio de inexprimível tristeza. Senti a impressão de desventura enquanto
ela falava, mas não podia dizer de onde vinha; e quando, tendo acabado de falar,
ela começou a respirar um pouco depressa, e tossiu, esqueci momentaneamente
minhas próprias mágoas para ceder a uma vaga preocupação por ela.
Descansando a cabeça no ombro de Helen, pus meus braços em volta de sua
cintura; ela me puxou para si, e repousamos em silêncio. Não estávamos assim
sentadas havia muito tempo, quando outra pessoa apareceu. Algumas nuvens
escuras, varridas do céu por um vento cada vez mais forte, desnudaram a lua; e
sua luz, jorrando por uma janela próxima, batia em cheio sobre nós e sobre a
figura que se aproximava, e que logo reconhecemos como a Srta. Temple.
— Vim expressamente para buscá-la, Jane Eyre — ela disse. — Quero-a em
meu quarto, e como Helen Burns está com você, pode vir também.
Fomos: seguindo a orientação da superintendente, tivemos de atravessar
alguns intricados corredores e subir uma escada, antes de chegar aos aposentos
dela, que continha um bom fogo e parecia animado. A Srta. Temple disse a Helen
Burns que se sentasse numa poltrona baixa a um lado da lareira e, sentando-se ela
própria numa outra, chamou-me para seu lado.
— Já acabou? — perguntou, baixando o olhar para o meu rosto. — Já chorou
o bastante para expulsar sua dor?
— Receio que jamais consiga isso.
— Por quê?
— Porque fui injustamente acusada; e a senhora, madame, e todas as outras
agora me julgarão má.
— Nós a julgaremos o que você provar que é, minha criança. Continue a agir
como uma boa menina, e nos satisfará.
— Satisfarei, Srta. Temple?
— Satisfará — ela disse, passando o braço em torno de mim. — E agora me
diga quem é a senhora a quem o Sr. Brocklehurst chamou de sua benfeitora.
— A Sra. Reed, a esposa de meu tio. Meu tio morreu, e me deixou aos
cuidados dela.
— Então ela não a adotou por sua própria vontade?
— Não, madame; ela sentiu muito ter de fazê-lo, mas meu tio, como muitas
vezes ouvi as criadas dizerem, fez com que ela prometesse, antes de ele morrer,
que sempre cuidaria de mim.
— Bem, agora, Jane, você sabe, ou pelo menos eu vou lhe dizer, que quando
um criminoso é acusado, sempre tem o direito de falar em sua própria defesa.
Você pode ter sido acusada de falsidade; defenda-se para mim o melhor que
puder. Diga o que quer que sua memória lhe sugira como verdade; mas não
acrescente nada e não exagere nada.
Eu decidi, no fundo de meu coração, que seria moderadíssima —
corretíssima; e, tendo refletido alguns minutos, a fim de arrumar coerentemente o
que tinha a dizer, contei-lhe toda a história de minha triste infância. Exaurida pela
emoção, minha linguagem foi muito mais atenuada do que era geralmente quando
desenvolvia esse triste tema; e tendo em mente as advertências de Helen para não
me entregar ao ressentimento, infundi na narrativa muito menos rancor e
amargura do que de hábito. Assim contida e simplificada, ela soou mais digna de
crédito; eu sentia, enquanto prosseguia, que a Srta. Temple acreditava plenamente
em mim.
Durante a narrativa eu mencionara o fato de o Sr. Lloyd ter vindo ver-me após
o ataque, pois jamais esqueci o episódio terrível, para mim, do quarto vermelho;
ao contar os detalhes, minha excitação certamente excedeu os limites, em certa
medida; pois nada podia suavizar em minha lembrança o espasmo de agonia que
se apoderou de meu coração quando a Sra. Reed desdenhou minha desesperada
súplica de perdão, e me trancou uma segunda vez na câmara escura e assombrada.
Acabei: a Srta. Temple encarou-me alguns minutos me silêncio; depois, disse:
— Conheço um pouco o Sr. Lloyd; vou escrever a ele; se a resposta dele
concordar com sua declaração, você será publicamente absolvida de toda
acusação; para mim, Jane, você já está absolvida agora.
Beijou-me, e, ainda mantendo-me a seu lado (onde eu estava muito contente
de ficar, pois extraía um prazer infantil da contemplação do rosto dela, de seu
vestido, seus um ou dois enfeites, sua testa branca, seus cachos brilhantes e seu
reluzentes olhos negros), dirigiu-se a Helen Burns:
— Como está esta noite, Helen? Tossiu muito hoje?
— Não muito, creio, madame.
— E a dor no peito?
— Está um pouco melhor.
A Srta. Temple se levantou, tomou a mão dela e examinou-lhe o pulso; depois
voltou à sua poltrona; ao tornar a sentar-se, ouvi-a suspirar baixinho. Ficou
pensativa alguns minutos, e depois, levantando-se, disse animadamente:
— Mas vocês duas são visitas esta noite; tenho de tratá-las como tais. —
Tocou a sineta.
— Barbara — disse à criada que atendeu — ainda não tomei o meu chá; traga
a bandeja, e ponha xícaras para essas duas senhoritas.
E logo uma bandeja foi trazida. Como pareciam belas, a meus olhos, as
xícaras de louça e a reluzente chaleira, colocadas na mesinha redonda perto do
fogo! Como era cheiroso o vapor da infusão, e a fragrância de torrada, da qual, no
entanto, eu, para minha consternação (pois começava a ficar faminta), discerni
apenas um pedaço muito pequeno: a Srta. Temple teve o mesmo discernimento.
— Barbara — disse — não pode trazer um pouco mais de pão e manteiga?
Não há o bastante para três.
Barbara saiu. Voltou logo.
— Madame, a Sra. Harlen diz que mandou a quantidade de sempre.
A Sra. Harden, diga-se de passagem, era a governanta, uma mulher ao gosto
do Sr. Brocklehurst, composta de partes iguais de barbatana de baleia e ferro.
— Oh, muito bem — respondeu a Srta. Temple — creio que temos de fazer
dar, Barbara. — E, quando a moça se retirou, ela acrescentou, sorridente: —
Felizmente, está em meu poder sanar deficiências desta vez.
Tendo-nos convidado, a mim e a Helen, para aproximar-nos da mesa, e
colocando diante de cada uma de nós uma xícara de chá com um delicioso mas
minúsculo pedaço de torrada, ela se levantou, abriu uma gaveta e, tirando dali um
embrulho de papel, revelou afinal a nossos olhos um bolo de cominho de bom
tamanho.
— Eu pretendia dar a cada uma de vocês um pedaço disso para levarem
consigo — disse. — Mas, como há tão pouca torrada, devem comê-lo agora. — E
passou a cortar fatias com mão generosa.
Banqueteamo-nos naquela noite como com néctar e ambrosia; e o menor
prazer da diversão não foi, certamente, o sorriso de satisfação com que nossa
anfitriã nos olhava, enquanto satisfazíamos nossos famintos apetites com a
delicada refeição que ela tão liberadamente fornecia. Acabado o chá e retirada a
bandeja, ela nos chamou novamente para junto do fogo; sentamo-nos uma a cada
lado dela, e seguiu-se uma conversa entre ela e Helen, que era de fato um
privilégio ouvir.
A Srta. Temple tinha sempre algo de serenidade em seu aspecto, de grandeza
em sua expressão, de refinada propriedade em sua linguagem, que eliminava
desvios para o ardor, a excitação, a avidez, algo que refinava o prazer daqueles
que a olhavam e ouviam, através de uma controlada sensação de temor; e isso era
o que eu sentia agora, mas, quanto a Helen Burns, eu estava maravilhada.
A restauradora refeição, o fogo brilhante, a presença e bondade de sua amada
instrutora, ou, talvez, mais que isso tudo, algo em sua própria mente única,
despertara seus poderes dentro dela. Eles despertaram, se animaram; primeiro,
fulgiram na cor viva de suas faces, que até então eu só vira pálidas e exangues;
depois, brilharam no líquido lustro de seus olhos, que haviam repentinamente
adquirido uma beleza mais singular que a da Srta. Temple — uma beleza que não
era nem de belas cores, nem de cílios longos, nem de sobrancelhas desenhadas,
mas de significado, de movimento, de radiação. Também a alma se mostrava nos
lábios, e a linguagem fluía, de qual fonte não sei dizer; terá uma menina de
quatorze anos um coração grande o bastante, vigoroso o bastante para abrigar o
volume da pura, plena, ardente eloqüência? Tal era a característica do discurso de
Helen, naquela noite para mim memorável; seu espírito parecia apressar-se a
viver, dentro de um período muito breve, o que muitos vivem durante uma
prolongada existência.
Elas conversavam sobre coisas que eu jamais ouvira; de nações e tempos
passados; de países distantes; de segredos da natureza descobertos ou imaginados;
falaram de livros, quantos tinham lido! Que reservas de conhecimento possuíam!
Depois, pareciam tão familiarizadas com nomes e autores franceses: mas meu
pasmo atingiu o clímax quando a Srta. Temple perguntou a Helen se ela às vezes
retirava um momento para lembrar o latim que seu pai lhe ensinara, e, pegando
um livro de uma estante, mandou-a ler e comentar uma página de Virgílio; e
Helen obedeceu, meu órgão de veneração expandindo-se a cada verso. Ela mal
terminara quando a sineta anunciou a hora de dormir: não se podia admitir
nenhum atraso; a Srta. Temple abraçou-nos a ambas, dizendo, ao apertar-nos
contra o coração:
— Deus as abençoe, minhas filhas!
A Helen, ela abraçou um pouco mais que a mim; deixou-a ir-se com mais
relutância. Foi a Helen que seus olhos acompanharam até a porta; foi por ela que
exalou pela segunda vez um triste suspiro; por ela enxugou uma lágrima da face.
Ao chegarmos ao dormitório, ouvimos a voz da Srta. Scatcherd: ela
examinava gavetas, e acabava de puxar a de Helen Burns. Quando entramos,
Helen foi saudada com uma severa reprimenda, ouvindo que no dia seguinte teria
meia dúzia de artigos mal dobrados presos ao ombro.
— Minhas coisas estavam realmente em vergonhosa desordem — murmurou
Helen para mim, em voz baixa. — Eu pretendia arrumá-las, mas esqueci.
Na manhã seguinte, a Srta. Scatcherd escreveu em letras grandes, num pedaço
de papelão, a palavra "Desmazelada", e amarrou-o como um filactério em torno
da testa grande, suave, inteligente e de aparência benigna de Helen. Ela o usou até
a noite, paciente, sem ressentimento, encarando-o como um merecido castigo. No
momento em que a Srta. Scatcherd se retirou, após as aulas da tarde, corri para
Helen, arranquei-o e o joguei no fogo. A fúria de que ela era incapaz estivera
ardendo-me na alma o dia todo, e lágrimas grossas e quentes haviam-me
escaldado continuamente as faces; pois o espetáculo de sua triste resignação
causava-me uma dor insuportável no coração.
Cerca de uma semana depois dos incidentes acima narrados, a Srta. Temple,
que tinha escrito ao Sr. Lloyd, recebeu sua resposta; parecia que o que ele dizia
corroborava minha história. A Srta. Temple, tendo reunido toda a escola,
anunciou que se fizera uma investigação sobre as acusações assacadas contra Jane
Eyre, e que ela tinha o máximo prazer de declará-la completamente livre de todas
as imputações. As professoras então me apertaram a mão e me beijaram, e um
murmúrio de prazer correu pelas fileiras de minhas colegas.
Assim aliviada de um penoso fardo, a partir dessa hora dediquei-me ao
trabalho com renovada força, decidida a abrir caminho através de todas as
dificuldades. Trabalhei duro, e o sucesso foi proporcional aos esforços; minha
memória, não naturalmente tenaz, melhorou com a prática; o exercício aguçou
minha inteligência. Em poucas semanas, fui promovida a uma classe superior; em
menos de dois meses, permitiram-me começar o francês e o desenho. Aprendi os
dois primeiros tempos do verbo Être, e desenhei minha primeira casa (cujas
paredes, a propósito, batiam em inclinação as da torre inclinada de Pisa) no
mesmo dia. Naquela noite, ao ir para a cama, esqueci de preparar em minha
imaginação a ceia de batatas assadas quentes, ou pão branco e leite novo, com que
costumava entreter meus anseios interiores. Banqueteei-me, em vez disso, com o
espetáculo de desenhos ideais, que via na escuridão — tudo obra de minhas mãos;
casas e árvores livremente riscadas, rochas e ruínas pitorescas, grupos de animais
de criação à maneira de Cuyp, suaves pinturas de borboletas pairando sobre
botões de rosas, de pássaros bicando cerejas maduras, ninhos de carriças
envolvendo ovos que pareciam pérolas, e feitos de tenros galhos de hera.
Examinei também, em pensamento, a possibilidade de um dia ser capaz de
traduzir fluentemente um certo livro de histórias francês que Madame Pierrot me
mostrara naquele dia; mas não consegui resolver satisfatoriamente esse problema
antes de adormecer.
Bem disse Salomão: "É melhor um jantar de ervas quando há amor, do que
um boi no estábulo com ódio."
Eu não teria trocado então Lowood, com todas as suas privações, por
Gateshead e seu luxo diário.
CAPÍTULO 9
MAS AS PRIVAÇÕES, ou antes, os apuros de Lowood, diminuíram. A
primavera chegava — na verdade, já tinha chegado; as geadas do inverno haviam
cessado: as neves tinham-se derretido, e os ventos cortantes amainado. Meus
pobres pés, que o frio de janeiro esfolara e fizera inchar até deixar-me manca,
começaram a sarar e desinchar com as brisas mais suaves de abril; as noites e
manhãs não mais nos congelavam até o sangue nas veias, com aquela temperatura
canadense; podíamos agüentar a hora de recreio no jardim, que às vezes, num dia
de sol, começava mesmo a tornar-se agradável e alegre; e naqueles canteiros
pardos brotava um verdor que, revivendo a cada dia, sugeria a idéia de que a
esperança os percorria à noite, deixando a cada manhã traços mais vividos de seus
passos. Entre as folhas, brotavam flores: galantos, açafrões, aurículas roxas e
amores perfeitos de olhos dourados. Nas tardes de quinta-feira (quando tínhamos
um meio feriado), fazíamos agora passeios, e descobríamos flores ainda mais
lindas abrindo-se à beira do caminho, sob as sebes.
Descobri também que, além dos altos muros protegidos por pontas de nosso
jardim, nos esperava um grande prazer, um deleite só limitado pelo horizonte, o
panorama de nobres cumes rodeando uma grande concha entre os montes,
exuberante de verdura e sombras; e um riacho luminoso, cheio de pedras escuras e
cristas faiscantes. Como esse cenário parecera diferente quando eu o vira sob o
férreo céu do inverno, endurecido pela geada, velado pela neve! Quando névoas
frias como a morte vagavam ao impulso dos ventos leste por aqueles cumes
roxos, e rolavam pelas encostas abaixo até fundirem-se com a neblina congelada
do arroio! O próprio arroio era agora uma torrente, turva e incontível; rasgava o
bosque e enchia o ar de delirante sonoridade, sendo muitas vezes engrossado pela
chuva forte ou o granizo; e quanto à floresta em suas margens, esta mostrava
apenas fileiras de esqueletos.
Abril avançou para maio — e foi um maio luminoso e sereno; dias de céu
azul, sol plácido e suaves ventos oeste ou sul o mês todo. E agora a vegetação
amadurecia com vigor; Lowood soltava as trancas; tornou-se toda verde, toda
flores; os grandes esqueletos de seus olmos, freixos e carvalhos voltaram à sua
vida majestosa; o mato brotou abundante nos recessos; inúmeras variedades de
musgo encheram os vãos; e a riqueza das prímulas silvestres fazia um estranho
espetáculo à luz do sol no chão; eu via o seu ouro pálido reluzir em zonas de
sombra como respingos do mais doce esplendor. De tudo isso eu desfrutava
freqüente e plenamente, livre, não observada e quase só; pois essa desusada
liberdade e prazer tinham uma causa, para a qual se torna agora meu dever
chamar a atenção.
Não descrevi um lugar agradável para uma casa, quando falei do local como
cercado de montes e bosques, e erguendo-se à margem de um regato? Certamente
muito agradável, mas quanto à salubridade, é outra questão.
Aquele pequeno e estreito vale na floresta, onde ficava Lowood, era um foco
de nevoeiro e da pestilência por ele gerada; o que, avançando com o avanço da
primavera, invadiu o Asilo de Órfãs, soprando o tifo pela superlotada sala de aula
e o dormitório, e, antes da chegada de maio, transformando o seminário num
hospital.
A inanição e os resfriados malcuidados haviam predisposto a maioria das
alunas à infecção; quarenta e cinco das oitenta meninas caíram doentes de uma
vez. As aulas foram interrompidas, as regras relaxadas. Deu-se às poucas que
continuaram sãs uma liberdade quase ilimitada; porque o médico chamado insistia
na necessidade de exercício freqüente para mantê-las saudáveis; e mesmo que
assim não fosse, ninguém tinha tempo para vigiá-las ou reprimi-las. Toda a
atenção da Srta. Temple era absorvida pelas pacientes; ela vivia na enfermaria,
jamais deixando-a, a não ser para conseguir umas poucas horas de repouso à
noite. As professoras estavam inteiramente ocupadas preparando as malas e
fazendo outros preparativos necessários à partida das meninas afortunadas o
bastante para terem amigos e parentes capazes e dispostos a retirá-las do local de
contágio. Muitas, já atingidas, iam para casa apenas para morrer; algumas
morreram na escola, e foram enterradas discreta e rapidamente, pois a natureza da
doença proibia demoras.
Enquanto a doença se tornava assim uma habitante de Lowood, e a morte sua
visitante freqüente; enquanto havia tristeza e medo entre suas paredes; enquanto
seus quartos e corredores rescendiam com odores de hospital, a droga e a pílula
tentando inutilmente vencer os eflúvios da mortalidade, aquele maio luminoso
brilhava sem nuvens sobre as íngremes montanhas e a soberba mata lá fora. Os
jardins, também, refulgiam de flores: malvas rosas haviam brotado das grandes
árvores, os lírios se abriam, tulipas e rosas floresciam; as bordas dos pequenos
canteiros alegravam-se com róseos cravos-de-paris e margaridas rubras; as rosas
amarelas desprendiam pela manhã e à noite seu odor de especiaria e maçãs; e
esses fragrantes tesouros eram todos inúteis para a maioria das internas de
Lowood, a não ser para fornecer de vez em quando um punhado de ervas e flores
a serem postas num caixão.
Mas eu, e as outras que continuavam sãs, desfrutávamos plenamente das
belezas do cenário e da estação: deixavam-nos vaguear pela mata como ciganas,
da manhã à noite; fazíamos o que queríamos, íamos aonde gostávamos, e também
vivíamos melhor. O Sr. Brocklehurst e sua família jamais se aproximavam de
Lowood agora, os assuntos da casa não eram examinados; a rabugenta governanta
se fora, expulsa pelo temor à infecção; sua sucessora, que tinha sido a matrona do
Dispensário de Lowton, não acostumada aos usos da nova morada, servia com
relativa liberalidade. Além disso, havia menos bocas a alimentar: as doentes só
podiam comer pouco; nossas tigelas de desjejum eram mais cheias; quando não
havia tempo de preparar um jantar regular, o' que acontecia muitas vezes, ela nos
dava grandes pedaços de torta fria, ou uma grossa fatia de pão e queijo, e isso nós
levávamos para a mata, onde cada uma escolhia o local de que gostava mais e
jantava suntuosamente.
Meu local favorito era uma pedra lisa e larga, que se elevava branca e seca no
meio do regato, e à qual só se podia chegar vadeando a água; um feito que eu
realizava descalça. A pedra era larga apenas o suficiente para acomodar
confortavelmente outra menina e eu, naquela época a companheira que eu
escolhera — uma certa Mary Ann Wilson, personagem astuta e observadora, cuja
companhia me dava prazer, em parte porque ela era espirituosa e original, e em
parte porque tinha uns modos que me punham à vontade. Alguns anos mais velha
que eu, sabia mais sobre o mundo e podia dizer-me muitas coisas que eu gostava
de ouvir; com ela, minha curiosidade encontrava satisfação; às minhas faltas,
também, ela dava muita indulgência, jamais impondo freio ou rédea a qualquer
coisa que eu dissesse. Tinha um jeito para contar histórias, e eu para a análise; ela
gostava de informar, e eu de questionar; assim nos dávamos muito bem, extraindo
grande prazer, se não grande aperfeiçoamento, de nosso mútuo intercurso.
E onde, enquanto isso, estava Helen Burns? Por que eu não passava aqueles
doces dias de liberdade com ela? Tinha-a esquecido? Ou seria tão imprestável a
ponto de ter-me cansado de sua pura companhia? Sem dúvida a Mary Ann Wilson
que mencionei era inferior à minha primeira amiga, só podia contar-me histórias
divertidas, e retribuir algum mexerico picante e mordaz a que eu me entregasse;
ao passo que, se falei a verdade sobre Helen, ela era capaz de dar àqueles que
desfrutavam do privilégio de sua conversa um gosto de coisas muito mais
elevadas.
É verdade, leitor, e eu sabia e sentia isso; e embora seja um ser com defeitos,
com muitas falhas e poucos pontos redentores, nunca me cansei de Helen Burns, e
nunca deixei de alimentar por ela um sentimento de ligação mais forte, terno e
respeitoso do que qualquer um que já me animou o coração. E como poderia ser
de outra forma, quando Helen, em todos os momentos e circunstâncias, me
demonstrara uma tranqüila e fiel amizade, jamais azedada por nenhum mau
humor, jamais perturbada por nenhuma irritação? Mas Helen estava doente agora,
havia algumas semanas que fora removida de minha vista para não sei que quarto
lá em cima. Disseram-me que não estava na parte hospitalar da casa com as
pacientes febris, pois seu mal era a tísica, não o tifo; e por tísica eu, em minha
ignorância, entendia alguma coisa branda, que o tempo e os cuidados certamente
aliviariam.
Confirmou-me essa idéia o fato de ela uma ou duas vezes ter descido, em
tardes de sol muito quentes, e ser levada pela Srta. Temple para o jardim: mas,
nessas ocasiões, não me deixavam ir falar com ela; apenas a via da janela da sala
de aula, e mesmo assim não muito claramente, pois ela estava sempre muito
envolta em abrigos, e sentava-se longe, sob a varanda.
Uma noite, no início de junho, eu ficara até muito tarde com Mary Ann na
mata; como sempre, havíamo-nos separado das outras, afastando-nos muito, tanto,
que perdemos o caminho e tivemos de perguntar por ele numa cabana solitária,
onde moravam um homem e uma mulher, que cuidavam de uma vara de porcos
meio selvagens, alimentados de bolotas de carvalho na mata. Quando voltamos, a
lua já tinha nascido; um pônei, que sabíamos ser do médico, estava parado na
porta do jardim. Mary Ann observou que achava que alguém devia estar muito
doente, uma vez que tinham chamado o Sr. Bates àquela hora da noite. Ela entrou
em casa; eu fiquei para trás alguns minutos, a fim de plantar em meu jardim um
punhado de raízes que cavara na floresta, e que temia viessem a murchar se
esperasse até a manhã seguinte. Feito isso, demorei-me ainda um pouco; as flores
tinham um perfume tão doce quando o sereno começava a cair; era uma noite tão
agradável, tão serena, tão cálida; o ocidente ainda fulgurante prometia tão
lindamente mais um belo dia no dia seguinte; a lua elevava-se com tal majestade
no grave oriente! Eu observava essas coisas e as desfrutava como só uma criança
sabe desfrutar, quando me entrou na mente, como nunca entrara antes:
"Como é triste estar agora deitada num leito de doente, e em perigo de morte!
Este mundo é agradável... seria terrível ser chamada dele, e ter de ir, quem sabe
para aonde?"
E então minha mente fez seu primeiro esforço sério para compreender o que
se infundira nela sobre céu e inferno, e pela primeira vez recuou intrigada; e, pela
primeira vez olhando para trás, para cada lado e em frente, viu em toda a volta um
insondável fosso, sentiu o ponto único onde estava — o presente; todo o resto era
nuvem informe e profundo vazio; e estremeceu à idéia de cambalear e mergulhar
no meio do caos. Enquanto ponderava essa nova idéia, ouvi a porta da frente
abrir-se; o Sr. Bates saiu, e com ele vinha uma enfermeira. Após tê-lo visto
montar em seu cavalo e partir, ela estava para fechar a porta, quando corri até ela.
— Como está Helen Burns?
— Muito mal — foi a resposta.
— Foi a ela que o Sr. Bates veio ver?
— Foi.
— E que é que ele diz sobre ela?
— Diz que não estará aqui por muito tempo.
Esta frase, dita ao alcance de meus ouvidos no dia anterior, teria apenas
transmitido a idéia de que ela estava para ser removida para Northumberland, para
sua casa. Eu não teria suspeitado de que significava que ela estava morrendo; mas
agora o soube ao mesmo instante; abriu-se claro em minha compreensão o fato de
que Helen Burns contava seus últimos dias neste mundo, que ia ser levada para a
região dos espíritos, se tal região existia. Experimentei um choque de horror,
depois um forte sentimento de dor, e em seguida um desejo — uma necessidade
de vê-la; e perguntei em que quarto ela estava.
— Está no quarto da Srta. Temple — disse a enfermeira.
— Posso subir e falar com ela?
— Oh, não, menina! Não é provável; e agora é hora de você entrar; vai pegar
a febre se ficar aí fora com o sereno caindo.
A enfermeira fechou a porta da frente; eu entrei pela entrada lateral, que
levava à sala de aula, e bem a tempo; eram nove horas, e a Srta. Miller chamava
as alunas para a cama.
Poderiam ser duas horas depois, provavelmente quase onze, quando eu — não
tendo conseguido dormir, e julgando, pelo absoluto silêncio no dormitório, que
minhas companheiras estavam todas mergulhadas em profundo repouso — me
levantei silenciosamente, pus o vestido sobre a camisola de dormir, e, descalça,
deslizei do aposento e parti em busca do quarto da Srta. Temple. Ficava no outro
extremo da casa; mas eu sabia o caminho, e a luz da lua estivai, sem nuvens,
penetrando aqui e ali pelas janelas do corredor, permitiram-me encontrá-lo sem
dificuldade. Um cheiro de cânfora e de vinagre queimado avisou-me quando me
aproximei do quarto da febre, e passei por sua porta rapidamente, temendo que a
enfermeira que ficava de plantão a noite toda me ouvisse. Temia ser descoberta e
mandada de volta; porque tinha de ver Helen — tinha de abraçá-la antes de ela
morrer — tinha de dar-lhe um último beijo, trocar com ela uma última palavra.
Tendo descido uma escada, atravessado uma parte da casa embaixo e
conseguido abrir e fechar, sem barulho, duas portas, cheguei a outro lance de
escadas; subi-o, e então, bem à minha frente, vi o quarto da Srta. Temple. Uma
luz brilhava pelo buraco de fechadura e por baixo da porta; um profundo silêncio
reinava em torno. Aproximando-me, encontrei a porta ligeiramente entreaberta;
sem dúvida para deixar que um pouco de ar fresco penetrasse na estreita morada
da doença. Não querendo hesitar, e cheia de impulsos impacientes — a alma e os
sentidos estremecendo com fortes pulsações — empurrei-a e olhei para dentro.
Meus olhos buscavam Helen, e temiam encontrar a morte.
Perto da cama da Srta. Temple, e meio coberta com suas cortinas brancas,
havia uma tarimba. Vi os contornos de uma forma sob os lençóis, mas o rosto
estava oculto pelo cortinado; a enfermeira com quem eu falara no jardim sentava-
se numa poltrona, adormecida; uma vela não espevitada ardia fracamente sobre a
mesa. Não se via a Srta. Temple: eu soube depois que fora chamada para junto de
uma paciente delirante no quarto da febre. Adiantei-me, e parei ao lado da
tarimba: tinha a mão na cortina, mas preferi falar antes de puxá-la. Ainda recuava
diante do temor de ver um cadáver.
— Helen! — sussurrei baixinho. — Está acordada?
Ela se moveu, puxou a cortina, e vi seu rosto pálido, esgotado, mas muito
calmo; parecia tão pouco mudada que meu temor se dissipou no mesmo instante.
— É possível que seja você, Jane? — ela perguntou, em sua voz delicada.
"Oh!" pensei, "ela não vai morrer; estão enganados; ela não poderia falar e
parecer tão calma se fosse".
Meti-me em sua cama e beijei-a; a testa estava fria, e o rosto frio e magro, e o
mesmo acontecia com a mão e o pulso; mas sorria como antes.
— Por que veio aqui, Jane? Já passa das onze; ouvi bater há alguns minutos.
— Vim vê-la, Helen, ouvi dizer que você estava muito doente, e não pude
dormir sem falar com você.
— Veio me dizer adeus então, e chegou bem a tempo, provavelmente.
— Vai a algum lugar, Helen? Vai para casa?
— Sim; para minha casa distante... minha última morada.
— Não, não, Helen! — Parei, angustiada. Enquanto tentava engolir as
lágrimas, Helen teve um acesso de tosse; mas isso não acordou a enfermeira.
Quando passou, ela ficou alguns minutos exausta; depois, murmurou:
— Jane, seus pezinhos estão descalços; deite-se e cubra-se com minha colcha.
Obedeci; ela passou o braço por cima de mim, e eu me aninhei junto dela.
Após um longo silêncio, ela recomeçou, ainda murmurando:
— Estou muito feliz, Jane; e quando você souber que eu morri, deve sentir-se
segura e não lamentar, não há nada a lamentar, Todos temos de morrer um dia, e a
doença que está me levando não é dolorosa; é suave e gradual; minha mente está
em repouso. Não deixo ninguém que sinta muito a minha falta: tenho só meu pai,
e ele se casou há pouco, e não sentira a minha falta. Morrendo jovem, escaparei
de grandes sofrimentos. Eu não tinha qualidades ou talentos para abrir meu
caminho muito bem no mundo: estaria continuamente em falta.
— Mas aonde você vai, Helen? Pode ver? Você sabe?
— Eu creio; tenho fé: vou para Deus.
— Onde está Deus? Que é Deus?
— Meu Criador e o seu, que jamais destruirá o que criou. Apóio-me
implicitamente em Seu poder, e confio inteiramente em Sua bondade, conto as
horas até chegar aquela hora memorável que me devolverá a Ele, que O revelará a
mim.
— Você está certa, então, Helen, de que há um céu; e de que nossas almas
podem ir para lá quando morrermos?
— Estou certa de que há uma existência futura; creio que Deus é bom; posso
entregar-Lhe minha parte imortal sem nenhuma apreensão. Deus é meu pai; Deus
é meu amigo; eu O amo; e creio que Ele me ama.
— E a verei de novo, Helen, quando eu morrer?
— Você virá à mesma região de felicidade, será recebida pelo mesmo
poderoso e universal Pai, sem dúvida, querida Jane.
Tornei a perguntar, mas desta vez apenas em pensamento; "Onde fica essa
região? Será que existe?" E apertei Helen mais fortemente em meus braços; ela
me parecia mais querida que nunca; sentia-me como se não pudesse deixá-la
partir; fiquei ali deitada, com o rosto escondido em seu pescoço. Afinal, ela me
disse no tom mais doce:
— Como me sinto confortável! O último acesso de tosse me cansou um
pouco; sinto que poderia dormir; mas não me deixe, Jane; gosto de tê-la perto de
mim.
— Ficarei com você, querida Helen, ninguém me tirará daqui.
— Você está aquecida, querida?
— Estou.
— Boa-noite, Jane.
— Boa-noite, Helen.
Ela me beijou, e eu a ela, e ambas logo adormecemos.
Quando acordei, já era dia; um movimento incomum me despertara; ergui o
olhar; estava nos braços de alguém, a enfermeira me segurava; levava-me pelo
corredor de volta ao dormitório. Não fui repreendida por deixar minha cama; as
pessoas tinham outra coisa em que pensar; não se deu nenhuma explicação então
em resposta às minhas muitas perguntas; mas um dia ou dois depois eu soube que
a Srta. Temple, ao voltar para seu quarto de madrugada, me encontrara deitada na
tarimba, o rosto no ombro de Helen Burns, meus braços em torno do pescoço
dela. Eu dormia, e Helen estava... morta.
O túmulo dela é no Cemitério de Brocklebridge: durante quinze anos após a
sua morte, esteve coberto apenas por um monte de grama; mas agora uma lápide
de mármore cinza assinala o local, com seu nome inscrito, e a palavra Resurgam.
CAPÍTULO 10
ATÉ agora tenho recordado em detalhes os acontecimentos de minha
insignificante existência: aos primeiros dez anos de minha vida, dediquei quase
outros tantos capítulos. Mas esta não será uma autobiografia regular: devo invocar
a memória apenas onde sei que suas respostas terão algum grau de interesse;
assim, passarei agora por cima de um período de oito anos quase em silêncio:
apenas algumas linhas serão necessárias para manter os cios de ligação.
Quando a febre tifóide cumpriu sua missão de devastação em Lowood, foi aos
poucos desaparecendo de lá; mas não antes que sua virulência e o número de suas
vítimas houvessem chamado a atenção do público para a escola. Efetuou-se um
inquérito sobre a origem do flagelo, e aos poucos surgiram vários fatos que
causaram um alto grau de indignação pública. A natureza insalubre do local; a
quantidade e a qualidade da comida das crianças; a água intragável, fétida, usada
em sua preparação; as miseráveis roupas e acomodações das alunas — todas essas
coisas foram descobertas; e a descoberta produziu um resultado vexatório para o
Sr. Brocklehurst, mas benéfico para a instituição.
Várias pessoas ricas e benevolentes da região deram grandes contribuições
para a construção de um prédio mais adequado, num local mais bem situado; as
verbas da escola foram confiadas à administração de uma comissão. O Sr.
Brocklehurst, que, por sua riqueza e suas relações de família, não podia ser
afastado, ainda mantinha o posto de tesoureiro; mas era auxiliado, no desempenho
desses deveres, por cavalheiros de mentes mais abertas e simpáticas; também seu
cargo de inspetor era partilhado por aqueles que sabiam combinar razão com
exatidão, conforto com economia, compaixão com probidade. A escola, assim
melhorada, tornou-se com o tempo uma nobre e útil instituição. Continuei interna
entre seus muros, após essa regeneração, por mais oito anos — seis como aluna e
dois como professora; e em ambas as condições atesto seu valor e importância.
Durante esses oito anos, minha vida foi uniforme, mas não infeliz, porque não
era inativa. Eu tinha os meios de obter uma excelente educação ao meu alcance; e
era estimulada pelo gosto por alguns de meus estudos e o desejo de ser excelente
em todos, juntamente com um grande prazer em agradar minhas professoras, em
particular as que eu amava. Aproveitei plenamente as vantagens que me eram
oferecidas. Com o tempo, vim a ser a primeira menina da primeira classe; depois,
investiram-me com o cargo de professora, do qual me desincumbi com zelo
durante dois anos; mas no fim desse tempo me modifiquei.
A Srta. Temple, em meio a todas as mudanças, havia continuado até então a
ser a superintendente do seminário; à sua instrução, devo a melhor parte de
minhas aquisições; sua amizade e companhia foram um contínuo alívio para mim;
ela me amparara no lugar de mãe, governanta e, mais tarde, companheira. Nessa
época, casou-se, mudou-se com o marido (um clérigo, um homem excelente,
quase digno de tal esposa) para uma região distante, e conseqüentemente perdeu-
se para mim.
Desde o dia em que ela partiu, não fui mais a mesma: com ela se fora todo
sentimento assentado, toda associação que fazia de Lowood, em certa medida, um
lar para mim. Eu tinha absorvido algo de sua natureza e muito de seus hábitos;
idéias mais harmoniosas; sentimentos aparentemente mais bem regrados se
haviam instalado em minha mente. Aceitara o dever e a ordem; era calma;
julgava-me satisfeita; aos olhos dos outros, e usualmente até aos meus próprios,
parecia uma pessoa disciplinada e contida.
Mas o destino, sob a forma do Rev. Sr. Nasmyth, se interpôs entre mim e a
Srta. Temple: vi-a em seu vestido de viagem subir numa carruagem de posta,
pouco depois da cerimônia de casamento. Observei a carruagem subir o morro e
desaparecer depois do cume; e depois me retirei para meu quarto, e ali passei em
solidão a maior parte do meio feriado concedido em honra da ocasião.
Andei pelo quarto a maior parte do tempo. Imaginava que apenas lamentava
minha perda e pensava em como repará-la; mas quando se concluíram minhas
reflexões, e ergui o olhar e vi que a tarde se acabara, e que a noite já ia adiantada,
ocorreu-me outra descoberta — isto é, que sofrerá naquele intervalo um processo
de transformação; que minha mente rejeitara tudo que eu tomara de empréstimo à
Srta. Temple — ou antes, que ela levara consigo a serena atmosfera que eu
respirava em sua vizinhança — e que agora eu fora deixada em meu elemento
natural, e começava a sentir o despertar de velhas emoções. Não era como se se
houvesse retirado um esteio, mas antes como se uma motivação houvesse
desaparecido: não era a capacidade de ficar tranqüila que me faltava, mas o
motivo de tranqüilidade que não mais existia. Meu mundo fora por alguns anos
em Lowood; minha experiência tinha sido a de suas regras e sistemas; agora eu
me lembrava de que o verdadeiro mundo era amplo, e que um variado campo de
esperanças e temores, de sensações e excitações, esperava aqueles que tinham a
coragem de lançar-se em sua vastidão, para buscar o verdadeiro conhecimento da
vida em meio a seus perigos.
Fui à minha janela, abri-a e olhei para fora. Lá estavam as duas alas do prédio;
lá estava o jardim; lá estavam os arredores de Lowood; lá estava o montanhoso
horizonte. Meus olhos passaram por todos os outros pontos para repousarem
naqueles mais remotos, os cumes azuis. Era àqueles que eu ansiava por
ultrapassar; tudo dentro de seus limites de rochas e charnecas parecia área de
prisão, confins de exílio. Distingui a branca estrada serpeando em torno da base
da montanha e desaparecendo numa garganta entre duas delas. Como eu ansiava
por segui-la além! Lembrava-me do tempo em que viajara por aquela mesma
estrada numa diligência; lembrava-me de que descera aquela colina ao
crepúsculo. Parecia ter-se passado um século desde o dia que me trouxera pela
primeira vez a Lowood, e eu jamais saíra dali desde então. Minhas férias, passara-
as todas na escola. A Sra. Reed jamais mandara me buscar para ir a Gateshead;
nem ela nem qualquer outra pessoa de sua família jamais viera visitar-me. Eu não
tivera nenhuma comunicação por carta ou mensagem com o mundo lá fora. As
regras da escola, os deveres da escola, os hábitos, idéias, vozes, rostos, frases,
costumes, preferências e antipatias da escola, isso era o que eu sabia da existência.
E agora achava que não era o bastante. Cansei-me da rotina de oito anos numa
tarde. Desejei a liberdade; ansiei pela liberdade; pela liberdade, fiz uma prece, que
pareceu espalhar-se no vento que então soprava fracamente. Abandonei-a e
arranjei uma súplica mais humilde. Pedindo mudança, estímulo. Esse pedido
também pareceu ser varrido para o vago espaço. "Então", exclamei, meio
desesperada, "concedei-me ao menos uma nova servidão!"
Nesse momento uma sineta, batendo a hora da ceia, chamou-me lá para baixo.
Não pude reiniciar a cadeia de minhas reflexões até a hora de dormir; e
mesmo então uma professora que ocupava o mesmo quarto comigo me afastou do
tema ao qual eu ansiava por retomar, com uma prolongada efusão de mexericos.
Como eu gostaria de que o sono a silenciasse! Parecia que, se ao menos pudesse
retornar à idéia que me entrara na cabeça quando estava à janela, surgiria alguma
sugestão inventiva para meu alívio.
A Srta. Gryce ressonou afinal. Era uma galesa forte, e até então eu só tinha
encarado seus habituais ruídos nasais como incômodo. Naquela noite, porém,
saudei as primeiras notas profundas com satisfação. Estava livre de interrupção;
meu pensamento meio apagado reviveu no mesmo instante.
"Uma nova servidão! Há alguma coisa nisso aí", disse a mim mesma
(mentalmente, entenda-se; não falava em voz alta). "Sei que há, porque não soa
tão bom. Não é igual a palavras como Liberdade, Excitação, Prazer; sons
deliciosos na verdade, mas não mais que sons para mim, e tão ocos e fugidios que
é mera perda de tempo ouvi-los. Mas Servidão! Este deve ser concreto. Qualquer
uma serve. Servi aqui oito anos; agora quero apenas servir em outra parte. Será
que não posso conseguir isso de minha própria vontade? Não será exeqüível?
Sim, s;m, a
;meta não é tão difícil, basta que eu tenha um cérebro ativo o bastante
para descobrir os meios de atingi-la."
Pus-me sentada na cama, para despertar o dito cérebro. Era uma noite fria;
cobri os ombros com um xale, e depois prossegui pensando de novo com todas as
minhas energias.
"Que é que eu quero? Um novo lugar, numa nova casa, entre novos rostos, em
novas circunstâncias. Quero isso porque não adianta querer nada melhor. Com as
pessoas conseguem um novo lugar? Recorrem a amigos, suponho. Eu não tenho
amigos. Há muitos outros que não têm amigos, e que devem procurar por si
mesmos e ser seus próprios amparos; e qual é o recurso deles?"
Não sabia dizer, nada me respondia. Então ordenei a meu cérebro que
encontrasse uma resposta, e rapidamente. Ele trabalhou e trabalhou mais rápido.
Senti suas pulsações latejando em minha cabeça e minhas têmporas; mas durante
quase uma hora ele trabalhou no caos, e não veio nenhum resultado de seus
esforços. Febril com o trabalho inútil, levantei-me e dei uma volta no quarto, abri
a cortina, observei uma estrela ou duas e novamente me enfiei na cama.
Uma fada bondosa, em minha ausência, certamente jogara-me a sugestão
necessária no travesseiro, pois assim que me deitei ela me veio tranqüila e
naturalmente à mente: "Os que querem empregos põem anúncios: você deve pôr
um anúncio no... shire Herald."
"Como? Eu nada sei sobre anúncios."
As respostas vinham suaves e prontas agora:
"Você deve pôr o anúncio e o dinheiro para pagá-lo dentro de um envelope
endereçado ao editor do Herald. Deve colocá-lo, na primeira oportunidade que
tiver, no correio em Lowton. As respostas deverão ser encaminhadas a J. E., na
agência do correio daqui. Você pode ir perguntar, cerca de uma semana depois de
mandar a carta, se há alguma resposta, e agir de acordo com isso."
Repassei esse plano duas, três vezes; até que minha mente o digeriu: eu o
tinha de uma forma clara e prática, senti-me satisfeita, e adormeci.
De manhã bem cedinho, eu já estava de pé; escrevi meu anúncio, pu-lo no
envelope e enderecei-o antes de tocar a sineta que acordava a escola; era assim:
"Jovem acostumada a ensinar" (eu não tinha sido professora dois anos?)
"deseja encontrar emprego junto a uma família particular com crianças de menos
de quatorze anos". (Eu pensava que, como mal tinha dezoito anos, não adiantaria
assumir a orientação de alunos mais próximos de minha idade.) "Ela está
qualificada para ensinar as matérias usuais de uma boa educação inglesa,
juntamente com francês, desenho e música" (naquele tempo, leitor, esse hoje
magro catálogo de aptidões seria julgado toleravelmente amplo). "Respostas para
J. E., Agência do Correio, Lowton,... shire."
Esse documento ficou fechado em minha gaveta o dia todo. Após o chá, pedi
permissão à nova superintendente para ir a Lowton, a fim de fazer algumas
pequenas compras para mim mesma e uma ou duas de minhas colegas
professoras; concederam-me prontamente a permissão; parti. Era uma caminhada
de duas milhas, e a tarde estava chuvosa, mas os dias ainda eram compridos;
visitei uma ou duas lojas, pus a carta no correio e voltei debaixo de chuva grossa,
com as roupas encharcadas, mas com o coração aliviado.
A semana seguinte pareceu longa; mas acabou afinal, como todas as coisas
terrestres, e mais uma vez, lá pelo fim de um agradável dia de outono, encontrei-
me andando pela estrada de Lowton. Era uma estrada pitoresca, a propósito;
correndo ao lado do regato e através das mais suaves curvas do vale; mas naquele
dia eu pensava mais em cartas, que poderiam ou não estar à minha espera no
pequeno burgo ao qual me encaminhava, do que nos encantos de prados e regatos.
Minha missão ostensiva nessa ocasião era tirar as medidas para um par de
sapatos; assim, tratei desse assunto primeiro, e quando acabei, atravessei a limpa e
tranqüila ruazinha, da casa do sapateiro ao correio defronte, que era servido por
uma velha dama de óculos de aros de tartaruga no nariz e luvas pretas nas mãos.
— Há alguma carta para J. E.? — perguntei.
Ela me espiou por cima dos óculos, e depois abriu uma gaveta e remexeu seu
conteúdo por um longo tempo, tão longo que minhas esperanças começaram a
fraquejar. Afinal, tendo segurado um documento diante dos óculos por quase
cinco minutos, estendeu-o por cima do balcão, acompanhando o ato com outro
olhar inquisitivo e desconfiado — era para J. E.
— Só uma? — perguntei.
— Não há mais nenhuma — ela disse; e eu pus a carta no bolso e me virei em
direção à escola: não podia abri-la ali; os regulamentos obrigavam-me a estar de
volta às oito, e já eram sete e meia.
Vários deveres me aguardavam à minha chegada. Tinha de ficar com as
meninas durante a hora de estudo delas; depois era a minha vez de ler as preces;
acompanhá-las à cama; em seguida, ceei com as outras professoras. Mesmo
quando nos retiramos, finalmente, para dormir: a inevitável Srta. Gryce ainda me
acompanhava, tínhamos apenas um curto toco de vela no castiçal, e eu temia que
ela falasse até a vela acabar; felizmente, porém, a pesada ceia que ela comera
produziu um efeito soporífero: já ressonava antes de eu acabar de despir-me.
Restava ainda uma polegada de vela: então saquei a carta; o lacre era uma inicial,
F.; rompi-o; o conteúdo era breve.
"Se J. E., que pôs um anúncio no ...shire Herald de quinta-feira passada,
possui as aptidões mencionadas; e se está em condições de dar referências
satisfatórias quanto ao seu caráter e competência, pode-se oferecer-lhe um
emprego em casa com uma só aluna, uma menininha de menos de dez anos; e na
qual o salário é de trinta libras por ano. Pede-se a ). E. que envie referências,
nome e endereço, e todos os detalhes, para o endereço: Sra. Fairfax, Thornfield,
perto de Millcote, ...shire."
Examinei longamente o documento: a letra era antiga e um tanto insegura,
como a de uma senhora idosa. Essa circunstância era satisfatória: obcecara-me um
temor íntimo de que agindo assim por mim mesma, e seguindo minha própria
orientação, me arriscava a entrar em alguma encrenca; e acima de tudo desejava
que o resultado de minhas iniciativas fosse respeitável, apropriado, en règle.
Agora achava que uma senhora idosa não era um mau ingrediente no problema
que tinha em mãos. Sra. Fairfax! Eu a via num vestido negro e com uma touca de
viúva; frígida talvez, mas não sem educação; um modelo de idosa respeitabilidade
inglesa. Thornfield! Esse, sem dúvida, era o nome da casa; um lugar limpo e
arrumado, eu tinha certeza; embora fracassasse em meus esforços para conceber
um plano correto da propriedade, Millcote, ...shire; espanei minhas lembranças do
mapa da Inglaterra; sim, via-o; tanto o condado como a cidade....shire ficava
setenta milhas mais perto de Londres que o remoto condado onde eu morava
agora: isso era uma recomendação para mim. Eu ansiava por ir aonde houvesse
vida e movimento. Millcote era uma grande cidade manufatureira nas margens do
A...; um lugar bastante ativo, sem dúvida; tanto melhor; seria uma completa
mudança, pelo menos. Não que minha fantasia fosse muito cativada pela idéia das
longas chaminés e nuvens de fumaça. "Mas", eu argumentava, "Thornfield
provavelmente ficará a uma boa distância da cidade".
Nesse ponto, o soquete da vela caiu, e o pavio se extinguiu.
No dia seguinte, novos passos tinham de ser dados, meus planos não podiam
mais confinar-se em meu peito; eu tinha de comunicá-los, para levá-los a bom
termo. Tendo pedido e obtido uma audiência com a superintendente, durante o
recreio do meio-dia, disse-lhe que tinha uma perspectiva de um novo emprego,
onde o salário seria o dobro do que o que eu ganhava agora (pois em Lowood
ganhava apenas quinze libras por ano); a pedi-lhe que levasse o assunto para mim
ao Sr. Brocklehurst ou a alguém da comissão, e verificasse se me permitiam
mencioná-los como referências. Ela consentiu amavelmente em agir como
mediadora no caso. No dia seguinte, expôs a questão ao Sr. Brocklehurst, que
disse que se devia escrever à Sra. Reed, uma vez que ela era a minha guardiã
natural. Endereçou-se por conseguinte uma nota àquela senhora, que escreveu em
resposta que "eu podia fazer o que quisesse: ela havia muito abrira mão de toda
interferência em meus assuntos". Essa nota correu a comissão, e afinal, após o que
me pareceu uma tediosíssima demora, deram-me permissão para melhorar de
condição, se pudesse; e um atestado acrescentava que, como eu sempre me
conduzira bem, tanto como professora quanto como aluna, em Lowood, me seria
fornecido um atestado de caráter e capacidade, assinado pelos inspetores da
instituição.
Recebi portanto essa recomendação dentro de um mês, enviei uma cópia dela
para a Sra. Fairfax e recebi sua resposta, dizendo que estava satisfeita e fixando
quinze dias, a partir daquele, como o período para que eu assumisse o posto de
governanta em sua casa.
Lancei-me então aos preparativos: a quinzena passou rapidamente. Eu não
tinha um guarda-roupa muito grande, embora fosse adequado às minhas
necessidades; e o último dia bastou para arrumar minha mala — a mesma que
trouxera comigo oito anos antes de Gateshead.
A mala foi amarrada com corda, a identificação colada. Em meia hora, o
carregador iria levá-la a Lowton, onde eu mesma deveria estar bem cedo na
manhã seguinte, para encontrar a diligência. Escovei meu vestido preto de
viagem, preparei minha touca, luvas e regalo; revistei todas as minhas gavetas,
para ver se não estava deixando nada, e sentei-me para tentar descansar. Não
pude; embora houvesse passado o dia todo de pé, não podia agora repousar um
instante; estava excitada demais. Uma fase de minha vida encerrava-se naquela
noite, uma nova abria-se no dia seguinte: impossível dormir no intervalo; tinha de
observar febrilmente enquanto a mudança se realizava.
— Senhorita — disse a criada que me encontrou no saguão onde eu vagueava
como um espírito perturbado — uma pessoa lá embaixo deseja vê-la.
"O carregador, sem dúvida", pensei, e corri para baixo sem perguntar nada.
Atravessava o parlatório de trás, ou sala de estar das professoras, cuja porta estava
meio aberta, para ir à cozinha, quando alguém se precipitou para fora.
— É ela, tenho certeza! Eu a reconheceria em qualquer parte! — gritou a
pessoa que deteve minha marcha e me tomou a mão.
Olhei, vi uma mulher vestida como uma criada bem trajada, matronal mas
ainda jovem; muito bonita, com cabelos e olhos negros, e uma tez vivida.
— Bem, quem é? — ela perguntou, numa voz e com um sorriso que me
pareceu reconhecer. — Creio que não me esqueceu, Srta. Jane?
No segundo seguinte eu a estava abraçando e beijando arrebatadamente:
— Bessie! Bessie! Bessie! — era tudo que eu dizia, enquanto ela meio ria,
meio chorava, e ambas passávamos ao parlatório. Ao lado da lareira estava um
camaradinha de três anos, de bata pregueada e calças.
— Esse é o meu menininho — disse logo Bessie.
— Então você se casou, Bessie?
— Sim; já faz quase cinco anos, com Robert Leaven, o cocheiro; e tenho uma
menininha, além de Bobby aí, que batizei como Jane.
— E não mora em Gateshead?
— Moro na portaria; o velho porteiro partiu
— Bem, e como vão todos? Conte-me tudo sobre eles, Bessie; mas sente-se
primeiro, e você, Bobby, venha sentar-se em meus joelhos, quer?
Mas Bobby preferiu ficar ao lado da mãe.
— Não ficou muito alta, Srta. Jane, nem muito gorda — continuou a Sra.
Leaven. — Aposto que não a trataram muito bem na escola; a senhorita daria nos
ombros da Srta. Reed; e a Srta. Georgiana dá duas da senhorita em largura.
— Georgiana está bonita, suponho, Bessie?
— Muito. Ela foi a Londres no inverno passado com a mãe, e lá todos a
admiraram, e um jovem lorde se apaixonou por ela: mas os parentes dele foram
contra o casamento; e... que acha a senhorita? Ele e a Srta. Georgiana planejaram
fugir; mas foram descobertos e detidos. Foi a Srta. Reed que os descobriu; creio
que estava com inveja; e agora ela e a irmã levam uma vida de gato e cachorro
juntas; estão sempre brigando.
— Bem, e que me diz de John Reed?
— Oh, ele vai tão bem quanto a mãe poderia desejar. Foi para a faculdade e...
levou pau... creio que é assim que dizem. E depois os tios quiseram que ele fosse
advogado e estudasse direito; mas é um jovem tão dissipado que jamais farão
grande coisa dele, eu penso.
— Que aparência tem ele?
— É muito alto. Algumas pessoas dizem que é um jovem dé bela aparência;
mas tem uns lábios tão grossos.
— E a Sra. Reed?
— A patroa está gorda e muito bem de rosto, mas acho que não está com o
espírito muito tranqüilo. A conduta do Sr. John não lhe agrada... ele gasta um
bocado de dinheiro.
— Foi ela quem a mandou aqui, Bessie?
— Não, realmente, mas eu há muito queria vê-la, e quando soube que chegara
uma carta sua, e que a senhorita ia para outra parte do país, pensei que devia vir e
dar uma olhada na senhorita antes que estivesse muito longe de meu alcance.
— Receio que se tenha decepcionado comigo, Bessie?
Eu disse isso rindo. Percebi que o olhar de Bessie, embora expressasse
interesse, não denotava admiração de modo algum,
— Não, Srta. Jane, não exatamente. A senhorita é bastante gentil; parece uma
dama, e é tudo que eu esperava da senhorita: não era nenhuma beldade quando
criança.
Sorri à franca resposta de Bessie; senti que era correta, mas confesso que não
fiquei exatamente indiferente ao seu sentido. Aos dezoito anos, a maioria das
pessoas deseja agradar, e a convicção de que não tem uma aparência capaz de
apoiar esse desejo traz tudo, menos satisfação.
— Mas aposto que a senhorita é inteligente — continuou Bessie, como
consolação. — Que sabe fazer? Sabe tocar piano?
— Um pouco.
Não havia ninguém na sala; Bessie se encaminhou para o piano, abriu-o e
pediu-me que me sentasse e lhe tocasse uma música. Toquei uma ou duas valsas,
e ela ficou encantada.
— As Srtas. Reed não sabiam tocar tão bem! — ela disse, exultante. — Eu
sempre disse que a senhorita poderia superá-las no aprendizado; e sabe desenhar?
— Ali está uma de minhas pinturas no aparador da chaminé. — Era uma
paisagem em aquarela, que eu presenteara à superintendente, em reconhecimento
por sua amável mediação junto à comissão em meu favor, e que ela mandara
emoldurar e envidraçar.
— Bem, é bonita, Srta. Jane! É um quadro tão bonito quanto qualquer um que
o professor de desenho das Srtas. Reed pintaria, quanto mais as próprias jovens,
que não poderiam chegar nem perto; e aprendeu francês?
— Sim, Bessie; sei ler e falar francês.
— E sabe trabalhar em musselina e tela?
— Sei.
— Oh, é uma verdadeira dama, Srta. Jane! Eu sabia que seria; vencerá, quer
seus parentes a notem ou não. Havia uma coisa que eu queria lhe perguntar.
Algum dia soube alguma coisa dos parentes de seu pai, os Eyre?
— Jamais em minha vida.
— Bem, a senhorita sabe que a patroa sempre disse que eles eram pobres e
muito desprezíveis; e eles podem ser pobres; mas creio que são tão fidalgos
quanto os Reeds; pois um dia, há quase sete anos, apareceu em Gateshead um
certo Sr. Eyre querendo ver a senhorita. A patroa disse que a senhorita estava na
escola, a cinqüenta milhas de distância: ele pareceu tão desapontado, por não
poder ficar; ia viajar para um país estrangeiro, e o navio devia partir de Londres
dentro de um dia ou dois. Ele parecia um completo cavalheiro, e creio que era
irmão de seu pai.
— Para que país estrangeiro ia ele, Bessie?
— Uma ilha a milhares de milhas de distância, onde fazem vinho... o
mordomo me disse...
— Madeira? — sugeri.
— Sim; é isso... é essa mesma a palavra.
— Então ele partiu?
— Sim; não permaneceu muitos minutos na casa: a patroa foi muito altiva
com ele; chamou-o depois de um "servil comerciante". Meu Robert acha que ele
era um comerciante de vinhos.
— Muito provavelmente — respondi. — Ou talvez caixeiro ou agente de
algum comerciante de vinhos.
Bessie e eu conversamos sobre os velhos tempos por mais uma hora, e depois
ela teve de deixar-me: tornei a vê-la de novo por alguns minutos em Lowton,
enquanto esperava a diligência. Despedimo-nos finalmente ali, na porta do
Brocklehurst Arms: cada uma seguiu seu caminho distinto: ela partiu para a borda
de Lowood Fell, a fim de pegar o transporte que a levaria de volta a Gateshead; eu
subi no veículo que ia me levar para novos deveres e uma nova vida, nas
desconhecidas cercanias de Millcote.
CAPÍTULO 11
UM NOVO capítulo num romance é algo como um novo cenário numa peça;
e quando suspendo a cortina desta vez, leitor — você deve imaginar que vê uma
sala na George Inn, em Millcote, com o papel de parede de grandes desenhos que
as salas das hospedarias costumam ter; e os mesmos tapetes, móveis, adornos no
aparador da lareira e gravuras — inclusive um retrato de George III e outro do
Príncipe de Gales, e um quadro da morte de Wolfe. Tudo isso é visível à luz de
uma lâmpada de petróleo que pende do teto, e de um excelente fogo, perto do qual
me sento com meu casaco e touca; o regalo e a sombrinha estão na mesa, e
espanto com o calor a dormência e o frio contraídos em dezesseis horas de
exposição à inclemência de um dia de outubro: deixei Lowton às quatro horas da
manhã, e o relógio municipal de Millcote acaba de bater as oito.
Leitor, embora eu pareça confortavelmente acomodada, não tenho o espírito
muito tranqüilo. Pensava que, quando a diligência parasse aqui, haveria alguém
para me receber; olhei ansiosamente em volta, ao descer os degraus de madeira
que os criados colocaram para minha conveniência, esperando ouvir
pronunciarem meu nome e ver algum tipo de carruagem esperando para
transportar-me até Thornfield. Não se via nada disso; e quando perguntei a um
garçom se alguém viera perguntar por uma certa Srta. Eyre, recebi uma resposta
negativa; assim, não tive outro jeito senão pedir que me conduzissem a uma sala
privada, e aqui estou esperando, enquanto toda sorte de dúvidas e temores me
perturbam os pensamentos.
É uma sensação muito estranha, para uma jovem inexperiente, sentir-se
inteiramente sozinha no mundo, cortada de toda ligação, insegura sobre se pode
alcançar o porto aonde se destina, e impossibilitada por muitos obstáculos de
retornar ao que deixou. O encanto da aventura suaviza essa sensação, e o fulgor
do orgulho aquece-a: mas aí o latejar do medo a perturba; e o medo tomou conta
de mim quando meia hora se passou e eu continuava só. Decidi tocar a sineta.
— Existe um lugar por aqui chamado Thornfield? — perguntei ao garçom que
respondeu ao chamado.
— Thornfield? Não sei, madame: vou perguntar no bar. Ele desapareceu, mas
reapareceu no mesmo instante.
— Seu nome é Eyre, senhorita?
— Sim.
— Há uma pessoa aqui esperando a senhorita.
Eu me pus de pé num salto, peguei o regalo e a sombrinha e saí correndo para
o corredor da hospedaria: havia um homem parado na porta aberta, e na rua
iluminada pela lâmpada vi um transporte puxado por um só cavalo.
— Será esta a sua bagagem, senhorita? — disse o homem um tanto
abruptamente quando me viu, apontando minha mala no corredor.
— Sim. — Ele a levou para o veículo, que era uma espécie de carro, e depois
eu subi: antes de ele fechar a porta, perguntei-lhe a que distância ficava
Thornfield.
— Coisa de umas seis milhas.
— Quanto tempo demoraremos para chegar lá?
— Coisa de uma hora e meia.
Ele fechou a porta do carro, subiu para o seu assento do lado de fora, e
partimos. Nossa marcha era vagarosa, e me deu bastante tempo para refletir:
estava satisfeita por me achar tão perto do fim de minha jornada; e enquanto me
reclinava na carruagem confortável, embora nada elegante, meditava muito em
meu caso.
"Suponho"', pensava, "a julgar pelo aspecto comum do criado e da carruagem,
que a Sra. Fairfax não é uma pessoa muito refinada: tanto melhor; só vivi entre
pessoas refinadas uma
vez, e fui muito infeliz com elas. Imagino se ela vive sozinha, a não ser pela
menina; se assim for, e se ela demonstrar um mínimo de amabilidade, certamente
poderei me dar bem com ela; farei o melhor que puder: é uma pena que isso nem
sempre resolva. Em Lowood, na verdade, tomei essa resolução, mantive-a e
consegui agradar; mas com a Sra. Reed, lembro-me de que o melhor que fazia era
sempre desdenhado. Rogo a Deus que a Sra. Fairfax não se revele uma segunda
Sra. Reed, mas se se revelar, não sou obrigada a ficar com ela: se acontecer o pior,
porei outro anúncios. Imagino quanto já fizemos de nosso caminho?"
Baixei a janela e olhei para fora; Millcote ficara para trás; a julgar pelo
número de suas luzes, parecia um lugar de considerável magnitude, muito maior
que Lowton. Estávamos agora, até onde eu podia julgar, numa espécie de terras
comunais; mas havia casas espalhadas por todo o distrito; eu sentia que estávamos
numa região diferente de Lowood, mais populosa, menos pitoresca; mais
excitante, menos romântica.
As estradas eram pesadas, a noite nevoenta: meu condutor deixou o cavalo
seguir a passo até o fim, e a hora e meia se estendeu, creio, a duas horas;
finalmente, ele se voltou em seu assento e disse:
— A senhorita não está tão longe de Thornfield agora. Tornei a olhar para
fora: passávamos por uma igreja: vi a torre baixa e larga contra o céu, e o sino
batia o quarto de hora; vi também uma estreita galáxia de luzes numa encosta,
assinalando uma aldeia ou vila. Cerca de dez minutos depois, o cocheiro desceu e
abriu um par de portões; passamos por eles, que bateram atrás de nós. Subíamos
agora lentamente a entrada de uma propriedade, e chegamos diante da comprida
frente de uma casa; de uma janela de sacada em arco, cortinada, vinha uma luz de
vela; tudo mais estava escuro. A carruagem parou na porta da frente, que foi
aberta por uma criada; desci e entrei.
— Quer fazer o favor de vir por aqui, madame? — disse a moça, e atravessei
atrás dela um saguão quadrado com altas portas em toda a volta: ela me introduziu
numa sala cuja dupla iluminação, de lareira e vela, a princípio me ofuscou,
contrastando com a escuridão a que meus olhos se tinham habituado por duas
horas; quando consegui enxergar, contudo, um quadro acolhedor e agradável se
apresentou à minha visão.
Uma sala aconchegante, pequena; uma mesa redonda ao lado de um bom
fogo; uma poltrona de espaldar alto e fora de moda, onde se sentava uma pequena
senhora idosa, com uma touca de viúva, vestido de seda negra e um avental de
musselina branca como a neve; exatamente como eu imaginara a Sra. Fairfax,
apenas menos pomposa e de aparência mais suave. Estava ocupada tricotando; um
grande gato sentava-se muito sério a seus pés; nada, em suma, faltava para
completar o belo ideal de conforto doméstico. Dificilmente se poderia conceber
uma introdução mais tranqüilizante para uma nova governanta; não havia
grandeza esmagadora, nem pompa embaraçosa; e depois, quando entrei, a velha
senhora se levantou e pronta e bondosamente veio me receber.
— Como vai, minha querida? Receio que tenha tido uma viagem aborrecida;
John dirige tão devagar; deve estar com frio; venha para junto do fogo.
— Sra. Fairfax, suponho? — eu disse.
— Sim, está certa, sente-se.
Conduziu-me até sua própria poltrona, e depois começou a remover meu xale
e desatar as fitas de minha touca; pedi-lhe que não tivesse tanto trabalho.
— Oh, não é trabalho; aposto que suas mãos estão quase dormentes de frio.
Leah, faça um pouco de chá quente e um ou dois sanduíches; aqui estão as chaves
do depósito.
E tirou do bolso um caseiríssimo molho de chaves e o entregou à criada.
— Agora, então, chegue mais perto do fogo — ela continuou. — Trouxe sua
bagagem consigo, não trouxe, minha querida?
— Sim, madame.
— Farei com que a levem para seu quarto — ela disse, e saiu às pressas.
"Ela me trata como uma visita", pensei. "Eu não esperava uma tal recepção;
previ apenas frieza e rigidez: isto não é como o que ouvi dizer do tratamento que
se dispensa às governantas; mas não devo exultar cedo demais".
Ela voltou; com as próprias mãos retirou seus instrumentos de tricô e um ou
dois livros de cima da mesa, para dar espaço à bandeja que Leah trazia agora, e
depois me serviu ela própria a refeição. Eu me sentia um tanto confusa por ser
objeto de mais atenção do que jamais recebera, e ainda por cima dispensada por
minha patroa e superiora; mas como ela mesma não parecia achar que estava
fazendo qualquer coisa demais, achei melhor aceitar suas cortesias discretamente.
— Terei o prazer de ver a Srta. Fairfax esta noite? — perguntei, quando havia
partilhado de tudo que ela me oferecera.
— Que disse, minha querida? Eu sou um pouco surda — disse a boa senhora,
aproximando o ouvido de minha boca.
Repeti a pergunta mais distintamente.
— Srta. Fairfax? Oh, quer dizer Srta. Varens! Varens é o nome de sua futura
pupila.
— De fato! Então não é sua filha?
— Não... eu não tenho família.
Eu devia ter prosseguido com minha investigação, perguntando de que modo
a Srta. Varens se relacionava com ela; mas lembrei de que não era muito polido
fazer muitas perguntas: além disso, tinha certeza de que o saberia no devido
tempo.
— Estou tão contente — ela continuou, sentando-se à minha frente e pondo o
gato nos joelhos. — Estou tão contente de que a senhorita tenha vindo; será muito
agradável viver aqui agora com uma companhia. Evidentemente, é agradável em
qualquer tempo; pois Thornfield é uma ótima mansão velha, um tanto abandonada
nos últimos anos, talvez, mas ainda um lugar respeitável; mas, você sabe, no
inverno a gente se sente triste sozinha, mesmo nos melhores lugares. Eu digo
sozinha... Leah é uma ótima moça, sem dúvida, e John e sua esposa são gente
muito decente; mas também, você sabe, são apenas criados, e não se pode
conversar com eles em termos de igualdade. Deve-se mantê-los à devida
distância, para não se perder a autoridade. Estou certa de que no inverno passado
(foi muito severo, se a senhorita se lembra, e quando não nevava, chovia e
ventava) nenhuma criatura, a não ser o açougueiro e o carteiro, veio à casa, de
novembro até fevereiro; fiquei realmente muito melancólica, aqui sentada sozinha
noite após noite; tinha Leah para ler para mim às vezes, mas não creio que a pobre
moça gostasse muito da tarefa: achava-a confinadora. Na primavera e no verão, a
gente passa melhor; o sol e os dias compridos fazem muita diferença; e depois, no
começo deste outono, vieram a pequena Adela Varens e sua babá; uma criança
torna a casa viva de repente; e, agora que a senhorita está aqui, ficarei muito
contente.
Meu coração realmente simpatizou com a digna senhora, ouvindo-a falar;
puxei minha cadeira um pouco mais para perto dela, e manifestei meu sincero
desejo de que ela achasse minha companhia tão agradável quanto previa.
— Mas não vou mantê-la sentada aqui a noite toda — ela disse. — Vão bater
doze horas, e a senhorita viajou o dia todo; deve estar cansada. Se está com os pés
bem aquecidos, eu lhe mostrarei o seu quarto. Mandei preparar o quarto vizinho
ao meu para a senhorita; é um aposento pequeno, mas achei que gostaria mais
dele do que de um dos grandes quartos da frente: claro que têm móveis melhores,
mas são tão sombrios e solitários, que eu mesma nunca durmo neles.
Agradeci-lhe por sua sábia escolha, e como me sentia realmente fatigada com
a longa viagem, manifestei a disposição de me recolher. Ela pegou sua vela e saiu
à minha frente do quar to. Primeiro foi ver se a meia porta estava trancada; tendo
tirado a chave da fechadura, seguiu em frente escada acima. Os degraus e
corrimãos eram de carvalho; a janela da escada, alta e com gelosia; tanto essa
janela como a extensa galeria para a qual se abriam as portas dos quartos
pareciam pertencer mais a uma igreja que a uma casa. Um ar muito frio, como de
abóbada, impregnava a escada e a galeria, sugerindo tristes idéias de espaço e
solidão; e fiquei satisfeita quando finalmente fui introduzida em meu quarto e o
achei de pequenas dimensões e mobiliado em estilo moderno comum.
Depois que a Sra. Fairfax me desejou uma boa noite, que fechei a porta e
olhei demoradamente em torno, e de certa forma desfiz, com o aspecto mais
animador de meu quarto, a impressão lúgubre causada por aquele amplo saguão,
aquela escura e espaçosa escada, e aquela extensa e fria galeria, lembrei-me de
que, após um dia de cansaço físico e ansiedade mental, eu estava agora,
finalmente, num porto seguro. O impulso de gratidão me fez inchar o coração, e
me ajoelhei à beira da cama e dei graças a quem as merecia; não esquecendo,
antes de me levantar, de implorar ajuda para meu caminho futuro, e o poder de
merecer a bondade que parecia tão francamente oferecida antes de ser
conquistada. Meu leito não teve espinhos naquela noite; meu quarto solitário,
nenhum temor. Ao mesmo tempo exausta e contente, dormi logo e sadiamente:
quando acordei, era dia claro.
O quarto parecia um lugarzinho tão iluminado, quando o sol penetrava por
entre as cortinas de alegre chita azul da janela, mostrando paredes empapeladas e
um piso acarpetado, tão diferente das tábuas nuas e do reboco manchado de
Lowood, que meu espírito se exaltou com aquela visão. As aparências externas
têm um grande efeito sobre os jovens. Pensei que uma era mais justa da vida
começava para mim, uma era que teria suas flores e prazeres, além dos espinhos e
trabalhos. Minhas faculdades, excitadas pela mudança de cenário, o novo campo
de esperança oferecido, pareciam todas alvoroçadas. Não posso definir
precisamente o que esperavam, mas era alguma coisa agradável, não talvez
naquele dia ou dentro de um mês, mas num período futuro indefinido.
Levantei-me; vesti-me com cuidado; obrigada a parecer comum — pois não
tinha nenhum artigo de vestuário que não fosse feito com extrema simplicidade —
ainda era, por natureza, dada a ser esmerada. Não era hábito meu desdenhar a
aparência, ou descuidar-me da impressão que causava; ao contrário, sempre
desejava parecer tão bem quanto pudesse, e agradar tanto quanto minha falta de
beleza permitisse. Às vezes lamentava não ser mais bonita: às vezes desejava ter
faces róseas, um nariz reto e uma boquinha de cereja; desejava ser alta, imponente
e com um belo físico; achava uma infelicidade ser tão pequena, tão pálida, e ter
feições tão irregulares e acentuadas. E por que tinha tais aspirações e pesares?
Seria difícil dizer, ou não podia então dizê-lo distintamente para mim mesma; mas
tinha uma razão, lógica e natural também. Contudo, depois de ter escovado o
cabelo até deixá-lo bem liso, de pôr meu vestido negro — que, apesar de seu
estilo Quaker, tinha pelo menos o mérito de assentar-me muito bem — e de ajeitar
meu cachecol branco limpo, pensei que estava bastante decente para aparecer
diante da Sra. Fairfax; e que minha nova aluna pelo menos não recuaria diante de
mim com antipatia. Tendo aberto a janela do quarto, e vendo que deixara todas as
minhas coisas arrumadas e limpas na mesa de toalete, aventurei-me a ir em frente.
Atravessando a extensa e atapetada galeria, desci os escorregadios degraus de
carvalho; depois ganhei o saguão; parei ali um minuto; olhei alguns quadros nas
paredes (um, lembro-me, representava um homem sombrio numa couraça, e uma
senhora com cabelo empoado e um colar de pérola), um candelabro de bronze que
pendia do teto e um grande relógio cuja caixa era de carvalho curiosamente
esculpido e ébano enegrecido pelo tempo e o polimento. Tudo me parecia muito
grandioso e imponente, mas também eu estava tão pouco acostumada à grandeza.
A porta do saguão, que era metade de vidro, estava aberta; cruzei-lhe a soleira.
Era uma bela manhã de outono; o sol novo brilhava serenamente sobre os sulcos
marrons e os campos ainda verdes; adiantando-me para o gramado, olhei para
cima e examinei o frontão da mansão. Tinha três andares, mas suas proporções
não eram vastas, apesar de consideráveis; a mansão senhorial de um cavalheiro,
não a sede de um nobre: ameias em torno do telhado davam-lhe uma aparência
pitoresca. Seu frontão cinza se destacava bastante contra o fundo de um viveiro de
corvos, cujos crocitantes moradores estavam agora no ar. Voavam sobre o
gramado e o terreno em volta e foram pousar num grande prado, dos quais os
jardins eram separados por uma cerca caída, e onde uma variedade de espinheiros,
fortes, nodosos e grossos como carvalhos, explicava ao mesmo tempo a
etimologia do nome da mansão. Mais adiante ficavam as montanhas; não tão
vistosas como as de Lowood, não tão escarpadas, não tão parecidas com barreiras
de separação do mundo dos vivos; mas ainda assim muito quietas e solitárias,
parecendo envolver Thornfield numa reclusão que eu não esperava encontrar tão
perto da movimentada localidade de Millcote. Uma pequena aldeia, cujos tetos se
misturavam com as árvores, espalhava-se pela encosta de uma dessas montanhas;
a igreja do distrito ficava mais perto de Thornfield; o alto de sua velha torre surgia
sobre um outeiro entre a casa e os portões. * Thornfield quer dizer, literalmente, Campo de espinhos. (N. do T.)
Eu ainda desfrutava a calma paisagem e o agradável ar fresco, ainda ouvia
com prazer o crocitar dos corvos, ainda examinava o amplo e vetusto frontão da
casa, e pensava em como aquele era um ótimo lugar para uma pequena dama
solitária como a Sra. Fairfax habitar, quando esta senhora apareceu na porta.
— Quê! Aqui fora, já? — ela disse. — Vejo que é madrugadora. —
Aproximei-me dela, e fui recebida com um beijo afável e um aperto de mão.
— Que acha de Thornfield? — ela perguntou.
Eu lhe disse que gostava muito.
— Sim — ela disse — é um belo lugar; mas receio que vá cair aos pedaços, a
menos que o Sr. Rochester meta na cabeça a idéia de vir morar aqui
permanentemente... ou, pelo menos, visitá-lo com mais freqüência. Grandes casas
e belas propriedades exigem a presença do proprietário.
— Sr. Rochester! — perguntei. — Quem é?
— O dono de Thornfield! — ela respondeu calmamente. — A senhorita não
sabia que ele se chamava Rochester?
Era evidente que eu não sabia: jamais ouvira falar dele antes; mas a velha
senhora parecia encarar sua existência como um fato universalmente sabido, que
todo mundo devia saber por instinto.
— Eu pensava — continuei — que Thornfield pertencia à senhora.
— A mim? Bendita seja, criança; que idéia! A mim? Eu sou apenas a
governanta... a administradora. Claro, sou remotamente aparentada com os
Rochesters pelo lado de minha mãe... ou, pelo menos, o meu marido era. Ele era
um clérigo, encarregado de Hay... aquela aldeiazinha na montanha... e aquela
igreja perto do portão era dele. A mãe do atual Sr. Rochester era uma Fairfax, e
prima segunda de meu marido; mas eu nunca me aproveito dessa relação... na
verdade, não significa nada para mim. Considero-me bem à luz de uma
governanta comum. Meu patrão é sempre educado, e não espero nada mais.
— E a menininha... minha pupila?
— É protegida do Sr. Rochester. Ele me mandou procurar uma governanta
para ela. Quer que ela seja criada em ...shire, creio. Aí vem ela, com sua bonne,
como chama a babá. — Explicado o enigma, então, aquela afável e bondosa viúva
não era nenhuma grande dama, mas uma dependente como eu própria. Não gostei
menos dela por isso; ao contrário, senti-me mais satisfeita que antes. A igualdade
entre ela e eu era real, não simples resultado de condescendência de sua parte.
Tanto melhor; minha posição era tanto mais livre.
Enquanto meditava nessa descoberta, uma menininha, acompanhada de sua
babá, aproximou-se correndo pelo gramado. Examinei minha pupila, que a
princípio não pareceu me notar. Era bem nova — talvez sete ou oito anos — de
corpinho frágil, com um rosto pálido de traços miúdos, e cabelos abundantes
caindo em cachos até a cintura.
— Bom-dia, Srta. Adela — disse a Sra. Fairfax. — Venha falar com a dama
que vai ensinar-lhe e fazer de você uma mulher inteligente algum dia. — Ela se
aproximou.
— Cest la gouvernante?* — ela disse, indicando-me e dirigindo-se à sua
babá, que respondeu: * — Ê a governanta?
— Mais oui, certainement.** ** — Sim, sem dúvida. (N. do T.)
— São estrangeiras? — perguntei.
— A babá é estrangeira, e Adela nasceu no Continente; e, creio, jamais o
deixou até seis meses atrás. Quando chegou aqui não sabia falar inglês; agora
pode mudar para ele um pouco. Eu não a compreendo, pois ela o mistura muito
com francês; mas aposto que a senhorita saberá o que ela diz muito bem.
Felizmente, eu tivera a vantagem de aprender francês com uma dama
francesa; e como sempre fizera questão de conversar com Madame Pierrot com
tanta freqüência quanto podia, e aprendera além disso, nos últimos sete anos, um
trecho de francês de cor todo dia — aplicando-me esforçadamente no sotaque e
imitando tão de perto quanto podia a pronúncia de minha professora — adquirira
um certo grau de presteza e correção nessa língua, e não era provável que ficasse
muito perdida com Mademoiselle Adela. Ela se aproximou e me apertou a mão,
ao saber que eu era sua governanta; mas depois que nos sentamos à mesa, e que
ela me examinou por uns dez minutos com seus grandes olhos de avelã, começou
de repente a tagarelar fluentemente.
— Ah! — exclamou em francês — A senhorita fala minha língua tão bem
quanto o Sr. Rochester. Posso falar com a senhorita como com ele, e Sophie
também. Ela ficará feliz; ninguém aqui a entende; Madame Fairfax é toda inglesa.
Sophie é minha babá; veio comigo por mar num grande navio com uma chaminé
que fumegava... como fumegava!... e eu fiquei enjoada, e Sophie também, e o Sr.
Rochester também. O Sr. Rochester deitou-se num sofá num belo salão chamado
salon, e a mim e a Sophie nos deram pequenas camas em outra parte. Eu quase caí
da minha; era como uma prateleira. E, Mademoiselle... como é seu nome?
— Eyre... Jane Eyre.
— Aire? Bah! Não consigo pronunciá-lo. Bem, nosso navio parou pela
manhã, antes de ser dia claro, numa grande cidade.... uma cidade imensa, com
casas muito escuras e coberta de fumaça; muito diferente da linda e bela cidade de
onde vim; e o Sr. Rochester me carregou nos braços por uma prancha até em
terra, e Sophie veio atrás, e entramos todos numa diligência, que nos levou a uma
bela casa grande, maior que esta c mais bonita, chamada hotel. Ficamos ali quase
uma semana: eu e Sophie saíamos a passear todos os dias, num lugar grande e
cheio de árvores, chamado Park; e também havia muitas crianças lá além de mim,
e um lago com belos pássaros, que eu alimentava com migalhas de pão.
— Você pode entendê-la quando ela dispara tão rápido? — perguntou a Sra.
Fairfax.
Eu a entendia muito bem, pois estava acostumada à linguagem fluente de
Madame Pierrot.
— Eu desejo — continuou a boa senhora — que você lhe faça uma ou duas
perguntas sobre seus pais. Imagino se ela se lembra deles.
— Adela — perguntei — com quem você morava, quando estava nessa bela e
limpa cidade de que falou?
— Há muito tempo, eu morava com mamãe; mas ela se foi para a Santa
Virgem. Mamãe me ensinou a dançar e a cantar, e a recitar versos. Muitos
cavalheiros e damas vinham ver mamãe, e eu dançava diante deles, ou me sentava
nos joelhos deles e cantava, gostava disso. Posso cantar para a senhorita agora?
Acabara o seu desjejum, de modo que permiti que me desse uma mostra de
seus talentos. Descendo de sua cadeira, ela veio colocar-se em meus joelhos;
depois, cruzando as mãozinhas afetadamente na frente, pondo os cachos para trás
com um gesto da cabeça e erguendo os olhos para o teto, começou a cantai uma
canção de uma ópera. Era a ária de uma dama abandonada, que, após lamentar a
perfídia do amado, invoca o orgulho em sua ajuda; deseja que seu pretendente a
cubra com as jóias mais brilhantes e os mais ricos vestidos, e decide-se a enfrentar
o falso nessa noite no baile, e provar-lhe, pela alegria de seu comportamento,
quão pouco a deserção dele a afetou.
O tema parecia estranhamente escolhido para uma cantora infantil; mas
suponho que o interesse da exibição estava em ouvir as notas de amor e ciúme
chilreadas com o cicio da infância; um interesse de muito mau gosto, de fato —
pelo menos assim eu pensava.
Adèle* cantou a cançoneta com bastante entoação, e com a naiveté de sua
idade. Feito isso, saltou de meus joelhos e disse:
— Agora, Mademoiselle, vou recitar para a senhorita um pouco de poesia. * Charlotte Brontë usa as duas formas do nome: Adela e Adèle. (N. do T.)
E, assumindo uma atitude, começou La Ligue des Rats; fable de La
Fontaine.** Declamou a pequena peça com atenção à pontuação e à ênfase, com
uma flexibilidade de voz e uma correção de gestos bastante incomuns, de fato, à
sua idade, e que provava que fora cuidadosamente treinada. ** — A Liga dos Ratos; fábula de La Fontaine.
— Foi sua mamãe quem lhe ensinou essa peça? — perguntei.
— Sim; e ela a dizia assim: "Qu’avez-vous donc? lui dit un de ces rats;
parlez!"*** Mandava-me erguer a mão... assim... para lembrar-me de erguer a
voz na pergunta. Posso dançar agora para a senhorita? ***Mas que tem você?, disse-lhe um daqueles ratos; fale! (N. do T.)
— Não, isso já chega. Mas depois que sua mãe foi para a Santa Virgem, como
diz, com quem você foi morar?
— Com Madame Frédéric e o marido dela; ela cuidava de mim, mas não é
minha parenta. Acho que é pobre, porque não tinha uma casa tão bonita quanto a
de mamãe. Não fiquei muito tempo lá. O Sr. Rochester me perguntou se eu
gostaria de ir morar com ele na Inglaterra e eu disse que sim; pois conhecia o Sr.
Rochester antes de conhecer a Madame Frédéric, e ele sempre foi bom para mim,
e me dava bonitos vestidos e brinquedos; mas, sabe, ele não cumpriu sua palavra,
pois me trouxe para a Inglaterra e agora voltou outra vez, e eu nunca o vejo.
Após o desjejum, Adèle e eu nos retiramos para a biblioteca, aposento que,
aparentemente, o Sr. Rochester ordenara que fosse usado como sala de aula. A
maioria dos livros estava trancada por trás de portas de vidro; mas havia uma
estante aberta, e que continha todo o necessário em matéria de obras elementares,
e vários volumes de literatura juvenil, poesia, biografia, viagens, alguns romances
etc. Suponho que, para ele, aquilo era tudo que a governanta precisaria para suas
leituras pessoais; e na verdade me satisfez amplamente no momento; comparados
com as escassas obras que eu pudera ocasionalmente ler em Lowood, aqueles
livros pareciam oferecer-me uma abundante safra de diversão e informação. No
aposento havia também um piano, bastante novo e de qualidade superior, e ainda
um cavalete de pintura e um par de globos.
Achei minha pupila suficientemente dócil, embora sem inclinação à aplicação;
não estava acostumada a uma ocupação regular de espécie alguma. Senti que não
seria justo confiná-la demasiado a princípio; assim, depois de haver-lhe falado um
bocado, e conseguido que aprendesse um pouco, e quando a manhã já alcançara o
meio-dia, deixei-a voltar à sua babá. Então, decidi ocupar-me até a hora do jantar
fazendo alguns pequenos desenhos para uso dela.
Quando subia a escada para pegar minha pasta de desenho e os pincéis, a Sra.
Fairfax me chamou:
— Creio que suas aulas da manhã acabaram — ela disse. Estava num
aposento cujas portas dobradiças permaneciam abertas. Entrei, quando ela me
falou. Era um aposento grande, imponente, com cadeiras e cortinas púrpura, um
tapete turco, paredes com painéis de nogueira, uma vasta janela rica em vitrais e
um teto vistoso, nobremente modelado. A Sra. Fairfax espanava alguns vasos de
fino espato púrpura.
— Que bela sala! — exclamei, olhando em volta; pois jamais vira algo tão
imponente.
— Sim; esta é a sala de jantar. Acabei de abrir a janela, para deixar entrar um
pouco de ar e sol; pois tudo fica tão úmido em aposentos pouco habitados; a sala
de estar ao lado parece uma cripta.
Indicou um amplo arco correspondente à janela, e guarnecido como ela com
cortinas de padronagem tíria, agora enroladas. Subindo até lá por dois largos
degraus, e olhando para dentro, pensei ter uma visão de um local de fadas, tão
luminoso, a meus olhos de noviça, pareceu o ambiente além. E no entanto, era
apenas uma sala de estar muito bonita, e dentro dela um boudoir, ambos cobertos
com tapetes brancos, sobre os quais parecia haver brilhantes guirlandas de flores;
ambos com modelagens semelhantes a neve no teto, formando uvas e folhas de
parreira brancas, abaixo das quais fulgiam em rico contraste sofás e otomanas
rubras; enquanto os enfeites no claro aparador da lareira eram de faiscantes
cristais da Boêmia, cor de rubi; e entre as janelas, grandes espelhos duplicavam a
mistura geral de neve e fogo.
— Em que ordem a senhora mantém estes quartos, Sra. Fairfax! — eu disse
— Nenhuma poeira, nenhuma capa. A não ser pelo ar frio, dir-se-ia que são
freqüentados todos os dias!
, — Ora, Srta. Eyre, embora as visitas do Sr. Rochester a esta casa sejam
raras, são sempre súbitas e inesperadas; e como observei que o irrita encontrar
tudo embalado, e uma correria de arrumações à sua chegada, achei melhor manter
os aposentos prontos.
— O Sr. Rochester é do tipo exigente, difícil de contentar?
— Não, particularmente; mas tem os gostos e hábitos de um cavalheiro, e
espera que se trate de tudo de acordo com eles.
— A senhora gosta dele? As pessoas gostam dele, em geral?
— Oh, sim; a família sempre foi respeitada aqui. Quase toda a terra nessa
vizinhança, até onde se pode ver, pertence aos Rochester há tempos imemoriais.
— Sim, mas deixando a terra de lado, a senhora gosta dele? Gostam dele por
si mesmo?
— Eu não tenho motivo para não gostar dele; e creio que seus rendeiros o
consideram um proprietário justo e liberal, mas ele nunca viveu muito entre eles.
— Mas não tem peculiaridades? Qual é, em suma, o seu caráter?
— Oh, seu caráter é inatacável, suponho. É um tanto peculiar, talvez: viajou
muito, e viu muito do mundo, eu pensaria. Diria que é inteligente; mas nunca tive
muita conversa com ele.
— De que modo ele é peculiar?
— Não sei... não é fácil de descrever... nada impressionante, mas a gente o
sente quando ele fala com a gente, não se pode ter sempre certeza sobre se está
brincando ou falando sério, se está satisfeito ou o contrário; em suma, não se pode
entendê-lo inteiramente... pelo menos eu não posso; mas isso não tem muita
importância, pois é um patrão muito bom.
Esta foi toda explicação que obtive da Sra. Fairfax sobre o seu patrão e o meu.
Há pessoas que parecem não ter a mínima noção de como se esboça uma
personalidade, ou de como se observam e descrevem pontos destacados, em
pessoas ou em coisas: a boa senhora evidentemente pertencia a esse tipo; minhas
perguntas a intrigavam, mas não a puxavam para fora. A seus olhos, o Sr.
Rochester era o Sr. Rochester; um proprietário de terras — nada mais: ela não
perguntava nem investigava além disso, e evidentemente se surpreendia com meu
desejo de obter uma idéia mais definida da identidade dele.
Quando deixamos a sala de jantar, ela propôs mostrar-me o resto da casa, e eu
a segui escadas acima e abaixo, admirando-me à medida que prosseguia; pois
tudo era bem arrumado e bonito. Os grandes quartos da frente, acheio-os
especialmente grandiosos; e alguns do terceiro andar, apesar de escuros c baixos,
eram interessantes pelo seu ar de antigüidade. Os móveis outrora adequados aos
aposentos mais baixos haviam sido removidos de tempos em tempos para ali, à
medida que a moda mudava; e a luz imperfeita que entrava por seus estreitos
caixilhos mostrava camas de cem anos atrás; arcas de carvalho ou nogueira,
parecendo, com seus estranhos ornamentos lavrados de galhos de coqueiros e
cabeças de querubins, tipos da arca dos hebreus; fileiras de veneráveis cadeiras,
de espaldar alto e estreito; bancos ainda mais antiquados, em cujos assentos
estofados se viam ainda traços de bordados meio apagados, feitos por dedos que
há duas gerações já eram pó. Todas essas relíquias davam ao terceiro andar de
Thornfield Hall o aspecto de uma casa do passado — um santuário da memória.
Eu gostava do silêncio, da escuridão, da estranheza daqueles redutos durante o
dia; mas de modo algum ambicionava dormir uma noite numa daquelas amplas e
pesadas camas, algumas delas fechadas com portas de carvalho; outras
sombreadas com velhos cortinados ingleses cobertos de grosso lavor, retratando
efígies de estranhas flores, pássaros mais estranhos, e seres humanos mais
estranhos ainda — coisas que teriam parecido estranhas de fato à pálida luz da
lua.
— Os criados dormem nestes quartos? — perguntei.
— Não; eles ocupam uma série de aposentos menores nos fundos; ninguém
jamais dorme aqui. Quase se diria que, se houvesse um fantasma em Thornfield
Hall, este seria o seu antro.
— É o que eu penso. Não têm fantasma aqui?
— Não que eu saiba — respondeu a Sra. Fairfax, sorrindo.
— Nem há tradição de algum? Nenhuma lenda ou história de fantasmas?
— Creio que não. E no entanto, diz-se que os Rochesters foram uma raça mais
violenta que tranqüila em seu tempo. Talvez, porém, seja este o motivo pelo qual
repousam tranqüilamente em seus túmulos agora.
— Sim... "após a febre própria da vida eles dormirão bem" — murmurei. —
Onde vai agora, Sra. Fairfax? — perguntei, porque ela se afastava.
— Para o terraço; quer vir comigo e ver o panorama lá de cima?
Segui calada, subindo uma escada muito estreita para o sótão, e dali, por outra
escada e passando por um alçapão no teto, até o telhado da mansão. Estava agora
no mesmo nível da colônia de corvos, e podia ver o interior de seus ninhos.
Curvando-me sobre as ameias e olhando lá embaixo, examinei os terrenos
estendidos como num mapa; a relva brilhante e aveludada cercando estreitamente
a base cinza da mansão; o campo, amplo como um parque, pontilhado de suas
árvores antigas; o bosque, pardo e seco, dividido por um caminho visivelmente
invadido pelo mato, mais verde de musgo que de árvores com folhagem; a igreja
no portão, a estrada, as tranqüilas montanhas, tudo repousando ao sol do dia
outonal; o horizonte cercado por um céu propício, azul, marmorizado com um
branco de pérola. Nenhum traço do panorama era extraordinário, mas o todo
agradava. Quando lhe demos as costas e tornamos a passar pelo alçapão, mal pude
ver o caminho escada abaixo; o sótão parecia negro como uma cripta, comparado
com aquele arco de ar azul ao qual estivera olhando, e com aquele ensolarado
cenário de sulcos, pastos e montanhas verdes do qual a mansão era o centro, e ao
qual eu estivera olhando com deleite.
A Sra. Fairfax ficou para trás um momento, para fechar o alçapão. Às
apalpadelas, encontrei a saída do sótão e desci a estreita escada. Demorei-me no
extenso corredor ao qual dava essa escada, e que separava os quartos da frente e
de trás do terceiro andar — estreito, baixo e escuro, com apenas uma pequena
janela no extremo oposto, e parecendo, com suas duas filas de pequenas portas
pretas todas fechadas, um corredor num castelo de Barba-Azul.
Enquanto andava por ali sem fazer barulho, chegou-me aos ouvidos o último
som que esperava ouvir numa região tão silenciosa — uma risada. Era uma risada
curiosa — clara, formal, sem alegria. Parei. O som cessou, apenas por um
instante. Começou de novo, mais alto — pois o primeiro, apesar de muito claro,
fora muito baixo. Transformou-se num clamoroso estrépito, que pareceu ecoar em
todos os quartos vazios, embora se originasse em apenas um, e eu poderia ter
apontado a porta de onde saía.
— Sra. Fairfax! — gritei, pois agora a ouvia descendo as grandes escadas. —
A senhora ouviu essa risada alta? Quem é?
— Alguma das criadas, muito provavelmente — ela respondeu. — Talvez
Grace Poole.
— A senhora ouviu? — tornei a perguntar.
— Sim, claramente; muitas vezes a ouço. Ela costura num desses quartos. Às
vezes Leah fica com ela; as duas muitas vezes são barulhentas.
A risada repetiu-se em seu tom baixo, silábico, e terminou num curioso
murmúrio.
— Grace! — exclamou a Sra. Fairfax.
Eu realmente não esperava que nenhuma Grace respondesse, pois a risada era
mais trágica, sobrenatural, do que qualquer uma que já ouvi; e, não fosse pelo fato
de que era uma hora da tarde, e de que nenhuma circunstância fantasmagórica
acompanhava a curiosa gargalhada; não fosse pelo fato de que nem o cenário nem
o momento favoreciam o medo, eu teria ficado supersticiosamente apavorada.
Contudo, o acontecimento mostrou-me que eu era uma tola por alimentar um
senso até de surpresa.
A porta mais próxima a mim se abriu, e uma criada apareceu — uma mulher
entre os trinta e os quarenta anos; figura baixa, quadrada, ruiva e com um rosto
duro e vulgar: dificilmente se poderia conceber uma aparição menos romântica ou
menos fantasmal.
— Barulho demais, Grace — disse a Sra. Fairfax. — Lembre-se das
instruções.
Grace fez uma mesura em silêncio e entrou.
— É uma pessoa que temos para costurar e ajudar Leah em seu trabalho de
criada — continuou a viúva. — Não inteiramente irrepreensível em alguns
pontos, mas vai bastante bem. A propósito, como foi a senhorita com sua nova
pupila esta manhã?
A conversa transposta assim para Adèle continuou até chegarmos à região
iluminada e alegre embaixo. Adèle veio correndo encontrar-nos no saguão,
exclamando:
— Mesdames, vous êtes servies! — E acrescentando: — J'ai bien faim, moi!* * — Senhoras, o almoço está servido... Estou faminta. (N. do T.)
Encontramos o almoço pronto e à nossa espera na sala da Sra. Fairfax.
CAPÍTULO 12
A PROMESSA de uma carreira tranqüila, que minha primeira e calma
introdução a Thornfield Hall parecera representar, não foi desmentida pelo
conhecimento mais demorado do lugar e seus habitantes. A Sra. Fairfax mostrou
ser o que parecia, uma mulher de temperamento plácido e natureza bondosa, de
educação competente e inteligência mediana. Minha pupila era uma criança viva,
que tinha sido mimada e estragada, e por conseguinte se mostrava às vezes
obstinada; mas como estava inteiramente entregue aos meus cuidados, e como
nenhuma interferência indevida, de qualquer parte, frustrava meus planos para seu
aperfeiçoamento, ela logo esqueceu seus pequenos caprichos e se tornou
obediente e ensinável. Não tinha grandes talentos, nem traços de caráter
acentuados, nem um desenvolvimento peculiar de sentimento ou gosto que a
elevassem uma polegada acima do nível comum da infância; mas tampouco tinha
alguma deficiência ou vício que a fizessem descer abaixo desse nível. Fazia
razoável progresso, alimentava por mim uma viva afeição, embora talvez não
muito profunda; e com sua simplicidade, sua tagarelice alegre e seus esforços para
agradar, inspirava-me em troca um grau de ligação suficiente para fazer-nos
ambas contentes com a companhia uma da outra.
Esta, par parenthèse, será julgada uma linguagem fria, por pessoas que
nutrem solenes doutrinas sobre a natureza angelical das crianças e o dever dos
encarregados de sua educação de conceber por elas uma devoção idolatra. Mas
não escrevo para bajular egoísmos paternos, para repetir lugares-comuns ou
promover imposturas; simplesmente digo a verdade. Sentia uma consciente
solicitude pelo bem-estar e progresso de Adèle, e uma tranqüila simpatia por sua
pessoinha; do mesmo modo como nutria pela Sra. Fairfax um sentimento de
gratidão por sua bondade, e um prazer em sua companhia proporcional à tranqüila
consideração que ela tinha por mim e à moderação de sua mente e caráter.
Pode me censurar quem quiser, quando eu acrescentar ainda que, uma vez ou
outra, quando passeava sozinha pela propriedade; quando descia até os portões e
olhava por eles a estrada; ou quando, enquanto Adèle brincava com sua babá, e a
Sra. Fairfax fazia geléias na despensa, eu subia as três escadas, erguia o alçapão
do sótão e, tendo chegado ao telhado, olhava à distância os campos e montes
confinados e a linha do horizonte — ansiava por um poder de visão que
ultrapassasse aquele limite; que alcançasse o mundo ativo, as cidades, as regiões
cheias de vida das quais ouvira falar mas nunca vira; desejava mais experiência
prática que a que possuía; maior relacionamento com minha espécie, maior
conhecimento de caráteres variados, do que o que havia ali ao meu alcance. Eu
valorizava o que era bom na Sra. Fairfax, e o que era bom em Adèle; mas
acreditava na existência de outros e mais vividos tipos de bondade, e o que
acreditava queria contemplar.
Quem me censura? Muitos, sem dúvida: e serei chamada de descontente. Eu
não podia impedi-lo, a inquietação estava em minha natureza; agitava-me até a
dor às vezes. Então meu único alívio era caminhar pelo corredor do terceiro
andar, de um lado para outro, segura no silêncio e na solidão do local, e deixar
que minha visão mental repousasse em quaisquer panoramas luminosos que se
erguessem diante dela — e certamente eram muitos e refulgentes; deixar meu
coração pesar com o movimento de exultação que, fazendo-o inchar de
perturbações, o expandia de vida; e, melhor ainda, abrir meu ouvido interior para
uma história que nunca acabava — uma história que minha imaginação criava e
narrava continuamente; acelerada com todos os incidentes, vida, fogo,
sentimentos que eu desejava e não tinha em minha existência real.
É inútil dizer que os seres humanos devem satisfazer-se com a tranqüilidade;
eles precisam de ação; e a criarão se não puderem encontrá-la. Milhões são
condenados a uma sorte mais parada que a minha, e milhões estão em silenciosa
revolta contra seu destino. Ninguém sabe quantas rebeliões, além das rebeliões
políticas, fermentam nas massas de vida que povoam a terra. Supõe-se que as
mulheres são muito calmas em geral, mas elas sentem da mesma forma que os
homens; precisam tanto do exercício para suas faculdades, e de um campo para
seus esforços, quanto seus irmãos; sofrem com uma contenção demasiado rígida,
uma estagnação demasiado absoluta, exatamente como os homens sofreriam; e é
tacanhez das criaturas irmãs mais privilegiadas dizer que elas devem limitar-se a
fazer pudins e tricotar meias, a tocar piano e bordar mochilas. É impensado
condená-las, ou rir delas, se buscam fazer mais ou aprender mais que o que os
costumes decretam necessário para seu sexo.
Quando assim sozinha, eu ouvia não poucas vezes a risada de Grace Poole, o
mesmo estrépito, o mesmo haê ha! baixo, lento, que, quando ouvi pela primeira
vez, me arrepiou: ouvia também seus excêntricos murmúrios, mais estranhos que
seu riso. Havia dias em que ela ficava muito calada; mas em outros eu não podia
explicar os sons que fazia. Às vezes eu a via: ela saía de seu quarto com uma
tigela, ou um prato, ou uma bandeja nas mãos, descia à cozinha e em breve
voltava, geralmente (oh, leitor romântico, perdoe-me por dizer a verdade chã!)
trazendo uma caneca de cerveja. O aparecimento dela sempre atuava como um
arrefecedor da curiosidade que suas excentricidades orais despertavam; feições
duras e calma, não tinha nenhum ponto que pudesse causar interesse. Fiz algumas
tentativas de atraí-la a uma conversa, mas parecia uma pessoa de poucas palavras:
uma resposta monossilábica geralmente cortava todo esforço nesse sentido.
Os outros membros da casa, isto é, John e sua mulher, Leah, a criada, e
Sophie, a babá francesa, eram pessoas decentes, mas de modo nenhum notáveis;
com Sophie eu costumava falar em francês, e às vezes fazia-lhe perguntas sobre
seu país natal; mas ela não tinha uma veia narrativa ou descritiva, e geralmente
dava respostas tão insípidas e confusas que pareciam calculadas mais para conter
do que para encorajar a curiosidade.
Outubro, novembro, dezembro passaram-se. Uma tarde, em janeiro, a Sra.
Fairfax pediu um feriado para Adèle, porque ela estava com um resfriado; e como
a menina apoiara o pedido com um ardor que me lembrara como os feriados
tinham sido preciosamente poucos em minha infância, concedi-o, achando que
demonstrava flexibilidade nesse ponto. Era um dia bonito, calmo, apesar de muito
frio; eu estava cansada de sentar-me quieta na biblioteca por toda uma longa
manhã; a Sra. Fairfax acabara de escrever uma carta que esperava ser enviada, de
modo que pus minha touca e ofereci-me para levá-la ao correio em Hay; a
distância, duas milhas, daria um agradável passeio vesperal. Tendo posto Adèle
confortavelmente sentada em sua cadeirinha diante da lareira no parlatório da Sra.
Fairfax, e após dar-lhe sua melhor boneca de cera (que eu geralmente mantinha
embrulhada em papel prateado numa gaveta) para brincar, e um livro de histórias
para variar de divertimento; e tendo respondido a seu "Revenez bientôt, ma bonne
amie, ma chère Mlle Jeannette"* com um beijo, parti. * Volte logo, minha boa amiga, minha querida Srta. Jeannette(N. do T.)
A terra estava dura, o ar parado, a estrada solitária; apertei o passo até
aquecer-me, e depois afrouxei-o, para desfrutar e analisar as espécies de prazer
que se me apresentavam naquele momento e situação. Eram três horas; o sino da
igreja bateu quando eu passava embaixo do campanário; o encanto da hora estava
no lusco-fusco que se aproximava, no pálido sol que deslizava lentamente para
baixo. Eu estava a uma milha de Thornfield, numa alameda conhecida pelas rosas
silvestres no verão, pelas nozes e amoras pretas no outono, e que mesmo agora
possuía alguns tesouros corais em frutos de roseira brava e de espinheiro, mas
cujo maior deleite no inverno eram sua absoluta solitude e seu desfolhado
repouso. Se uma lufada de ar soprava, não fazia nenhum som ali; pois não havia
nem um azevim, nem uma sempre-viva para farfalhar, e as macegas de
espinheiros e aveleiras estavam tão paradas quanto as polidas pedras brancas que
julcavam o meio da estrada. Até muito longe, de ambos os lados, viam-se apenas
campos, onde nenhum gado pastava agora; e os poucos passarinhos pardos que
saltitavam ocasionalmente na sebe pareciam solitárias folhas de macieira brava
que haviam esquecido de cair.
Essa alameda subia a encosta até Hay; tendo chegado ao meio, sentei-me nos
degraus de um passadiço que ia dar num campo vizinho. Abrigando-me mais
dentro do casaco, e protegendo as mãos no regalo, eu não sentia o frio que, no
entanto, era de congelar, como o mostrava uma camada de gelo que cobria a
pequena ponte, embaixo da qual um pequeno arroio, agora congelado, havia
transbordado após um rápido degelo alguns dias antes. De meu lugar podia ver
Thornfield lá embaixo; a mansão cinzenta e com ameias era o principal objeto no
vale a meus pés; seus bosques e seus negros corvos erguiam-se contra o poente.
Ali fiquei até que o sol mergulhou entre as árvores, desaparecendo rubro e nítido
no meio delas. Depois virei-me para o leste.
No cume da montanha à minha frente pairava a lua nascente; pálida ainda,
como uma nuvem, mas tornando-se mais vivida a cada momento; pairava sobre
Hay, que, meio perdida entre as árvores, desprendia uma fumaça azulada de suas
poucas chaminés; estava ainda a uma milha, mas no absoluto silêncio eu podia
ouvir claramente os débeis murmúrios de sua vida. Meus ouvidos sentiam
também o fluir dos regatos, em que vales e profundezas eu não saberia dizer, mas
havia muitas montanhas além de Hay, e sem dúvida muitos fios d'água
atravessavam suas gargantas. Aquele silencioso entardecer denunciava igualmente
o marulhar dos regatos mais próximos e o murmúrio dos mais remotos.
Um barulho forte irrompeu sobre esses delicados marulhos e murmúrios ao
mesmo tempo tão distantes e tão claros, um decidido toque-toque, um clangor
metálico, que abafou o suave fluir das correntes; como, num quadro, a sólida
massa de um penhasco, ou os rudes troncos de um grande carvalho, desenhados
fortes e negros no fundo, desfazem a diáfana distância de uma montanha azul, um
ensolarado horizonte e nuvens, onde os tons se dissolvem.
O barulho era no pontilhão; um cavalo se aproximava; as curvas da estrada
ainda o ocultavam, mas chegava cada vez mais perto. Eu acabava de deixar meu
assento; mas, como a estrada era estreita, fiquei parada para deixá-lo passar.
Naquele tempo eu era jovem, e toda espécie de fantasias, boas e más, me
ocupavam a mente; lembranças de histórias da carochinha lá estavam, entre outras
tolices; e quando retornavam, a juventude em amadurecimento acrescentava-lhes
um vigor e vividez além do que a infância poderia dar. À medida que aquele
cavalo se aproximava, e eu esperava que aparecesse em meio ao lusco-fusco,
lembrei-me de algumas das histórias de Bessie, nas quais figurava um espírito do
norte da Inglaterra chamado "Gytrash", que em forma de cavalo, mula ou
cachorro grande, assombrava as estradas solitárias, e às vezes caía sobre viajantes
retardatários, do mesmo modo como aquele cavalo vinha agora sobre mim.
Estava muito perto, mas ainda não à vista, quando, além do toque-toque, ouvi
um movimento debaixo da sebe, e ali perto, ao lado dos galhos da aveleira,
deslizou um grande cão, cujo pêlo branco e preto o tornava um objeto distinto
contra as árvores. Era uma máscara exata do Gytrash de Bessie — uma criatura
leonina de pêlo longo e cabeça enorme, mas passou por mim muito tranqüilo, sem
parar para olhar, com aqueles estranhos olhos sobrenaturais, o meu rosto, como eu
esperara que fizesse. Veio a seguir o cavalo — um animal grande, tendo às costas
um cavaleiro. O homem, o ser humano, quebrou imediatamente o encanto. Nada
cavalgara jamais um Gytrash: ele andava sempre só; e os gobelinos, ao que eu
sabia, embora pudessem habitar as carcaças brutas dos animais, dificilmente
poderiam querer abrigo na vulgar forma humana. Aquilo não era nenhum Gytrash
— apenas um viajante tomando um atalho para Millcote. Ele passou e seguiu
adiante. Dei uns poucos passos e voltei-me; o som de um escorregão, uma
exclamação — "Que diabo é isso agora?" — e um sonoro baque me tinham
chamado a atenção. Cavalo e cavaleiro jaziam no chão; haviam escorregado na
camada de gelo que cobria o passadiço. O cachorro voltou aos saltos, e vendo seu
amo num apuro, e ouvindo o cavalo gemer, latiu até as montanhas noturnas
ecoarem o som, que era profundo, em relação ao seu tamanho. Ele farejou em
volta do grupo prostrado, e depois correu ao meu encontro; era tudo que podia
fazer — não havia outra ajuda à mão que pudesse convocar. Obedeci-lhe e desci
até o viajante, que a essa altura lutava para livrar-se do cavalo. Seus esforços eram
tão vigorosos, que achei que não podia estar muito machucado; mas fiz-lhe a
pergunta:
— Está ferido, senhor?
Penso que ele praguejava, mas não estou segura; contudo, pronunciava
alguma fórmula que o impediu de responder-lhe imediatamente.
— Posso fazer alguma coisa? — tornei a perguntar.
— Deve simplesmente não se meter — ele respondeu ao levantar-se, primeiro
pondo-se de joelhos, e depois de pé. Fiz o que ele mandava, em seguida ao que
teve início um processo de arquejar, bater os pés, sons metálicos, acompanhado
de latidos e uivos, que me afastaram realmente algumas jardas; mas eu não seria
afastada até ver o que aconteceria. O resultado terminou sendo feliz; o cavalo
restabeleceu-se e o cachorro foi silenciado com um "Sente-se, Pilot!" O viajante,
agora curvado, apalpava o pé e a perna, como se examinasse se estavam inteiros;
aparentemente alguma coisa lhe doía, pois ele parou no pontilhão de onde eu
acabava de me levantar e sentou-se.
Eu estava numa disposição de querer ser útil, ou pelo menos solícita, creio,
porque tornei a me aproximar dele.
— Se está machucado e precisa de ajuda, senhor, posso ir chamar alguém de
Thornfield Hall ou de Hay.
— Obrigado; posso passar sem isso, não tenho nenhum osso quebrado... só
uma torção. — E novamente se levantou e experimentou o pé, mas o resultado
arrancou-lhe um involuntário, — Ugh!
Ainda restava um pouco de claridade do dia, e a lua tornava-se mais luminosa;
eu podia vê-lo claramente. Sua figura estava envolta num casaco de montaria,
com gola de pele e fivela de aço; os detalhes não eram visíveis, mas identifiquei
os pontos gerais — altura média e peito consideravelmente largo. Tinha um rosto
moreno, com traços severos e uma fronte pesada: os olhos e as sobrancelhas
unidas pareciam irados e frustrados naquele momento; ele já passara da
juventude, mas ainda não chegara à meia idade; teria talvez uns trinta e cinco
anos. Eu não sentia medo dele, e apenas um pouco de timidez. Fosse um jovem
cavalheiro bonito, de aparência heróica, eu não teria ousado ficar assim a
questioná-lo contra a sua vontade, e a oferecer meus serviços não solicitados. Eu
dificilmente vira algum dia um jovem bonito, e jamais em minha vida falara com
um. Tinha uma reverência e uma veneração teóricas pela beleza, a elegância, a
galanteria, o fascínio; mas se encontrasse essas qualidades encarnadas em forma
masculina, teria sabido instintivamente que elas não tinham nem podiam ter
simpatia com qualquer coisa em mim, c as teria afastado como se afasta o fogo, o
raio ou qualquer outra coisa brilhante mas antipática.
Se mesmo aquele estranho houvesse sorrido e se mostrasse bem-humorado
quando lhe falei; se tivesse recusado minha oferta de ajuda alegremente e com
agradecimentos, eu teria seguido meu caminho sem sentir nenhuma vocação para
renovar as perguntas, mas a carranca, a rudeza do viajante me deixaram à
vontade, mantive minha posição quando ele me mandou ir embora com um gesto,
e anunciei:
— Não posso pensar em deixá-lo, senhor, a uma hora tão tardia, nesta
alameda solitária, até constatar que pode montar em seu cavalo.
Ele olhou quando eu disse isso: mal tinha voltado os olhos em minha direção
antes.
— Julgo que a senhorita deveria estar em casa — disse — se é que tem uma
casa por aqui. De onde vem?
— De pouco abaixo; e não tenho medo algum de ficar fora até tão tarde
quando há lua. Irei a Hay para o senhor com todo prazer, se o senhor o desejar; na
verdade, estou indo para lá, a fim de pôr uma carta no correio.
— A senhorita mora pouco abaixo... quer dizer, naquela casa com ameias? —
apontava para Thornfield Hall, sobre a qual a lua lançava uma branca claridade,
ressaltando-a distinta e pálida dos bosques, que, em contraste com o céu do
ocidente, agora pareciam uma única massa de sombra.
— Sim, senhor.
— De quem é a casa?
— Do Sr. Rochester.
— A senhorita conhece o Sr. Rochester?
— Não, nunca o vi.
— Ele não mora lá, então.
— Não.
— Sabe me dizer onde ele está?
— Não sei.
— A senhorita não é uma das criadas da mansão, por certo. É... — Parou,
correu os olhos pelo meu vestido, que como sempre era simples — um casaco
negro de merino, um chapéu negro de castor; nem um deles suficientemente
refinado para a criada de uma dama. Pareceu intrigado para determinar o que eu
era.
— Sou a governanta.
— Ah, a governanta! — ele repetiu. — Diabos me levem se eu não tinha
esquecido! A governanta! — E novamente meus trajes passaram por um exame.
Em dois minutos, ele se levantou da amurada; seu rosto expressou sofrimento
quando tentou se mover.
— Não posso mandá-la buscar ajuda — ele disse. — Mas a senhorita pode me
ajudar um pouco, se tiver a bondade.
— Sim, senhor.
— Não tem uma sombrinha, que eu possa usar como bengala?
— Não.
— Tente agarrar a brida de meu cavalo e trazê-lo a mim. Não tem medo?
Eu devia ter medo de tocar um cavalo quando só, mas ordenada a fazê-lo,
estava disposta a obedecer. Pus meu regalo no pontilhão e encaminhei-me para o
grande animal; tentei agarrar a brida, mas ele era um bicho esquentado, e não me
deixava chegar perto de sua cabeça; fiz seguidos esforços, em vão: enquanto isso,
sentia um medo mortal de suas patas dianteiras. O viajante esperou e observou por
algum tempo, e finalmente riu.
— Estou vendo — disse — que a montanha jamais será trazida a Maomé;
assim, a única coisa que a senhorita pode fazer é ajudar Maomé a ir à montanha;
devo pedir-lhe que venha cá.
Fui.
— Desculpe-me — ele continuou. — A necessidade obriga-me a usá-la. —
Pôs uma pesada mão em meu ombro e, apoiando-se em mim com alguma força,
manquejou até o cavalo. Tendo agarrado a brida, dominou-o logo e saltou sobre a
sela, fazendo sombrias caretas durante esse esforço, pois forçava sua torção.
— Agora — disse, soltando o lábio inferior de uma forte mordida — dê-me o
chicote; está ali debaixo da sebe.
Procurei-o e encontrei-o.
— Obrigado; agora apresse-se com essa carta para May, e volte o mais breve
possível.
Um toque de espora fez o cavalo primeiro sobressaltar-se e recuar, e depois
saltar para a frente; o cachorro disparou em suas pegadas: os três desapareceram...
"Como urzes que, no agreste,
O vento bravo leva no redemoinho."
Peguei meu regalo e segui em frente. O incidente ocorrera e passara: fora, em
certo sentido, um incidente sem nenhuma importância, nenhum romance, nenhum
interesse; e no entanto, marcara com a mudança uma hora de uma vida monótona.
Minha ajuda fora necessária e solicitada, eu a dera, estava satisfeita por ter feito
alguma coisa; trivial e transitório como fora o fato, ainda assim era uma coisa
ativa, e eu estava cansada de uma existência inteiramente passiva. O novo rosto,
também, era como um novo quadro introduzido na galeria da memória, e não se
assemelhava a nenhum dos outros que pendiam ali, primeiro, porque era
masculino; e segundo, porque era moreno, forte e severo. Ainda o tinha à minha
frente quando entrei em Hay e pus a carta no correio, via-o quando desci depressa
a colina até em casa. Quando cheguei ao passadiço, parei um minuto, olhei em
volta e fiquei à escuta, com a idéia de que cascos do cavalo poderiam ressoar de
novo ali, e de que um cavalheiro metido num casaco, acompanhado de um cão
Newfoundland parecendo um Gytrash, poderia aparecer novamente: vi apenas a
sebe e um salgueiro à minha frente, erguendo-se imóvel e reto ao encontro dos
raios de lua; ouvi apenas a mais fraca lufada de vento correndo entre as árvores
em volta de Thornfield, a uma milha de distância; e quando baixei o olhar na
direção do murmúrio, meus olhos, atravessando a frente da mansão, divisaram
uma luz brk lhando numa janela: isso me lembrou de que estava atrasada, e
apressei-me.
Eu não gostava de voltar a Thornfield. Transpor sua soleira era retornar à
estagnação; atravessar o silencioso saguão, subir a escura escada, buscar meu
quartinho solitário, e depois encontrar a tranqüila Sra. Fairfax e passar a longa
noite de inverno com ela, e somente ela, era abafar inteiramente a débil sensação
causada pelo meu passeio — lançar novamente sobre minhas faculdades as
cadeias cegas de uma existência uniforme e demasiado parada; de uma existência
da qual até os privilégios de segurança e conforto eu me tornava incapaz de
apreciar. Que bem me faria, naquela época, ser jogada nas tormentas de uma vida
incerta e de lutas, e aprender com a rude e amarga experiência a ansiar pela calma
em meio à qual agora me lamentava! Sim, quase o mesmo bem que faria a um
homem cansado de ficar sentado, parado, numa "poltrona confortável demais",
dar uma longa caminhada; e quase tão natural era o meu desejo de me mover, em
minhas circunstâncias, quanto seria o dele.
Demorei-me nos portões; demorei-me no gramado; andei de um lado para
outro na calçada: os estores das portas de vidro estavam fechados; eu não podia
ver lá dentro; e meus olhos e espírito pareciam igualmente atraídos para longe da
sombria casa — daquele grande vazio composto de células sem luz, segundo me
parecia — para aquele céu que se expandia à minha frente — um mar azul
intocado por qualquer sugestão de nuvem; a lua subindo-o em sua marcha solene,
o disco parecendo olhar para cima, ao transpor os cumes das montanhas de trás
das quais saíra, e que ficavam cada vez mais longe abaixo, e aspirar ao zê-nite,
agora escuro como à meia-noite em sua insondável profundeza e imensurável
distância; e quanto às trêmulas estrelas que lhe acompanhavam o curso, faziam
meu coração tremer, minhas veias refulgirem quando as via. Pequenas coisas nos
chamam de volta à terra: o relógio bateu no saguão; foi o bastante. Dei as costas à
lua e às estrelas, abri uma porta lateral e entrei.
O saguão estava às escuras, não fora ainda iluminado, a não ser pela lâmpada
de bronze pendurada muito alto. Um quente fulgor banhava o aposento e os
degraus de baixo da escada de carvalho. Essa luz avermelhada vinha da grande
sala de jantar, cuja porta de duas folhas estava aberta, e mostrava um fogo
agradável na grade, reluzindo no batente de mármore da lareira e nos atiçadores
de bronze, e revelando os tecidos púrpura e os móveis polidos na mais agradável
radiação. Revelava também um grupo perto da lareira. Eu mal o percebera, e mal
tomara consciência da animada mistura de vozes, entre as quais me pareceu
distinguir a de Adèle, quando a porta se fechou.
Corri ao quarto da Sra. Fairfax. Havia um fogo lá também, mas nenhuma vela,
e nada da Sra. Fairfax. Em vez disso, sentado empertigado no tapete, inteiramente
só, e olhando com gravidade o fogo, vi um grande cachorro preto e branco, de
pêlo longo, exatamente como o Gytrash da alameda. Era tão parecido com ele que
me adiantei e disse "Pilot", e o animal se levantou, veio até mim e me cheirou.
Acariciei-o, e ele abanou a grande cauda; mas parecia uma criatura fantástica para
se ficar só com ele, e eu não sabia de onde viera. Toquei a sineta, pois queria uma
vela; e queria também uma explicação sobre aquele visitante. Leah entrou.
— Que cachorro é esse?
— Veio com o amo.
— Com quem?
— Com o amo... o Sr. Rochester... ele acabou de chegar.
— Verdade? E a Sra. Fairfax está com ele?
— Sim, e a Srta. Adela; estão na sala de jantar, e John foi buscar um médico,
pois o amo sofreu um acidente. O cavalo dele caiu, e ele torceu o pé.
— O cavalo caiu em Hay Lane?
— Sim, descendo a ladeira; escorregou no gelo.
— Ah! Traga-me uma vela, por favor, Leah.
Leah a trouxe. Entrou acompanhada pela Sra. Fairfax, que repetiu as notícias,
acrescentando que o Sr. Carter, o médico, chegara, e estava agora com o Sr.
Rochester. Depois correu para fora, a fim de dar ordens sobre o chá, e eu subi as
escadas para tirar minhas coisas.
CAPÍTULO 13
O SR. ROCHESTER, aparentemente, a julgar pelas ordens do médico, foi
para a cama cedo naquela noite; e tampouco se levantou cedo na manhã seguinte.
Quando desceu, foi para tratar de negócios. Seu agente e alguns de seus rendeiros
tinham chegado, e esperavam para falar-lhe.
Adèle e eu tínhamos agora de desocupar a biblioteca: seria requisitada todo
dia como sala de recepção para os visitantes. Acendeu-se um fogo no aposento de
cima, e para ali levei nossos livros e o arrumei para ser a futura sala de aula.
Percebi com o correr da manhã que Thornfield era um lugar mudado. Não mais
silencioso como uma igreja, ressoava a cada uma ou duas horas com uma batida
na porta ou o toque da sineta. Passos também cruzavam freqüentemente o saguão,
e novas vozes falavam em diferentes tons lá embaixo. Um riacho vindo do mundo
externo o atravessava. Tinha um amo; de minha parte, eu gostava mais assim.
Adèle não foi fácil de ensinar naquele dia; não conseguia concentrar-se.
Corria o tempo todo para a porta e olhava por sobre o corrimão para ver se
conseguia ter um vislumbre do Sr. Rochester. Depois inventava pretextos para ir
lá embaixo, a fim, como desconfiei, de visitar a biblioteca, onde eu sabia que não
a queriam. Depois, quando fiquei um tanto irritada e a fiz sentar-se quieta, ela
continuou a falar incessantemente de seu "ami Monsieur Édouard Fairfax de
Rochester", como o chamava (eu não ouvira antes seus prenomes), e a conjeturar
sobre que presentes ele lhe trouxera; pois parece que ele insinuara na noite
passada que, quando sua bagagem chegasse de Millcote, se encontraria no meio
uma caixinha em cujo conteúdo ela tinha um interesse.
— Et cela doit signifier — ela dizia — qu’il y aura là-de-dans un cadeau
pour moi, et peut-être pour vous aussi, mademoiselle. Monsieur a parle de vous:
il m'a demande le nom de ma gouvernante, et si elle n’était pas une petite
personne, assez mince et un peu pàle. J’ai dit qu'oui: car c’est vrai, n'est-ce pas,
mademoiselle?* * E isso deve querer dizer que haverá dentro dela um presente para mim, e talvez para a
senhorita também, mademoiselle. O senhor falou da senhorita: perguntou-me o nome de minha
governanta, e se não era pessoa pequenina, muito magra e um pouco pálida. Respondi que sim: pois
é verdade, não é, mademoiselle? (N. do T.)
Eu e minha pupila almoçamos como sempre no parlatório da Sra. Fairfax. A
tarde foi inclemente e nevada, e a passamos na sala de aula. Ao escurecer, permiti
que Adèle deixasse os livros e o estudo, e corresse lá para baixo, pois, pelo
relativo silêncio, e pela cessação dos chamados na sineta da porta, conjeturei que
o Sr. Rochester estava agora livre. Ficando só, dirigi-me à janela; mas nada havia
para ver ali. O crepúsculo e os flocos de neve adensavam o ar, e ocultavam até os
arbustos do gramado. Deixei cair a cortina e retornei para junto do fogo.
Identificava nas brasas vivas uma paisagem, não muito diferente de um
quadro que me lembrava ter visto do castelo de Heidelberg, no Reno, quando a
Sra. Fairfax entrou, desfazendo com sua entrada o ardente mosaico que eu
estivera armando, e espalhando também alguns pensamentos pesados e
importunos que começavam a atropelar minha solidão.
— O Sr. Rochester ficaria agradecido se você e sua pupila tomassem chá com
ele na sala de visitas esta noite — ela disse. — Esteve tão ocupado o dia todo, que
não pôde pedir para vê-la antes.
— A que horas é o chá? — perguntei.
— Oh, às seis horas. Ele faz tudo cedo no campo. É melhor mudar o vestido
agora: irei com você e o abotoarei. Aqui está uma vela.
— É necessário mudar meu vestido?
— Sim, é melhor. Sempre me visto para a noite, quando o Sr. Rochester está
aqui.
Essa cerimônia a mais parecia um tanto formal. Contudo, fui para meu quarto,
e, com a ajuda da Sra. Fairfax, troquei o vestido negro por um de seda negra; o
melhor e o único extra que tinha, a não ser por um cinza-claro, que, com minhas
idéias lowoodianas de toalete, achava bom demais para ser usado, exceto em
ocasiões de primeira.
— Você precisa de um broche — disse a Sra. Fairfax. Eu tinha um único
adorno, com uma pequena pérola, que a Srta. Temple me dera como presente de
despedida. Coloquei-o, e fomos lá para baixo. Desacostumada como estava com
estranhos, foi uma provação aparecer assim formalmente convocada à presença
do Sr. Rochester. Deixei a Sra. Fairfax entrar à minha frente na sala de jantar, e
mantive-me à sua sombra quando atravessamos aquele aposento; e, passando pelo
arco, cuja cortina estava agora descida, entrei no elegante recesso atrás.
Duas velas de cera iluminavam a mesa, e havia duas outras no batente da
lareira; refestelado à luz e calor de um fogo soberbo, lá estava Pilot, com Adèle
ajoelhada junto. Meio reclinado num sofá, via-se o Sr. Rochester, o pé apoiado
numa almofada; olhava Adèle e o cachorro. O fogo brilhava em cheio em seu
rosto. Reconheci o meu viajante, com suas amplas e negras sobrancelhas, sua
testa quadrada, tornada mais quadrada ainda pela mecha horizontal de cabelo
negro. Reconheci o nariz decidido, mais notável pelo caráter do que pela beleza;
as narinas dilatadas, que denotavam cólera, a meu ver; a boca, o queixo, a
mandíbula, sombrios — sim, todos três eram sombrios, não havia engano. Sua
forma, agora despojada do capote, harmonizava em quadratura com a fisionomia,
eu percebia agora. Suponho que era uma boa figura, no sentido atlético do termo
— peito largo e flancos estreitos, embora nem alta nem graciosa.
O Sr. Rochester deve ter percebido a entrada da Sra. Fairfax e a minha; mas
parece que não estava disposto a notar-nos, pois não ergueu a cabeça quando nos
aproximamos.
— Aqui está a Srta. Eyre, senhor — disse a Sra. Fairfax, em sua maneira
discreta. Ele fez uma curvatura, ainda sem tirar os olhos do grupo formado pelo
cachorro e a menina.
— Que a Srta. Eyre se sente — disse; e havia algo na rígida curvatura forçada,
no tom impaciente, embora formal, que parecia acrescentar: "Que diabo me
importa se a Srta. Eyre está aqui ou não? Neste momento, não estou disposto a
falar com ela".
Eu me sentei bastante embaraçada. Uma recepção de refinada polidez
provavelmente me teria deixado confusa, não poderia ter retribuído com graça e
elegância de minha parte; mas aquele grosseiro capricho não me deixava sob
qualquer obrigação; ao contrário, uma decente aquiescência, à guisa de educação,
me dava vantagem. Além disso, a excentricidade dos procedimentos era
provocante: senti-me interessada em ver como ele prosseguiria.
Ele permaneceu como uma estátua, isto é, nem falou nem se moveu. A Sra.
Fairfax pareceu julgar necessário que alguém fosse amistoso, e começou a falar.
Bondosamente, como de hábito — e, como de hábito, um tanto banalmente —
condoeu-se com ele pela pressão dos negócios que sofrerá o dia todo, depois
louvou sua paciência e perseverança passando por tudo aquilo.
— Madame, eu gostaria de um pouco de chá — foi a única resposta que
obteve. Ela se apressou a tocar a sineta; e quando a bandeja veio, pôs-se a arrumar
as xícaras, colheres etc., com diligente rapidez. Eu e Adèle fomos para a mesa;
mas o amo não deixou o seu sofá.
— Quer entregar a xícara do Sr. Rochester? — disse-me a Sra. Fairfax. —
Adèle poderia entorná-la, talvez.
Fiz o que me pediam. Quando ele recebeu a xícara de minhas mãos, Adèle,
julgando o momento propício para fazer um pedido em meu favor, exclamou:
— N'est-ce pas, monsieur, qu’il a un cadeau pour Mademoiselle Eyre dans
votre petite coffre?* * Não é verdade, senhor, que há um presente para Mademoiselle no seu cofrezinho? (N. do T.)
— Quem falou em presente? — perguntou ele, arrufado. — A senhorita
esperava um presente, Srta. Eyre? Gosta de presentes? — E vasculhou meu rosto
com olhos que eu via serem escuros, irados e penetrantes.
— Mal sei, senhor; tenho pouca experiência deles; geralmente são
considerados coisas agradáveis.
— Geralmente? Mas que pensa a senhorita?
— Eu seria obrigada a demorar um pouco, senhor, antes de poder dar-lhe uma
resposta digna de sua aceitação: um presente tem muitas faces, não tem? E deve-
se considerar todas, antes de se emitir uma opinião quanto à sua natureza.
— Srta. Eyre, a senhorita não é tão sem sofisticação quanto Adèle; ela pede
um cadeau clamorosamente, no momento em que me vê; a senhorita fica fazendo
rodeios.
— Porque eu tenho menos confiança em meus méritos que Adèle; ela pode
alegar uma velha amizade, e o direito, também, do hábito, pois diz que o senhor
sempre teve o hábito de dar-lhe brinquedos; mas se eu tivesse de falar por mim,
ficaria confusa, uma vez que sou uma estranha, e nada tenho que me dê direito a
um reconhecimento.
— Oh, não apele para o excesso de modéstia! Eu examinei Adèle, e descobri
que a senhorita se deu muito trabalho com ela: Adèle não é brilhante, não tem
talentos; mas em pouco tempo fez grandes progressos.
— Senhor, já me deu o meu cadeau; sou-lhe grata; é a recompensa que os
professores mais cobiçam: o elogio pelo progresso de seus alunos.
— Hum! — disse o Sr. Rochester, e tomou seu chá em silêncio.
— Venham para junto do fogo — disse o amo, quando a bandeja foi retirada e
a Sra. Fairfax se sentou num canto com seu tricô, enquanto Adèle me levava pela
mão em volta do aposento, mostrando-me os lindos livros e enfeites nos consoles
e cômodas. Obedecemos, como devíamos; Adèle quis sentar-se em meus joelhos,
mas recebeu a ordem de ir divertir-se com Pilot.
— A senhorita está morando em minha casa há três meses?
— Sim, senhor.
— E vem de... ?
— Da escola de Lowood, em ... shire.
— Ah, uma instituição de caridade. Quanto tempo ficou lá?
— Oito anos.
— Oito anos! Deve ter muito apego à vida. Eu achava que metade desse
tempo num lugar daqueles liquidaria qualquer constituição! Não admira que tenha
uma aparência um tanto do outro mundo. Eu imaginava onde conseguira esse tipo
de rosto. Quando veio a mim, em Hay, na noite passada, pensei inexplicavelmente
em contos de fada, e estava meio inclinado a perguntar se tinha enfeitiçado meu
cavalo, ainda não estou certo. Quem são seus pais?
— Não tenho nenhum.
— E nunca teve, suponho; lembra-se deles?
— Não.
— Era o que eu pensava. Então estava esperando sua gente sentada naquela
amurada?
— Quem, senhor?
— Os homenzinhos verdes: era uma noite de luar adequada para eles. Terei
quebrado um de seus círculos, para que a senhorita espalhasse aquele maldito gelo
na estrada?
Balancei a cabeça.
— Todos os homenzinhos verdes deixaram a Inglaterra há cem anos — eu
disse, falando tão seriamente quanto ele o fizera. — E nem mesmo em Hay Lane,
ou nos campos em volta, pode-se encontrar o menor vestígio deles. Não creio que
nenhum verão ou colheita, nenhuma lua de inverno venha a brilhar algum dia
sobre as festas deles.
A Sr. Fairfax deixara cair o seu tricô e, com as sobrancelhas erguidas, parecia
perguntar-se que espécie de conversa era aquela.
— Bem — reiniciou o Sr. Rochester — se não tem pais, deve ter algum tipo
de parentes: tios e tias.
— Não; nenhum que eu conheça.
— E sua casa?
— Não tenho nenhuma.
— Onde moram seus irmãos e irmãs?
— Não tenho irmãos ou irmãs.
— Quem a recomendou para trabalhar aqui?
— Pus um anúncio, e a Sra. Fairfax respondeu.
— Sim — disse a boa senhora, que sabia agora em que terreno estávamos
pisando — e todo dia dou graças pela escolha que a Providência me levou a fazer.
A Srta. Eyre tem sido uma companhia inestimável para mim, e uma professora
bondosa e atenciosa para Adèle.
— Não se preocupe em atribuir-lhe um caráter — respondeu o Sr. Rochester.
— Os elogios não me afetarão; julgarei por mim mesmo. Ela começou por
derrubar o meu cavalo.
— Senhor? — disse a Sra. Fairfax.
— Tenho de agradecer a ela por esta torção. A viúva pareceu espantada.
— Srta. Eyre, algum dia já morou numa cidade?
— Não, senhor.
— Já viu muita gente?
— Só as alunas e professoras de Lowood, e agora os moradores de
Thornfield.
— Leu muito?
— Só os livros que encontrei; e não foram numerosos nem muito eruditos.
— A senhorita viveu uma vida de freira, sem dúvida é bem treinada em coisas
de religião; Brocklehurst, que segundo entendo dirige Lowood, é um clérigo, não
é?
— Sim, senhor.
— E vocês meninas provavelmente o adoravam, como um convento cheio de
religiosas adoraria seu diretor. — Oh, não.
— A senhorita é muito fria! Não! Quê! Uma noviça não adorar o seu
sacerdote! Isso soa a blasfêmia.
— Eu detestava o Sr. Brocklehurst; e não era a única a sentir isso. Ele é um
homem duro; ao mesmo tempo pomposo e enxerido: cortava nossos cabelos, e por
economia comprava-nos agulhas e linhas ruins, com as quais mal podíamos
costurar.
— Isso era falsa economia — observou a Sra. Fairfax, que agora pegava
novamente o significado do diálogo.
— E era só isso o que ele fazia de ruim? — perguntou o Sr. Rochester.
— Deixava-nos morrer de fome quando era o único superintendente do
departamento de provisões, antes de se nomear à comissão; e cansava-nos com
longas leituras uma vez por semana, e com leituras noturnas de livros de sua
indicação, sobre mortes súbitas e julgamentos, que nos deixavam com medo de ir
para a cama.
— Que idade tinha a senhorita quando foi para Lowood?
— Cerca de dez anos.
— E ficou lá oito anos: tem agora, então, dezoito? Assenti.
— A aritmética, como vê, é útil; sem sua ajuda, eu dificilmente poderia
calcular sua idade. É um ponto difícil de estabelecer, quando as feições e a
expressão são tão diferentes como em seu caso. E agora, que aprendeu em
Lowood? Sabe tocar piano?
— Um pouco.
— Claro, é a resposta estabelecida. Vá até a biblioteca... quero dizer, por
favor. (Desculpe meu tom de comando; estou acostumado a dizer: "Faça isso", e
se faz; não posso alterar meus hábitos costumeiros por uma nova moradora). Vá,
então, à biblioteca; leve uma vela consigo; deixe a porta aberta; sente-se ao piano
e toque uma música.
Eu parti, obedecendo às suas instruções.
— Chega! — ele gritou dentro de poucos minutos. — A senhorita toca um
pouco, estou vendo; como qualquer outra colegial inglesa; talvez até melhor que
algumas, mas não bem.
Fechei o piano, e voltei. O Sr. Rochester continuou:
— Adèle me mostrou alguns desenhos esta manhã, que disse serem seus. Não
sei se eram inteiramente de sua autoria; provavelmente um mestre a ajudou.
— Não, realmente! — interrompi.
— Ah, isso espeta o seu orgulho. Bem, traga-me sua pasta, se pode garantir
que o conteúdo é original; mas não o faça a menos que esteja certa: sei reconhecer
colagens.
— Então não direi nada, e o senhor poderá julgar por si mesmo.
Eu trouxe a pasta da biblioteca.
— Aproxime a mesa — ele disse, e eu a empurrei para junto de seu sofá.
Adèle e a Sra. Fairfax se aproximaram para ver os desenhos.
— Não se amontoem — disse o Sr. Rochester. — Peguem os desenhos em
minhas mãos à medida que eu for acabando de examiná-los; mas não comprimam
os rostos contra o meu.
Examinou demoradamente cada desenho e pintura. Separou três; os outros,
depois de examiná-los, afastou-os de si.
— Leve estes para a outra mesa, Sra. Fairfax — disse — e olhe-os com
Adèle; a senhorita (olhando-me), volte ao seu assento, e responda às minhas
perguntas. Percebo que estes quadros foram feitos por uma única mão; essa mão é
a sua?
— Sim.
— E quando encontrou tempo para pintá-los? Tomaram muito tempo, e
alguma meditação.
— Pintei-os nas duas últimas férias que passei em Lowood, quando não tinha
outra ocupação.
— Onde conseguiu os modelos?
— Em minha cabeça.
— Essa cabeça que vejo agora em seus ombros?
— Sim, senhor.
— Ela tem outras coisas do mesmo tipo dentro?
— Eu diria que pode ter, ou melhor, esperaria.
Ele espalhou os quadros à sua frente, e de novo os examinou alternadamente.
Enquanto assim se ocupava, eu lhe direi, leitor, quais são os quadros; e,
primeiro, devo mencionar de antemão que não eram nada maravilhosos. Os temas
me tinham na verdade surgido vividamente na cabeça. Do jeito que os vi, com os
olhos do espírito, antes de tentar dar-lhes corpo, eram impressionantes; mas
minha mão não estava à altura de minha imaginação, e em cada caso extraíra
apenas um pálido retrato da coisa que eu concebera.
Esses quadros eram em aquarela. O primeiro representava nuvens baixas e
lívidas, rolando sobre um mar encapelado; toda a distância se eclipsava, e também
o primeiro plano; ou antes, as vagas mais próximas, pois não havia terra. Um raio
de luz punha em relevo um mastro meio submerso, no qual pousava um
cormorão, negro e grande, com as asas respingadas de espuma; trazia no bico um
bracelete de ouro com gemas incrustadas, a que eu dera nuanças tão brilhantes
quanto minha paleta podia produzir, e tanta definição quanto meu lápis podia
comunicar. Afundando abaixo do pássaro e do mastro, um cadáver afogado
aparecia em meio à água verde; o único membro visível era um braço branco, do
qual o bracelete fora retirado ou arrancado pelas ondas.
O segundo quadro continha como primeiro plano apenas o escuro cume de
uma montanha, com um gramado e algumas folhas curvadas, como sopradas por
uma brisa. Além e acima espalhava-se a amplidão do céu, azul escuro como ao
crepúsculo: erguendo-se para o céu via-se a forma de uma mulher até o busto, um
retrato em tons tão escuros e suaves quanto eu podia combinar. A testa escura era
coroada por uma estrela; viam-se os traços abaixo como através de um vapor; os
olhos luziam negros e selvagens; o cabelo escorria sombrio, como uma nuvem
sem raios rasgada pela tempestade, ou por uma descarga elétrica. No pescoço
havia um pálido reflexo, como do luar; o mesmo brilho fraco tocava o conjunto de
diáfanas nuvens do qual se erguia e se curvava essa visão da Estrela Vespertina.
O terceiro mostrava o cume de um iceberg varando um céu de inverno polar;
a aurora boreal erguia suas sombrias lanças serrilhadas ao longo do horizonte.
Lançando tudo isso à distância erguia-se, no primeiro plano, uma cabeça — uma
cabeça colossal, curvada para o iceberg, e repousando nele. Duas mãos diáfanas,
unidas sob a testa e apoiando-a, formavam um véu escuro diante das feições
inferiores; uma fronte inteiramente exangue, branca como osso, e uns olhos
vazios e fixos, desprovidos de sentido, a não ser pelo vidrado do desespero, eram
os únicos detalhes visíveis. Acima das têmporas, em meio às dobras de um
turbante de tecido negro, de aspecto e consistência vagos como uma nuvem, luzia
um anel de chama branca, incrustado com fagulhas de uma cor mais lívida. O
pálido crescente era como "a imagem de uma coroa real"; o que envolvia, como
um diadema, era "a forma que a forma não tinha".
— Sentiu-se feliz quando pintou esses quadros? — perguntou o Sr. Rochester,
afinal.
— Estava absorvida, senhor; sim, estava feliz. Pintá-los foi, em suma,
desfrutar de um dos mais sensíveis prazeres que já conheci.
— Isso não é dizer muito. Seus prazeres, segundo a senhorita mesma, têm
sido poucos; mas aposto que viveu numa espécie de terra dos sonhos dos artistas,
enquanto misturava e distribuía essas estranhas cores. Demorava-se muito nelas,
de cada vez?
— Não tinha mais nada a fazer, porque estávamos nas férias, e eu trabalhava
nelas de manhã até meio-dia, e do meio-dia até a noite: a extensão dos dias de
pleno verão favorecia minha concentração.
— E sentiu-se satisfeita com o resultado desses ardentes esforços?
— Longe disso. Era atormentada pelo contraste entre minha idéia e o trabalho
de minha mão: em cada caso, imaginara algo que era inteiramente impotente para
realizar.
— Não inteiramente: a senhorita conseguiu capturar a sombra de seu
pensamento; porém não mais, provavelmente. Não possuía o bastante da
habilidade e da ciência do artista para dar-lhe existência plena: contudo, os
desenhos são, para uma colegial, peculiares. Quanto aos pensamentos, são
fugidios. Esses olhos na Estrela Vespertina, a senhorita deve tê-los visto em
sonhos. Como poderia fazê-los parecer tão nítidos, e no entanto nada brilhantes?
Pois o planeta acima empana seus raios. E que sentido é esse na profunda
solenidade deles? E quem lhe ensinou a pintar o vento? Há uma forte ventania
nesse céu, e nesse cume de montanha. Onde viu Latmos? Pois este é Latmos...
Está bem, guarde os desenhos!
Eu mal acabara de amarrar os cordões da pasta, quando, olhando seu relógio,
ele disse abruptamente:
— São nove horas: que faz a senhorita. Srta. Eyre, que deixa Adèle acordada
até tão tarde? Leve-a para a cama.
Adèle foi dar-lhe um beijo antes de deixar a sala: ele suportou a carícia, mas
não pareceu apreciá-la mais do que Pilot o faria, e nem tanto assim.
— Desejo a todas boa-noite agora — disse, fazendo um movimento com a
mão em direção à porta, mostrando que estava cansado de nossa companhia e
desejava despedir-nos. A Sra. Fairfax dobrou seu tricô; eu peguei minha pasta,
fizemos-lhe uma saudação e recebemos uma frígida curvatura em troca, e assim
saímos.
— A senhora disse que o Sr. Rochester não era particularmente peculiar, Sra.
Fairfax — observei, quando me juntei a ela em seu quarto, depois de pôr Adèle na
cama.
— Bem, e é?
— Eu acho: é muito instável e abrupto.
— É verdade, sem dúvida pode parecer assim a uma estranha, mas estou tão
acostumada com suas maneiras, que nunca penso nisso; e depois, se ele tem
peculiaridades de temperamento, deve-se dar uma margem para isso.
— Por quê?
— Em parte porque é a natureza dele... e nenhum de nós pode ir contra a
própria natureza; e em parte porque tem pensamentos dolorosos, sem dúvida, que
o perseguem e tornam seu gênio desigual.
— Sobre quê?
— Problemas de família, por exemplo.
— Mas ele não tem família.
— Agora, não, mas teve... ou, pelo menos, parentes. Perdeu o irmão mais
velho há poucos anos.
— Irmão mais velho?
— Sim. O atual Sr. Rochester não está há muito de posse da propriedade; só
uns nove anos.
— Nove anos é um tempo considerável. Ele gostava tanto do irmão assim, a
ponto de ainda estar inconsolável com sua perda?
— Bem, não... talvez não. Creio que havia algum desentendimento entre eles.
O Sr. Rowland Rochester não foi exatamente justo com o Sr. Edward; e talvez
tenha posto o pai contra ele. O velho cavalheiro era apegado ao dinheiro, e
ansioso por manter a propriedade da família intacta. Não gostava de diminuir a
propriedade com divisões, mas se preocupava com que o Sr. Edward tivesse
riqueza, para manter a importância de seu nome; e, assim que ele atingiu a
maioridade, tomaram-se algumas medidas que não foram muito justas e causaram
um bocado de danos. O velho Sr. Rochester e o Sr. Rowland combinaram-se para
pôr o Sr. Edward no que este considerava uma posição penosa, para fazer sua
fortuna; qual era a natureza exata dessa posição, eu nunca soube claramente, mas
o espírito dele não podia agüentar o que tinha de sofrer nela. Ele não é muito de
perdoar; rompeu com a família, e há muitos anos leva um tipo de vida errante.
Não creio que algum dia tenha ficado em Thornfield Hall por uma quinzena,
desde que a morte do irmão, sem deixar testamento, o fez senhor da propriedade;
e, na verdade, não admira que evite a velha casa.
— Por que deveria evitá-la?
— Talvez a julgue sombria.
A resposta era evasiva. Eu teria gostado de alguma coisa mais clara, mas a
Sra. Fairfax ou não podia ou não queria me dar informações mais explícitas sobre
a origem e a natureza das provações do Sr. Rochester. Afirmava que elas eram um
mistério para si mesma, e que o que sabia provinha basicamente de conjeturas.
Era evidente, de fato, que desejava que eu abandonasse o assunto, o que fiz
devidamente.
CAPITULO 14
DURANTE vários dias, depois disso, pouco vi o Sr. Rochester. Pelas manhãs,
ele parecia muito empenhado nos negócios, e à tarde recebia visitas de
cavalheiros de Millcote ou das vizinhanças, que às vezes ficavam para jantar com
ele. Quando sua torção sarou o suficiente para permitir-lhe exercícios a cavalo,
cavalgava um bocado; provavelmente para retribuir a essas visitas, pois em geral
só voltava tarde da noite.
Nesse intervalo, até Adèle só raramente era chamada à sua presença; e todo o
meu conhecimento com ele se limitava a um encontro ocasional no saguão, na
escada ou na galeria, quando às vezes passava por mim altiva e friamente, apenas
reconhecendo minha presença por um aceno distante ou um frio olhar, e outras
vezes fazendo uma curvatura e sorrindo com uma afabilidade de cavalheiro. Suas
mudanças de ânimo não me ofendiam, porque eu via que eu nada tinha com essas
alterações; o fluir e refluir delas dependiam de causas inteiramente alheias a mim.
Um dia, ele teve companhia para jantar e mandou pedir minha pasta de desenhos;
sem dúvida a fim de exibir o seu conteúdo: os cavalheiros saíram cedo para
assistir a um ato público em Millcote, como me informou a Sra. Fairfax; mas
como a noite era muito chuvosa e inclemente, o Sr. Rochester não os
acompanhou. Pouco depois dos outros partirem, ele tocou a sineta; veio um
recado para que eu e Adèle descêssemos. Escovei o cabelo dela, arrumei-a e,
tendo-me assegurado de que eu própria estava arrumada, à minha moda Quaker,
não havendo nada a retocar — pois tudo era muito justo e simples, incluindo as
trancas, para admitir desarranjos — descemos, Adèle imaginando se o petit coffre
tinha afinal chegado; pois devido a algum engano, sua chegada fora retardada até
então. Ela ficou satisfeita: lá estava a pequena caixa sobre a mesa, quando
entramos na sala de jantar. A menina pareceu saber por instinto.
— Ma boite! Ma boite!* — exclamou, correndo para a mesa. * Minha caixa! Minha caixa!
— Sim, aí está sua boite afinal; leve-a para um canto, sua autentica filha de
Paris, e divirta-se destripando-a — disse a voz profunda e um tanto sarcástica do
Sr. Rochester, do recesso de uma imensa poltrona diante da lareira. — E veja bem
— continuou — não me aborreça com os detalhes do processo anatômico ou
qualquer comunicação sobre as condições das entranhas; que suas operações se
conduzam em silêncio: tiens-foi tranquile, enfant; comprends-tu?** ** Fique quieta, menina: está entendendo? (N. do T.)
Adèle dificilmente precisava da advertência; já se retirara para um sofá com o
seu tesouro, e atarefava-se desamarrando o cordão que segurava a tampa. Tendo
removido esse obstáculo, e erguido alguns envoltórios de papel prateado,
simplesmente exclamou:
— Oh, ciel! Que c'est beau!*** — e permaneceu absorta em extática
contemplação. *** Oh, céus! Como é belo! (N. do T.)
— A Srta. Eyre está aí? — perguntou então o amo, semi-erguendo-se do
assento para olhar a porta, perto da qual eu estava.
— Ah! bem, adiante-se; sente-se aqui. — Puxou uma cadeira para perto da
sua. — Não gosto da tagarelice das crianças — continuou — porque, velho
solteirão como sou, não tenho associações agradáveis relacionadas com os cicios
delas. Seria intolerável para mim passar toda uma noite em tête-à-tête com uma
fedelha. Não afaste essa cadeira, Srta. Eyre; sente-se exatamente onde eu a pus...
por favor, quero dizer. Ao diabo com essas civilidades! Estou sempre
esquecendo-as. E tampouco tenho afeto por velhas senhoras simplórias. A
propósito, devo me lembrar; não é bom negligenciá-la; é uma Fairfax, ou casou-se
com um; e diz-se que o sangue é mais grosso que a água.
Tocou a sineta e enviou um convite à Sra. Fairfax, que logo apareceu, com a
cesta de tricô nas mãos.
— Boa-noite, madame; mandei chamá-la com um fim caridoso. Proibi Adèle
de conversar comigo sobre seus presentes, e ela está explodindo de vontade de
falar; tenha a bondade de servir-lhe de ouvinte; será um dos atos mais benévolos
que a senhora já realizou.
Adèle, de fato, tão logo viu a Sra. Fairfax, convidou-a ao sofá, e ali
rapidamente lhe encheu o colo com a porcelana, o marfim, os artigos de cera de
sua boite; despejando, enquanto isso, explicações e exclamações naquele inglês
capenga que dominava.
— Agora, que já desempenhei o papel de bom anfitrião — prosseguiu o Sr.
Rochester — pondo minhas hóspedes em posição de divertirem-se uma à outra,
devo ter liberdade para cuidar de meu próprio prazer. Srta. Eyre, adiante sua
cadeira mais um pouco, ainda está muito recuada: não posso vê-la sem perturbar
minha posição nesta confortável poltrona, o que não pretendo fazer.
Fiz o que me ordenavam, embora tivesse preferido ficar um tanto à sombra;
mas o Sr. Rochester tinha um modo tão direto de dar ordens, que parecia
indiscutível obedecer-lhe prontamente.
Estávamos, como já disse, na sala de jantar, o lustre que fora aceso para o
jantar enchia o aposento com uma festiva expansão de luz; o grande fogo ardia
rubro e límpido; as cortinas púrpura pendiam ricas e amplas diante da imponente
janela, e do arco mais imponente ainda; tudo estava em silêncio, a não ser pela
abafada tagarelice de Adèle (ela não ousava falar alto), e, preenchendo cada
pausa, o bater da chuva de inverno contra as vidraças.
O Sr. Rochester, sentado na poltrona coberta de damasco, parecia ter uma
aparência diferente da que eu lhe vira antes; não tão severo — muito menos
sombrio. Havia um sorriso em seus lábios, e os olhos luziam, se por efeito do
vinho ou não, não estou certa, mas acho muito provável. Encontrava-se, em suma,
em seu estado de espírito de após jantar; mais expansivo e, jovial, e também mais
solto que o temperamento frígido e rígido da manhã: contudo, parecia bastante
sombrio, apoiando a grande cabeça contra o recosto acolchoado de sua poltrona, e
recebendo a luz da lareira nas feições esculpidas em granito e nos olhos escuros;
pois tinha grandes olhos negros, e muito bonitos também — não sem uma certa
mudança em suas profundezas, às vezes, que se não era suavidade, pelo menos
lembrava essa sensação. Olhava o fogo havia uns dois minutos, e eu o observava
durante esse mesmo tempo, quando, voltando-se de repente, ele surpreendeu meu
olhar fixado em sua fisionomia.
— Está me examinando, Srta. Eyre — disse. — Acha-me bonito?
Se eu tivesse pensado, deveria ter respondido a essa pergunta com alguma
coisa convencionalmente vaga e polida; mas a resposta de certa forma me
escapuliu da língua antes que eu tivesse consciência.
— Não, senhor.
— Ah! Por minha honra! A senhorita tem esse algo singular — disse ele. —
Tem o ar de uma pequena nonnette;* singular, quieta, séria e simples, aí sentada
com as mãos no colo e os olhos geralmente baixados para o tapete (exceto, a
propósito, quando se dirigem penetrantemente para meu rosto; como ainda agora,
por exemplo); e quando alguém lhe faz uma pergunta, ou uma observação à qual
tem de responder, a senhorita se sai com uma resposta direta que, se não é rude, é
pelo menos brusca. Que quer dizer com isso? * Freirinha. (N. do T.)
— Senhor, fui muito direta, desculpe-me. Devia responder que não era fácil
dar uma resposta imediata a uma pergunta sobre aparências; que a maioria dos
gostos diverge; e que a beleza tem pouca importância, ou alguma coisa desse tipo.
— A senhorita não devia ter respondido nada disso. A beleza tem pouca
importância, veja! E assim, a pretexto de amaciar o insulto prévio, de me alisar e
consolar até a placidez, enfia-me um ardiloso canivete sob a orelha! Vá em frente,
que defeitos encontra em mim, por favor? Suponho que tenho todos os meus
membros e todas as minhas feições, como qualquer outro homem?
— Sr. Rochester, permita-me retirar minha primeira resposta: não pretendia
dar nenhuma resposta habilidosa: foi apenas um erro.
— Exatamente, é o que eu penso, e a senhorita responderá por ele. Critique-
me: minha testa não lhe agrada?
Ergueu as negras ondas de cabelo que atravessavam horizontalmente a testa, e
mostrou uma massa bastante sólida de órgãos intelectuais, mas com uma abrupta
deficiência onde devia elevar-se o suave sinal de benevolência.
— Vamos, madame, sou um idiota?
— Longe disso, senhor. Talvez me achasse rude se eu lhe perguntasse, em
resposta, se é um filantropo?
— Aí está de novo! Outra espetada com o canivete, quando fingia dar-me
tapinhas na cabeça, e isso porque eu disse que não gostava da companhia de
crianças e de velhas (falemos baixo!) Não, jovem senhora, não sou um filantropo
em geral; mas tenho uma consciência. — E indicou as saliências, na testa, que se
diz indicarem essa faculdade, e que, felizmente para ele, eram suficientemente
conspícuas; dando, de fato, uma acentuada amplidão à parte superior da testa. —
E, além disso, tive outrora uma espécie de rude ternura no coração. Quando tinha
a sua idade, era um sujeito bastante emotivo; com uma queda para os imaturos,
desfavorecidos e infelizes; mas a sorte me desancou depois, chegou mesmo a me
amassar com os nós dos dedos, e agora gabo-me de ser tão duro e resistente
quanto uma bola de borracha; mas acessível ainda, através de uma ou duas fendas,
e com um ponto sensível no meio do bolo. Sim, será que isso deixa esperança
para mim?
— Esperança de que, senhor?
"Decididamente bebeu muito vinho", pensei; e não sabia que resposta dar à
sua esquisita pergunta: como poderia saber se era capaz de ser retransformado?
— A senhorita parece muito intrigada, Srta. Eyre, e embora não seja mais
bonita do que eu, um ar intrigado lhe assenta bem; além disso, é conveniente, pois
mantém esses seus olhos inquisidores distantes de minha fisionomia, e os ocupa
com as flores de lã do tapete; assim, continue intrigada. Jovem dama, estou
disposto a ser gregário e comunicativo esta noite.
Com este anúncio, levantou-se de sua poltrona, e ficou de pé, apoiando o
braço no batente de mármore da lareira: nessa atitude, via-se seu corpo
claramente, assim como o rosto; o peito incomumente largo quase
desproporcional ao comprimento dos membros. Estou certa de que a maioria das
pessoas o teria achado um homem feio; contudo, havia tanto orgulho inconsciente
em seu porte; tanta naturalidade em sua conduta; uma tal aparência de completa
indiferença à sua imagem externa; uma confiança tão altiva no poder de outras
qualidades, intrínsecas ou adventícias para compensar a falta da simples atração
pessoal, que, olhando-o, inevitavelmente se partilhava dessa indiferença, e,
mesmo num sentido cego, imperfeito, punha-se fé na confiança.
— Estou disposto a ser gregário e comunicativo esta noite — ele repetiu — e
foi por isso que mandei chamá-la: o fogo e o candelabro não eram companhia
suficiente para mim; e tampouco Pilot teria sido, pois nenhum deles pode falar.
Adèle é um pouco melhor, mas ainda muito abaixo da marca; a Sra. Fairfax, o
mesmo; a senhorita, estou convencido, pode servir-me se quiser; intrigou-me na
primeira noite em que a convidei a descer até aqui. Quase a esqueci depois disso:
outras idéias expulsaram a sua de minha cabeça; mas esta noite estou resolvido a
ficar à vontade; afastar o que importuna e chamar o que agrada. Agradar-me-ia
agora puxar pela senhorita... saber mais da senhorita ... portanto, fale.
Em vez de falar, eu sorri; e não foi um sorriso muito complacente ou
submisso.
— Fale — ele exortou.
— Sobre que, senhor?
— Sobre o que queira. Deixo a escolha do assunto e a maneira de tratá-lo
inteiramente à senhorita.
Continuei sentada, sem dizer nada. "Se ele espera que eu fale apenas por falar
e para me exibir, vai descobrir que se dirigiu à pessoa errada", pensei.
— É muda, Srta. Eyre?
Continuei calada. Ele adiantou um pouco a cabeça para mim, e com um único
olhar rápido pareceu mergulhar em meus olhos.
— Obstinada? — disse. — E aborrecida. Ah! é coerente. Fiz meu pedido de
uma forma absurda, quase insolente. Srta. Eyre, desculpe-me. A verdade, de uma
vez por todas, é que não desejo tratá-la como uma inferior; isto é (corrigindo-se),
exijo apenas a superioridade que deve resultar de uma diferença de vinte anos de
idade, e a dianteira de um século de experiência. Isso é legítimo, et j'y íiens,*
como diria Adèle: e é em virtude dessa superioridade, e dela apenas, que desejo
que a senhorita tenha a bondade de conversar um pouco comigo agora, e de
afastar meus pensamentos, que estão esfolados de permanecerem num só ponto...
corroídos como um prego enferrujado. *E não abro mao disso. (N. do T.)
Elaborara uma explicação, quase um pedido de desculpa; não fiquei insensível
à sua condescendência e não quis parecê-lo.
— Estou disposta a entretê-lo, se puder, senhor... bastante disposta; mas não
posso introduzir um assunto, porque sei eu o que lhe interessa? Faça-me
perguntas, e farei o melhor que possa para respondê-las.
— Então, em primeiro lugar, concorda comigo em que tenho o direito de ser
um pouco dominador, abrupto, talvez exigente, às vezes, com base no que
declarei, isto é, que sou velho o bastante para ser seu pai, e que batalhei, através
de uma variada experiência, com muitos homens de muitos países, e errei pela
metade do globo, enquanto a senhorita viveu tranqüilamente com um grupo de
pessoas numa casa.
— Faça como quiser, senhor.
— Isto não é resposta; ou antes, é uma resposta muito irritante, porque muito
evasiva. Responda claramente.
— Não creio, senhor, que tenha o direito de me dar ordens; apenas por ser
mais velho que eu, ou porque viu mais do mundo do que eu; sua reivindicação à
superioridade depende do uso que fez de seu tempo e experiência.
— Hum! Falado prontamente. Mas não permitirei isso, visto que nunca
serviria à minha argumentação, pois fiz um uso indiferente, para não dizer ruim,
de ambas as vantagens. Deixando a superioridade fora de questão, ainda deve
concordar em receber minhas ordens de vez em quando, sem ficar despeitada ou
magoada pelo tom de comando. Aceita?
Eu sorri, pensei comigo mesma: o Sr. Rochester ê peculiar — parece esquecer
que me paga trinta libras por ano para receber suas ordens.
— O sorriso está muito bem — ele disse, captando num instante a expressão
passageira. — Mas fale, também.
— Eu estava pensando, senhor, que muito poucos patrões se dariam o trabalho
de perguntar se seus subordinados pagos ficavam despeitados ou magoados com
suas ordens.
— Subordinados pagos! Quê! A senhorita é minha subordinada paga, é? Oh,
sim, tinha esquecido o salário! Bem, então, nessa base mercenária, concorda em
deixar-me dominar um pouco?
— Não, senhor, não nessa base; mas com base em que o senhor o esqueceu, e
que se importa com o fato de um dependente estar ou não à vontade sob sua
dependência, concordo de todo coração.
— E consentirá em dispensar muitas formas e frases convencionais, sem
pensar que a omissão deriva de insolência?
— Tenho certeza, senhor, de que jamais tomaria informa-lismo por
insolência; de uma eu até gosto, à outra ninguém nascido em liberdade se
submeteria, mesmo por um salário.
— Conversa fiada! A maioria das pessoas nascidas livres se submeterá a
qualquer coisa por um salário; portanto, guarde isso para si mesma, e não se
arrisque a generalizações sobre o que ignora absolutamente. Contudo, aperto-lhe
mentalmente a mão por sua resposta, apesar da imprecisão; e tanto pela forma
como foi dada quanto pela substância do discurso; a forma foi franca e sincera;
não se vê com freqüência uma forma assim; não, ao contrário, a afetação, ou
frieza, ou a estúpida e grosseira má compreensão do que dizemos são as
recompensas usuais da franqueza. Nem três em três mil governantas de colegiais
teriam respondido como a senhorita respondeu. Mas não pretendo lison-jeá-la; se
é feita de um molde diferente da maioria, não é mérito seu, foi a natureza que a
fez assim. E, afinal, estou me apressando demais em minhas conclusões: pelo que
sei até agora, a senhorita pode não ser melhor que o resto; pode ter defeitos
insuportáveis para contrabalançar seus poucos pontos bons.
"E o senhor também", pensei. Meus olhos encontraram os dele quando a idéia
me cruzou a mente: ele pareceu ler o olhar, respondendo como se seu conteúdo
tivesse sido falado, além de imaginado:
— Sim, sim, está certa — disse. — Eu tenho bastante defeitos, sei-o, e não
quero reduzir a importância deles, garanto-lhe. Deus sabe que não devo ser
demasiado severo com os outros; tenho uma experiência atrás, uma série de atos,
uma cor de vida a contemplar dentro de meu peito, que bem poderiam provocar
muitos escárnios e censuras de meus próximos. Eu comecei, ou antes (pois, como
outros faltosos, gosto de pôr metade da culpa na má sorte e nas circunstâncias
adversas), fui jogado numa estrada errada, com a idade de vinte e um anos, e
jamais retomei o curso certo desde então; mas poderia ter sido bem diferente;
poderia ter sido tão bom quanto a senhorita... mais sensato... quase tão imaculado.
Invejo sua paz de espírito, sua consciência limpa, sua memória não poluída.
Menina, uma memória sem mancha ou contaminação deve ser um perfeito
tesouro... uma fbnte inesgotável de puro refrigério, não é?
— Como era a sua memória quando tinha dezoito anos, senhor?
— Muito bem, então: límpida, saudável: nenhum jorro de água suja a tinha
transformado numa poça fétida. Eu era igual à senhorita aos dezoito anos...
exatamente igual. A natureza pretendia que eu fosse, no todo, um homem bom,
Srta. Eyre; um homem da melhor espécie, e está vendo que não sou assim. A
senhorita diria que não está vendo: pelo menos, gabo-me de ler isso em seus olhos
(cuidado, a propósito, com o que expressa com esses órgãos; sou muito rápido na
interpretação da linguagem deles). Assim, aceite minha palavra, não sou um vilão,
não deve supor que... não deve atribuir-me nada dessa má eminência; mas devido,
creio piamente, mais às circunstâncias do que à minha inclinação natural, sou um
pecador banal, comum, curtido em todas as pequenas e pobres dissipações com as
quais os ricos e imprestáveis tentam assumir a vida. Admira-se de eu confessar-
lhe isso? Saiba que no curso de sua vida futura se verá freqüentemente escolhida
como involuntária confidente dos segredos de seus conhecidos: as pessoas
descobrirão instintivamente, como eu, que seu forte não é falar de si mesma, mas
ouvir quando os outros falam de si; sentirão, também, que a senhorita não ouve
com malévolo desprezo pela indiscrição deles, mas com uma espécie de simpatia
inata, não menos reconfortante e encorajadora por ser manifestada muito
discretamente.
— Como sabe... como pode presumir tudo isso?
— Sei muito bem: portanto, ajo quase tão livremente como se estivesse
anotando meus pensamentos num diário. A senhorita diria que eu deveria ter sido
superior às circunstâncias; e deveria ... e deveria; mas, como vê, não fui. Quando
o destino me prejudicou, não tive a sabedoria de permanecer frio; fiquei
desesperado; depois degenerei. Agora, quando qualquer simplório pervertido
provoca minha antipatia por sua torpe libertinagem, não posso gabar-me de ser
melhor que ele: sou obrigado a confessar que ele e eu estamos no mesmo nível.
Desejaria ter permanecido firme... Deus sabe que desejaria! Receie o remorso
quando se vir tentada a errar, Srta. Eyre: o remorso é o veneno da vida.
— Dizem que o arrependimento o cura, senhor.
— Não cura. A reforma pode curar; e eu poderia me reformar ... se tivesse a
força para isso... se... mas de que adianta pensar nisso, estorvado, carregado,
amaldiçoado como sou? Além disso, como a felicidade me é irrevogavelmente
negada, tenho o direito de obter prazer da vida: e vou obtê-lo, custe o que custar.
— Então vai degenerar ainda mais, senhor.
— É possível, mas por que deveria, se posso obter um prazer doce, novo? E
posso obtê-lo tão doce e novo quanto o mel silvestre que as abelhas colhem na
charneca.
— Arderá... terá um gosto amargo, senhor.
— Como sabe? Jamais o experimentou. Como a senhorita parece tão séria, tão
solene; e é tão ignorante do assunto quanto este camafeu (pegando-o do batente
da lareira). Não tem o direito de me pregar sermões, sua neófita, que não cruzou
ainda o pórtico da vida e desconhece totalmente os seus mistérios.
— Apenas lhe lembro suas próprias palavras, senhor; o senhor disse que o
erro trazia remorso, e declarou o remorso o veneno da existência.
— E quem fala de erro agora? Não acho que a idéia que me tremulou no
cérebro tenha sido um erro. Creio que foi mais uma inspiração que uma tentação;
foi muito agradável, muito apaziguante... sei disso. Lá vem ela de novo! Não é
demônio, garanto-lhe; ou, se for, pôs as vestes de um anjo de luz. Acho que devo
admitir uma hóspede tão bela quando pede para entrar em meu coração.
— Desconfie dela, senhor; não é um anjo verdadeiro.
— Mais uma vez, como sabe? Por qual instinto pretende distinguir entre um
serafim caído do abismo e um mensageiro do trono eterno... entre um guia e um
sedutor?
— Julguei pela sua expressão, senhor, que estava perturbada quando disse que
a sugestão lhe voltara. Estou segura de que lhe trará mais infelicidade, se lhe der
ouvidos.
— De modo nenhum... ela traz a mais graciosa mensagem do mundo: quanto
ao resto, a senhorita não é a guardiã de minha consciência, e portanto não se
inquiete. Aqui, venha, bela errante!
Disse isso como se falasse a uma aparição, invisível a quaisquer olhos que não
os seus; depois, dobrando os braços, que tinha meio estendidos sobre o peito,
pareceu encerrar entre eles a coisa invisível.
— Agora — continuou, dirigindo-se novamente a mim — já recebi a
peregrina... uma divindade disfarçada, como creio piamente. Ela já me fez bem;
meu coração era uma espécie de cemitério; agora será um santuário.
— Para falar a verdade, senhor, não o compreendo de modo algum; não posso
manter a conversa, porque saiu das minhas águas. Só de uma coisa eu sei: o
senhor disse que não era tão bom quanto gostaria, e que lamentava sua
imperfeição; uma coisa eu posso compreender: deu a entender que ter uma
memória suja era uma perpétua perdição. Parece-me que, se tentasse com afinco,
com o tempo acharia possível tornar-se o que o senhor próprio aprovaria; e que
se, a partir de hoje, começasse com decisão a corrigir seus pensamentos e ações,
em poucos anos teria armazenado um novo e imaculado depósito de lembranças,
às quais poderia retornar com prazer.
— Bem pensado; bem dito, Srta. Eyre; e neste momento estou pavimentando
o inferno com toda energia.
— Senhor?
— Estou assentando boas intenções, que julgo duradouras como pedra.
Certamente, meus auxiliares e interesses serão diferentes do que têm sido.
— E melhores?
— E melhores... tão melhores quanto o puro minério é melhor que a suja
escória. A senhorita parece duvidar de mim; eu não duvido de mim mesmo, sei
qual é meu objetivo, quais são meus motivos; e neste momento promulgo uma lei,
inalterável como a dos medas e persas, afirmando que ambos são corretos.
— Não podem ser, senhor, se exigem um novo estatuto para legalizá-los.
— São, Srta. Eyre, apesar de exigirem, absolutamente, um novo estatuto;
combinações de circunstâncias inauditas exigem leis inauditas.
— Isso soa como uma máxima perigosa, senhor; porque se pode ver logo que
está sujeita a abuso.
— Sentenciosa sábia! Assim é, mas juro por meus deuses domésticos não
abusar dela.
— O senhor é humano e falível.
— Sou, e a senhorita também... e daí?
— Os humanos e falíveis não devem arrogar-se um poder que só se pode
confiar com segurança ao divino e perfeito.
— Que poder?
— O de dizer sobre qualquer linha de ação estranha e não sancionada: "Que
seja correta".
— "Que seja correta"... as palavras exatas: a senhorita as pronunciou.
— Que seja correta então — eu disse, enquanto me levantava, julgando inútil
continuar uma conversa que era apenas treva para mim; e além disso, sentindo
que o caráter de meu interlocutor ultrapassava a minha compreensão, pelo menos
o seu alcance atual; e sentindo a incerteza, o vago senso de insegurança, que
acompanham uma convicção de ignorância.
— Aonde vai?
— Pôr Adèle na cama, já passou da sua hora de dormir.
— Tem medo de mim, porque falo como uma esfinge.
— Sua linguagem é enigmática, senhor; mas embora eu esteja confusa,
certamente não estou com medo.
— A senhorita está com medo... sua auto-estima receia um erro.
— Nesse sentido eu me sinto apreensiva... não tenho a menor vontade de falar
tolices.
— Se o fizesse, seria de um modo tão sério e discreto, que eu tomaria por
sensatez. Nunca ri, Srta. Eyre? Não se dê o trabalho de responder... vejo que
raramente ri; mas pode rir com muita alegria; creia-me, a senhorita não é
naturalmente austera, não mais do que eu sou naturalmente perverso. A repressão
de Lowood ainda se apega à senhorita de alguma forma; controlando suas feições,
abafando sua voz e restringindo seus membros; e teme, em presença de um
homem e um irmão... ou pai, ou patrão, ou o que queria... sorrir muito
alegremente, falar muito francamente, ou movimentar-se com muita rapidez; no
devido tempo, creio que será natural comigo, como eu sinto impossível ser
convencional com a senhorita; e então sua aparência e seus movimentos terão
mais vivacidade e variedade que os que ousam apresentar agora. Vejo de vez em
quando o olhar de uma espécie curiosa de pássaro, através das estreitas barras de
uma gaiola; há uma vivida, inquieta e decidida cativa lá dentro; se se visse livre,
voaria pelas nuvens. Ainda está inclinada a ir-se?
— Já bateram nove horas, senhor.
— Deixe pra lá... espere um minuto: Adèle não está pronta para ir para a cama
ainda. Minha posição, Srta. Eyre, de costas para o fogo e com o rosto para a sala,
favorece a observação. Enquanto converso com a senhorita, tenho observado de
vez em quando Adèle (tenho meus próprios motivos para achá-la um estudo
curioso — motivos que posso, não, que lhe comunicarei algum dia). Ela retirou de
sua caixa, há cerca de dez minutos, um vestidinho rosa; o encanto iluminou-lhe o
rosto ao desdobrá-lo; a faceirice corre no sangue dela, mistura-se com o cérebro e
tempera a medula dos ossos. "Id faut que je 1'essaie!" ela gritou, "et à l’instant
même!"* E saiu correndo da sala. Está agora com Sophie, passando por um
processo de vestir-se: em poucos minutos voltará a entrar; e eu sei o que vou ver...
uma miniatura de Céline Varens, como aparecia no palco ao erguerem-se as... mas
deixemos isso pra lá. Contudo, meus sentimentos mais ternos estão para receber
um choque, é o que pressinto; fique agora, para ver se se realizará. * Preciso experimentá-lo! E agora mesmo!
Pouco depois, ouviram-se os pezinhos de Adèle atravessarem o saguão. Ela
entrou, transformada como seu guardião predissera. Um vestido de cetim rosa,
muito curto, e tão rodado na saia quanto possível, substituíra o marrom que usava
antes; uma grinalda de botões de rosa envolvia-lhe a cabeça; os pés estavam
metidos em meias de seda e pequenas sandálias de cetim branco.
— Est-ce que ma robe va bien? — ela exclamou, saltando para a frente. — Et
mes souliers? Et mes bas? Tenez, je crois que je vais danser!** ** Meu vestido me assenta bem? E meus sapatos? E minhas meias 'Olhem, acho que vou
dançar!
E, espalhando o vestido, correu pelo quarto, até que, tendo alcançado o Sr.
Rochester, rodopiou à sua frente nas pontas dos pés, e depois caiu com um joelho
no chão, exclamando:
— Monsieur, je vous remercie mille fois de votre bonté. — Depois, erguendo-
se, acrescentou: — Cest comme cela que maman faisait, n’est-ce pas,
monsieur?*** *** Senhor, agradeço-lhe mil vezes a sua bondade. Era assim que mamãe fazia, não era,
senhor? (N. do T.)
— Pre-ci-sa-mente — foi a resposta. — E, comme cela, ela enfeitiçava meu
ouro inglês para deixar o bolso de minhas britânicas calças. Eu já fui verde
também, Srta. Eyre, verde como a grama: a senhorita não tem hoje uma cor mais
primaveril que a que eu tive outrora. Minha primavera passou, mas deixou-me
essa florzinha francesa nas mãos, da qual em alguns momentos eu gostaria de me
livrar. Não valorizando agora a raiz da qual ela brotou; tendo descoberto que era
do tipo que nada, a não ser ouro em pó, poderia adubar, tenho apenas um pouco
de afeição pelo broto, especialmente quando parece tão artificial, como agora. Eu
a mantenho e a educo no princípio católico romano de expiar numerosos pecados,
grandes ou pequenos, por uma boa ação. Explicarei tudo isso algum dia. Boa-
noite.
CAPÍTULO 15
O SR. ROCHESTER explicou, numa ocasião posterior. Foi numa tarde em
que me encontrou por acaso, a mim e a Adèle, nos jardins da propriedade, e
enquanto ela brincava com Pilot e sua peteca, ele me convidou a passear por uma
longa alameda de faias à vista dela.
Disse-me então que Adèle era filha de uma dançarina de ópera francesa,
Céline Varens, pela qual tivera outrora o que chamava de uma grande passion.
Céline professava retribuir a essa passion com um ardor ainda maior. Ele se
julgava o seu ídolo: feio como era, acreditava, segundo disse, que ela preferia seu
taille d’athlète* à elegância do Apollo Belvedere. * Porte de atleta. (N. do T.)
— E, Srta. Eyre, eu fiquei tão lisonjeado por essa preferência da sílfide galesa
pelo seu gnomo britânico, que a instalei num palacete, dei-lhe um estabelecimento
completo de criados, uma carruagem, casimiras, diamantes, rendas etc. Em suma,
dei início ao processo de arruinar-me no estilo clássico, como qualquer outro
apaixonado. Não tive, aparentemente, a originalidade de traçar uma nova estrada
para a vergonha e a destruição, mas trilhei a velha rota com estúpida exatidão,
para não me desviar uma polegada do centro batido. Tive... como merecia ter... o
destino de todos os apaixonados. Visitando-a uma noite, quando Céline não me
esperava, desmascarei-a; mas era uma noite cálida, e eu estava cansado de
vaguear por Paris, e assim me sentei em seu boudoir, feliz por respirar o ar tão
recentemente consagrado pela presença dela. Não... estou exagerando; nunca
pensei que houvesse alguma virtude consagradora nela; era mais uma espécie de
perfume de pastilha que ela deixara atrás de si, um cheiro de almíscar e âmbar, do
que um odor de santidade. Eu começava a sufocar com os vapores das flores de
estufa e das essências borrifadas, quando me ocorreu abrir a janela e sair para a
sacada. Havia luar, e além disso a luz de gás, e tudo estava muito quieto e sereno.
A sacada tinha uma ou duas cadeiras. Sentei-me e puxei um charuto... vou puxar
um agora, se a senhorita me perdoar.
Seguiu-se uma pausa, preenchida pelo aparecimento e acendimento do
charuto; tendo-o colocado entre os lábios e inalado um hausto de incenso havanês
no; ar frio e sem sol, ele prosseguiu:
— Eu também gostava de bombons naquele tempo, Srta. Eyre, e estava
croquant (perdoe o barbarismo) croquant confeitos de chocolate e fumando,
alternadamente, observando enquanto isso as equipagens que rolavam pelas ruas
da moda em direção à ópera ali próxima, quando, numa elegante carruagem
fechada, puxada por um belo par de cavalos ingleses, e distintamente visível na
brilhante noite citadina, reconheci a voiture que dera a Céline. Ela voltava; é
claro, que meu coração bateu com impaciência contra o balaustre de ferro no qual
me apoiava. A carruagem parou, como eu esperava, na porta do palacete; minha
chama (esta é a palavra exata para uma inamorata de ópera) baixou; apesar de
envolta num casaco... um estorvo desnecessário, a propósito, numa noite de junho
tão quente... reconheci-a no mesmo instante pelo pezinho, que apareceu por baixo
da barra do vestido, quando ela saltou dos degraus da carruagem. Curvando-me
sobre a sacada, eu estava para murmurar "Mon ange"... num tom, evidentemente,
que só deveria ser audível para o ouvido do amor... quando um vulto saltou da
carruagem atrás dela; também envolto num casaco; mas foi um calcanhar com
esporas o que pisou na calçada, e era uma cabeça com chapéu que agora passava
sob a porte cochère em arco do palacete.
"A senhorita nunca sentiu ciúme, não é, Srta. Eyre? É claro que não, não
preciso perguntar-lhe; porque jamais sentiu amor. Ainda precisa experimentar os
dois sentimentos; sua alma dorme; ainda está por vir o choque que irá acordá-la.
A senhorita pensa que toda a existência passa num fluir tão tranqüilo quanto
aquele em que sua juventude até agora deslizou. Continuando a flutuar com os
olhos fechados e os ouvidos tapados, nem vê os rochedos que se eriçam não
distantes do leito do rio, nem ouve as ondas fervilharem em suas bases. Mas eu
lhe digo... e guarde bem minhas palavras... a senhorita chegará um dia a uma
passagem escarpada no canal, onde toda a corrente da vida se quebrará em
redemoinho e tumulto, espuma e barulho: ou será reduzida a átomos nas pontas
das escarpas, ou erguida e levada por alguma onda mestra a uma corrente mais
calma... como estou agora.
"Gosto deste dia; gosto deste céu de aço; gosto da severidade e quietude do
mundo sob esta geada. Gosto de Thornfield, sua antigüidade, seu recolhimento,
suas árvores e espinheiros, sua fachada cinzenta e suas fileiras de janelas escuras
refletindo essa abóbada metálica; e no entanto, quanto tempo detestei até mesmo a
idéia deste lugar, evitei-o como uma grande casa empesteada. Como ainda
detesto..."
Rangeu os dentes e calou-se; deteve os passos e bateu a bota contra o solo
duro. Algum pensamento odioso parecia ter-se apoderado dele, e segurá-lo tão
firmemente, que não podia avançar.
Subíamos a alameda quando ele parou assim; tínhamos a mansão à nossa
frente. Erguendo os olhos para suas ameias, ele lhes dirigiu um olhar como nunca
vi antes ou depois disso. Sofrimento, vergonha, ira... impaciência, repugnância,
antipatia... pareciam travar um trêmulo conflito nas grandes pupilas que se
dilatavam sob as sobrancelhas de ébano. Bárbara era a luta que devia predominar;
mas outro sentimento surgiu e triunfou; algo duro e cínico; auto-imposto e
resoluto; acalmou-lhe paixão e petrificou-lhe a expressão: ele prosseguiu:
— Durante o momento em que fiquei em silêncio, Srta. Eyre, eu acertava uma
questão com o meu destino. E esse destino ficou ali, ao lado do tronco de faia...
uma bruxa como as que apareceram a Macbeth na charneca em Forres. "Gostas de
Thornfield?" disse-me, erguendo um dedo; e depois escreveu no ar um memento,
que cobria em sinistros hieróglifos toda a frente da casa, entre a fileira de cima e a
de baixo de janelas. "Gosta se puderes! Gosta se ousares!"
"'Gostarei', eu disse; 'ouso gostar'; e (acrescentou sombriamente) 'manterei
minha palavra, romperei os obstáculos à felicidade, à bondade... sim, bondade.
Desejo ser um homem melhor do que tenho sido, do que sou; como o leviatã de Jó
quebrou a lança, o dardo e a cota de malha, os obstáculos que outros contam
como ferro e cobre, eu considerarei apenas palha e madeira podres".
Adèle correu então para ele com sua peteca.
— Fora! — ele gritou brutalmente. — Fique longe, menina, ou entre e vá ficar
com Sophie!
Continuando então a acompanhar seu passeio em silêncio, aventurei-me a
chamá-lo ao ponto onde ele abruptamente se desviara:
— O senhor deixou a sacada, senhor — perguntei — quando Mlle Varens
entrou?
Quase esperava uma repreensão por esta pergunta dificilmente oportuna; mas,
ao contrário, despertando de sua carrancuda abstração, ele volveu os olhos para
mim, e a sombra pareceu abandonar sua fronte.
— Oh, tinha esquecido Céline! Bem, reiniciando. Quando vi minha feiticeira
entrar assim acompanhada por um cavalheiro, pareceu-me ouvir um silvado, e a
serpente verde do ciúme, erguendo-se em anéis da sacada enluarada, deslizou para
dentro de meu colete, e abriu caminho roendo em dois minutos até o centro de
meu coração. Estranho! — exclamou de repente, desviando-se de novo da
história. — Estranho que eu a tenha escolhido para confidente disso tudo,
senhorita; mais que estranho que me ouça silenciosamente, como se fosse a coisa
mais comum do mundo um homem como eu contar histórias de suas amantes da
ópera a uma moça estranha e inexperiente como a senhorita. Mas a última
singularidade explica a primeira, como eu já disse antes: a senhorita, com sua
gravidade, consideração e cautela, foi feita para ser uma recipiente de segredos.
Além disso, sei que tipo de mente coloquei em comunicação com a minha, sei que
é uma mente não sujeita a contaminação, uma mente peculiar; única. Felizmente,
não pretendo prejudicá-la; mas se pretendesse, ela não receberia danos de mim.
Quanto mais eu e a senhorita conversarmos, melhor; pois enquanto eu não posso
feri-la, a senhorita pode refrescar-me. — Após esta digressão, ele prosseguiu:
— Permaneci na sacada: "Virão ao boudoir dela, sem dúvida", pensava.
"Deixe-me preparar uma emboscada". Assim, passando a mão pela janela aberta,
fechei as cortinas; depois fechei o caixilho, deixando apenas uma fresta aberta o
suficiente para permitir a passagem das juras abafadas dos amantes; depois me
esgueirei de volta à minha cadeira, e quando a retomei o par entrou. Pus
rapidamente os olhos na abertura. A camareira de Céline entrou, acendeu uma
lâmpada, deixou-a na mesa e retirou-se. O casal ficou assim plenamente visível
para mim: tiraram os casacos, e lá estava "a Varens", reluzindo em cetim e jóias...
presentes meus, é claro... e lá estava seu companheiro, num uniforme de oficial; e
eu o conhecia como um jovem roué*, um visconde... um jovem desmiolado e
pervertido a quem encontrara algumas vezes em sociedade, e ao qual jamais
pensara odiar, por desprezá-lo tão absolutamente. Ao reconhecê-lo, a presa da
serpente do ciúme se quebrou no mesmo instante; porque naquele momento meu
amor por Céline se apagou sob um extintor. Uma mulher que podia me trair com
tal rival não merecia uma disputa; merecia apenas desprezo; menos, porém, do
que eu, que fora seu bobo. * Libertino.
"Começaram a conversar, e a conversa me pôs inteiramente à vontade; frívola,
mercenária, sem coração e sem sentido, era mais calculada para entediar do que
para enfurecer um ouvinte. Havia um cartão meu sobre a mesa, que, tendo sido
visto, trouxe meu nome à discussão. Nenhum deles tinha energia ou espírito para
desancar-me em regra, mas me insultaram tão grosseiramente quanto podiam, à
sua maneira mesquinha, especialmente Céline, que se mostrou até brilhante sobre
meus defeitos pessoais... deformidades, como ela os chamava agora. Ora, era seu
costume lançar-se em ardorosa admiração do que chamava de minha "bauté
mâle"**; no que diferia diametricalmente da senhorita, que me disse à queima-
roupa, na segunda entrevista, que não me achava bonito. O contraste me chamou a
atenção na hora e..." ** Beleza máscula. (N. do T.)
Adèle veio correndo de novo.
— Monsieur, John veio há pouco dizer que seu agente está aí e deseja vê-lo.
— Ah, neste caso, devo resumir. Abrindo a janela, marchei para eles; liberei
Céline de minha proteção; dei-lhe um prazo para deixar o palacete; ofereci-lhe
uma quantia para as necessidades imediatas; ignorei gritos, histeria, rogos,
protestos, convulsões; marquei com o visconde um encontro no Bois de
Boulogue. Na manhã seguinte, tive o prazer de enfrentá-lo, deixei uma bala num
de seus pobres braços estiolados, fracos como a asa de um pinto, e depois achei
que liquidara todo o assunto. Mas infelizmente a Varens, seis meses antes, me
dera essa fillette Adèle, que afirmava ser minha filha; e talvez seja, embora eu não
veja provas de tão triste paternidade escritas em seu rosto; Pilot parece mais
comigo do que ela. Alguns anos depois de eu romper com a mãe, ela abandonou a
filha e fugiu para a Itália com um músico ou cantor. Não reconheci nenhum
direito de Adèle a ser sustentada por mim, nem reconheço nenhum agora, pois
não sou o pai dela; mas sabendo que estava muito abandonada, retirei a coitadinha
do lodo e da lama de Paris e a transplantei para aqui, para criar-se limpa no
íntegro solo de um jardim rural inglês. A Sra. Fairfax encontrou a senhorita para
educá-la; mas, agora que sabe que ela é filha ilegítima de uma moça da ópera
francesa, talvez faça uma idéia diferente de sua pupila e protegida; virá a mim
algum dia com a notícia de que encontrou outro lugar... que me pede para
procurar uma nova governanta etc.
— Não: Adèle não é responsável pelos erros da mãe ou os seus; tenho
consideração por ela; e agora que sei que ela é, em certo sentido, órfã...
abandonada pela mãe e rejeitada pelo senhor... me apegarei ainda mais a ela do
que antes. Como poderia eu preferir o mimado rebento de uma família rica, que
odiaria sua governanta como uma praga, a uma orfãzinha solitária que a busca
como amiga?
— Oh, é essa a luz em que a senhorita vê o caso! Bem, tenho de ir agora; e a
senhorita também; está escurecendo.
Mas eu fiquei lá fora mais alguns minutos com Adèle e Pilot — disputei uma
corrida com ela e um jogo de raqueta e peteca. Quando entramos, e depois de
remover sua touca e casaco, tomei-a nos joelhos e mantive-a assim por uma hora,
deixando-a tagarelar à vontade, não repelindo nem mesmo algumas pequenas
liberdades e trivialidades em que costumava se lançar quando lhe davam muita
atenção, e que traíam nela um caráter superficial, herdado provavelmente da mãe
e dificilmente compatível com uma mente inglesa. Contudo, tinha seus méritos; e
eu estava disposta a apreciar ao máximo tudo que houvesse de bom nela. Buscava
em seu rosto e feições alguma semelhança com o Sr. Rochester, mas não
encontrei nenhuma; nenhum traço, nenhuma expressão anunciava algum
parentesco. Era uma pena; se se pudesse provar que ela parecia com ele, ele teria
um melhor conceito dela.
Só depois de retirar-me para meu quarto foi que examinei cuidadosamente a
história que o Sr. Rochester me tinha contado. Como ele dissera, não havia
provavelmente nada de extraordinário no teor da narrativa em si; a paixão de um
inglês rico por uma dançarina francesa, e a traição dela a ele, eram coisas bastante
corriqueiras, sem dúvida, em sociedade; mas havia algo decididamente estranho
no paroxismo de emoção que subitamente o tomara quando expressava a atual
satisfação de seu estado de espírito, e em seu recém-revivido prazer pela velha
mansão e seus arredores. Meditei intrigada sobre esse incidente; mas, deixando-o
aos poucos, por achá-lo no momento inexplicável, voltei-me para o exame das
maneiras de meu patrão para comigo. A confiança que ele julgara apropriado
depositar em mim parecia um tributo à minha discrição: eu a encarava e aceitava
como tal. Sua conduta já por algumas semanas era mais uniforme, para comigo,
do que a princípio. Eu nunca parecia atrapalhá-lo; ele não tinha acessos de
arrepiante altivez; quando me encontrava inesperadamente, o encontro parecia
bem-vindo; sempre tinha uma palavra e às vezes um sorriso para mim: quando
chamada por um convite formal à sua presença, eu era honrada com uma recepção
cordial que me fazia sentir que realmente possuía o poder de entretê-lo, e que
aquelas conferências noturnas eram buscadas tanto para o prazer dele como meu.
Na verdade, eu falava relativamente pouco, mas ouvia-o falar com prazer. Era
de sua natureza ser comunicativo; gostava de abrir a uma mente que não conhecia
o mundo vislumbres de seus cenários e costumes (não me refiro a seus cenários
corruptos e seus maus costumes, mas aos que extraíam seu interesse da grande
escala em que se desenrolavam, da estranha novidade que os caracterizava); e eu
sentia um intenso prazer em receber as novas idéias que ele oferecia, em imaginar
os novos quadros que ele pintava, e em segui-lo em pensamento pelas novas
regiões que revelava, jamais ficando espantada ou perturbada por uma alusão
perniciosa.
A liberdade de suas maneiras libertava-me de qualquer contenção penosa; a
amistosa franqueza, tão correta quanto cordial, com que me tratava, atraía-me
para ele. Eu sentia às vezes que ele era meu parente, em vez de patrão: contudo,
ainda era às vezes imperioso; mas eu não me importava com isso; via que era o
seu jeito. Fiquei tão feliz, tão satisfeita com esse novo interesse acrescentado à
vida que deixei de ansiar por parentes: meu destino, uma fina lua crescente,
parecia ampliar-se; os vazios da existência enchiam-se; minha saúde física
melhorou; ganhei carne e vigor.
E o Sr. Rochester, era agora feio a meus olhos? Não, leitor; a gratidão e
muitas associações, todas agradáveis e alegres, faziam do seu rosto a coisa que eu
mais gostava de ver; a presença dele numa sala era mais animadora que o mais
vivo fogo. Mas eu não esquecera seus defeitos; na verdade, não poderia, pois ele
os punha freqüentemente diante de mim. Era orgulhoso, sardônico, duro com os
inferiores de todos os tipos: no íntimo, eu sabia que sua grande bondade para
comigo era contrabalançada por uma injusta severidade com muitos outros. Era
mal-humorado, também, indizivelmente; mais de uma vez, quando chamada a ler
para ele, encontrei-o sentado sozinho em sua biblioteca, a cabeça curvada sobre os
braços cruzados; e, quando erguia o olhar, uma carranca sombria, quase maligna,
enegrecia-lhe as feições. Mas eu acreditava que seu mau humor e suas antigas
faltas de moralidade (digo antigas porque agora parecia corrigido delas) tinham
origem em alguma cruel contrariedade da sorte. Acreditava que ele era
naturalmente /um homem de melhores tendências, princípios mais elevados e
gostos mais puros que os que as circunstâncias tinham desenvolvido, a educação
instilado ou o destino encorajado. Achava que havia excelentes materiais nele;
embora no momento estivessem um tanto estragados e embaraçados. Não posso
negar que sofria com seu sofrimento, fosse qual fosse, e que daria muito para
aliviá-lo.
Embora houvesse apagado minha vela e estivesse deitada na cama, não
conseguia dormir, pensando na aparência dele quando parará na alameda e dissera
como o destino se erguera à sua frente e o desafiara a ser feliz em Thornfield.
"Por que não?" perguntei a mim mesma. "Que é que o separa de sua casa?
Será que a deixará logo? A Sra. Fairfax disse que ele raramente ficava mais de
uma quinzena de cada vez; e ele está morando aqui agora há dois meses. Se partir,
a mudança será dolorosa. E se ficar ausente a primavera, verão e outono, como o
sol e os belos dias parecerão sem alegria!"
Eu não sabia se dormira ou não após esses pensamentos; de qualquer forma,
estremeci, inteiramente desperta, ao ouvir um vago murmúrio, peculiar e lúgubre,
que soou, segundo me pareceu, bem em cima de mim. Desejava ter deixado a vela
acesa; a noite estava terrivelmente escura; eu tinha o espírito deprimido. Ergui-me
e pus-me sentada na cama, à escuta. O som desapareceu.
Tentei dormir novamente; mas meu coração batia ansioso; minha
tranqüilidade interna se fora. O relógio, lá embaixo no saguão, bateu duas horas.
Nesse mesmo momento pareceu que tocaram em minha porta; como se dedos
houvessem corrido pelas folhas tateando o caminho ao longo da escura galeria lá
fora. Eu disse:
— Quem está aí?
Nada me respondeu. Eu estava gelada de medo.
De repente, lembrei-me de que podia ser Pilot, que, quando a porta da cozinha
ficava aberta, não poucas vezes subia até a soleira da porta do Sr. Rochester; eu
mesma o tinha visto deitado ali pelas manhãs. A idéia me acalmou um pouco; e
como um total silêncio reinava agora por toda a casa, comecei a sentir a volta do
sono. Mas não estava escrito que eu dormiria naquela noite. Um sonho mau tinha
se aproximado de meus ouvidos, quando voou assustado por um incidente de
gelar os ossos, realmente.
Foi uma risada demoníaca — baixa, abafada e profunda — dada, ao que
parecia, no próprio buraco da fechadura da porta de meu quarto. A cabeceira de
minha cama ficava perto da porta, e pensei a princípio que o gobelino estava ali
junto — ou antes, agachado ao lado de meu travesseiro, mas levantei-me, olhei
em torno e não consegui ver nada; e enquanto olhava, o som sobrenatural se
repetiu, e eu soube que vinha de detrás da porta. Meu primeiro impulso foi saltar e
fechar o ferrolho; e o seguinte, tornar a gritar:
— Quem está aí?
Alguma coisa gorgolejou e gemeu. Dentro em pouco, ouvi passos retirando-se
galeria acima, em direção à escada do terceiro andar; fizera-se ultimamente uma
porta para fechar essa escada; ouvia-a abrir-se e fechar-se, e tudo ficou quieto.
"Terá sido Grace Poole? E estará ela possuída pelo demônio?" pensei.
Impossível agora ficar sozinha: eu tinha de ir procurar a Sra. Fairfax. Enfiei
apressada o vestido e o xale; puxei o ferrolho e abri a porta com mão trêmula.
Havia uma vela acesa diante da porta, no tapete da galeria. Fiquei surpresa com
essa circunstância, porém ainda mais me surpreendeu perceber o ar bastante
denso, como cheio de fumaça; e, enquanto olhava à direita e à esquerda, para
descobrir de onde saíam aquelas colunas azuis, tomei maior consciência de um
forte cheiro de coisa queimada.
Alguma coisa rangeu, era uma porta aberta; e a porta era a do Sr. Rochester, e
a fumaça saía numa nuvem dali. Não pensei mais na Sra. Fairfax; não pensei mais
em Grace Poole ou na risada; num instante, estava dentro do quarto. Línguas de
chamas lambiam em torno da cama, as cortinas ardiam. No meio do incêndio e da
fumaça, o Sr. Rochester jazia estendido imóvel, num sono profundo.
— Acorde! Acorde! — gritei. Sacudi-o, mas ele apenas murmurou e se
voltou: a fumaça tinha-o estupidificado. Não se podia perder um momento; os
próprios lençóis alimentavam o fogo. Corri para a jarra e a bacia; felizmente, uma
era ampla e a outra funda, e ambas estavam cheias d'água. Peguei-as, inundei a
cama e seu ocupante, voei de volta a meu quarto, trouxe meu jarro d'água, batizei
a cama de novo e, com a ajuda de Deus, consegui extinguir as chamas que a
devoravam.
O chiado do elemento encharcado, o barulho do jarro quebrado que eu jogara
no chão depois de esvaziar, e acima de tudo o jorro do banho de chuveiro que eu
despejara liberalmente, despertaram o Sr. Rochester afinal. Embora estivéssemos
agora na escuridão, eu sabia que ele estava acordado; porque o ouvi fulminando
estranhos anátemas ao descobrir-se deitado numa poça d'água.
— É uma inundação? — gritou.
— Não, senhor — respondi. — Mas houve um incêndio; levante-se, por
favor; está encharcado agora; vou buscar uma vela.
— Em nome de todos os duendes da cristandade, é Jane Eyre? — ele
perguntou. — Que fez comigo, feiticeira, bruxa? Quem está no quarto além de
você. Tramava afogar-me?
— Vou buscar-lhe uma vela, senhor; e, em nome dos céus, se levante.
Alguém tramou alguma coisa; o senhor não pode perder tempo para descobrir
quem e o que é.
— Está bem! Estou de pé agora; mas é sob seu próprio risco que vai buscar
uma vela. Espere dois minutos até eu enfiar algumas roupas secas, se é que há
alguma... sim, aqui está minha camisola de dormir. Agora corra!
Corri; trouxe a vela que ainda estava na galeria. Ele a tomou de minhas mãos,
ergueu-a e examinou a cama, toda enegrecida e escorchada, os lençóis
encharcados, o tapete em volta nadando em água.
— Que é? E quem fez isso? — ele perguntou. Contei-lhe em poucas palavras
o que havia transpirado; a estranha risada que ouvira na galeria; os passos subindo
para o terceiro andar; a fumaça — o cheiro de incêndio que me havia conduzido
ao seu quarto; o estado em que encontrei as coisas ali, e como o inundara com
toda a água em que pudera pôr as mãos.
Ele ouviu muito seriamente; seu rosto, à medida que eu prosseguia,
expressava mais preocupação que espanto; ele não falou imediatamente quando
concluí.
— Devo chamar a Sra. Fairfax? — perguntei.
— A Sra. Fairfax? Não; para que diabos iria chamá-la? Que pode ela fazer?
Deixe-a dormir em paz.
— Então vou buscar Leah, e acordar John e a mulher dele.
— De jeito nenhum, simplesmente fique quieta. Está com o xale. Se não
estiver aquecida o bastante, pode pegar meu capote ali; enrole-se nele, e sente-se
na poltrona, ali... eu a porei. Agora ponha os pés no banco, para mantê-los fora do
molhado. Vou deixá-la em alguns minutos. Levarei a vela. Fique onde está até eu
voltar; quieta como um rato. Tenho de fazer uma visita ao terceiro andar. Não se
mova, lembre-se, nem chame ninguém.
Saiu; vi a luz afastar-se. Ele percorreu a galeria em silêncio, abriu a porta da
escada com o menor ruído possível, fechou-a atrás de si, e o último raio
desapareceu. Fiquei na escuridão total. Tentei escutar algum ruído, mas não havia
nenhum. Passou-se um longo tempo. Eu estava cansada; sentia frio, apesar do
capote; e depois não via a utilidade de ficar, uma vez que não devia acordar a
casa. Estava a ponto de arriscar incorrer no desagrado do Sr. Rochester,
desobedecendo suas ordens, quando a luz mais uma vez brilhou fracamente na
parede da galeria, e ouvi seus pés descalços pisarem o tapete. "Espero que seja
ele", pensei, "e não alguma coisa pior".
Ele tornou a entrar, pálido e muito carrancudo.
— Descobri tudo — disse, pondo a vela no suporte da bacia. — É como eu
pensava.
— Como, senhor?
Ele não respondeu, mas ficou de pé com os braços cruzados, fitando o chão.
Ao cabo de alguns minutos, perguntou num tom um tanto peculiar:
— Esqueci se a senhorita disse ter visto alguma coisa quando abriu a porta de
seu quarto.
— Não, senhor, só o castiçal no chão.
— Mas ouviu uma risada estranha? Ouviu essa risada antes, me pergunto, ou
alguma coisa parecida?
— Sim, senhor; há uma mulher que costura aqui, chamada Grace Poole... ela
ri desse jeito. É uma pessoa singular.
— Exato. Grace Poole... a senhorita adivinhou. Ela é, como diz, singular...
muito. Bem, vou pensar no assunto. Enquanto isso, estou satisfeito por ser a
senhorita a única pessoa, além de mim mesmo, a saber dos detalhes exatos do
incidente desta noite. A senhorita não é nenhuma tola linguaruda, não diga nada
sobre isso. Eu darei uma explicação para esse estado de coisas (apontando a
cama), e agora volte para seu quarto. Ficarei muito bem no sofá da biblioteca pelo
resto da noite. São quase quatro horas: dentro de duas horas os criados estarão de
pé.
— Boa-noite, então, senhor — eu disse, saindo. Ele pareceu surpreso —
muito incoerentemente, uma vez que acabara de mandar-me embora.
— Quê! — exclamou. — Está me deixando, já, e dessa forma?
— O senhor disse que eu podia ir.
— Mas não sem se despedir; não sem uma ou duas palavrinhas de
reconhecimento e boa vontade; não, em suma, dessa maneira curta e seca. Ora, a
senhorita salvou minha vida... arrancou-me de uma morte horrível e excruciante!
E passa por mim como se fôssemos estranhos um para o outro! Pelo menos
apertemo-nos as mãos.
Estendeu a mão; eu lhe dei a minha; ele a tomou primeiro numa, e depois em
ambas as suas.
— A senhorita salvou minha vida, tenho prazer em ter uma tão imensa dívida
consigo. Não posso dizer mais nada. Nada mais seria tolerável para mim na
condição de credor de tal obrigação; mas com a senhorita, é diferente... não sinto
o seu favor como nenhum fardo, Jane.
Fez uma pausa; olhava-me, palavras quase visíveis tremiam-lhe nos lábios —
mas sua voz foi contida.
— Boa-noite, novamente, senhor. Não há dívida, favor, fardo, obrigação, no
caso.
— Eu sabia — ele disse — que você me faria bem de alguma forma, em
algum tempo: vi-o em seus olhos quando primeiro a contemplei; a expressão e o
sorriso deles não — tornou a parar — não prosseguiu depressa — causaram
prazer ao mais íntimo de meu coração por nada. As pessoas falam de simpatias
naturais; já ouvi falar de gênios bons, há grãos de verdade na fábula mais
desenfreada. Minha querida salvadora, boa-noite! Havia uma estranha energia em
sua voz, um estranho fogo em seus olhos.
— Estou feliz por ter estado acordada — eu disse, e ia saindo.
— Quê! Vai mesmo?
— Sinto frio, senhor.
— Frio? Sim... e pisando numa poça! Vá então, Jane; vá!
Mas ainda retinha minha mão, e eu não conseguia libertá-la. Ocorreu-me usar
de um expediente.
— Creio que ouvi a Sra. Fairfax se mover, senhor — disse.
— Bem, deixe-me. — Ele relaxou os dedos, e eu saí. Voltei à minha cama,
mas nem pensei em dormir. Até a manhã clarear, vi-me jogada no mar alegre, mas
agitado, onde vagas de problemas rolavam sob ondas de alegria. Eu pensava às
vezes ver além daquelas águas revoltas uma praia, doce como as colinas de
Beulah; e de vez em quando um vento refrescante, levantado pela esperança,
transportava meu espírito triunfantemente naquela direção, mas eu não podia
alcançá-la, mesmo em imaginação — uma brisa contrária soprava de terra, e
empurrava-me continuamente para trás. O senso resistia ao delírio; o julgamento
advertia a paixão. Demasiado febril para descansar, levantei-me assim que o dia
clareou.
CAPÍTULO 16
EU DESEJAVA e temia, ao mesmo tempo, ver o Sr. Rochester no dia
seguinte a essa noite insone: queria ouvir de novo a sua voz, mas temia enfrentar
seu olhar. Durante a primeira parte da manhã, esperava a cada momento a sua
vinda; ele não costumava entrar na sala de aula, mas às vezes aparecia por alguns
minutos, e eu tinha a impressão de que certamente viria nesse dia.
Mas a manhã passou como sempre: não aconteceu nada para interromper o
tranqüilo curso dos estudos de Adèle; ouvi apenas, pouco depois do desjejum, um
certo movimento para os lados do quarto do Sr. Rochester, a voz da Sra. Fairfax, e
os tons grosseiros de Leah e da cozinheira — isto é, a mulher de John — e do
próprio John. Houve exclamações de "Que sorte o patrão não ter sido queimado
na cama!" "É sempre perigoso manter uma vela acesa à noite!" "Como foi
providencial que ele tivesse a presença de espírito de pensar no jarro d'água!"
"Admira-me de que ele não tenha acordado ninguém!" "Esperemos que não pegue
um resfriado por ter dormido no sofá da biblioteca!". Etc.
A essa confabulação seguiu-se um barulho de escovadelas e arrumação; e
quando passei pelo quarto, ao descer para o almoço, vi pela porta aberta que tudo
fora restaurado à mais completa ordem; só a cama se apresentava sem as cortinas.
Leah estava trepada no batente da janela, esfregando as vidraças enegrecidas de
fumaça. Ia dirigir-me a ela, pois desejava saber que explicação se dera para o
caso; mas, ao adiantar-me, vi uma segunda pessoa no quarto — uma mulher
sentada numa cadeira ao lado da cama, costurando passadeiras para a nova
cortina. Essa mulher outra não era senão Grace Poole.
Ali se sentava ela, calma e com uma aparência taciturna, como sempre, em
seu vestido de tecido marrom, o avental de xadrez, o lenço branco e a touca.
Concentrava-se no trabalho, em que todos os seus pensamentos pareciam
absorvidos: na dura testa, e nas feições comuns, nada havia da palidez ou do
desespero que se esperaria ver assinalando o rosto de uma mulher que tentara
cometer um assassinato, e cuja vítima a seguira na noite passada até o seu antro, e
(eu acreditava) a acusara com o crime que ela desejara perpetrar. Fiquei espantada
— pasmada. Ela ergueu o olhar, enquanto eu a olhava: nenhum susto, nenhum
aumento ou diminuição em sua cor traíam qualquer emoção, consciência de culpa
ou temor do desmascaramento. Ela disse "Bom-dia, senhorita", à sua costumeira
maneira fleumática e breve; e pegando outra passadeira e mais fita, continuou
com sua costura.
"Farei um teste com ela", pensei. "Uma tal impenetrabilidade absoluta
ultrapassa a compreensão".
— Bom-dia, Grace — eu disse. — Aconteceu alguma coisa aqui? Pensei ter
ouvido os criados falando todos juntos há pouco.
— Foi só o patrão que estava lendo na cama a noite passada, adormeceu com
a vela acesa, e as cortinas pegaram fogo; mas, felizmente, ele acordou antes de os
lençóis ou a madeira da cama se incendiarem, e conseguiu abafar as chamas com
a água do jarro.
— Caso estranho! — eu disse em voz alta, olhando-a fixamente. — O Sr.
Rochester não acordou ninguém? Ninguém o ouviu?
Ela tornou a erguer os olhos para mim; e desta vez havia algo de consciência
na expressão deles. Ela parecia examinar-me cautelosamente; depois respondeu:
— Os criados dormem tão distante, a senhorita sabe, que não era provável que
ouvissem. O quarto da Sra. Fairfax e o seu são os mais próximos do do patrão;
mas a Sra. Fairfax diz que não ouviu nada; quando as pessoas ficam velhas,
muitas vezes têm sono pesado. — Fez uma pausa, e depois acrescentou com uma
espécie de indiferença fingida, mas ainda num tom acentuado e significativo: —
Mas a senhorita é jovem; e eu diria que tem sono leve, talvez tenha ouvido algum
barulho.
— Eu ouvi — respondi, baixando a voz, para que Leah, que ainda polia as
vidraças, não pudesse escutar-me. — E a princípio pensei que fosse Pilot, mas
Pilot não pode rir; e estou certa de que ouvi uma risada, e uma risada estranha.
Ela pegou um novo pedaço de linha, encerou-a cuidadosamente, enfiou-a na
agulha com mão firme, e depois observou, com perfeita compostura:
— Não é muito provável que o patrão sorrisse, eu julgaria, senhorita, estando
em tal perigo: a senhorita deve ter sonhado.
— Eu não estava sonhando — eu disse, com algum ardor pois sua imprudente
frieza me provocava. Ela me olhou de novo, e com o mesmo olhar examinador e
consciente.
— A senhorita disse ao patrão que ouviu uma risada? — perguntou.
— Não tive oportunidade de falar com ele esta manhã.
— Não pensou em abrir a porta e olhar a galeria? — ela tornou a perguntar.
Parecia estar me interrogando, tentando extrair de mim alguma informação
sem eu saber. Ocorreu-me a idéia de que, se ela descobrisse que eu sabia ou
desconfiava de sua culpa, usaria algum de seus malignos truques contra mim;
julguei aconselhável ficar em guarda.
— Ao contrário — eu disse. — Aferrolhei minha porta.
— Quer dizer que não costuma aferrolhar sua porta toda noite, antes de ir para
a cama?
"Demônio! Ela quer conhecer meus hábitos, para fazer seus planos de acordo
com isso!" A indignação, mais uma vez, prevaleceu sobre a prudência: respondi
acerbamente:
— Até agora sempre deixei de aferrolhar: não julgava que fosse necessário.
Não sabia que havia algum perigo ou aborrecimento a temer em Thornfield Hall,
mas daqui para a frente (e acentuei as palavras) terei muito cuidado de trancar
tudo antes de aventurar-me a deitar-me.
— Será uma coisa sensata a fazer — foi sua resposta. — Essa vizinhança é tão
tranqüila quanto qualquer uma que conheço, e nunca ouvi falar que ladrões
ameaçassem a mansão desde que ela existe; embora haja centenas de libras em
prataria na prateleira, como bem se sabe. E sabe, para uma casa tão grande, há
muito poucos criados, porque o patrão nunca morou aqui por muito tempo; e
quando vem, sendo um solteirão, precisa de pouco serviço; mas eu sempre penso
que o seguro morreu de velho; uma porta é melhor fechada, e é bom ter um
ferrolho passado entre a gente e o mal que pode andar por aí. Muita gente,
senhorita, gosta de confiar tudo à Providência; mas eu digo que a Providência não
dispensa os meios, embora Ele muitas vezes os abençoe, quando são usados
discretamente. — E neste ponto encerrou sua arenga, bastante longa para ela, e
dita com a gravidade de uma Quaker.
Eu permanecia absolutamente perplexa com o que me parecia seu miraculoso
autodomínio e sua inescrutável hipocrisia, quando a cozinheira entrou.
— Sra. Poole — disse ela, dirigindo-se a Grace — o almoço dos criados logo
estará pronto; vai descer?
— Não; ponha minha porção de cerveja preta e um pedaço de pudim numa
bandeja, que eu levarei para cima.
— Vai querer um pouco de carne?
— Só um naco, e um nadinha de queijo, só isso.
— E o sagu?
— Não no momento; descerei antes da hora do chá e o farei eu mesma.
A cozinheira então se voltou para mim, dizendo que a Sra. Fairfax estava à
minha espera; assim, parti.
Mal ouvi a versão que a Sra. Fairfax deu do incêndio das cortinas, durante o
almoço, tão ocupada estava em forçar o cérebro em relação ao caráter enigmático
de Grace Poole, e ainda mais em ponderar o problema de sua posição em
Thornfield, e interrogar por que ela não fora posta sob custódia naquela manhã,
ou, no mínimo, despedida do serviço de seu patrão. Ele havia praticamente
declarado sua convicção quanto à criminalidade dela na noite passada: que causa
misteriosa o impedia de acusá-la? E por que me pedira segredo, também? Era
estranho: um cavalheiro audaz, vingativo e altivo parecia de algum modo sob o
poder de uma das mais baixas de seus dependentes; tanto, que mesmo quando ela
erguia a mão contra sua vida, não ousava acusá-la abertamente do atentado, e
muito menos puni-la por isso.
Se Grace fosse jovem e bonita, eu teria sido tentada a pensar que idéias mais
ternas que a prudência influenciavam o Sr. Rochester em favor dela; mas, pouco
favorecida e matronal como era, não se podia admitir a idéia. "Contudo", refleti,
"ela foi jovem outrora; sua juventude seria contemporânea da do seu patrão: a Sra.
Fairfax me disse uma vez que ela vivia aqui há muitos anos. Não creio que possa
algum dia ter sido bonita; mas, pelo que sei, pode possuir originalidade e força de
caráter para compensar a falta de atrativos pessoais. O Sr. Rochester gosta dos
decididos e excêntricos: e Grace é no mínimo excêntrica. E se um antigo capricho
(uma extravagância bem possível numa natureza tão repentina e obstinada como a
dele) o pôs à mercê dela, e ela agora exerce sobre as ações dele uma influência-
secreta, resultado da própria indiscrição dele, da qual não pode se livrar e não se
atreve a ignorar?" Mas, tendo chegado a este ponto de conjetura, a figura
atarracada e tosca da Sra. Poole, e seu rosto feio, seco e mesmo grosseiro,
voltaram-me tão distintamente à lembrança, que pensei: "Não; impossível! Minha
suposição não pode ser correta. Contudo", sugeriu a voz secreta que nos fala em
nossos corações, "você tampouco é bonita, e talvez o Sr. Rochester a aprove: de
qualquer forma, você tem achado freqüentemente que assim é; e na noite
passada... lembre-se das palavras dele, lembre-se de sua aparência, lembre-se de
sua voz!"
Eu me lembrava bem de tudo — a linguagem, o olhar, o tom pareceram no
momento vividamente renovados. Eu estava agora na sala de aula, Adèle
desenhava; curvei-me sobre ela e orientei o seu lápis. Ela ergueu o olhar com uma
espécie de estremeção,
— Qu’avez vous, mademoiselle? — disse. — Vos doigts tremblent comme la
feuille, et vos joues sont rouges: mais, rouges comme des cerises!* * Que tem, mademoiselle? Seus dedos estão tremendo como folhas, e suas faces estão
vermelhas; ora, vermelhas como cerejas! (N. do T.)
— Estou com calor, Adèle, de tanto me curvar! — Ela prosseguiu
desenhando; eu continuei pensando.
Apressei-me a afastar da mente a idéia odiosa que estivera concebendo a
respeito de Grace Poole: repugnava-me. Comparei-me com ela, e descobri que
éramos diferentes. Bessie Leaven dissera que eu era uma perfeita dama, e falara a
verdade — eu era uma dama. E agora eu tinha uma aparência muito melhor do
que quando Bessie me vira; apresentava mais cor e mais carne, mais vida, mais
vivacidade, porque tinha esperanças mais luminosas e prazeres mais intensos.
"A noite se aproxima", pensei, olhando em direção à janela. "Não ouvi a voz
ou as passadas do Sr. Rochester na casa hoje; mas certamente o verei antes da
noite: temia o encontro pela manhã; agora o desejo, porque a expectativa foi por
tanto tempo frustrada, que já se tornou impaciência."
Quando escureceu realmente, e quando Adèle me deixou para ir brincar no
quarto das crianças com Sophie, desejei-o mais intensamente. Fiquei à escuta para
ouvir a sineta tocar lá embaixo; à escuta para ouvir Leah subir com um recado;
imaginava às vezes que ouvia os passos do próprio Sr. Rochester, e voltava-me
para a porta, esperando que ela se abrisse e o admitisse. A porta permanecia
fechada; só a escuridão entrava pela janela. Contudo, não era muito tarde; ele
muitas vezes me mandava chamar às sete e às oito horas, e não eram ainda seis.
Certamente, eu não me decepcionaria nessa noite, em que tinha tantas coisas a
dizer-lhe! Queria abordar novamente o assunto de Grace Poole, e ouvir o que ele
responderia; queria lhe perguntar diretamente se de fato acreditava que fora ela
quem praticara o horrível atentado da noite passada; e se assim era, por que
mantinha a perversidade dela em segredo. Pouco importava se minha curiosidade
o irritasse; eu conhecia o prazer de embaraçá-lo e acalmá-lo alternadamente; era
um prazer do qual eu gostava especialmente, e um instinto seguro sempre me
impedia de ir longe demais; nunca me aventurava além do limite da provocação;
gostava de experimentar minha habilidade até o último extremo. Mantendo todas
as mínimas formas de respeito, toda propriedade de minha posição, ainda podia
enfrentá-lo na discussão sem o embaraço do medo ou da inibição; isso servia
tanto a mim quanto a ele.
A escada rangeu sob passos afinal; Leah apareceu; mas vinha apenas dizer
que o chá estava pronto no quarto da Sra. Fairfax. E para lá me encaminhei,
satisfeita ao menos por descer; pois imaginava que isso me punha mais perto da
presença do Sr. Rochester.
— Você deve estar querendo seu chá — disse a boa senhora, quando me
juntei a ela. — Comeu tão pouco no almoço. Receio — continuou — que não
esteja bem hoje: parece corada e febril.
— Oh, estou muito bem! Nunca me senti melhor.
— Então deve provar isso demonstrando um bom apetite; quer encher a
chaleira enquanto desembaraço esta agulha? — Tendo concluído sua tarefa,
levantou-se para fechar a cortina, que até então estivera suspensa, suponho que
para aproveitar ao máximo a luz do dia, embora o crepúsculo se adiantasse agora
para a total escuridão.
— Está uma bela noite — ela disse, olhando pelas vidraças — embora não
estrelada; o Sr. Rochester teve, no todo, um dia favorável para sua viagem.
— Viagem! O Sr. Rochester foi a algum lugar? Eu não sabia que ele tinha
saído.
— Oh, partiu assim que tomou o desjejum! Foi a Leas, a casa do Sr. Esthon,
dez milhas além de Millcote. Creio que há um grande grupo reunido lá, Lorde
Ingram, Sir George Lynne, o Coronel Dent e outros.
— A senhora o espera de volta esta noite?
— Não; nem amanhã tampouco; eu diria que é bem provável que ele fique
uma semana ou mais; quando essa gente fina, da moda, se reúne, se vê tão cercada
de elegância e diversões, tão provida de tudo que pode agradar e entreter, que não
tem pressa de se separar. Os cavalheiros, especialmente, são muito requisitados
em tais ocasiões; e o Sr. Rochester é tão talentoso e animado em sociedade, que
acredito que seja um favorito de todos: as damas gostam muito dele, embora não
se julgasse sua aparência capaz de recomendá-lo particularmente aos olhos delas;
mas suponho que seus dons e habilidades, talvez a riqueza e o bom sangue,
compensem qualquer pequena falha na aparência.
— Há damas em Leas?
— Há a Sra. Esthon e as três filhas... jovens damas muito elegantes de fato; e
há as Honoráveis Blanche e Mary Ingram, mulheres belíssimas, suponho; na
verdade vi Blanche, há seis ou sete anos, quando era uma mocinha de dezoito
anos. Veio a um baile de Natal aqui, dado pelo Sr. Rochester. Você devia ter visto
a sala de jantar nesse dia... como estava ricamente decorada e brilhantemente
iluminada! Eu diria que havia cinqüenta damas e cavalheiros presentes... todos
pertencentes às primeiras famílias do condado, e a Srta. Ingram foi considerada a
rainha da noite.
— A senhorita diz que a viu, Sra. Fairfax; como era ela?
— Sim, vi-a. As portas da sala de jantar foram abertas de par em par; e, como
era época de Natal, permitiu-se que os criados se reunissem no saguão, para ouvir
alguma das damas cantarem e tocarem. O Sr. Rochester quis que eu entrasse, e
sentei-me num cantinho discreto e fiquei olhando-os. Nunca vi um quadro mais
bonito; as damas estavam magnificamente vestidas; a maioria... pelo menos a
maioria das jovens... parecia bela; mas a Srta. Ingram era certamente a rainha.
— E que aparência tinha?
— Alta, um belo busto, ombros em declive; um pescoço longo e gracioso; cor
de oliva, morena clara; feições nobres; olhos mais ou menos como os do Sr.
Rochester, grandes e negros, e tão brilhantes quanto as jóias que usava. E tinha
também uma tão linda cabeleira, negra como um corvo, e estava tão
elegantemente arrumada; uma coroa de grossas trancas atrás, e na frente os cachos
mais longos e brilhantes que já' vi. Estava vestida de puro branco; um echarpe cor
de âmbar cobria-lhe os ombros e cruzava-se no peito, amarrada a um lado, e
descia em pontas longas, franjadas, até abaixo dos joelhos. Ela usava também
uma flor ambarina no cabelo, que contrastava bem com a massa negra dos cachos.
— Foi muito admirada, é claro.
— Sim, de fato, e não apenas por sua beleza, mas por seus talentos. Foi uma
das damas que cantaram, um cavalheiro acompanhou-a ao piano. Ela e o Sr.
Rochester cantaram um dueto.
— O Sr. Rochester? Eu não sabia que ele cantava.
— Oh, ele tem uma bela voz de baixo, e um gosto excelente para a música.
— E a Srta. Ingram, que tipo de voz tem?
— Uma voz rica e potente: ela cantou deliciosamente; era um regalo ouvi-la;
e tocou depois. Não sou juíza de música, mas o Sr. Rochester é; e ouvi-o dizer
que a execução dela fora notavelmente boa.
— E essa linda e talentosa dama não se casou ainda?
— Parece que não; imagino que nem ela nem a irmã têm fortunas muito
grandes. As propriedades do velho Lorde Ingram eram em sua maioria
inalienáveis, e o filho mais velho ficou com quase tudo.
— Mas me admira que nenhum nobre ou cavalheiro rico tenha se apaixonado
por ela, o Sr. Rochester, por exemplo. Ele é rico, não é?
— Oh, sim. Mas, sabe, há uma considerável diferença de idade. O Sr.
Rochester tem quase quarenta anos, e ela apenas vinte e cinco.
— E daí? Casamentos mais desiguais se fazem todos os dias.
— É verdade: mas não imagino que o Sr. Rochester alimentasse uma idéia
dessas. Mas você não está comendo nada; mal provou alguma coisa desde que
começou o chá.
— Não, estou com muita sede para poder comer. Pode me servir outra xícara?
Estava para retornar à probabilidade de uma união entre o Sr. Rochester e a
bela Blanche; mas Adèle entrou, e a conversa tomou outro rumo.
Quando fiquei novamente só, examinei a informação que obtivera; olhei
dentro de meu coração, analisei seus pensamentos
e sentimentos, e tentei conter com mão severa aqueles que se tinham desviado
pela ilimitada e inidentificável vastidão da imaginação, trazendo-os de volta ao
seio seguro da sensatez.
Acusada em meu próprio tribunal, tendo a memória dado seu testemunho das
esperanças, desejos e sentimentos que eu estivera nutrindo desde a noite passada
— do estado geral de espírito a que me entregara por quase uma quinzena, tendo-
se a razão contado, à sua maneira tranqüila, uma história simples e sem enfeites,
mostrando como eu rejeitara o real e rapidamente devorara o ideal — pronunciei
o seguinte julgamento:
Que uma tola maior que Jane Eyre jamais respirara o hausto da vida, que uma
mais fantástica idiota jamais se empanturrara de mentiras mais doces e engolira
veneno como se fosse néctar.
"Você", eu disse, "favorita do Sr. Rochester? Você dotada do poder de agradá-
lo? Você, tendo importância para ele de qualquer modo? Ora, vá! Sua loucura me
enoja. E obteve prazer de sinais ocasionais de preferência — sinais equívocos,
dados por um cavalheiro de família e um homem do mundo a uma dependente e
noviça. Como ousou você? Pobre boba estúpida! Nem mesmo o interesse próprio
a fez mais sensata? Você repetia para si mesma esta manhã a breve cena da noite
passada? Cubra o rosto e tome vergonha! Ele disse alguma coisa em louvor de
seus olhos, disse? Pirralha cega! Abra as turvas pálpebras e veja bem sua maldita
insensatez! Não faz bem a mulher nenhuma ser elogiada por seu superior, que não
pode pretender casar-se com ela; e é loucura em todas as mulheres deixar um
amor secreto vicejar dentro delas, um amor que, se não correspondido e
conhecido, devorará a vida que o alimenta; e, se descoberto e correspondido,
conduzirá como um fogo fátuo a lodosos pantanais de onde não se poderá
extricar".
"Escute então, Jane, sua sentença: amanhã, ponha o espelho à sua frente e
desenhe a giz seu retrato, fielmente, sem minimizar um só defeito; não omita
nenhuma linha grosseira, não suavize nenhuma irregularidade desagradável, e
escreva embaixo: 'Retrato de uma Governanta, sem relações, pobre e comum'.
"Em seguida, pegue um pedaço de marfim liso — você tem um preparado em
sua caixa de pintura; pegue sua paleta; misture suas tintas mais novas, melhores,
mais claras; escolha seus mais delicados pincéis de pêlo de camelo; delineie
cuidadosamente a face mais adorável que possa imaginar; pinte-a com os tons
mais suaves e os mais doces matizes, segundo a descrição dada pela Sra. Fairfax
de Blanche Ingram: lembre-se dos cachos negros, dos olhos orientais. Que!
Retorna ao Sr. Rochester como modelo! Ordem! Nada de fingimento! Nada de
sentimento! Nada de arrependimento! Só tolerarei senso e decisão! Recorde os
traços augustos mas harmoniosos, o pescoço e o busto gregos; deixe o braço
curvilíneo à vista, e a mão delicada; não omita nem o anel de diamante nem o
bracelete de ouro; retrate fielmente o traje, a diáfana renda e o reluzente cetim, a
graciosa echarpe e a rosa dourada; chame-o 'Blanche, uma talentosa dama de
classe'.
"Sempre que, no futuro, lhe ocorra imaginar que o Sr. Rochester pensa bem
de você, pegue esses dois quadros e compare-os, diga: 'O Sr. Rochester poderia
provavelmente conquistar o amor dessa nobre dama, se quisesse lutar por ele; será
provável que desperdice um pensamento sério com essa indigente e insignificante
plebéia?'
"Vou fazer isso", decidi; e, tendo tomado essa determinação, fiquei mais
calma e adormeci.
Mantive minha palavra. Uma ou duas horas bastaram para desenhar meu
retrato com crayons: e em menos de uma quinzena concluíra uma miniatura em
marfim de uma imaginária Blanche Ingram. Parecia um rosto bastante adorável, e
quando comparado com a cabeça real a giz, o contraste era tão grande quanto o
autocontrole poderia desejar. Extraí benefícios dessa tarefa: manteve minha
cabeça e minhas mãos ocupadas, e deu força e permanência às novas impressões
que eu desejava gravar indelevelmente em meu coração.
Dentro em pouco, tinha motivos para congratular-me pela linha de total
disciplina à qual submetera assim meu coração; graças a isso, pude enfrentar as
ocorrências posteriores com uma calma decente, e que, se me encontrassem
despreparada, eu provavelmente não estaria à altura de manter, mesmo
externamente.
CAPITULO 17
PASSOU-SE ma semana, e não chegaram notícias do Sr. Rochester; dez dias,
e ele não voltara. A Sra. Fairfax disse que não se surpreenderia se ele fosse direto
de Leas para Londres, e de lá para o Continente, sem mostrar o rosto de novo em
Thornfield durante um ano; não poucas vezes havia deixado a mansão de maneira
assim abrupta e inesperada. Quando ouvi isso, comecei a sentir um estranho frio e
desânimo no coração. Na verdade, estava me permitindo experimentar uma
nauseante sensação de decepção; mas reunindo forças e princípios, chamei
imediatamente minhas sensações à ordem; e foi maravilhoso o modo como
superei o temporário erro — como afastei o engano de supor os movimentos do
Sr. Rochester um assunto no qual tivesse algum motivo de interesse vital. Não
que me humilhasse com uma servil noção de inferioridade; ao contrário, apenas
disse:
"Você nada tem a ver com o senhor de Thornfield, além de receber o salário
que ele lhe paga para ensinar à sua protegée, e ser grata pelo respeito e o
tratamento bondoso que, se cumprir seu dever, tem o direito de esperar dele.
Esteja certa de que este é o único laço que ele reconhece seriamente entre vocês
dois; assim, não o faça objeto de seus belos sentimentos, seus arrebatamentos,
agonias e coisas assim. Ele não é de sua classe: mantenha-se em sua casta e tenha
auto-estima suficiente para não esbanjar o amor de todo o seu coração, alma e
vigor onde tal dádiva não é querida e seria desprezada."
Prossegui com minhas tarefas diárias tranqüilamente; mas de vez em quando
vagas sugestões continuavam a cruzar-me o cérebro, de motivos pelos quais devia
deixar Thornfield; e eu continuava involuntariamente imaginando anúncios e
fazendo conjeturas sobre novas colocações: não achava necessário conter esses
pensamentos; podiam germinar e dar frutos, se calhasse.
O Sr. Rochester estava ausente havia mais de uma quinzena, quando o correio
trouxe uma carta para a Sra. Fairfax.
— É do amo — ela disse, ao olhar o endereço. — Agora suponho que
saberemos se devemos esperar sua volta ou não.
E enquanto quebrava o selo e examinava o documento, continuei tomando
meu café (era na hora do desjejum); fazia calor, e atribuí a essa circunstância o
intenso ardor que me subiu de repente às faces. Por que minha mão tremia, e por
que eu derramava involuntariamente o conteúdo de minha xícara no pires, preferi
não descobrir.
— Bem, às vezes penso que somos muito parados aqui; mas teremos uma
oportunidade de nos ocupar bastante agora, pelo menos por algum tempo — disse
a Sra. Fairfax, ainda segurando a nota diante dos óculos.
Antes que eu me permitisse pedir uma explicação, amarrei o cordão do
avental de Adèle, que por acaso estava solto; tendo-lhe servido também outro
bolo e tornado a encher sua caneca com leite, disse com indiferença:
— Não é provável que o Sr. Rochester volte logo, suponho?
— Na verdade é... dentro de três dias, ele diz; será na próxima quinta-feira; e
não vem sozinho, também. Não sei quantas daquelas belas pessoas de Leas virão
com ele; manda ordens para que se preparem todos os melhores quartos de
dormir; a biblioteca e as salas de estar devem ser limpas; tenho de arranjar mais
gente para a cozinha na George Inn, em Millcote e onde mais puder; e as damas
trarão suas criadas e os cavalheiros seus valetes; assim, teremos uma casa cheia.
— E a Sra. Fairfax engoliu seu desjejum e apressou-se a começar as operações.
Os três dias seguintes foram, como ela previra, bastante atarefados. Eu julgava
que todos os quartos de Thornfield estavam lindamente limpos e bem-arrumados;
mas parece que me enganava. Conseguiram-se três mulheres para ajudar; e jamais
vi, antes ou depois disso, tanto esfregar, tanto escovar, tanto lavar paredes e bater
tapetes, tanto tirar e colocar quadros, tanto polir espelhos e lustres, tanto acender
lareiras nos quartos de dormir, tanto arejar lençóis e cobertores de penas. Adèle
ficou excitadíssima em meio a isso tudo; os preparativos para a comitiva e a
perspectiva de sua chegada pareciam lançá-la em êxtases. Queria que Sophie
cuidasse de suas toilettes, como chamava os vestidos; que reformasse as que
estivessem passées, e arejasse e arrumasse as novas. Ela própria não fazia nada, a
não ser cabriolar pelos quartos da frente, pular para cima e para baixo das camas e
deitar-se nos colchões, almofadas e travesseiros empilhados diante dos imensos
fogos que rugiam nas lareiras. Fora exonerada dos deveres escolares; a Sra.
Fairfax pusera-me a seu serviço, e eu passava o dia todo na despensa, ajudando
(ou atrapalhando) a ela e à cozinheira; aprendendo a fazer pudins, bolos de queijo
e massa francesas, a tratar caça e guarnecer pratos de sobremesa.
Esperava-se que o grupo chegasse quinta-feira à tarde, a tempo para o jantar
às seis. No período até então não tive tempo de alimentar quimeras; e creio que
me mostrei tão ativa e animada quanto qualquer um — com exceção de Adèle.
Contudo, de vez em quando, recebia uma desanimadora freada em minha
animação; e era, apesar de mim mesma, lançada de volta à região de dúvidas e
portentos e sombrias conjeturas. Isso ocorria quando por acaso via a porta da
escada do terceiro andar (que ultimamente era sempre mantida fechada a chave)
abrir-se lentamente e dar passagem ao vulto de Grace Poole, em elegante touca,
avental branco e lenço; quando a via deslizar ao longo da galeria, os passos
discretos abafados numas chinelas velhas; quando a via olhar os quartos agitados,
revirados — dizer apenas uma palavra, talvez, à arrumadeira sobre a maneira
correta de polir uma grade, ou limpar um batente de mármore de lareira, ou tirar
manchas do papel de parede, e depois seguir adiante. Ela descia assim à cozinha
uma vez por dia, comia seu jantar, dava uma moderada cachimbada na lareira e
voltava, levando a caneca de cerveja consigo, para seu consolo privado, naquele
antro solitário lá em cima. Só uma hora das vinte e quatro ela passava com os
criados embaixo; todo o resto de seu tempo era passado em algum quarto de teto
baixo e revestido de carvalho no terceiro andar: ali ela se sentava e costurava —
tão sem companhia como um prisioneiro numa masmorra.
O mais estranho de tudo era que nem uma alma na casa, com exceção de mim,
notava seus hábitos, ou parecia espantar-se com eles; ninguém discutia a posição
ou emprego dela; ninguém se apiedava de sua solidão e isolamento. Ouvi certa
vez, na verdade, parte de um diálogo entre Leah e uma das arrumadeiras, do qual
Grace Poole era o tema. Leah dissera alguma coisa que eu não pegara, e a
arrumadeira observou:
— Ela recebe um bom salário, imagino?
— Sim — disse Leah. — Eu queria ter um tão bom; não que o meu seja de me
queixar... não há sovinice em Thornfield; mas não é um quinto da soma que a Sra.
Poole recebe. E ela está economizando; vai a cada três meses ao banco em
Millcote. Eu não me admiraria se já houvesse economizado o bastante para
manter-se independente, se quisesse deixar o emprego; mas suponho que se
acostumou; e também ainda não fez quarenta anos, e é forte e capaz para qualquer
serviço. É cedo demais para abandonar o emprego.
— É uma boa trabalhadora, eu diria — disse a arrumadeira.
— Ah! Ela entende o que tem de fazer... ninguém melhor — disse Leah,
significativamente. — E não é qualquer uma que poderia ocupar o seu lugar...
nem mesmo por todo o dinheiro que ela recebe.
— Não é mesmo! — foi a resposta. — Imagino se o patrão...
A arrumadeira ia prosseguir, mas nesse ponto Leah voltou-se e me viu, e no
mesmo instante deu uma cotovelada na companheira.
— Ela não sabe? — ouvi a mulher sussurrar.
Leah balançou a cabeça, e a conversa, é claro, morreu. Tudo que depreendi
dela foi o seguinte: havia um mistério em Thornfield, e eu estava deliberadamente
excluída de participação nesse mistério.
Chegou a quinta-feira: todo o trabalho havia sido concluído na noite anterior;
os carpetes foram postos, os cortinados das camas pregados, as colchas, de um
branco radiante, estendidas, as mesas de toalete arrumadas, os móveis polidos, as
flores dispostas em vasos; quartos e salões pareciam tão novos e brilhantes quanto
o pessoal podia torná-los. Também o saguão fora lavado; e o grande relógio
lavrado, assim como os degraus e os corrimãos da escada, haviam sido polidos até
reluzirem como vidro; na sala de jantar, o guarda-louça resplendia com pratarias;
na sala de estar e no boudoir, vasos de plantas exóticas floresciam por todos os
lados.
Chegou a tarde, a Sra. Fairfax pôs seu melhor vestido de cetim negro, suas
luvas e seu relógio de ouro; pois cabia-lhe receber a comitiva — conduzir as
damas a seus quartos etc. Adèle também queria estar arrumada, embora eu
achasse que ela tinha pouca possibilidade de ser apresentada ao grupo, pelo
menos naquele dia. Contudo, para satisfazê-la, permiti que Sophie a aprontasse
num de seus compridos vestidos de musselina. Quanto a mim mesma, não tinha
necessidade alguma de fazer qualquer mudança; não deveria ser convidada a
abandonar meu abrigo na sala de aula; pois era um abrigo que ela se tornara agora
para mim — "um refúgio muito agradável em tempo de apuro".
Fora um dia suave e sereno de primavera — um daqueles dias que, em fins de
março ou princípios de abril, se erguem luminosos sobre a terra como arautos do
verão. Chegava ao fim agora; mas mesmo a noite era cálida, e sentei-me para
trabalhar na sala de aula com a janela aberta.
— Está ficando tarde — disse a Sra. Fairfax, entrando alvoroçada. — Estou
satisfeita por ter ordenado o jantar para uma hora após a que o Sr. Rochester
mencionou; pois já passa das seis. Mandei John ir até o portão para ver se há
alguma coisa na estrada: pode-se ver ao longe dali para os lados de Millcote. —
Foi até a janela. — Lá vem ele! — disse. — Bem, John (curvando-se para fora),
alguma notícia?
— Estão chegando, madame — foi a resposta. — Estarão aqui dentro de dez
minutos.
Adèle voou para a janela. Eu a segui, tendo o cuidado de ficar de lado, para,
protegida pela cortina, poder ver sem ser vista.
Os dez minutos que John falara pareceram muito longos, mas finalmente
ouviram-se rodas; quatro cavaleiros galopavam pela estrada, e em seguida vinham
duas carruagens abertas. Véus flutuantes e plumas ondulantes enchiam os
veículos; dois dos cavalheiros eram jovens; o terceiro era o Sr. Rochester, em seu
cavalo negro Mesrour, e Pilot vinha pulando à frente; a seu lado cavalgava uma
dama, e os dois eram os primeiros do grupo. O traje de montaria da jovem,
púrpura, quase varria o chão, e seu véu flutuava comprido na brisa; misturando-se
com as dobras transparentes, e brilhando através delas, reluziam belos cachos
negros.
— A Srta. Ingram! — exclamou a Sra. Fairfax, e saiu correndo para assumir
seu posto lá embaixo.
A cavalgada, seguindo a curva da estrada diante da casa, virou rapidamente na
esquina e a perdi de vista. Adèle pedia agora para descer; mas eu a tomei nos
joelhos e a fiz ver que não devia, de modo nenhum, aventurar-se à vista das
damas, nem agora nem em qualquer outro momento, a menos que fosse
expressamente chamada; que o Sr. Rochester ficaria muito zangado etc. "Algumas
lágrimas naturais ela derramou" ao ouvir isso; mas como comecei a parecer muito
aborrecida, ela consentiu afinal em enxugá-las.
Ouvia-se agora um alegre rebuliço no saguão: os tons profundos dos
cavalheiros e os acentos argentinos das damas misturavam-se harmoniosamente, e
bem distinguível acima de todas, embora não alta, lá estava a sonora voz do
senhor de Thornfield Hall, acolhendo os belos e galantes hóspedes sob seu teto.
Depois, passos leves subiram a escada; e houve um tropel pela galeria, suaves
risinhos animados, abrir e fechar de portas, e, durante algum tempo, silêncio.
— Elles changent de toilettes* — disse Adèle, que, ouvindo atentamente,
seguira cada movimento; e suspirou. *Elas estão mudando de roupa.
— Chez maman — disse — quand il y avait du monde, je le suivais partout
au salon et à leurs chambres; souvent je regardait les femmes de chambre coiffer
et habiller les dames, et c’était si amusant: comme cela on apprend.** ** Na casa de minha mãe, quando havia visitas, eu as seguia por toda parte, no salão e em seus
quartos; muitas vezes ficava olhando as camareiras pentearem e vestirem as senhoras, e era tão
divertido; assim a gente aprende.
— Não está com fome, Adèle?
— Mais oui, mademoiselle: voilà cinq ou six heures que nous n’avons pas
mangé.*** *** Mas claro, mademoiselle; faz cinco ou seis horas que não comemos. (N. do T.)
— Bem, agora, enquanto as damas estão em seus quartos, vou me aventurar lá
embaixo e trazer-lhe alguma coisa para comer.
E deixando meu asilo com precaução, busquei uma escada de fundos, que
conduzia diretamente à cozinha. Tudo naquela região era fogo e agitação; a sopa e
o peixe achavam-se no último estágio de preparação, e a cozinheira pairava sobre
seus cadinhos num estado mental e físico que ameaçava combustão espontânea.
Na sala dos criados, viam-se dois cocheiros e três valetes de pé ou sentados em
torno da lareira; as damas de honra, suponho, estavam lá em cima com suas
senhoras; os novos criados, que tinham sido contratados em Millcote, atarefavam-
se por toda parte. Atravessando esse caos, cheguei finalmente à despensa; ali me
apoderei de um frango frio, um pão, algumas tortas, um ou dois pratos, uma faca e
um garfo; com esse butim, executei uma apressada retirada. Tinha alcançado a
galeria, e fechava a porta do fundo atrás de mim, quando um zumbido acelerado
me avisou que as damas estavam para sair de seus quartos. Eu não podia
prosseguir para a sala de aula sem passar por algumas de suas portas e correr o
risco de ser surpreendida com minha carga de vitualhas; assim me quedei parada
naquela extremidade, que, não tendo janelas, era escura, bastante escura agora,
pois o sol se havia posto e o crepúsculo se adensava.
Afinal os quartos deitaram fora suas belas ocupantes uma após outra: todas
saíam alegres e frescas, com vestidos que brilhavam lustrosos na penumbra. Por
um momento, ficaram paradas juntas na outra extremidade da galeria,
conversando num tom de abafada vivacidade; depois, desceram a escada quase
tão sem barulho quanto uma luminosa neblina rolando por uma colina abaixo. O
aparecimento coletivo delas deixara-me uma impressão de elegância bem nascida,
que eu nunca recebera antes.
Encontrei Adèle espiando pela porta da sala de aula, que mantinha
entreaberta.
— Que belas damas! — ela exclamou em inglês. — Oh, como eu gostaria de
ir me juntar a elas! A senhorita acha que o Sr. Rochester nos mandará chamar
após o jantar?
— Na verdade, não acho; o Sr. Rochester tem algo mais em que pensar.
Esqueça as damas esta noite; talvez as veja amanhã; aqui está seu jantar.
Ela estava realmente com fome, de modo que o frango e as tortas serviram
para desviar sua atenção por algum tempo. Foi bom que eu tivesse providenciado
essa pilhagem, senão ela, eu e Sophie, a quem dei uma parte de nosso repasto,
teríamos corrido o risco de ficar sem jantar: todo mundo lá embaixo estava muito
ocupado para se lembrar de nós. A sobremesa não foi servida senão depois das
nove; e às dez os criados ainda corriam de um lado para outro com bandejas e
xícaras de café. Deixei Adèle ficar acordada até muito mais tarde que de hábito;
pois ela declarava que não poderia, certamente, ir dormir enquanto as portas
continuassem abrindo-se e fechando-se lá embaixo, e as pessoas correndo para lá
e para cá. Além disso, acrescentou, poderia vir um recado do Sr. Rochester
quando já estivesse despida: "et alors, quel dommager* * E aí, que pena! (N. do T.)
Contei-lhe histórias tão compridas quanto ela queria ouvir; e depois, para
variar, levei-a para fora, para a galeria. A lâmpada do saguão estava acesa agora, e
divertiu-a olhar por cima da balaustrada e observar os criados passando de um
lado para outro. Quando a noite já ia bem avançada, elevou-se um som de música
da sala de estar, para onde se removera o piano. Afinal, uma voz fundiu-se com os
ricos sons do instrumento: era uma dama que cantava, e suas notas pareciam
muito suaves. Acabado o solo, seguiu-se um dueto, e depois um coral; um alegre
murmúrio de conversas preenchia os intervalos. Fiquei ouvindo por muito tempo:
de repente, descobri que meus ouvidos estavam inteiramente empenhados em
analisar os sons misturados e tentar distinguir, em meio à confusão de vozes, a do
Sr. Rochester; e quando a captaram, o que logo fizeram, descobriram uma tarefa
posterior — a de articular os sons, tornados indistintos pela distância, em
palavras.
O relógio bateu doze horas. Olhei Adèle, cuja cabeça repousava em meu
ombro; seus olhos tornavam-se pesados, e assim peguei-a nos braços e levei-a
para a cama. Era quase uma hora quando os cavalheiros e damas procuraram seus
quartos.
O dia seguinte foi tão bonito quanto o seu antecessor; o grupo dedicou-o a
uma excursão a algum local das vizinhanças. Partiram de manhã cedo, uns a
cavalo, o resto em carruagens; assisti tanto à partida quanto à volta. A Srta.
Ingram, como antes, era a única dama eqüestre; e, como antes, o Sr. Rochester
cavalgava a seu lado; os dois iam um pouco à parte do resto. Indiquei essa
circunstância à Sra. Fairfax, que estava de pé à janela, junto a mim.
— A senhora disse que não era provável que eles pensassem em casar-se —
disse. — Mas está vendo que o Sr. Rochester evidentemente a prefere a qualquer
uma das outras damas.
— Sim, ouso dizer que, sem dúvida, ele a admira.
— E ela a ele — acrescentei. — Veja como inclina a cabeça para o lado dele,
como se estivesse conversando confidencialmente; gostaria de poder ver o rosto
dela; nunca consegui sequer um vislumbre dele.
— Você a verá esta noite — respondeu a Sra. Fairfax. — Observei por acaso
ao Sr. Rochester como Adèle desejava ser apresentada às damas, e ele disse: 'Oh,
que ela venha à sala de estar após o jantar; e peça à Srta. Eyre que a acompanhe'.
— Sim; ele disse isso por mera polidez: não preciso ir, estou certa —
respondi.
— Bem, eu observei a ele que, como você não estava acostumada a muita
gente, não achava que gostaria de aparecer diante de um grupo tão alegre... todos
estranhos; e ele respondeu à sua maneira brusca: "Bobagem! Se ela fizer objeção,
diga-lhe que é meu desejo particular; e se resistir, diga-lhe que eu irei buscá-la em
caso de resistência".
— Não lhe darei esse trabalho — respondi. — Irei, se não há melhor saída;
mas não gosto disso. A senhora estará lá, Sra. Fairfax?
— Não; pedi para ser dispensada, e ele acolheu meu pedido. Eu lhe direi
como fazer para evitar o embaraço de uma entrada formal, que é a parte mais
desagradável da coisa. Deve ir para a sala de estar enquanto está vazia, antes das
damas deixarem a mesa do jantar; escolha seu lugar em qualquer cantinho
discreto que preferir; não precisa ficar muito tempo depois de os cavalheiros
entrarem, a não ser que lhe agrade: apenas deixe o Sr. Rochester ver que você está
lá, e depois escapula... ninguém a notará.
— Essa gente vai ficar muito tempo, a senhora acha?
— Talvez duas ou três semanas, certamente não mais. Depois do recesso da
Páscoa, Sir George Lynn, que foi recentemente eleito parlamentar por Millcote,
terá de ir para a capital e tomar seu assento; diria que o Sr. Rochester o
acompanhará: surpreende-me que já tenha se demorado tanto tempo em
Thornfield.
Foi com certa trepidação que vi aproximar-se a hora em que deveria
comparecer com minha pupila à sala de estar. Adèle estivera em estado de êxtase
o dia todo, após saber que seria apresentada às damas à noite; e só depois que
Sophie iniciou a operação de vesti-la foi que se acalmou. A importância do
processo aquietou-a rapidamente então, e quando se viu com os cabelos
arranjados em longos cachos, metida no vestido de cetim rosa, a longa faixa
amarrada, e as luvas de renda postas, parecia tão grave quanto um juiz.
Desnecessário avisá-la para não desarrumar seu traje: depois de vestir-se, sentou-
se solenemente em sua cadeirinha, tendo antes o cuidado de erguer a saia de cetim
para não amarrotá-la, e assegurou-me que não se moveria dali até eu ficar pronta.
E isso eu logo fiquei: meu melhor vestido (o de cinza prateado, comprado para o
casamento da Srta. Temple, e nunca mais usado desde então) logo estava posto;
meu cabelo logo penteado; meu único adorno, o broche de pérola, logo pregado.
Descemos.
Felizmente, havia outra entrada para a sala de estar além da do salão onde
estavam todos sentados a jantar. Achamos o aposento vazio; um grande fogo ardia
silenciosamente na lareira, e velas de cera brilhavam em luminosa solidão em
meio às flores perfeitas que adornavam as mesas. A cortina rubra pendia diante do
arco; tênue como era a separação que esse tecido fazia do grupo no salão vizinho,
eles falavam num tom tão baixo, que nada se podia distinguir de sua conversa,
além de um suave murmúrio.
Adèle, que parecia estar ainda sob a influência de uma impressão soleníssima,
sentou-se sem uma palavra num descansa-pés que lhe indiquei. Retirei-me para
um batente de janela, e, pegando um livro de uma mesa próxima, tentei ler. Adèle
trouxe seu banquinho para junto de mim; e em pouco tocava em meu joelho.
— Que é, Adèle?
— Est-ce que je ne puis pas prendre une seule de ces fleurs magnifiques,
mademoiselle? Seulement pour completer ma toilette* * Será que não posso pegar nem uma dessas flores magníficas, mademoiselle? Só para
complementar minha toalete. (N. do T.)
— Você pensa demais em sua toilette, Adèle, mas pode pegar uma flor. — E
tirei uma rosa de um vaso e preguei-a em sua faixa. Ela soltou um suspiro de
inefável satisfação, como se sua taça de felicidade estivesse agora transbordante.
Voltei o rosto para esconder um sorriso que não pude suprimir: havia algo de
cômico, e ao mesmo tempo de penoso, na ansiedade e inata devoção da
parisiensezinha às questões de vestimenta.
Ouviu-se então um barulho abafado de pessoas levantando-se; a cortina foi
puxada do arco, e através dele apareceu a sala de jantar, com seu lustre
derramando luz sobre as pratas e cristais de um magnífico serviço de sobremesa
que cobria uma comprida mesa; um grupo de senhoras estava parado na abertura;
entraram, e a cortina caiu atrás delas.
Havia apenas oito; contudo, de alguma forma, quando entraram davam a
impressão de um número muito maior. Algumas delas eram muito altas; muitas
estavam bem vestidas de branco; e todas tinham uma vastidão de vestes que
parecia ampliar suas pessoas, como a neblina amplia a lua. Levantei-me e
cumprimentei-as, uma ou duas curvaram a cabeça em retribuição; as outras
apenas me fitaram.
Elas se espalharam pela sala, lembrando-me, pela leveza e animação de seus
movimentos, um bando de plumosos pássaros brancos. Algumas se lançaram em
posições meio reclinadas, nos sofás e otomanas, algumas se curvaram sobre as
mesas e examinaram as flores e livros; o resto se reuniu num grupo em redor do
fogo; todas falavam em voz baixa mas distinta, que lhes parecia habitual. Fiquei
sabendo de seus nomes depois, e posso muito bem mencioná-los agora.
Primeiro, havia a Sra. Eshton e duas de suas filhas. Ela fora evidentemente
uma mulher bonita, e ainda estava bem conservada. Das filhas, a mais velha,
Amy, era um tanto baixa, ingênua, parecendo uma criança no rosto e nos modos;
tinha formas provocantes; seu vestido de musselina branca com uma faixa azul
lhe assentava bem. A segunda, Louisa, era mais alta q mais elegante de corpo;
tinha um rosto muito bonito, do tipo que os franceses chamam de minois
chiffonné; as duas irmãs eram brancas como lírios.
Lady Lynn era uma personagem grande e gorda de cerca de quarenta anos, de
aparência muito altiva, ricamente vestida num costume de cetim de um brilho
cambiante; o cabelo escuro brilhava luzidio à sombra de uma pluma azul e dentro
do círculo de uma diadema de gemas.
A Sra. Coronel Dent era menos vistosa; mas, pensei, mais senhorial. Tinha
uma silhueta esbelta, um rosto pálido e delicado, e cabelos louros. Seu vestido de
cetim preto, a echarpe de rica renda estrangeira e os adornos de pérolas me
agradaram mais que a radiância de arco-íris da dama com o título.
Mas as três mais distintas — em parte, talvez, devido às silhuetas mais altas
do grupo — eram a viúva dotada Lady
Ingram e suas filhas, Blanche e Mary. Eram todas três da mais vistosa estatura
feminina. A viúva deveria estar entre os quarenta e os cinqüenta anos; seu corpo
ainda era esbelto; o cabelo (pelo menos à luz de velas), ainda negro; os dentes,
também, ainda estavam aparentemente perfeitos. A maioria das pessoas a teria
qualificado de uma mulher esplêndida em sua idade, e assim era, sem dúvida, do
ponto de vista físico; mas também havia uma expressão de quase insuportável
altivez em seu porte e em seu rosto. Tinha feições romanas e queixo duplo, que
desaparecia numa garganta semelhante a um pilar. Essas feições me pareceram
não apenas inchadas e escurecidas, mas mesmo vincadas de orgulho; e o queixo
era mantido pelo mesmo princípio, numa posição de ereção quase sobrenatural.
Tinha igualmente um olhar feroz e duro; lembrou-me o da Sra. Reed; ela moldava
as palavras com a boca ao falar; a voz era profunda, as inflexões muito pomposas,
muito dogmáticas — muito intolerante, em suma. Um vestido púrpura e um
turbante de algum dourado tecido indiano investiam-na (suponho que pensava) de
uma dignidade verdadeiramente imperial.
Blanche e Mary eram de igual estatura — retas e altas como alamos. Mary era
demasiado magra para sua altura, mas Blanche parecia modelada como uma
Diana. Eu a olhava, é claro, com um interesse especial. Primeiro, queria ver se sua
aparência correspondia à descrição da Sra. Fairfax; segundo, se se assemelhava de
algum modo à miniatura de imaginação que eu pintara dela; e terceiro — tem de
sair! — se era do tipo que eu imaginaria provável de corresponder ao gosto do Sr.
Rochester.
No que se referia ao físico, ela respondia ponto por ponto tanto ao meu quadro
segundo a descrição da Sra. Fairfax. O busto nobre, os ombros caídos, o pescoço
gracioso, os olhos e os cachos negros estavam todos lá, mas e o rosto? O rosto era
como o da mãe; um retrato juvenil e sem rugas, a mesma testa baixa, as mesmas
feições elevadas, o mesmo orgulho; não era no entanto um orgulho tão
melancólico. Ela ria continuamente, seu riso era satírico, e o mesmo acontecia
com a expressão habitual de seus lábios arqueados e altivos.
Dizem que o gênio é convencido: não posso dizer se a Srta. Ingram era um
gênio, mas era convencida — notoriamente convencida, na verdade. Iniciou uma
conversa sobre botânica com a delicada Sra. Dent. Aparentemente, a Sra. Dent
não havia estudado essa ciência, embora, como disse, gostasse de flores,
"especialmente as silvestres"; a Srta. Ingram estudara, e percorreu o seu
vocabulário com empáfia. Terminei percebendo que ela estava (como se diz no
vernáculo) provocando a Sra. Dent; isto é, jogando com a ignorância dela: a
provocação podia ser astuta, mas não era, decididamente, generosa. Ela jogava;
sua execução ao piano era brilhante; cantava; tinha uma voz ótima; falava francês
à parte com a mãe; e falava-o bem, com fluência e boa pronúncia.
Mary tinha um rosto mais suave e mais aberto que Blanche; feições mais
delicadas, também, e uma pele alguns tons mais clara (a Srta. Ingram era morena
como uma espanhola) — mas faltava-lhe vida, seu rosto não tinha expressão, nem
o olhar brilho; nada tinha a dizer, e, uma vez sentada, permanecia fixa como uma
estátua num nicho. As duas irmãs vestiam um branco imaculado.
Achava eu, agora, que a Srta. Ingram era uma escolha que o Sr. Rochester
poderia fazer? Não sabia dizer — não conhecia o gosto dele em beleza feminina.
Se gostava do majestoso, ela era o próprio tipo da majestade; depois, era
talentosa, vivaz. A maioria dos cavalheiros a admiraria, pensei; e parecia-me já ter
obtido provas de que ele a admirava, para afastar a última sombra de dúvida: só
faltava vê-los juntos.
Não deve supor, leitor, que Adèle tinha durante esse tempo todo permanecido
sentada, imóvel, no banquinho a meus pés: não; quando as damas entraram, ela se
levantara, fora ao encontro delas, fizera uma solene reverência e dissera com
gravidade:
— Bon jour, mesdames.
E a Srta. Ingram a olhara com um ar zombeteiro e exclamara:
— Oh, que bonequinha! Lady Lynn observara:
— É a pupila do Sr. Rochester, suponho... a garotinha francesa de que ele
falava.
A Sra. Dent tomara bondosamente a mão dela e dera-lhe um beijo. Amy e
Louisa Eshton haviam exclamado simultaneamente:
— Que amor de criança!
E depois chamaram-na para o sofá, onde agora se sentava, aconchegada entre
elas, tagarelando alternadamente em francês e num inglês estropiado; absorvendo
não apenas a atenção das jovens damas, mas a da Sra. Eshton e a de Lady Lynn, e
sendo mimada a seu gosto.
Afinal trouxeram o café, e os cavalheiros foram convocados. Eu permanecia
sentada na sombra — se é que havia qualquer sombra naquele aposento
brilhantemente iluminado; a cortina da janela me escondia um pouco. Outra vez o
arco se abriu; eles vieram. O aparecimento coletivo dos cavalheiros, como o das
damas, foi muito imponente; a maioria era alta, alguns jovens. Henrry e Frederick
Lynn eram almofadinhas bem alinhados, na verdade; e o Coronel Dent, um belo
homem de aspecto marcial. O Sr. Eshton, magistrado do distrito, parecia um
cavalheiro, cabelo inteiramente branco, sobrancelhas e suíças ainda negras, o que
lhe dava de algum modo a aparência de um "père noble de íkeâtre". Lorde
Ingram, como suas irmãs, era muito alto; e também como elas, bonito; mas tinha a
aparência apática e lânguida de Mary, parecia ter mais comprimento de perna que
vivacidade de sangue ou vigor de cérebro.
E onde andava o Sr. Rochester?
Ele entra afinal, não estou olhando para o arco, mas vejo-o entrar. Tento
concentrar minha atenção apenas nas agulhas de tricô, nas tramas da bolsa que
vou formando — desejo pensar apenas no trabalho que tenho em mãos, ver
apenas as contas prateadas e os fios de seda que estão em meu colo; entretanto,
vejo distintamente a sua figura, e inevitavelmente me lembro do momento em que
o vi pela última vez; pouco depois de haver-Ihe prestado o que ele considerou um
serviço essencial, e, segurando minha mão e olhando meu rosto, me examinou
com olhos que revelavam um coração cheio e ávido a ponto de transbordar;
emoções nas quais eu tinha uma parte. Como me aproximara dele naquele
momento! Que ocorrera desde então, para mudar nossas posições em relação um
ao outro? E no entanto, agora, como estávamos afastados! Tão afastados, que eu
não esperava que ele viesse falar-me. Não me admirei quando, sem me olhar, ele
se sentou do outro lado da sala e começou a conversar com algumas das damas.
Assim que vi a atenção dele concentrada nelas, e que podia observar sem ser
observada, meus olhos foram involuntariamente atraídos para seu rosto; não podia
manter as pálpebras sob controle, elas se erguiam, e as pupilas se fixavam nele.
Eu olhava, e sentia um intenso prazer em olhar — um prazer precioso, apesar de
pungente; ouro puro, com uma agônica ponta de aço, um prazer como o que
sentiria o homem morto de sede ao saber que o poço para o qual se arrastou está
envenenado, e que apesar disso se curva e bebe goles divinos.
É uma grande verdade a afirmação de que a "beleza está nos olhos de quem a
vê". O rosto descorado, cor de oliva, a testa quadrada e maciça, as sobrancelhas
grossas e negras, os olhos profundos, os traços fortes, a boca sombria — toda
energia, decisão, vontade — de meu amo não eram bonitos, segundo as regras;
mas eram mais que bonitos para mim, eram cheios de um interesse, uma
influência que me dominavam inteiramente — que tiravam meus sentimentos do
meu poder e os acorrentavam ao dele. Eu não pretendera amá-lo; sabe o leitor que
me esforcei muito para extirpar de minha alma os germes do amor ali detectados;
e agora, na primeira vez em que o revia, eles reviviam espontaneamente, verdes e
fortes! Ele me fazia amá-lo sem olhar para mim.
Comparei-o com os hóspedes. Que eram a graça galante dos Lynn, a lânguida
elegância de Lorde Ingram, mesmo a distinção militar do Coronel Dent,
contrastadas com sua aparência de vigor nativo e autêntico poder? Eu não sentia
simpatia pela aparência deles, pela expressão deles, mas imaginava que a maioria
dos observadores os chamaria de atraentes, bonitos, imponentes; ao passo que
declarariam o Sr. Rochester, de saída, um homem de feições grosseiras e
aparência melancólica. Eu os via sorrir, rir — não era nada; a luz das velas tinha
tanta alma quanto seus sorrisos; o tinido da sineta, tanto significado quanto seus
risos. Via o Sr. Rochester sorrir — as feições severas se suavizavam; os olhos se
tornavam brilhantes e gentis, com lampejos penetrantes e doces. Ele falava no
momento com Louisa e Amy Eshton. Eu me admirava de vê-las receberem
calmamente aquele olhar que me parecia tão penetrante, esperava que baixassem
os olhos, enrubescessem; contudo, fiquei satisfeita ao constatar que elas não
estavam de modo algum enternecidas. "Ele não é para elas o que é para mim",
pensei; "não é da espécie delas. Acredito que seja da minha — estou certa de que
é — sinto afinidade com ele — entendo a linguagem de seu rosto e de seus
movimentos; embora a classe e a riqueza nos separem largamente, tenho algo no
cérebro e no coração, no sangue e nos nervos, que me assimila mentalmente a ele.
Terei dito, há uns poucos dias, que nada tinha com ele a não ser para receber meu
salário de suas mãos? Terei proibido a mim mesma pensar nele em qualquer outra
condição que não a de pagador? Blasfêmiai contra a natureza! Todo sentimento
bom, autêntico, vigoroso que tenho se concentra impulsivamente em torno dele.
Sei que devo ocultar meus sentimentos; devo sufocar a esperança; tenho de me
lembrar que ele não pode se interessar muito por mim. Pois quando digo que sou
de sua espécie, não quero dizer que tenha a sua força para influenciar, e a sua
magia para atrair; quero dizer apenas que tenho certos gostos e sentimentos em
comum com ele. Tenho de me repetir continuamente, portanto, que estamos para
sempre separados — e no entanto, enquanto eu respirar e pensar, terei de amá-lo."
O café é servido. As damas, desde que os cavalheiros entraram, tornaram-se
animadas como cotovias; a conversa faz-se viva e alegre. O Coronel Dent e o Sr.
Eshton discutem política; suas esposas ouvem. As duas orgulhosas aristocratas,
Lady Lynn e Lady Ingram, confabulam. Sir George — a quem, a propósito,
esqueci de descrever — um cavalheiro rural muito grande e de aparência bastante
jovem — está parado diante do sofá delas e ocasionalmente diz uma palavra. O
Sr. Frederick Lynn sentou-se ao lado de Mary Ingram e mostra-lhe as gravuras de
um esplêndido volume, ela olha, sorri de vez em quando, mas aparentemente
pouco fala. O alto e fleumático Lorde Ingram apóia-se com os braços cruzados no
respaldar da poltrona da miúda e animada Amy Eshton; ela o olha e tagarela como
uma carriça; gosta mais dele do que do Sr. Rochester. Henri Lynn apoderou-se de
uma otomana aos pés de Louisa, Adèle partilha-a com ele, que tenta falar francês
com ela, e Louisa ri de seus erros. Com quem Blanche Ingram se juntará? Está
parada sozinha à mesa, graciosamente curvada sobre um álbum. Parece esperar
que a requisitem; mas não esperará muito tempo, ela própria escolhe um
companheiro.
O Sr. Rochester, tendo deixado as Eshton, está parado ao lado da lareira, tão
solitário quanto ela à mesa; ela se põe diante dele, tomando posição do outro lado
do batente da lareira.
— Sr. Rochester, eu pensava que o senhor não gostava de crianças.
— E não gosto.
— Então que o levou a se encarregar de uma bonequinha dessas? (Apontando
Adèle). Onde a arranjou?
— Eu não a arranjei; ela foi deixada em minhas mãos.
— Podia tê-la mandado para uma escola.
— Não podia, as escolas são muito caras.
— Ora, suponho que tem uma governanta para ela: vi uma pessoa com ela há
pouco... já se foi? Oh, não! Lá está ela ainda, por trás da cortina da janela. O
senhor a paga, é claro; eu julgaria isso tão caro... e mais ainda; pois tem de mantê-
las às duas, ademais.
Eu temia — ou devo dizer que esperava? — que a alusão a mim fizesse o Sr.
Rochester olhar em minha direção; e me encolhi mais ainda, involuntariamente,
para dentro da sombra, mas ele não volveu os olhos.
— Não pensei no assunto — disse indiferentemente, olhando direto em frente.
— Não, vocês homens nunca pensam em economia e sensatez. Devia ouvir o
que mamãe fala sobre as governantas. Mary e eu tivemos, eu diria, pelo menos
uma dúzia delas em nosso tempo; metade detestável, e o resto ridículo, e todas
uns pesadelos... não eram, mamãe?
— Você falou, minha querida?
A jovem dama assim reclamada como propriedade especial da viúva repetiu
sua pergunta com uma explicação.
— Minha querida, não fale em governantas; a palavra me deixa nervosa. Sofri
um verdadeiro martírio com a incompetência e os caprichos delas. Dou graças aos
céus por ter acabado com elas!
A Sra. Dent se curvou sobre a devota senhora e sussurrou-lhe alguma coisa ao
ouvido; suponho, pela resposta que provocou, que era uma lembrança de que
havia uma representante da raça anatematizada presente.
— Tant pis* — disse sua excelência. — Espero que isso lhe faça bem. —
Depois, num tom mais baixo, mas ainda suficientemente alto para que eu ouvisse:
— Eu a notei; sei julgar fisionomias, e vejo na dela todos os defeitos de sua
classe. *Tanto pior. (N. do T.)
— E quais são, madame? — inquiriu o Sr. Rochester em voz alta.
— Eu lhe direi em particular — respondeu ela, balançando o turbante três
vezes com sinistro significado.
— Mas minha curiosidade terá perdido o apetite; e anseia por alimento agora.
— Pergunte a Blanche; ela está mais perto do senhor que eu.
— Oh, não o passe para mim, mamãe! Tenho apenas uma palavra a dizer
sobre toda a tribo; são uma praga. Não que tenha algum dia sofrido muito com
elas: eu tinha o cuidado de virar as mesas. Que truques Theodore e eu
costumávamos pregar em nossas Srta. Wilson, Sra. Grey e Madame Joubert!
Mary estava sempre com sono demais para juntar-se a uma conspiração com
graça. O melhor divertimento era com a Madame Joubert; a Srta. Wilson era uma
coisinha doentia, lacrimosa e pouco esperta; não valia o esforço de vencê-la, em
suma; e a Sra. Grey era grosseira e insensível; nenhum golpe tinha efeito sobre
ela. Mas a coitada da Madame Joubert! Ainda a vejo em suas fúrias, quando a
tínhamos levado ao extremo... derramado o nosso chá, esmagado nosso pão com
manteiga, jogado nossos livros para o teto e feito um carnaval com a régua e a
mesa, a grade e os atiçadores. Theodore, lembra-se desses dias felizes?
— Sim, claro que me lembro — disse, em voz arrastada, Lorde Ingram. — E
a pobre vara velha gritava: "Oh, crianças perversas!" e depois nós lhe pregávamos
sermões sobre a presunção de tentar ensinar a meninos espertos como nós, quando
ela própria era tão ignorante.
— Era o que fazíamos; e, Tedo, sabe, eu ajudei a acusar (ou perseguir) seu
tutor, o Sr. Vining cara-pálida... o pároco ainda na casca, como o chamávamos.
Ele e a Srta. Wilson tomaram a liberdade de se apaixonar um pelo outro... pelo
menos, Tedo e eu assim pensávamos; surpreendemos diversos olhares ternos e
suspiros que interpretamos como sinais de la belle passion, e garanto-lhe que o
público logo teve o favor de nossa descoberta; usamo-la como uma espécie de
alavanca para remover nossos pesos mortos da casa. A mamãe querida ali, assim
que teve uma idéia do caso, descobriu que aquilo era de natureza imoral. Não
descobriu, minha senhora mãe?
— Certamente, minha flor. E estava inteiramente correta, pode confiar nisso:
há mil motivos para que uma ligação entre governantas e tutores não devam
nunca ser toleradas por um só momento em qualquer casa bem regrada;
primeiro...
— Oh, bondosa mamãe! Poupe-nos a enumeração! Au reste, todos nós a
conhecemos: perigo de mau exemplo para a inocência da infância; distrações e
conseqüente negligência do dever, da parte dos agregados... aliança e dependência
mútuas, resultando disso a confidencia, a insolência, o amotinamento e explosão
geral. Estou certa, Baronesa Ingram, de Ingram Park?
— Meu lírio, você está certa, como sempre.
— Então não há mais necessidade de dizer, mude de assunto.
Amy Eshton, não ouvindo ou não dando atenção a essa ordem, acrescentou
com sua voz suave, infantil:
— Louisa e eu também provocávamos nossas governantas; mas ela era uma
criatura tão boa, que tolerava qualquer coisa; nada a irritava. Nunca se zangava
conosco; não era, Louisa?
— Não, nunca; podíamos fazer o que quiséssemos... assaltar sua mesa e sua
caixa de trabalho, virar suas gavetas pelo avesso; e tinha uma natureza tão boa
que nos dava tudo que pedíamos.
— Suponho então — disse a Srta. Ingram, curvando os lábios sarcasticamente
— que agora teremos um resumo das lembranças de todas as governantas
existentes. Para evitar uma tal visita, proponho mais uma vez a introdução de
outro assunto. Sr. Rochester, o senhor apóia a minha moção?
— Madame, eu a apoio neste ponto e em todos os outros.
— Então que recaia sobre mim o ônus de tê-lo trazido à baila. Signior
Eduardo, tem a voz em forma esta noite?
— Donna Bianca, se a senhora me ordena, terei.
— Então, signior, lanço sobre o senhor meu soberano comando de que
prepare seus pulmões e outros órgãos vocais, pois eles serão necessários ao meu
real serviço.
— Quem não seria o Rizzio de uma tão divina Mary?
— Que me importa Rizzio! — ela exclamou, jogando a cabeça para trás com
todos os seus cachos, ao adiantar-se para o piano. — Em minha opinião, o
violinista David deve ter sido um tipo insípido de sujeito; gosto mais do negro
Bothwell: em minha opinião, um homem não é nada sem uma pitada do demônio
em si; e a história pode dizer o que quiser de James Hepburn, mas tenho a idéia de
que ele foi exatamente o tipo de herói bandido bárbaro, feroz, a quem eu poderia
ter consentido em dar minha mão.
— Cavalheiros, estão ouvindo! Vamos, qual de vocês mais se parece com
Bothwell? — gritou o Sr. Rochester.
— Eu diria que a preferência recai em você — respondeu o Coronel Dent.
— Por minha honra, fico-lhe muito grato — foi a resposta. A Srta. Ingram,
que se tinha sentado com altiva graça ao piano, espalhando seu vestido de neve
em majestosa amplitude, iniciou um brilhante prelúdio, falando enquanto tocava.
Parecia estar em sua melhor forma nessa noite; tanto suas palavras como seu ar
pareciam destinados a provocar não apenas admiração, mas o pasmo dos ouvintes:
estava evidentemente inclinada a impressioná-los como algo muito impulsivo e
ousado deveras.
— Oh, estou tão farta dos jovens de hoje! — exclamou, martelando no
instrumento. — Coisinhas medíocres, débeis, que não servem para dar um passo
além dos portões do parque dos papais, nem para chegar sequer aí sem a
permissão e a proteção das mamães! Criaturas tão absorvidas em cuidados com
suas lindas faces, e suas mãos brancas, e seus pezinhos; coma se um homem
tivesse algo a ver com a beleza! Como se a graciosidade não fosse prerrogativa
especial da mulher... seu legítimo apanágio e legado! Admito que uma mulher
feia é uma mancha na bela face da criação; mas quanto aos cavalheiros, que se
preocupem em possuir apenas força e coragem, que seu motto seja caçar, atirar e
lutar: o resto não vale nada. Este seria o meu lema, se fosse um homem.
"Quando me casar", continuou, após uma pausa que ninguém interrompeu,
"estou decidida a que meu marido não seja um rival, mas um contraste para mim.
Não tolerarei nenhum competidor perto do trono; exigirei uma homenagem
indivisa; sua devoção não será partilhada entre mim e a forma que ele vê no
espelho. Sr. Rochester, agora cante, que tocarei para o senhor."
— Sou todo obediência — foi a resposta.
— Aqui então está uma música de corsários. Saiba que adoro os corsários; e
por isso, cante-a con spirito.
— Ordens dos lábios da Srta. Ingram poriam espírito até numa caneca de leite
aguado.
— Cuidado então: se não me agradar, eu o envergonharei mostrando como se
deve fazer as coisas.
— E isso é dar um prêmio à incapacidade: agora vou tentar fracassar.
— Gardez-vous-en bien!* Se errar deliberadamente, pensarei num castigo
proporcional ao crime. * Não se atreva a isso! (N. do T.)
— A Srta. Ingram deve ser clemente, pois tem em seu poder infligir um
castigo maior do que o que um mortal pode suportar.
— Ha! Explique — ordenou a dama.
— Perdoe-me, madame, não há necessidade de explicação; seu próprio senso
refinado deve informar-lhe que um franzir de testa seu seria substituto suficiente
para uma pena capital.
— Cante! — ela disse, e tocando de novo o piano, começou um
acompanhamento em estilo espirituoso.
"Chegou a hora de me esgueirar", pensei; mas os tons que então cortaram o ar
me prenderam. A Sra. Fairfax dissera que o Sr. Rochester possuía uma bela voz, e
possuía mesmo — um baixo sazonado, potente, no qual lançava seu sentimento,
sua força; encontrando um caminho, pelo ouvido, até o coração, e despertando ali,
estranhamente, sensações. Esperei até que a última e plena vibração houvesse
expirado — até que a maré das conversas, um instante contida, voltasse a fluir;
deixei então meu canto abrigado e saí pela porta lateral, que felizmente era
próxima. Dali, uma estreita passagem levava ao saguão: ao cruzá-lo, notei que
minha sandália estava solta; parei para amarrá-la, ajoelhando-me para isso no
tapete ao pé da escada. Ouvi a porta da sala de jantar abrir-se; um cavalheiro saiu;
erguendo-me rapidamente, vi-me frente a frente com ele: era o Sr. Rochester.
— Como vai? — ele perguntou.
— Muito bem, senhor.
— Por que não veio falar comigo na sala?
Pensei que poderia devolver a pergunta a ele, que a fizera; mas não tomaria
essa liberdade. Respondi:
— Não queria importuná-lo, pois parecia ocupado, senhor.
— Que esteve fazendo em minha ausência?
— Nada em particular; ensinando a Adèle, como sempre.
— E ficando bem mais pálida do que era... como vi à primeira vista. Que é
que há?
— Absolutamente nada, senhor.
— Pegou algum resfriado naquela noite em que quase me afogou?
— De modo nenhum.
— Volte para a sala de jantar: está desertando cedo demais.
— Estou cansada, senhor.
Ele me olhou por um minuto.
— E um pouco deprimida — disse. — Por quê? Diga-me.
— Nada, nada, senhor. Não estou deprimida.
— Mas eu afirmo que está: tão deprimida, que mais umas poucas palavras lhe
trariam lágrimas aos olhos... na verdade, aí estão elas já, brilhantes e
transbordantes; e uma conta escorreu da pestana e caiu no chão. Se eu tivesse
tempo, e não sentisse um temor mortal de que algum criado tagarela passasse por
aqui, gostaria de saber o que significa tudo isso. Bem, esta noite eu lhe desculpo;
mas compreenda que, enquanto meus visitantes permanecerem, espero que a
senhorita apareça na sala de jantar todas as noites; é o meu desejo; não o ignore.
Agora vá, e mande Sophie buscar Adèle. Boa-noite, minha... — Ela parou,
mordeu os lábios e me deixou, abruptamente.
CAPITULO 18
DIAS alegres foram aqueles em Thornfield Hall; e agitados também: como
diferiam dos primeiros três meses de quietude, monotonia e solidão que eu
passara sob aquele teto! Todos os sentimentos tristes pareciam agora ter sido
expulsos da casa, todas as sombrias associações haviam sido esquecidas: existia
vida por toda parte, movimento o dia todo. Não se podia atravessar a galeria,
antes tão silenciosa, nem entrar nos quartos da frente, antes tão desabitados, sem
encontrar uma dama elegante ou um valete almofadinha.
A cozinha, a copa do mordomo, a sala dos criados, o saguão de entrada
mostravam-se igualmente animados; e os salões só ficavam vazios e silenciosos
quando o céu azul e o fabuloso sol da agradável primavera chamavam seus
ocupantes para os jardins. Mesmo quando esse tempo se interrompia, e a chuva
caía continuamente por alguns dias, nenhum esmorecimento se abatia sobre a
alegria: as diversões dentro de casa apenas se tornavam mais vivas e variadas, em
conseqüência da paralisação imposta às atividades ao ar livre.
Imaginei o que iam fazer na primeira noite em que se propôs uma mudança de
divertimento; falaram de "matar charadas", mas em minha ignorância, não entendi
o termo. Chamaram-se os criados, retiraram-se as mesas da sala de jantar, mudou-
se a disposição das luzes, colocaram-se as cadeiras em semicírculo diante do arco.
Enquanto o Sr. Rochester e os outros cavalheiros orientavam essas alterações, as
senhoras subiam e desciam as escadas em busca de suas criadas. A Sra. Fairfax
foi chamada para dar informações sobre os recursos da casa em xales, vestidos,
tecidos de toda espécie; e alguns guarda-roupas do terceiro andar foram
saqueados, e seu conteúdo, sob a forma de saias bordadas e com anquinhas,
mantos de cetim, babados de renda etc, foi trazido para baixo às braçadas pelas
damas de honra; depois, fez-se uma seleção, e levaram-se as coisas escolhidas
para o boudoir dentro da sala de estar.
Enquanto isso, o Sr. Rochester reunira novamente as senhoras à sua volta, e
escolhia algumas delas para participar de seu grupo.
— A Srta. Ingram é minha, claro — disse; depois, indicou as duas Srtas.
Eshton e a Sra. Dent. Olhou-me: eu estava perto dele, pois travava o fecho do
bracelete da Sra. Dent, que se soltara.
— Quer participar? — ele perguntou. Balancei a cabeça. Ele não insistiu, o
que eu temera que fizesse; deixou-me retornar calmamente a meu lugar.
Ele e suas assistentes retiraram-se então para trás da cortina: o outro grupo,
que era chefiado pelo Coronel Dent, sentou-se no anfiteatro de cadeiras. Um dos
cavalheiros, o Sr. Eshton, observando-me, pareceu propor que me chamassem
para juntar-se a eles; mas Lady Ingram no mesmo instante refutou a idéia.
— Não — ouvi-a dizer. — Ela parece demasiado estúpida para qualquer jogo
desse tipo.
Dentro em pouco, uma sineta soou, e a cortina ergueu-se. Sob o arco, viu-se a
vultosa figura de Sir George Lynn, que o Sr. Rochester também escolhera, envolta
num lençol branco: diante dele, numa mesa, havia um grande livro aberto; e a seu
lado estava Amy Eshton, vestindo o capote do Sr. Rochester e tendo um livro na
mão. Alguém, que não se via, tocava a sineta animadamente; então Adèle (que
insistira em fazer parte do grupo de seu tutor) saltou para a frente, espalhando em
torno de si o conteúdo de uma cesta de flores que trazia no braço. Depois
apareceu a magnífica figura da Srta. Ingram, vestida de branco, um longo véu na
cabeça e uma coroa de flores circundando a testa; a seu lado vinha o Sr.
Rochester, e juntos se aproximaram da mesa. Ajoelharam-se; enquanto a Sra.
Dent e Louisa
Eshton, também de branco, tomavam suas posições atrás deles. Seguiu-se uma
cerimônia, em cena muda, na qual era fácil reconhecer a pantomima de um
casamento. Quando acabou, o Coronel Dent e seu grupo confabularam em
sussurros, e depois o Coronel gritou:
— Noiva!
O Sr. Rochester curvou-se, e a cortina caiu.
Passou-se um intervalo considerável antes de tornar a erguer-se. A segunda
subida revelou uma cena preparada com mais cuidado que a última. A sala de
estar, como observei antes, elevava-se dois degraus acima da sala de jantar, e no
alto do degrau de cima, recuada uma ou duas jardas para dentro da sala, aparecia
um grande tanque de mármore, que reconheci ser um adorno da estufa — onde
geralmente ficava, cercado por plantas exóticas e habitado por peixinhos dourados
— de onde devia ter sido transportado com alguma dificuldade, em vista de seu
tamanho e peso.
Sentado no tapete, ao lado dessa bacia, via-se o Sr. Rochester, envolto em
xales, com um turbante na cabeça. Seus olhos negros, a pele morena e as feições
orientais combinavam exatamente com o traje: ele parecia o próprio modelo de
um emir do Oriente, agente ou vítima de estrangulamento. Depois de algum
tempo, surgiu a Srta. Ingram. Também ela se vestia à moda oriental; uma echarpe
escarlate amarrada, como uma faixa, em torno da cintura; um lenço bordado
amarrado em torno das têmporas: os braços, lindamente modelados, despidos, um
deles erguido no ato de segurar uma jarra graciosamente posta na cabeça. Tanto
sua forma quanto suas feições, a cor e a aparência geral sugeriam a idéia de uma
princesa israelita dos dias patriarcais; e tal era sem dúvida a personagem que ela
pretendia representar.
Ela se aproximou da bacia, e curvou-se como para encher a bilha; tornou a
levá-la à cabeça. O personagem à beira do poço pareceu abordá-la; fazer algum
pedido. "Ela se apressou a baixar a bilha e deu-lhe de beber". Do recesso de suas
vestes, ele retirou um estojo, abriu-o e mostrou magníficos braceletes e brincos;
ela encenou espanto e admiração; ajoelhando-se, ele depôs o tesouro a seus pés; a
aparência e os gestos dela exprimiram incredulidade e prazer; o estranho prendeu-
lhe os braceletes nos braços e os brincos nas orelhas. Era Eliezer e Rebeca, só
faltavam os camelos.
O grupo encarregado de adivinhar juntou as cabeças: aparentemente, não
podiam concordar sobre a palavra ou sílaba que a cena ilustrava. O Coronel Dent,
porta-voz deles, pediu "o quadro do todo"; ao que a cortina foi novamente
baixada.
Ao erguer-se pela terceira vez, via-se apenas uma parte da sala de estar, pois o
resto era ocultado por um anteparo, feito com algum tipo de tecido escuro e
grosso, pendurado. A bacia de mármore fora removida; em seu lugar havia uma
mesa e uma cadeira de cozinha: esses objetos eram visíveis a uma luz muito fraca,
que vinha de uma lanterna de chifre, e todas as velas tinham sido apagadas.
Em meio à cena de pobreza, sentava-se um homem com os punhos cerrados
apoiados nos joelhos, os olhos baixados para o chão. Reconheci o Sr. Rochester,
embora o rosto coberto de fuligem, as roupas desarranjadas (o capote pendia solto
de um braço, como se tivesse sido quase arrancado numa luta), a expressão
desesperada e carrancuda, o cabelo desgrenhado bem pudessem tê-lo disfarçado.
Quando se movia, ouvia-se o som de uma corrente: tinha cadeias nos pulsos.
— Bridewell!* — exclamou o Coronel Dent, e a charada foi solucionada. Jogo de palavras que só dá sentido em inglês: junção de bride (noiva) e well (poço, simbolizado
no tanque do segundo quadro, do qual a Srta. Ingram tira água), formando o nome próprio
Bridewell, famosa prisão inglesa. (N. do T.)
Tendo-se escoado um intervalo suficiente grande para os atores retomarem
suas vestes habituais, eles voltaram à sala de jantar. O Sr. Rochester trazia a Srta.
Ingram pelo braço; ela o cumprimentava por sua atuação.
— Sabe — dizia — que, dos três personagens, gostei mais de você no último?
Oh, se tivesse vivido alguns anos antes, que galante cavalheiro-salteador você
teria dado!
— A fuligem de meu rosto saiu toda? — ele perguntou, voltando-se para ela.
— Ai! sim; o que é uma pena! Nada poderia assentar mais à sua pele que o
ruge do rufião.
— A senhorita gostaria de um herói da estrada, então?
— Um herói inglês da estrada seria a melhor coisa depois de um bandido
italiano; e este só poderia ser superado por um pirata levantino.
— Bem, seja eu o que for, lembre-se de que é minha esposa; casamo-nos há
uma hora, em presença de todas essas testemunhas. — Ela deu uma risadinha e
corou.
— Agora, Dent — continuou o Sr. Rochester — é a sua vez. — E, enquanto o
outro grupo se retirava, ele e o seu, tomaram os lugares deixados vazios. A Srta.
Ingram pôs-se à direita de seu líder; os outros adivinhadores sentaram-se nas
cadeiras de ambos os lados dos dois. Não observei os atores; não mais observei
com interesse a cortina levantar-se; minha atenção era absorvida pelos
espectadores; meus olhos, até então fixados no arco, eram agora irresistivelmente
atraídos para o semicírculo de cadeiras. Que charada o Coronel Dent e seu grupo
armaram, que palavra eles escolheram, como se saíam, não me lembro mais; mas
ainda vejo a consulta que se seguia a cada cena, vejo o Sr. Rochester voltar-se
para a Srta. Ingram, e ela para ele; vejo-a inclinar a cabeça para ele, até seus
cachos negros quase tocarem o ombro dele e ondearem contra a sua face; ouço
seus sussurros mútuos; lembro-me dos olhares trocados; e mesmo alguma coisa
do sentimento despertado pelo espetáculo retorna-me à memória neste momento.
Já lhe disse, leitor, que aprendera a amar o Sr. Rochester: não podia desamá-lo
agora, simplesmente por descobrir que ele deixara de me notar — porque eu podia
passar horas em sua presença e ele nem por uma vez voltar os olhos em minha
direção — porque via toda a sua atenção tomada por uma grande dama, que
evitava tocar-me até com a borda de suas saias quando passava; que, se em algum
momento seus olhos negros e imperiosos caíam sobre mim por acaso, ela os
desviava no mesmo instante, como de um objeto demasiado inferior para merecer
observação. Eu não podia desamá-lo por ter certeza de que ele logo desposaria
essa mesma dama — porque lia diariamente nela uma orgulhosa segurança quanto
às intenções dele em relação a ela — porque via a toda hora nele um estilo de
cortejamento que, apesar de descuidado, e preferindo mais ser procurado do que
procurar, ainda assim era, em seu descuido, cativante e irresistível em seu
orgulho.
Nada havia para esfriar ou repelir nessas circunstâncias, embora houvesse
muito para criar desespero. E muito também, você pensará, leitor, para engendrar
ciúmes, se uma mulher em minha posição podia meter-se a ter ciúmes de uma
mulher na posição da Srta. Ingram. Mas eu não sentia ciúmes, ou só muito
raramente; a natureza da dor que experimentava não podia ser explicada por essa
palavra. A Srta. Ingram estava um grau abaixo do ciúme; era demasiado inferior
para provocar esse sentimento. Perdoe-me o aparente paradoxo; falo sério. Ele
gostava muito de se mostrar, mas não era autêntica; tinha um belo físico, muitos
dotes brilhantes, mas sua mente era pobre, o coração estéril por natureza; nada
florescia espontaneamente naquele solo; nenhum fruto natural se deleitava a não
ser a força com seu frescor. Não era boa; não era original; repetia frases sonoras
de livros; jamais apresentava, ou tinha, opiniões próprias. Defendia um alto grau
de sentimentos, mas não conhecia as sensações de simpatia e piedade; não havia
nela ternura e verdade. Demasiadas vezes traía isso, pela exagerada vazão que
dava à despeitada antipatia que concebera contra a pequena Adèle, afastando-a
com algum epíteto injurioso, se a menina por acaso se aproximava dela;
ordenando-lhe às vezes que deixasse a sala, e sempre tratando-a com frieza e
acrimônia. Outros olhos, além dos meus, observavam essas manifestações de seu
caráter — observavam-nas de perto, penetrantemente, astutamente. Sim; o futuro
noivo, o próprio Sr. Rochester, exercia sobre sua pretendida uma vigilância
incessante, e era dessa sagacidade — dessa precaução dele — dessa consciência
perfeita e clara dos defeitos de sua bela — dessa óbvia ausência de paixão em
seus sentimentos para com ela, que brotava minha dor torturante.
Eu via que ele ia desposá-la, por razões de família e talvez políticas; porque a
classe e as conexões dela lhe serviam; sentia que ele não lhe dera seu amor, e que
as qualificações dela eram inadequadas para conquistar dele esse tesouro. Essa era
a questão — era aí que o nervo era tocado e irritado — era aí que a febre se
mantinha e alimentava: ela não podia enfeitiçá-lo.
Se ela houvesse conseguido a vitória de uma vez, e ele tivesse cedido e
deposto sinceramente seu coração aos pés dela, eu teria coberto meu rosto, me
voltado para a parede, e (falando num sentido figurado) morrido para eles. Se a
Srta. Ingram fosse uma boa e nobre mulher, dotada de força, ardor, bondade,
sensatez, eu teria tido uma luta de vida ou morte com dois tigres — o ciúme e o
desespero; depois, com o coração despedaçado e devorado, eu a teria admirado —
reconhecido sua excelência, e ficado quieta pelo resto de meus dias; e quanto mais
absoluta a sua superioridade, mais profunda teria sido a minha admiração — mais
verdadeiramente tranqüila a minha quietude. Mas, como estavam de fato as
coisas, observar os esforços da Srta. Ingram para fascinar o Sr. Rochester,
testemunhar seus repetidos fracassos — com ela própria inconsciente disso,
imaginando que cada seta lançada atingia o alvo, e pavoneando-se
presunçosamente com o sucesso, quando seu orgulho e auto-complacência
repeliam cada vez mais o que desejavam atrair — testemunhar isso era estar ao
mesmo tempo sob constante ex-citação e implacável contenção.
Porque, quando ela falhava, eu via como poderia ter tido êxito. Setas que
continuamente se desviavam do peito do Sr. Rochester e caíam inofensivas a seus
pés poderiam, eu sabia, ser atiradas por uma mão mais certeira, atingir o seu
orgulhoso coração — trazer amor a seus olhos severos e suavidade a sua face
sardônica; ou, melhor ainda, se poderia efetuar sem armas uma silenciosa
conquista.
"Por que ela não consegue influenciá-lo mais, quando tem o privilégio de
trazê-lo tão próximo de si?" eu me perguntava. "Sem dúvida não pode realmente
gostar dele, ou não gosta dele com verdadeira afeição! Se gostasse, não precisaria
cunhar seus sorrisos de maneira tão pródiga, lançar seus olhares tão
incansavelmente, fabricar ares tão elaborados, graças tão sufocantes. Parece-me
que ela poderia, simplesmente sentando-se tranqüila a seu lado, dizendo pouca
coisa e olhando menos ainda, chegar mais perto do coração dele. Já vira no rosto
dele uma expressão muito diferente daquela que a endurecia agora, quando ela tão
vivazmente o abordava; mas também, a expressão que vi veio por si mesma, não
foi arrancada por artes meretrícias e manobras calculadas; e bastaria apenas
aceitá-la — responder ao que ele perguntava sem pretensão, falar-lhe quando
necessário sem trejeitos — para que ela se tornasse mais bondosa e agradável,
aquecendo a interlocutora como um acariciante raio de sol. Como conseguirá ela
agradá-lo quando estiverem casados? Não creio que os dois consigam; e no
entanto, podia-se conseguir; e sua mulher poderia, creio piamente, ser a mulher
mais feliz sobre a qual brilha o sol."
Eu ainda não disse nada condenando o plano do Sr. Rochester de casar-se por
interesse e ligações. Surpreendeu-me quando descobri que essa era a sua intenção:
achava-o um homem incapaz de ser influenciado por motivos tão vulgares na
escolha de uma esposa; porém, quanto mais considerava a posição, educação etc,
das partes, menos me sentia justificada em julgar e acusar a ele ou à Srta. Ingram
por agirem em conformidade com idéias e princípios neles insulados, sem dúvida,
desde a infância. Toda a sua classe mantinha esses princípios: eu supunha, assim,
que tinham motivos para mantê-los, motivos que eu não podia imaginar. Parecia-
me que, se eu fosse um cavalheiro como ele, tomaria em meu seio a esposa a
quem pudesse amar; mas o próprio óbvio das vantagens para a felicidade do
marido oferecidas por esse plano me convenceram de que devia haver argumentos
contra a sua adoção generalizada, que eu ignorava inteiramente; se não fosse
assim, tinha certeza de que todo o mundo agiria como eu desejava agir.
Mas em outros pontos, assim como nesse, eu me tornava muito leniente para
com meu amo, esquecia todos os seus defeitos, para os quais estava antes tão
atenta. Ultimamente, vinha sendo meu objetivo estudar todos os ângulos de seu
caráter; ver o ruim tanto quanto o bom; e, da justa pesagem de ambos, formar um
julgamento eqüitativo. Agora não via o ruim. O sarcasmo que me havia repelido,
a severidade que me espantara outrora eram apenas como picantes condimentos
num prato raro: sua presença era pungente, mas a ausência seria sentida como
relativamente insípida. E quanto àquela vaga qualquer coisa — seria uma
expressão sinistra ou penosa, intencional ou triste — que se abria a um observador
cuidadoso, de vez em quando, em seus olhos, fechava-se de novo antes que se
pudesse sondar a estranha profundeza parcialmente revelada; aquela qualquer
coisa que antes me fazia temer e me encolher, como se vagueasse entre
montanhas semelhantes a vulcões e de repente sentisse o solo estremecer e abrir-
se; aquela qualquer coisa, eu, a intervalos, contemplava ainda, com o coração
pulsando forte, mas não com os nervos paralisados. Em vez de desejar evitar, eu
ansiava por ousar — adivinhá-la; e julgava a Srta. Ingram feliz, porque um dia
poderia olhar dentro daquele abismo à vontade, explorar seus segredos e analisar
sua natureza.
Enquanto isso, enquanto pensava apenas em meu amo e em sua futura noiva
— via apenas eles, ouvia apenas a conversa deles, e achava importantes apenas os
seus movimentos — o resto do grupo se ocupava com seus próprios interesses e
prazeres distintos. As Ladies Lynn e Ingram continuavam a juntar-se em solenes
conferências, nas quais balançavam seus turbantes uma para a outra e erguiam as
quatro mãos em gestos respectivos de surpresa, ou mistério, ou horror, segundo o
tema sobre o qual seus mexericos discorriam, como um par de bonecas ampliadas.
A suave Sra. Dent conversava com a bondosa Sra. Eshton; e as duas às vezes me
concediam uma palavra ou um sorriso corteses. Sir George Lynn, o Coronel Dent
e o Sr. Eshton discutiam política, ou questões regionais, ou assuntos da justiça.
Lorde Ingram cortejava Amy Eshton; Louisa tocava e cantava para um dos Srs.
Lynn; e Mary Ingram ouvia languidamente as galantes conversas do outro. Às
vezes todos, como de comum acordo, suspendiam suas ações para observar e
ouvir os atores principais; pois, afinal de contas, o Sr. Rochester e — por estar
intimamente associada a ele — a Srta. Ingram eram a vida e a alma do grupo. Se
ele se ausentava da sala por uma hora, um tédio perceptível parecia insinuar-se no
espírito de seus hóspedes; sua reentrada certamente dava um novo impulso à
vivacidade das conversas.
A falta de sua animadora influência pareceu ser peculiarmente sentida um dia
em que ele foi chamado a Millcote, a negócios, e não era provável que voltasse
até tarde. A tarde era chuvosa, e um passeio que o grupo planejara fazer para ver
um acampamento cigano, recém-instalado numa terra comunal além de Hay, fora
conseqüentemente adiado. Alguns dos cavalheiros tinham ido para os estábulos:
os mais jovens, junto com as jovens damas, jogavam no salão de bilhar. As
aristocratas Ingram e Lynn buscaram consolação num tranqüilo jogo de baralho.
Blanche Ingram, depois de haver repelido, com altaneira taciturnidade, alguns
esforços das Sras. Dent e Eshton para atraí-la a uma conversa, primeiro
murmurara em cima de algumas melodias e árias sentimentais ao piano, e depois,
tendo apanhado um romance na biblioteca, jogara-se em altiva indiferença num
sofá, e dispusera-se a matar, com o fascínio da ficção, as tediosas horas de
ausência.
Era a hora próxima do crepúsculo, e o relógio já avisara que estava na hora de
vestir-se para o jantar, quando a pequena Adèle, que se ajoelhava a meu lado no
batente da janela da sala de estar, exclamou de repente:
— Voilà Monsieur Rochester, qui revient!* * Eis o Sr. Rochester, que volta! (N. do T.)
Virei-me, e vi a Srta. Ingram saltar do sofá: também os outros ergueram o
olhar de suas diversas ocupações; pois ao mesmo tempo começou-se a ouvir no
cascalho molhado o som rangente das rodas e o espadanar das patas dos cavalos.
Uma charrete aproximava-se.
— Que terá dado nele para voltar para casa em tal estilo? — disse a Srta.
Ingram. — Cavalgava Mesrour (o cavalo negro), não foi, quando saiu? E Pilot o
acompanhava... que terá feito com os animais?
Ao dizer isso, aproximou tanto sua alta pessoa e suas amplas vestes da janela,
que fui obrigada a me inclinar para trás até quase quebrar minha espinha; em sua
avidez, ela não me vira a princípio, mas ao ver-me, franziu o lábio e mudou-se
para o outro caixilho. A charrete parou; o cocheiro tocou a sineta da porta e um
cavalheiro apeou, vestindo trajes de viagem; mas não era o Sr. Rochester; era um
homem alto e de aparência mundana, um estranho.
— Como é provocadora! — exclamou a Srta. Ingram. — Sua macaquinha
aborrecida! (Invectivando Adèle.) Quem a pendurou na janela para dar falsa
informação? — e me dirigiu um olhar irado, como se eu fosse a culpada.
Ouviu-se uma consulta no saguão, e em breve o recém-chegado entrava. Fez
um cumprimento a Lady Ingram, como se a julgasse a mais velha senhora
presente.
— Parece que cheguei num momento inoportuno, madame — disse —
quando o meu amigo, o Sr. Rochester, não está em casa; mas chego de uma
viagem muito longa, e creio poder aproveitar-me de um antigo e íntimo
relacionamento para instalar-me aqui até que ele volte.
Tinha maneiras educadas; seu sotaque, ao falar, pareceu-me um tanto
incomum — não exatamente estrangeiro, mas tampouco inteiramente inglês;
devia ter mais ou menos a idade do Sr. Rochester — entre trinta e quarenta anos;
e sua cor era singularmente pálida; fora isso, um homem de bela aparência,
sobretudo à primeira vista. A um exame mais detalhado, detectava-se algo no
rosto que desagradava; ou antes, que não conseguia agradar. Seus traços eram
regulares, mas relaxados demais; tinha olhos grandes e bem desenhados, mas a
vida que olhava por eles era uma vida mansa, vazia — pelo menos assim eu
julgava.
O som da sineta para vestir-se dispersou o grupo. Só depois do jantar foi que
tornei a vê-lo: parecia então bem à vontade. Mas gostei ainda menos de sua
fisionomia do que antes: pareceu-me ao mesmo tempo desarrumada e inanimada.
Os olhos vagavam, e não tinham sentido algum nesse vagar: isso lhe dava uma
aparência esquisita, como eu não me lembrava de ter visto jamais. Para um
homem bonito e de aparência não desagradável, ele me repugnava demais; não
havia força naquele rosto de pele lisa e forma oval; não havia firmeza no nariz
aquilino e na pequena boca de amora; não havia pensamento /ha testa baixa e
plana; não havia comando nos olhos vazios, castanhos.
Sentada em meu cantinho usual, olhando-o com a luz das girândolas no
batente da lareira batendo em cheio nele — pois ocupava uma poltrona perto do
fogo, e se aproximava dele cada vez mais, como se tivesse frio — comparei-o
com o Sr. Rochester. Acho (com toda deferência, devo dizer) que não poderia ser
muito maior o contraste entre um lustroso ganso e um feroz falcão, entre um
manso carneiro e um cachorro de pêlo duro e olho aguçado, seu guardião.
Ele falara do Sr. Rochester como um velho amigo. Amizade curiosa devia ser
a deles, uma objetiva ilustração, na verdade, do velho adágio de que "os extremos
se tocam".
Dois ou três dos cavalheiros sentavam-se perto dele, e captei ocasionalmente
trechos da conversa que mantinham no outro lado da sala. A princípio, não
consegui extrair muito sentido do que ouvia; pois a conversa de Louisa Eshton e
Mary Ingram, que se sentavam mais perto de mim, confundia os fragmentos de
frases que me chegavam a intervalos. Elas discutiam o estranho; ambas o
chamavam de "um homem bonito". Louisa disse que ele era "um amor de
criatura", e que "o adorava"; e Mary citou a "bela boquinha e o lindo nariz" do
desconhecido como seu ideal de encanto.
— E que testa benigna ele tem! — exclamou Louisa. — Tão lisa... nada
dessas rugosas irregularidades que tanto detesto; e que olhos e sorriso tão
plácidos!
E então, para meu grande alívio, o Sr. Henry Lynn chamou-as para o outro
lado da sala, para resolver algum ponto da adiada excursão a Hay Common.
Eu podia agora concentrar minha atenção no grupo diante da lareira, e afinal
fiquei sabendo que o recém-chegado se chamava Sr. Mason; depois, soube que ele
acabava de chegar à Inglaterra, e que vinha de um país quente, o que era o
motivo, sem dúvida, de ter o rosto tão pálido e sentar-se tão perto da lareira, e de
usar um sobretudo dentro de casa. Finalmente as palavras Jamaica, Kingston,
Spanish Town indicaram as índias Ocidentais como sua residência; e foi com não
pequena surpresa que depreendi, dentro de pouco tempo, que fora ali que
conhecera e ficara amigo do Sr. Rochester. Falou da antipatia de seu amigo pelos
calores ardentes, os furacões e as estações de chuva daquela região. Eu sabia que
o Sr. Rochester viajara muito; fora o que a Sra. Fairfax dissera; mas pensava que
suas andanças se haviam limitado ao continente europeu; até então, não tinha
ouvido sequer uma insinuação de visitas a praias longínquas.
Eu ponderava essas coisas, quando um incidente, e um incidente um tanto
inesperado ainda por cima, interrompeu o fio de meus pensamentos. O Sr. Mason,
tremendo quando alguém por acaso abria a porta, pediu que se pusesse mais
carvão no fogo, cujas chamas se haviam extinguido, embora as brasas ainda
ardessem rubras e quentes. O criado que trouxe o carvão, ao sair, parou perto da
cadeira do Sr. Eshton e lhe disse algo em voz baixa, permitindo-me ouvir apenas
as palavras "velha" — "bastante encrenqueira".
— Diga-lhe que será posta a ferros se não for embora — respondeu o
magistrado.
— Não... pare!... — interrompeu o Coronel Dent. — Não a mande embora,
Eshton; podíamos aproveitar a coisa; é melhor consultar as damas. — E, erguendo
a voz, continuou: — Senhoras, as senhoras falaram em ir a Hay Common visitar o
acampamento cigano; Sam, aqui, diz que uma das ciganas está na sala dos criados
neste momento, e insiste em ser trazida diante da "sociedade", para dizer-lhe suas
sortes. Gostariam de vê-la?
— Sem dúvida, Coronel — exclamou Lady Ingram — o senhor não
estimularia uma impostora tão baixa? Despeça-a de vez!
— Mas não posso convencê-la a ir-se embora, minha senhora — disse o
criado. — E nenhum dos criados consegue: a Sra. Fairfax está com ela neste
momento, pedindo-lhe que se vá; mas ela se apoderou de uma cadeira no canto da
chaminé e diz que nada a moverá dali até ter permissão de vir aqui.
— Que é que ela quer? — perguntou a Sra. Eshton.
— "Dizer aos grã-finos a sorte deles", ela diz, madame; e jura que tem de
fazer isso e fará.
— Que aparência tem ela? — perguntaram as duas Srtas. Eshton, a uma só
voz.
— Uma criatura velha e pasmosamente feia, senhorita; quase tão negra quanto
um corvo.
— Ora, é uma verdadeira feiticeira! — exclamou Frederick Lynn. —
Mandemos que entre, é claro!
— Claro — disse seu irmão. — Seria uma enorme pena jogar fora uma tal
oportunidade de nos divertirmos.
— Meus caros rapazes, em que estão pensando? — exclamou a Sra. Lynn.
— Não posso tolerar uma coisa tão incoerente — queixou-se a viúva Ingram.
— De fato, mamãe, mas a senhora pode... e tolerará — declarou altiva voz de
Blanche, ao se voltar no banquinho do piano, onde até então se sentara calada,
aparentemente examinando várias partituras de músicas. — Tenho curiosidade de
ouvir dizerem a minha sorte; portanto, Sam, ordene que entre a megera.
— Minha querida Blanche; lembre-se...
— Eu me lembro... me lembro de tudo que a senhora possa sugerir; e tem de
ser como eu quero... rápido, Sam!
— Sim... sim... sim... — gritaram todos os jovens, tanto as damas quanto os
cavalheiros. — Que ela venha... será uma excelente diversão!
O criado ainda se demorava. — Ela parece uma pessoa grosseira — disse.
— Vá! — ordenou a Srta. Ingram, e o homem se foi.
A excitação se apoderou no mesmo instante de todo o grupo; uma onda de
risadas e piadas estava em franco andamento quando Sam voltou.
— Agora ela não vem — ele disse. — Disse que não é sua missão comparecer
perante o "rebanho vulgar" (foram as palavras dela). Devo deixá-la num quarto
sozinha, e então, aqueles que desejarem consultá-la devem ir a ela um a um.
— Está vendo agora, minha querida Blanche — começou Lady Ingram — ela
se aproveita. Seja sensata, meu anjo... e..
— Introduza-a na biblioteca, é claro — cortou o "anjo" — Não é minha
missão ouvi-la diante do rebanho comum tampouco: pretendo tê-la só para mim.
Há um fogo na biblioteca?
— Sim, madame, mas ela parece uma tal funileira.
— Deixe de conversa fiada, cabeça oca! E faça o que eu mandei!
Sam desapareceu novamente; e o mistério, a animação, a expectativa voltaram
a fluir a todo vapor mais uma vez.
— Ela já está pronta — disse o criado, ao reaparecer. — Quer saber quem
será o primeiro visitante.
— Creio que é melhor eu dar uma olhada nela antes de alguma das damas ir
— disse o Coronel Dent.
— Diga-lhe, Sam, que está indo um cavalheiro. Sam foi e voltou.
— Ela diz, senhor, que não aceitará nenhum cavalheiro; eles não precisam se
dar o trabalho de ir lá; e tampouco — acrescentou, suprimindo com dificuldade
um risinho silencioso — nenhuma dama, a não ser as jovens e solteiras.
— Por Júpiter, ela tem gosto! — exclamou Henry Lynn.
A Srta. Ingram ergueu-se solenemente: — Eu vou primeiro — disse, num tom
que ficaria bem num líder de um credo obstinado, invadindo uma brecha à
vanguarda de seus homens.
— Oh, meu amor, minha querida! Pare... reflita! — foi o grito de sua mamãe,
mas a moça passou por ela em imponente silêncio, atravessou a porta que o
Coronel Dent mantinha aberta, e ouvimo-la entrar na biblioteca.
Seguiu-se um relativo silêncio. Lady Ingram achou que era "le cas" de torcer
as mãos, o que fez, conseqüentemente. A Srta. Mary declarou que sentia, por sua
vez, que jamais ousaria aventurar-se. Amy e Louisa Eshton deram risinhos à
socapa, parecendo um pouco assustadas.
Os minutos passaram muito lentamente: contaram-se quinze antes que a porta
da biblioteca voltasse a abrir-se. A Srta. Ingram retornou a nós atravessando o
arco.
Ia rir? Ia tomar a coisa como uma piada? Todos os olhos a acolheram com
uma expressão de ansiosa curiosidade, e ela os enfrentou a todos com um ar de
repulsa e frieza: não parecia nem agitada nem alegre; encaminhou-se rigidamente
até seu banco e sentou-se em silêncio.
— Bem, Blanche? — disse Lorde Ingram.
— Que foi que ela disse, irmã? — perguntou Mary. — Que foi que você
achou? Como se sente? É uma verdadeira ledora de sorte? — perguntaram as
Srtas. Eshton.
— Vamos, vamos, boa gente — disse a Srta. Ingram — não me pressionem.
Realmente seus órgãos de admiração e credulidade se excitam com muita
facilidade; vocês parecem, pela importância que todos... incluindo minha boa
mãe... dão a esse assunto, acreditar absolutamente que temos uma autêntica
feiticeira na casa, em estreita aliança com o velho cavalheiro. Eu vi uma
vagabunda cigana: ela praticou vulgarmente a ciência da quiromancia e me disse
o que essa gente em geral diz. Meu capricho está satisfeito; e agora creio que o Sr.
Eshton fará bem pondo a bruxa a ferros amanhã de manhã, como ameaçou.
A Srta. Ingram pegou um livro, reclinou-se em sua poltrona, e assim se
recusou a mais conversas. Observei-a por quase meia hora: durante todo esse
tempo ela não virou uma página sequer, e seu rosto foi se tornando cada vez mais
sombrio, contrariado, e com uma expressão cada vez mais azeda de decepção.
Obviamente, não ouvira alguma coisa favorável, e pareceu-me, por seu
prolongado acesso de tristeza e taciturnidade, que ela própria, apesar de sua
professada indiferença, atribuía uma importância indevida às revelações que lhe
tinham sido feitas.
Enquanto isso, Mary Ingram, Amy e Louisa Eshton declararam que não se
atreviam a ir sozinhas; mas todas desejavam ir. Iniciou-se uma negociação através
do embaixador, Sam; e após muitas idas e vindas, que deixaram, penso, o dito
Sam com as batatas das pernas doendo com o exercício, arrancou-se finalmente,
com grande dificuldade, permissão da rigorosa sibila para que as três a visitassem
em conjunto.
A visita das três não foi tão discreta quanto a da Srta. Ingram: ouvimos
risinhos histéricos e gritinhos que vinham da biblioteca; e ao cabo de cerca de
vinte minutos, elas escancararam a porta e vieram correndo pelo saguão, como se
estivessem meio fora de seu juízo, de medo.
— Temos certeza de que não é muito correta! — gritaram, a uma voz. —
Disse-nos cada coisa! Sabe tudo a nosso respeito! — E afundaram sem fôlego nos
vários assentos que os cavalheiros se apressaram a trazer-lhes.
Pressionadas por maiores explicações, declararam que a bruxa lhe dissera
coisas que tinham dito e feito quando eram simples crianças; descrevera livros e
adornos que tinham em seu boudoir em casa; lembranças que diferentes parentes
lhes haviam presenteado. Afirmaram que ela havia inclusive adivinhado seus
pensamentos, e murmurara no ouvido de cada uma o nome da pessoa de quem
mais gostava no mundo, e informara-lhes do que mais desejavam.
Nessa altura, os cavalheiros interpuseram ávidos pedidos de maiores
esclarecimentos sobre os dois últimos pontos, mas obtiveram apenas rubores,
exclamações, tremores e risinhos, em resposta à sua importunidade. As matronas,
enquanto isso, ofereciam vinaigrettes e cediam leques; e voltaram a reiterar a
manifestação de sua preocupação pelo fato do aviso que tinham dado não ter sido
levado em conta a tempo; e os cavalheiros mais velhos riam, e os mais jovens
ofereciam seus préstimos às belas. No meio do tumulto, e enquanto eu mantinha
olhos e ouvidos inteiramente pregados na cena à minha frente, ouvi um pigarro a
meu lado. Virei-me, e vi Sam.
— Por favor, senhorita, a cigana declara que há outra jovem solteira na sala
que ainda não foi vê-la, e jura que não se irá enquanto não vir todas. Achei que
devia ser a senhorita, não há mais nenhuma. Que devo dizer a ela?
— Oh, eu irei, sem dúvida — respondi; e fiquei muito grata pela inesperada
oportunidade de satisfazer minha muito excitada curiosidade. Esgueirei-me da
sala, sem ser observada por ninguém — pois o grupo se reunia num bolo em torno
do trêmulo trio que acabara de voltar — e fechei a porta silenciosamente atrás de
mim.
— Se quiser, senhorita — disse Sam — esperarei no saguão pela senhorita; se
ela a assustar, basta gritar, que eu entro.
— Não, Sam, volte à cozinha: não tenho o menor medo. — E não tinha
mesmo; mas estava um bocado interessada e excitada.
CAPITULO 19
A BIBLIOTECA parecia bastante silenciosa quando entrei, e a sibila — se era
uma sibila — sentava-se muito aconchegada numa poltrona no canto da lareira.
Tinha um casaco vermelho e uma touca preta; ou antes, um chapéu de cigano, de
abas largas, amarrado com um lenço listrado sob o queixo. Havia uma vela
apagada sobre a mesa; ela se curvava sobre o fogo e parecia ler um livrinho negro,
semelhante a um Livro de Preces, à luz das chamas: murmurava as palavras para
si, como faz a maioria das velhas, enquanto lia; não abandonou essa atividade
imediatamente após eu entrar: parecia querer terminar um parágrafo.
Fiquei parada no tapete, aquecendo as mãos, que estavam um tanto frias por
eu ter-me sentado duranta tanto tempo longe da lareira da sala de estar. Sentia-me
agora tão composta quanto sempre estive em minha vida: nada havia realmente na
aparência da cigana para perturbar a calma de alguém. Ela fechou seu livro e
ergueu lentamente o olhar; a aba de seu chapéu cobria-lhe em parte o rosto, mas
pude ver, quando o ergueu, que era um rosto estranho. Parecia inteiramente pardo
e negro: mechas de duende eriçavam-se de debaixo de uma faixa branca, que lhe
passava pelo queixo e chegava até metade das faces, ou antes mandíbulas: os
olhos enfrentaram logo os meus, com uma mirada ousada e direta.
— Bem, a senhorita quer saber a sua sorte? — ela disse, numa voz tão
decidida quanto o olhar, tão dura quanto as feições.
— Não me importo com ela, mãe; pode fazer como quiser, mas devo avisar-
lhe que não creio.
— É típico de sua impudência dizer isso: eu esperava isso da senhorita, ouvi-o
em sua pisada quando atravessou a soleira.
— Ouviu? Tem um bom ouvido.
— Tenho; e um olho e um cérebro rápidos.
— Precisa deles em seu ofício.
— Preciso, especialmente quando tenho de lidar com clientes como a
senhorita. Por que não está tremendo?
— Não estou com frio.
— Por que não fica pálida?
— Não estou doente.
— Por que não consulta minha arte?
— Não sou tola.
A velha bruxa deu uma risada por baixo de sua touca e faixa, depois pegou
um curto cachimbo preto e, acendendo-o, começou a fumar. Tendo-se entregue
por algum tempo a esse sedativo, ergueu o corpo curvado, tirou o cachimbo da
boca e, olhando firmemente o fogo, disse com muita decisão:
— Você está com frio; você está doente; você é tola.
— Prove — retruquei.
— Provarei em poucas palavras. Está com frio porque está só: nenhum
contato acende o fogo que há em você. Está doente porque o melhor dos
sentimentos, o mais elevado e o mais doce concedido ao homem, mantém-se
longe de você. E é tola porque, por mais que sofra, não pedirá que esse sentimento
se aproxime, nem dará um passo para ir encontrá-lo onde ele o espera.
Tornou a pôr seu curto cachimbo preto na boca e recomeçou a fumar com
vigor.
— A senhora poderia dizer tudo isso a quase qualquer pessoa que soubesse
que vive como dependente solitária numa grande casa.
— Posso dizê-lo a quase qualquer um; mas seria verdade para quase qualquer
um?
— Em minhas circunstâncias.
— Sim; exatamente, em suas circunstâncias; mas encontre-me outra pessoa
colocada precisamente na sua posição.
— Seria fácil encontrar milhares.
— Você dificilmente encontraria uma. Embora não saiba, está numa situação
peculiar, muito perto da felicidade; sim, ao alcance dela. Os materiais estão todos
preparados; falta apenas um movimento para combiná-los. O acaso os pôs um
tanto separados; é só aproximá-los, e lá estará a felicidade.
— Não compreendo enigmas. Nunca consegui solucionar um quebra-cabeça
em minha vida.
— Se deseja que eu fale mais claro, mostre-me sua mão.
— E devo untá-la com prata, suponho.
— Claro.
Dei-lhe um xelim; ela o pôs num velho pé de meia que tirou do bolso e,
tendo-o amarrado e tornado a guardar, disse-me que estendesse a mão. Obedeci.
Ela aproximou o rosto da palma e estudou-a, sem tocá-la.
— É fina demais — disse. — Não posso fazer nada com uma mão dessas;
quase sem linhas; além disso, que é uma palma? O destino não está escrito aí.
— Creio na senhora — eu disse.
— Não — ela continuou. — É no rosto, na testa, em volta dos olhos e nos
próprios olhos, nas linhas da boca. Ajoelhe-se e erga a cabeça.
— Ah! Agora a senhora está chegando à realidade — eu disse, obedecendo-
lhe. — Vou terminar tendo alguma fé na senhora.
Ajoelhei-me a cerca de meia jarda dela. A bruxa atiçou o fogo, até que uma
língua de luz irrompeu do carvão agitado: o brilho no entanto, quando ela se
sentou, apenas lançava seu rosto numa sombra mais densa, enquanto iluminava o
meu.
— Eu me pergunto com quais sentimentos a senhorita veio a mim esta noite
— ela disse, depois de me examinar por algum tempo. — Pergunto-me que
pensamentos se agitavam em seu coração durante todo o tempo em que ficou
sentada na outra sala, com aquela gente bonita passando à sua frente como
sombras numa lanterna mágica, com tão pouca comunhão e simpatia entre a
senhorita e eles quanto se eles fossem realmente meras sombras de formas
humanas, e não a substância concreta.
— Sinto-me cansada muitas vezes, sonolenta às vezes, mas raramente triste.
— Então tem alguma esperança secreta a estimulá-la e a agradá-la com os
murmúrios do futuro?
— Eu, não. A maior esperança é de economizar dinheiro suficiente, dos meus
salários, para um dia pôr uma escola numa casinha alugada por mim mesma.
— Um fraco alimento para manter o espírito vivo, e sentada naquele batente
de janela (vê que conheço seus hábitos)...
— Soube deles pelos criados.
— Ah! Julga-se esperta! Bem, talvez eu tenha sabido: para falar a verdade,
conheço uma delas, a Sra. Poole...
Pus-ime de pé num salto ao ouvir esse nome. "Conhece, é?" pensei. "Existe
diabolismo neste negócio, afinal, então!"
— Não fique assustada — continuou o estranho ser. — Ela é uma pessoa
sadia, a Sra. Poole, fechada e quieta; qualquer um pode depositar confiança nela.
Mas, como estava dizendo, sentada naquele batente de janela, a senhorita pensa
apenas em sua futura escola? Não tem interesse atualmente em nenhum membro
do grupo que ocupa os sofás e cadeiras à sua frente? Não há um rosto que a
senhorita estuda? Uma figura cujos movimentos a senhorita segue pelo menos
com curiosidade?
— Gosto de observar todos os rostos, todas as figuras.
— Mas nunca distingue um do resto... ou serão dois?
— Faço-o freqüentemente; quando os gestos ou as aparências de um par
parecem contar uma história, diverte-me olhá-los.
— Que história mais gosta de ouvir?
— Oh, não tenho muita escolha! Geralmente são sobre o mesmo tema...
namoro; e prometem terminar na mesma catástrofe ... casamento.
— E a senhorita gosta desse tema monótono?
— Positivamente, não me preocupo com isso, não significa nada para mim.
— Nada para a senhorita? Quando uma dama, jovem e cheia de vida e saúde,
encantadora, bela e dotada com os dons de classe e fortuna, se senta e sorri nos
olhos de um cavalheiro, a senhorita...
— Eu o quê?
— A senhorita sabe... e talvez faça bom juízo.
— Eu não conheço os cavalheiros aqui. Mal troquei uma sílaba com um deles;
e quanto a fazer bom juízo deles, considero alguns respeitáveis, e solenes, e de
meia idade; e outros jovens, ousados, bonitos e vivazes, mas certamente todos têm
o direito de receber os sorrisos que quiserem, sem que eu me sinta disposta a
considerar a transação de qualquer importância para mim.
— Não conhece os cavalheiros aqui? Não trocou uma sílaba com um deles?
Dirá isto do dono da casa?
— Ele não está em casa.
— Uma profunda observação! Um engenhosíssimo jogo de palavras! Ele foi a
Millcote esta manhã, e estará de volta esta noite ou amanhã de manhã: será que
essa circunstância o exclui da lista de seus conhecidos... elimina-o, por assim
dizer, da existência?
— Não; mas não consigo ver o que o Sr. Rochester tem a ver com o tema que
a senhora introduziu.
— Eu falava de damas sorrindo para cavalheiros; e ultimamente tantos
sorrisos têm sido despejados sobre o Sr. Rochester, que os olhos dele transbordam
como duas taças cheias além das bordas, nunca observou isso?
— O Sr. Rochester tem o direito de desfrutar da companhia de seus
convidados.
— Não se discute esse direito; mas nunca observou que, de todas as histórias
contadas aqui sobre matrimônio, o Sr. Rochester tem sido favorecido com as mais
animadas e contínuas?
— A seriedade do um ouvinte ativa a língua do narrador. — Eu disse isso
mais para mim mesma que para a cigana, cuja estranha conversa, voz e modos me
tinham a essa altura envolvido numa espécie de sonho. De seus lábios brotavam
uma sentença inesperada após outra, até que me vi envolvida numa teia de
mistificações; e me perguntava que espíritos invisíveis haviam ficado durante
semanas junto a meu coração observando seu funcionamento e registrando cada
batida.
— A seriedade do ouvinte! — ela repetiu. — Sim; o Sr. Rochester tem ficado
horas e horas com o ouvido voltado para uns lábios fascinantes, que têm tanto
prazer em sua tarefa de comunicação; e ele estava tão disposto a receber, e parecia
tão agradecido pelo passatempo que lhe proporcionavam, notou isso?
— Agradecido? Não me lembro de ter detectado gratidão em seu rosto.
— Detectado? Analisou, então. E que detectou, se não gratidão?
Eu nada disse.
— Viu amor, não viu? E, olhando em frente, viu-o casado, e contemplou sua
noiva feliz?
— Hum! Não exatamente. Sua habilidade de feiticeira às vezes falha.
— Que diabos viu então?
— Não se preocupe, vim aqui para fazer perguntas, não para confessar. É
sabido que o Sr. Rochester vai se casar?
— Sim; e com a bela Srta. Ingram.
— Logo?
— As aparências indicariam essa conclusão; e, sem dúvida (embora, com uma
audácia que precisaria ser-lhe retirada com castigo, a senhorita pareça questioná-
lo), farão um par soberbamente feliz. Ele deve amar uma dama tão bonita, nobre,
espirituosa e dotada; e provavelmente ela o ama, ou, se não à sua pessoa, pelo
menos à sua bolsa. Sei que ela considera a propriedade dos Rochester desejável ao
máximo; embora (Deus me perdoe!) eu lhe tenha dito algo sobre isso, há cerca de
uma hora, que a fez parecer extraordinariamente grave: os cantos da boca caíram
meia polegada. Eu aconselharia seu mal avisado pretendente a ter cuidado: se
aparecer outro, com uma lista de inquilinos mais longa ou mais importante... ele
está frito...
— Mas, mãe, eu não vim saber da sorte do Sr. Rochester, vim saber da minha;
e a senhora nada me disse dela.
— Sua sorte é ainda duvidosa: quando examinei seu rosto, um traço
contradizia outro. A sorte concedeu-lhe uma medida de felicidade; disso eu sei.
Sabia antes de a senhorita vir aqui esta tarde. Ela a reservou para a senhorita. Vi-a
fazer isso. Depende da senhorita estender a mão e pegá-la, mas se o fará, é um
problema que ainda estudo. Ajoelhe-se de novo no tapete.
— Não me retenha muito; o fogo me escalda.
Ajoelhei-me. Ela não se curvou para mim, mas apenas olhou, reclinando-se na
poltrona. Começou a murmurar:
— A chama tremula em seus olhos; os olhos brilham como orvalho; parecem
suaves e cheios de sentimento; sorriem, de minha linguagem, são susceptíveis;
uma impressão se segue à outra através de suas límpidas esferas; quando deixam
de sorrir, são tristes; uma inconsciente lassidão pesa nas pálpebras; isso significa
melancolia, que resulta da solidão. Evitam-me; não tolerarão a continuação do
exame; parecem negar, com uma expressão zombeteira, a verdade das descobertas
que já fiz... repudiar a acusação de sensibilidade e sofrimento: o orgulho e reserva
deles apenas confirmam minha opinião. Os olhos são favoráveis.
"Quanto à boca, deleita-se às vezes num sorriso; dispõe-se a transmitir tudo
que o cérebro concebe; embora eu aposte que silenciaria muito do que o coração
experimenta. Móvel e flexível, jamais se destinou a comprimir-se no eterno
silêncio da solidão; é uma boca que deveria falar muito e sorrir com freqüência, e
ter afeição humana pelo interlocutor. Também essa feição é propícia.
"Não vejo inimigo a uma solução feliz, a não ser na testa; e essa testa pretende
dizer: 'Posso viver sozinha, se o respeito próprio e as circunstâncias exigirem que
o faça. Não preciso vender minha alma em troca da felicidade. Tenho um tesouro
íntimo que nasceu comigo, e que pode me manter viva se todos os prazeres
externos me forem negados, ou oferecidos apenas a um certo preço, que não
posso permitir-me pagar.' A testa declara: 'A razão está firme e mantém as rédeas,
e não deixará que os sentimentos se soltem e a precipitem em pântanos selvagens.
As paixões podem rugir furiosas, como verdadeiros infiéis, o que são; e os desejos
podem imaginar todo tipo de coisas vãs; mas o julgamento terá ainda a última
palavra em toda discussão, e o voto decisivo em toda questão. Fortes ventos,
terremotos e fogo podem passar, mas eu seguirei a orientação dessa voz tranqüila
que interpreta os ditames da consciência'."
"Bem dito, testa; sua declaração será respeitada. Tá formei meus planos... e os
julgo planos corretos... atendendo neles os' reclamos da consciência, os conselhos
da razão. Sei como a juventude cedo se desfaz, e o florescer perece, se, na taça de
felicidade oferecida, se detecta apenas um vestígio de vergonha ou um sabor de
remorso; e não quero sacrifícios, mágoas, dissolução... não é esse o meu gosto.
Quero promover, não ferir... conquistar gratidão, não arrancar lágrimas de
sangue... não, nem de sal; minha colheita deve ser de sorrisos, de carinhos, de
doces... já chega. Creio que tenho uma espécie de delírio esquisito. Gostaria agora
de estender este momento ad infinitum; mas não me atrevo. Até agora, me
controlei inteiramente. Agi como jurei intimamente que agiria; mas ir além
poderia testar-me além de minhas forças. Levante-se, Srta. Eyre; deixe-me: 'o
jogo está feito.' "
Onde estava eu? Acordada ou dormindo? Estivera sonhando? Sonhava ainda?
A voz da velha mudara; seu sotaque, seus gestos e tudo me eram familiares como
meu próprio rosto num espelho — como a fala de minha própria língua. Levantei-
me, mas não saí. Olhei; aticei o fogo e olhei de novo, mas ela cerrou mais a touca
e a faixa em torno do rosto, e mais uma vez me pediu que saísse. As chamas
iluminavam sua mão estendida; desperta agora, e alerta para quaisquer
descobertas, notei logo essa mão. Não era mais um membro murcho de duende
que a minha; era um membro pleno, esguio, com dedos lisos, simétricos; um largo
anel faiscava no dedo mínimo, e curvando-me para frente o olhei e vi uma gema
que já tinha visto centenas de vezes antes. Tornei a olhar o rosto; que não mais me
evitava — ao contrário, a touca foi removida, a faixa retirada, a cabeça avançou.
— Bem, Jane, conhece-me? — perguntou a voz familiar.
— Tire apenas o casaco vermelho, senhor, e então...
— Mas o cordão está com um nó... ajude-me.
— Quebre-o, senhor.
— Aí, sim... "Fora, seus empréstimos!" — E o Sr. Ro-chester emergiu de seus
disfarces.
— Ora, senhor, que idéia estranha!
— Mas bem executada, hem? Não acha?
— Com as damas, o senhor deve ter-se saído bem.
— Mas não com você?
— O senhor não fez o papel de uma cigana comigo.
— Que papel fiz? O meu próprio?
— Não; um papel inexplicável. Em resumo, creio que tentava me provocar;
esteve falando bobagens para me fazer falar bobagens. Não é justo, senhor.
— Perdoa-me, Jane?
— Não posso saber até ter refletido sobre tudo isso. Se, depois, achar que não
caí em nenhum grande absurdo, tentarei perdoá-lo; mas não foi direito.
— Oh, você foi muito correta... muito cautelosa, muito sensata.
Refleti e achei que, no todo, fora mesmo. Era um conforto; mas, na verdade,
estivera em guarda desde o princípio da entrevista. Desconfiava de alguma
impostura. Sabia que os ciganos e quiromantes não se expressavam como aquela
suposta velha se expressava; além disso, observara sua voz fingida, sua ansiedade
de esconder as feições. Mas minha mente estava em Grace Poole... aquele enigma
vivo, aquele mistério dos mistérios, quando pensava nela. Não pensara um minuto
sequer no Sr. Rochester.
— Bem — ele disse. — Em que está pensando? Que significa esse grave
sorriso?
— Admiração e autocongratulação, senhor. Tenho sua permissão para retirar-
me agora, suponho.
— Não; fique um momento; e diga-me o que as pessoas na sala estão fazendo.
— Discutindo a cigana, eu diria.
— Sente-se; deixe-me ouvir o que dizem sobre mim.
— É melhor eu não ficar muito tempo, senhor; devem ser quase onze horas.
Oh, o senhor sabe, Sr. Rochester, que chegou um estranho depois que o senhor
partiu esta tarde?
— Um estranho! Não; quem pode ser? Eu não esperava ninguém. Ele já se
foi?
— Não; disse que conhecia o senhor há muito tempo, e que podia tomar a
liberdade de instalar-se aqui até a sua volta.
— O diabo que podia! Disse o seu nome?
— Chama-me Mason, senhor; e vem das índias Ocidentais; de Spanish Town,
na Jamaica, creio.
O Sr. Rochester estava de pé a meu lado; tomara-me a mão, como para
conduzir-me a uma cadeira. Quando falei, deu-me um apertão convulsivo no
pulso; o sorriso em seus lábios congelou-se: aparentemente, um espasmo cortou-
lhe a respiração.
— Mason! Índias Ocidentais! — disse, num tom em que se poderia imaginar
um autômato falante enunciando palavras soltas. — Mason! Índias Ocidentais! —
repetiu; e repassou as sílabas três vezes, ficando mais branco que a cinza nos
intervalos: parecia não saber o que fazia.
— Sente-se mal, senhor? — perguntei.
— Jane, sofri um golpe... sofri um golpe, Jane! — Cambaleou.
— Oh, apóie-se em mim, senhor.
— Jane, você me ofereceu seu ombro antes; deixe-me tê-lo agora.
— Sim, senhor, sim; e meu braço.
Ele se sentou e me fez sentar a seu lado. Segurando minha mão entre as suas,
esfregou-a; olhando-me, ao mesmo tempo, com a aparência mais perturbada e
triste.
— Minha amiguinha — disse. — Eu queria estar numa ilha tranqüila apenas
com você; sem os problemas, perigos e horríveis lembranças que tenho.
— Posso ajudá-lo, senhor? Eu daria minha vida para servi-lo.
— Jane, se houver necessidade de ajuda, eu a buscarei em suas mãos;
prometo-lhe isso.
— Obrigada, senhor. Diga-me o que fazer... tentarei fazê-lo, pelo menos.
— Traga-me agora, Jane, um copo de vinho da sala de jantar; estarão ceando
agora; e diga-me se Mason está com eles, e o que está fazendo.
Eu fui. Encontrei todo o grupo na sala de jantar, ceando, como o Sr. Rochester
dissera; não estavam sentados à mesa... a ceia fora servida no aparador; cada um
pegara o que quisera, e estavam todos por ali em grupos, pratos e copos nas mãos.
Todos pareciam muito alegres; os risos e conversas eram gerais e animados. O Sr.
Mason achava-se perto da lareira, conversando com o Coronel e Sra. Dent, e
parecia tão alegre quanto os outros.
Enchi um copo de vinho (vi a Srta. Ingram olhando-me com a testa franzida
quando fiz isso: pensava que eu tomava uma liberdade, eu diria), e retornei à
biblioteca.
A extrema palidez do Sr. Rochester desaparecera, e ele parecia novamente
firme e severo. Tomou-me o copo das mãos.
— À sua saúde, espírito benévolo! — disse. Engoliu a bebida e me devolveu o
copo. — Que estão fazendo, Jane?
— Rindo e conversando, senhor.
— Não parecem sérios e misteriosos, como se tivessem sabido de alguma
coisa estranha?
— De modo nenhum, estão em meio a piadas e alegria.
— E Mason?
— Estava rindo também.
— Se toda essa gente viesse em massa e cuspisse em mim, que faria você,
Jane?
— Eu os expulsaria da sala, senhor, se pudesse.
Ele deu um meio sorriso. — Mas se eu me dirigisse a eles, e eles apenas me
olhassem friamente, e sussurrassem com desprezo entre si, e depois se fossem e
me deixassem, um a um, que faria você então? Iria com eles?
— Penso que não, senhor: eu teria mais prazer permanecendo com o senhor.
— Para confortar-me?
— Sim, senhor, para confortá-lo, o melhor que pudesse.
— E se eles a proibissem de juntar-se a mim?
— Eu provavelmente ignoraria a proibição deles; e se soubesse, não daria a
mínima para ela.
— Então enfrentaria a censura por minha causa?
— Eu a enfrentaria por qualquer amigo que merecesse minha adesão; como o
senhor, tenho certeza, merece.
— Volte agora à sala; dirija-se discretamente a Mason e sussurre em seu
ouvido que o Sr. Rochester chegou e deseja vê-lo; traga-o aqui, e depois deixe-
me.
— Sim, senhor.
Fiz o que ele mandava. O grupo todo me olhou quando passei direta entre
eles. Procurei o Sr. Mason, dei o recado e conduzi-o para fora da sala, introduzi-o
na biblioteca, e depois fui lá para cima.
Tarde da noite, depois de já estar na cama havia algum tempo, ouvi os
visitantes voltarem a seus quartos; distingui a voz do Sr. Rochester, e ouvi-o
dizer:
— Por aqui, Mason; este é o seu quarto.
Falava animadamente; o tom alegre pôs meu coração à vontade. Logo
adormeci.
CAPITULO 20
ESQUECI de fechar a cortina, o que geralmente fazia, e também de baixar o
estore da janela. Em conseqüência disso, quando a lua, cheia e brilhante (pois era
uma bela noite), chegou em seu curso ao espaço diante de minha janela, e me
olhou através das vidraças desprotegidas, sua gloriosa mirada me acordou.
Despertada no silêncio da noite, abri os olhos para o seu disco — de um branco de
prata e límpido como cristal. Era lindo, mas muito solene; ergui-me a meio e
estendi o braço para puxar a cortina.
Deus do céu! Que grito!
A noite — seu silêncio, seu repouso — foi rasgada em duas por um som
bárbaro, agudo, estridente, que ressoou de uma ponta a outra de Thornfield Hall.
Meu coração parou, ficou quieto; meu braço estendido quedou-se paralisado.
O grito morreu, e não se renovou. Na verdade, qualquer que fosse o ser que
tivesse dado aquele terrível berro, não poderia tão cedo repeti-lo; nem o maior
condor dos Andes poderia dar duas vezes um grito daquele, dentro do envoltório
de nuvens em torno de seu ninho. A coisa que fizera tal barulho teria de descansar
antes de poder repetir o esforço.
Viera do terceiro andar; pois passara acima de mim. E acima — sim, no
quarto bem em cima do teto do meu — ouvi então ruídos de luta, uma luta mortal,
a julgar pelo barulho; e uma Voz meio abafada gritou:
— Socorro! Socorro! Socorro! — três vezes, rapidamente.
— Não virá ninguém? — tornou a gritar; e então, enquanto prosseguiam
selvagemente os cambaleios e as patadas, distingui, do outro lado das tábuas e do
reboco:
— Rochester! Rochester! Pelo amor de Deus, venha!
Uma porta de quarto abriu-se; alguém correu, ou se precipitou, ao longo da
galeria. Outra pisada ressoou no assoalho acima, e alguma coisa caiu; depois, fez-
se silêncio.
Eu pusera algumas roupas, embora o horror me sacudisse todos os membros;
saí de meu quarto. Os que dormiam estavam todos despertos: exclamações,
murmúrios aterrorizados ressoavam em todos os quartos; abria-se uma porta após
outra; rostos emergiam; a galeria encheu-se de gente. Cavalheiros e damas haviam
deixado igualmente suas camas; e de todos os lados perguntava-se confusamente:
"Oh! que é isso?" — "Quem está ferido?" — "Que aconteceu?" — "Tragam uma
luz!" — "É incêndio?" — "São ladrões?" — "Para onde vamos correr?" Não fosse
a luz da lua, estariam todos em total escuridão. Corriam de um lado para outro;
amontoavam-se; alguns soluçavam, outros tropeçavam, a confusão era
inextricável.
— Onde diabos está Rochester? — gritou o Coronel Dent. — Não consigo
encontrá-lo em seu quarto.
— Aqui! Aqui! — gritou alguém em resposta. — Fiquem calmos todos; já
estou indo.
E a porta no fim da galeria se abriu, e o Sr. Rochester adiantou-se com uma
vela: acabava de descer do andar de cima. Uma das damas correu diretamente
para ele; tomou-lhe o braço: era a Srta. Ingram.
— Que horrível acontecimento foi esse? — ela disse. — Fale. Conte-nos logo
o pior!
— Mas não me puxem para baixo nem me estrangulem — ele respondeu; pois
as Srtas. Eshton se penduravam dele agora, e as duas viúvas, em imensas
camisolas brancas, caíam sobre ele como navios a plena vela.
— Está tudo bem! Está tudo bem! — ele gritou. — É um simples ensaio de
Muito Barulho Por Nada. Senhoras afastem-se, ou me tornarei perigoso.
E parecia perigoso mesmo: os olhos negros soltavam faíscas. Acalmando-se
com visível esforço, acrescentou:
— Uma criada teve um pesadelo, só isso. É uma pessoa excitável, nervosa;
tomou o sonho por uma aparição, ou alguma coisa desse tipo, sem dúvida; e teve
um ataque de pavor. Agora, vamos, devo conduzi-los todos de volta a seus
quartos; pois não se pode cuidar dela enquanto a casa não estiver em paz.
Cavalheiros, tenham a bondade de dar exemplo às damas. Srta. Ingram, estou
certo de que não deixará de demonstrar superioridade em relação a terrores
ociosos. Amy e Louisa, voltem a seus ninhos como um par de pombas, que vocês
são. Mesdames (às viúvas), as senhoras certamente apanharão um resfriado, se
permanecerem nesta gélida galeria por mais tempo.
E assim, alternando pedidos e ordens, conseguiu pô-los todos novamente
isolados em seus distintos dormitórios. Não esperei a ordem para voltar ao meu,
mas me retirei sem ser notada, como sem ser notada o deixara.
Não, porém, para ir para a cama: ao contrário, comecei a me vestir
cuidadosamente. Os sons que ouvira após o grito, e as palavras que haviam sido
ditas, só tinham sido ouvidas, provavelmente, por mim; pois vieram do quarto
acima do meu, mas me convenceram de que não fora o sonho de uma criada que
espalhara daquela forma o terror pela casa; e que a explicação dada pelo Sr.
Rochester era apenas uma invenção destinada a apaziguar seus hóspedes. Depois
de vestir-me, fiquei um longo tempo sentada junto à janela, olhando além dos
silenciosos jardins e campos prateados, e esperando não sabia o quê. Parecia-me
que alguma coisa se devia seguir aos estranhos grito, luta e apelo.
Não, voltou a quietude; cessaram aos poucos todos os murmúrios e
movimentos, e dentro de uma hora Thornfield Hall estava de novo tão silenciosa
quanto um deserto. Parecia que a noite e o sono haviam reconquistado seu
império. Enquanto isso, a lua baixava, estava para se pôr. Não gostando nada de
ficar sentada no frio e nas trevas, pensei em me deitar na cama, vestida como
estava. Afastei-me da janela e atravessei com pouco barulho e tapete; quando me
abaixei para tirar os sapatos, uma rrtão cautelosa bateu baixinho na porta.
— Precisam de mim? — perguntei.
— Está de pé? — perguntou a voz que eu esperava ouvir, isto é, a de meu
amo.
— Sim, senhor.
— E vestida?
— Sim.
— Saia então, sem fazer barulho.
Obedeci. O Sr. Rochester estava na galeria, segurando uma vela.
— Preciso de você — disse. — Venha por aqui, devagar, e não faça barulho.
Meus chinelos eram finos, eu podia andar pelo assoalho atapetado tão
silenciosamente quanto um gato. Ele deslizou pela galeria e escada acima, e parou
no corredor escuro e baixo do fatídico terceiro andar: eu o tinha seguido e estava a
seu lado.
— Tem uma esponja em seu quarto? — ele perguntou num sussurro.
— Sim, senhor.
— E sais... sais voláteis?
— Sim.
— Volte e traga-os.
Voltei, procurei a esponja no suporte da bacia, os sais em minha gaveta, e
mais uma vez refiz meus passos. Ele ainda esperava; tinha uma chave na mão:
aproximando-se de uma das portas pequenas, negras, colocou-a na fechadura; fez
uma pausa, e falou-me de novo.
— Você não fica nauseada à vista de sangue?
— Creio que não ficarei, senhor: nunca passei por isso antes.
Senti uma certa emoção ao responder-lhe; mas nenhum calafrio, e nenhuma
vertigem.
— Dê-me sua mão — ele disse. — Não adianta arriscar um desmaio.
Pus meus dedos entre os dele. — Quentes e firmes — foi a sua observação;
girou a chave e abriu a porta.
Vi um quarto que me lembrava de ter visto antes, no dia em que a Sra. Fairfax
me mostrara a casa toda: estava guarnecido com tapeçarias; mas a tapeçaria fora
dobrada de um lado, e via-se uma porta, que da outra vez estivera escondida. Essa
porta estava aberta; do quarto além vinha uma luz, ouvi saindo dali um som
rosnante, abocanhante, quase como de um cachorro brigando. O Sr. Rochester,
depositando sua vela, disse-me:
— Espere um minuto.
E adiantou-se para o quarto interno. Uma sonora risada acolheu sua entrada;
ruidosa a princípio, e terminando no ha! ha! de gobelino de Grace Poole. Então
ela estava lá. Ele fez algum tipo de arranjo, sem falar, embora eu tenha ouvido
uma voz baixa dizer-lhe alguma coisa, depois saiu e fechou a porta atrás de si.
— Aqui, Jane! — disse; e eu fui para o outro lado da grande cama, que, com
as cortinas corridas, ocultava uma considerável parte do quarto. Havia uma
poltrona junto à cabeceira da cama, um homem sentava-se nela, vestido, mas sem
o paletó; estava quieto, a cabeça pendida para trás, os olhos fechados. O Sr.
Rochester segurou a vela acima dele; reconheci no rosto pálido e aparentemente
sem vida — o estranho, Mason; vi também que sua camisa branca tinha um lado e
um braço quase encharcados de sangue.
— Segure a vela — disse o Sr. Rochester, e eu a peguei; ele apanhou uma
bacia de água no suporte. — Segure isso — disse. Obedeci. Ele pegou a esponja,
mergulhou-a na água e umedeceu o rosto cadavérico; pediu o frasco de sais, e
aplicou-o às narinas do homem. O Sr. Mason em breve abriu os olhos; gemeu. O
Sr. Rochester abriu a camisa do ferido, cujo braço e ombro estavam enfaixados,
limpou o sangue, que escorria com muita rapidez.
— Há perigo imediato? — perguntou o Sr. Mason.
— Bah! Não... um simples arranhão. Não fique tão abatido, homem, agüente!
Eu mesmo vou buscar o médico para você agora: poderá ser removido pela
manhã, espero. Jane — continuou.
— Senhor?
— Vou ter de deixá-la neste quarto com este cavalheiro, por uma hora, talvez
duas: você limpará o sangue como eu faço quando voltar a sangrar, se ele se sentir
fraco, ponha o copo d"água naquele suporte nos lábios dele, e os sais no nariz.
Não fale com ele sob nenhum pretexto... e... Richard, você correrá perigo de vida
se falar com ela: abra os lábios... faça qualquer esforço... e não responderei pelas
conseqüências.
O pobre homem gemeu novamente; parecia não se atrever a fazer um
movimento; aparentemente, o temor, da morte ou de qualquer outra coisa, quase o
paralisava. O Sr. Rochester pôs a esponja agora sanguinolenta em minhas mãos, e
comecei a usá-la como ele fizera.
Ele me observou por um segundo, e depois, dizendo "Lembrem-se, nada de
conversas", deixou o quarto.
Assim, lá estava eu, no terceiro andar, presa em uma de suas místicas celas; a
noite me cercava; tinha sob os olhos um pálido e sangrento espetáculo; e uma
única porta mal me separava de uma assassina; sim — isso é que era apavorante
— o resto eu podia suportar; mas tremia à idéia de Grace Poole caindo sobre mim.
Mas tinha de manter-me em meu posto. Tinha de olhar aquele rosto espectral
— aqueles lábios azulados e quietos, proibidos de abrirem-se — aqueles olhos ora
fechados, ora abertos, ora vagando pelo quarto, ora fixando-se em mim, e sempre
vidrados com o embaçamento do horror. Tinha de mergulhar a mão a todo
momento na bacia de sangue e água, e limpar a ferida gotejante. Tinha de ver a
luz da vela não espevitada diminuir sobre minha atividade; as sombras se
adensarem na tapeçaria antiga à minha volta, tornarem-se negras sob as cortinas
da imensa cama, e tremerem estranhamente sobre as portas de um grande armário
defronte — cuja frente, dividida em doze painéis, mostrava em sombrio desenho,
as cabeças dos doze apóstolos, cada um dentro de um painel diferente, como
numa moldura; enquanto acima deles, no topo, erguia-se um crucifixo de ébano e
um Cristo agonizante.
Segundo a obscuridade cambiante e a luz trêmula batessem aqui ou ali, uma
hora era o médico barbudo, Lucas, que curvava a testa; outra hora os longos
cabelos de São João que ondeavam; outra ainda a demoníaca face de Judas, que se
projetava do painel e parecia adquirir vida e ameaçar uma revelação do arqui-
traidor — do próprio Satã — sob a forma de seu subordinado.
Em meio a tudo isso, eu tinha também de ouvir, além de vigiar; ficar à escuta
de movimentos da besta selvagem ou demônio no antro ao lado. Mas após a visita
do Sr. Rochester ela parecia enfeitiçada, durante toda a noite ouvi apenas três
sons, em três longos intervalos — um rangido agudo, um momentâneo reinicio do
rosnado canino, e um profundo gemido humano.
Depois, meus próprios pensamentos me preocupavam. Que crime era aquele,
que vivia encarnado naquela mansão isolada, e não podia ser nem expulso nem
dominado pelo proprietário? Que mistério, que irrompia ora em fogo, ora em
sangue, nas mais mortas horas da noite? Que criatura era aquela, que, disfarçada
com o rosto e a forma de uma mulher comum, emitia a voz ora de um demônio
zombeteiro, ora de uma ave de rapina em busca de carniça?
E aquele homem sobre o qual me curvava — aquele estranho comum,
tranqüilo — como se envolvera naquela teia de horror? E por que a fúria se
lançara sobre ele? Que o fizera buscar aquela parte da casa a uma hora tão
imprópria, quando devia estar dormindo em sua cama? Eu ouvira o Sr. Rochester,
designar-lhe um aposento embaixo — que o trouxera até ali? E por que, agora,
estava tão manso sob a violência da traição que lhe fora feita? Por que se
submetia tão quietamente à ocultação que o Sr. Rochester forçava? Por que o Sr.
Rochester forçava aquela ocultação? Seus hóspedes tinham sido ofendidos, havia-
se tramado pavorosamente contra sua própria vida numa ocasião anterior; e a
ambas as tentativas ele as envolvera em segredo e as afundara no esquecimento!
Por último, eu via que o Sr. Mason se submetia ao Sr. Rochester; que a impetuosa
vontade deste último tinha completo domínio sobre a inércia do primeiro: as
poucas palavras trocadas entre eles me haviam mostrado isso. Era evidente que,
no relacionamento anterior deles, a passiva disposição de um fora habitualmente
influenciada pela ativa energia do outro; de onde, então, surgira a consternação do
Sr. Rochester quando soubera da chegada do Sr. Mason? Por que o simples nome
daquele indivíduo sem resistência — ao qual sua palavra agora bastava para
controlar como uma criança — caíra sobre ele, havia umas poucas horas, como
um raio sobre um carvalho?
Oh! Eu não podia esquecer sua aparência e suas frases quando murmurara:
"Jane, sofri um golpe... sofri um golpe, Jane."
Não podia esquecer como tremera o braço que ele apoiava em meu ombro; e
não podia ser pouca coisa o que assim dobrava o espírito decidido e a vigorosa
estrutura de Fairfax Rochester.
"Quando virá ele? Quando virá ele?" eu gritava intimamente, à medida que a
noite se arrastava — à medida que meu paciente sangrante se abatia, gemia,
piorava, e nem o dia nem mais ar chegavam. Repetidas vezes, eu levara a água até
os pálidos lábios do Sr. Mason; repetidas vezes oferecera-lhe os sais estimulantes:
meus esforços pareciam ineficazes, o sofrimento, físico ou mental, ou a perda de
sangue, ou todas as três coisas juntas, esvaíam rapidamente suas forças. Ele gemia
tanto, e parecia tão fraco, desvairado e perdido, que eu temia que estivesse
agonizante; e nem sequer podia falar-lhe.
A vela, consumida afinal, apagou-se; enquanto expirava, percebi estrias de luz
cinza em torno das cortinas da janela: a madrugada aproximava-se então. Afinal
ouvi Pilot latir bem lá embaixo, de seu distante canil no pátio: renasceu a
esperança. E não sem razão: em cinco minutos mais, a chave rangente, a
fechadura que cedia avisaram-me que a vigília acabara. Não podia ter durado
mais de duas horas, mas muitas semanas me pareceram mais curtas.
O Sr. Rochester entrou, e com ele o médico que fora buscar.
— Agora, Carter, fique alerta — ele disse ao outro. — Dou-lhe apenas uma
hora e meia para pensar o ferimento, enfaixar, fazer descer o paciente e tudo.
— Mas ele está em condições de mover-se, senhor?
— Não há dúvida quanto a isso; não é nada sério; ele está nervoso, deve ser
animado. Vamos, ao trabalho.
O Sr. Rochester puxou a grossa cortina, suspendeu o estore de linho cru,
deixou entrar toda a luz que podia; e fiquei surpresa e alegre ao ver como a
madrugada já avançava, que estrias róseas começavam a clarear o leste. Depois,
ele se aproximou de Mason, de quem o médico já tratava.
— Agora, meu bom camarada, como está você? — perguntou.
— Ela me liquidou — foi a débil resposta.
— De modo nenhum! Coragem! Daqui a quinze dias você dificilmente estará
pior por isso; perdeu um pouco de sangue; é só. Carter, assegure-lhe que não há
perigo.
— Posso fazer isso em sã consciência — disse Carter, que desfizera as
bandagens. — Gostaria apenas de ter chegado aqui mais cedo: ele não teria
sangrado tanto. Mas que é isso? A carne, no ombro, está despedaçada, além de
cortada. Esta ferida não foi feita com uma faca, houve dentes aqui.
— Ela me mordeu — ele murmurou. — Atacou-me como um tigre, quando
Rochester lhe tirou a faca.
— Você não devia ter cedido; devia ter-se agarrado com ela de vez — disse o
Sr. Rochester.
— Mas, nas circunstâncias, que se podia fazer? — respondeu Mason. — Oh,
foi pavoroso! — acrescentou, estremecendo. — E eu não esperava: ela parecia tão
calma, a princípio.
— Eu lhe avisei — foi a resposta de seu amigo. — Eu disse: fique em guarda,
quando se aproximar dela. Além disso, devia ter esperado até o dia seguinte, e vir
comigo: foi simples loucura tentar a entrevista esta noite, e sozinho.
— Pensei que podia fazer algum bem.
— Pensou! Pensou! Sim, ouvir você me deixa impaciente, mas você sofreu, e
é provável que sofra bastante ainda, por não aceitar meu conselho; assim, não
digo mais nada. Carter... depressa! Depressa! O sol logo nascerá, e tenho de tirá-
lo daqui.
— É já, senhor; acabei de enfaixar o ombro. Preciso olhar esse outro
ferimento no braço, ela enfiou os dentes aqui também, creio.
— Ela sugou o sangue, disse que drenaria meu coração — disse Mason.
Vi o Sr. Rochester estremecer: uma expressão singularmente acentuada de
repugnância, horror, ódio contorceu-lhe o rosto, quase distorcendo-o; mas ele
apenas disse:
— Vamos, fique calado, Richard, e não se importe com a tagarelice dela; não
a repita.
— Eu queria poder esquecê-la — foi a resposta.
— Esquecerá, quando deixar o país; quando voltar a Spanish Town, pode
pensar nela como morta e enterrada... ou antes, não precisa pensar nela de modo
nenhum.
— Impossível esquecer esta noite!
— Não é impossível: tenha um pouco de energia, homem. Você achava que
estava morto como um arenque há duas horas, e está vivo e falando agora. Pronto!
Carter acabou, ou quase; vou deixá-lo decente num piscar de olhos. Jane (voltou-
se para mim, pela primeira vez, desde sua reentrada), pegue esta chave, desça até
o meu quarto e vá direto a meu quarto de vestir; abra a gaveta de cima do guarda-
roupa e pegue uma camisa limpa e uma echarpe; traga-os aqui; e seja rápida.
Eu fui; procurei o repositório que ele mencionara, encontrei os artigos
indicados e voltei com eles.
— Agora — ele disse — vá para o outro lado da cama enquanto ajeito a
toalete dele; mas não saia do quarto, pode ser necessária de novo.
Fiz o que ele mandava.
— Tinha alguém se mexendo lá embaixo quando você desceu, Jane? —
inquiriu o Sr. Rochester depois de algum tempo.
— Não, senhor; estava tudo muito quieto.
— Vamos tirar você daqui com todo cuidado, Dick; e será melhor, tanto por
você quanto pela pobre criatura aí ao lado. Esforço-me há muito tempo para evitar
que a descubram, e não gostaria que isso acontecesse afinal. Aqui, Carter, ajude-o
com seu colete. Onde deixou a sua capa de peles? Não pode viajar uma milha sem
ela, eu sei, neste maldito clima frio. Em seu quarto? Jane, corra até o quarto do Sr.
Mason... o quarto junto ao meu... e pegue uma capa que encontrará lá.
Tornei a correr, e a voltar, trazendo uma imensa manta forrada e debruada de
peles.
— Agora, tenho outra missão para você — disse meu incansável amo. —
Você deve sair do quarto de novo. Que felicidade você estar calçada com veludo,
Jane! Uma mensageira batendo os tamancos por aí nunca serviria nessa
conjuntura. Deve abrir a gaveta do meio de minha mesa de toalete e pegar um
frasquinho e um pequeno copo que encontrará lá... rápido!
Voei para lá e voltei, trazendo os vasos desejados.
— Muito bem! Agora, doutor, tomarei a liberdade de ministrar eu mesmo uma
dose, sob minha própria responsabilidade. Consegui este cordial em Roma, de um
charlatão italiano...
um sujeito que você teria afastado a pontapés, Carter. Não é coisa para ser
usada indiscriminadamente, mas em certas ocasiões é boa; como agora, por
exemplo. Jane, um pouco d'água. Estendeu o minúsculo copo, e eu o enchi até a
metade com a garrafa de água que estava no lavatório.
— Assim está bom, agora umedeça a boca do vidrinho. Eu o fiz; ele contou
doze gotas de um líquido rubro e o ofereceu ao Sr. Mason.
— Beba, Richard, isto lhe dará a coragem que lhe falta, por uma hora, mais ou
menos.
— Mas vai me fazer mal... é inflamatório?
— Beba! Beba! Beba!
O Sr. Mason obedeceu, porque, evidentemente, era inútil resistir. Estava
vestido agora, ainda parecia pálido, mas não estava mais sangrando e sujo. O Sr.
Rochester deixou-o ficar sentado por três minutos, após haver engolido o líquido;
depois, pegou-o pelo braço.
— Agora estou certo de que pode ficar em pé — disse. — Tente.
O paciente levantou-se.
— Carter, pegue-o por baixo do outro ombro. Ânimo, Richard; ande... isso!
— Sinto-me melhor — observou o Sr. Mason.
— Estou certo que sim. Agora, Jane, vá à nossa frente até a escada dos
fundos; desaferrolhe a porta da passagem lateral e diga ao cocheiro da charrete
que encontrará no pátio... ou logo adiante, pois eu lhe disse que não andasse com
aquelas rodas barulhentas por sobre o pavimento... diga-lhe que esteja pronto;
estamos indo: e, Jane, se houver alguém por aí, volte ao pé da escada e pigarreie.
Já eram cinco e meia, e o sol estava a ponto de surgir; mas encontrei a cozinha
ainda às escuras e silenciosa. A porta da passagem lateral estava fechada; abri-a
com o mínimo barulho possível; todo o pátio estava quieto; mas os portões se
abriam, e havia uma charrete, com os cavalos prontos e o cocheiro sentado na
boléia, parada lá fora. Aproximei-me do homem e disse-lhe que os cavalheiros
estavam vindo; ele acenou com a cabeça; depois, olhei cuidadosamente em volta e
fiquei à escuta. A quietude da manhã cedo dormitava por toda parte; as cortinas
ainda estavam fechadas nos quartos dos criados; passarinhos trinavam nas árvores
do pomar cobertos de flores, cujos galhos pendiam como guirlandas brancas sobre
o muro que cercava um lado do pátio; os cavalos da carruagem pateavam de vez
em quando em seus estábulos fechados. Tudo mais estava quieto.
Os cavalheiros apareceram então. Mason, apoiado pelo Sr. Rochester e o
médico, parecia andar com tolerável facilidade: eles o ajudaram a subir à charrete;
Carter acompanhou-o.
— Cuide dele — disse o Sr. Rochester ao último — e mantenha-o em sua casa
até ficar inteiramente bom; irei lá dentro de um ou dois dias, para ver como ele
vai indo. Richard, como está?
— O ar fresco me reanima, Fairfax.
— Deixe a janela aberta deste lado, Carter; não há vento. Adeus, Dick.
— Fairfax...
— Bem, que é?
— Que se cuide dela; que seja tratada tão carinhosamente quanto possível;
que... — Parou e explodiu em soluções.
— Farei o melhor que puder; é o que tenho feito e continuarei fazendo — foi
a resposta: ele fechou a porta da carruagem, e o veículo se afastou.
— Contudo, quisera Deus que houvesse um fim para tudo isso! —
acrescentou o Sr. Rochester, ao fechar e trancar os pesados portões do pátio.
Feito isso, encaminhou-se com passo pesado e ar absorto em direção à porta
no muro que cercava o pomar. Eu, supondo que ele não precisava mais de mim,
me dispunha a voltar à casa; novamente, porém, ouvi-o chamar "Jane!" Abrira a
porta e estava parado nela, à minha espera.
— Venha para onde há um certo frescor, por alguns minutos — ele disse. —
Esta casa é uma masmorra; você não acha?
— Parece-me uma esplêndida mansão, senhor.
— O deslumbramento da inexperiência cobre seus olhos — ele respondeu. —
E você a vê através de um meio mágico; não pode discernir que o dourado é limo,
e as cortinas de seda teias de aranha; que o mármore é sórdida ardósia, e as
madeiras envernizadas simples cavacos do lixo e cascas escamadas de árvores.
Agora, aqui (indicou o cercado cheio de folhagem onde entráramos), tudo é real,
doce e puro.
Desviou-se por um sendeiro bordejado de macieiras, pereiras e amoreiras de
um lado, e de um canteiro do outro, cheio de toda espécie de flores antigas,
troncos, cravinas-dos-poetas, prímulas, amores-perfeitos, misturadas com flores
do sul, rosas amarelas e várias ervas fragrantes. Estavam tão frescas agora quanto
podia torná-las uma sucessão de chuvas e dias de sol de abril, seguida de uma
adorável manhã de primavera: o sol entrava no salpicado leste, e sua luz banhava
as floridas e orvalhadas plantas do pomar, e brilhava nos tranqüilos sendeiros
embaixo delas.
— Jane, quer uma flor?
Colheu uma rosa semi-aberta, a primeira do canteiro, e me ofereceu.
— Obrigada, senhor.
— Gosta deste amanhecer, Jane? Este céu, com suas nuvens altas e leves, que
certamente se dissolverão à medida que o dia esquente; esta atmosfera plácida e
cheirosa?
— Gosto muito.
— Passou uma noite estranha, Jane.
— Sim, senhor.
— E isso a deixou pálida... ficou com medo, quando a deixei sozinha com
Mason?
— Tive medo de que alguém saísse do quarto interno.
— Mas eu tinha trancado a porta... estava com a chave em meu bolso, seria
um pastor descuidado se deixasse uma ovelha... minha ovelha de estimação...
assim tão perto do covil de um lobo, desprotegida: você estava em segurança.
— Grace Poole vai continuar vivendo aqui, senhor?
— Oh, sim! Não perturbe sua cabeça com ela... afaste isso de seus
pensamentos.
— Mas me parece que sua vida não está em segurança, com ela por aí.
— Não tema... cuidarei de mim.
— Já passou o perigo que o senhor temia na noite passada?
— Não posso garantir isso enquanto Mason não estivei fora da Inglaterra: e
nem mesmo então. Viver, para mim, Jane, é ficar em cima de uma crosta de
cratera que pode rachar e cuspir fogo a qualquer dia.
— Mas o Sr. Mason me parece um homem facilmente manejável. Sua
influência, senhor, é evidentemente poderosa sobre ele: jamais o contestará ou
magoará deliberadamente.
— Oh, não! Mason não me desafiará; nem, deliberadamente, me fará mal...
mas, sem intenção, poderia num momento, com uma palavra descuidada, privar-
me, se não da vida, pelo menos da felicidade, e para sempre.
— Diga-lhe que tenha cuidado, senhor, informe-lhe o que o senhor teme, e
mostre-lhe como evitar o perigo.
Ele riu sardonicamente, tomou minha mão com um gesto rápido, e com um
gesto rápido a largou.
— Se eu pudesse fazer isso, sua tola, onde estaria o perigo? Aniquilado num
instante. Desde que conheço Mason, só tenho precisado dizer-lhe: "Faça isso", e a
coisa é feita. Mas não posso dar-lhe ordens neste caso, não posso dizer: "Cuidado
para não me ferir, Richard"; pois é imperativo que o mantenha na ignorância de
que pode machucar-me. Agora você parece intrigada; e a deixarei mais intrigada
ainda. Você é minha amiguinha, não é?
— Gosto de servi-lo, senhor, e de obedecer-lhe em tudo que seja correto.
— Precisamente: vejo que o faz. Vejo genuína satisfação em seu porte e
expressão, em seus olhos e seu rosto, quando me ajuda e me agrada... trabalhando
para mim, e comigo, em, como você diz caracteristicamente, "tudo que seja
correto", pois se eu lhe mandar fazer algo que você considere errado, não haveria
corridas lépidas, alegria nem olhares vivazes e cores animadas. Minha amiga se
viraria para mim, tranqüila e pálida, e diria: "Não, senhor; isso é impossível, não
posso fazê-lo, porque é errado"; e se tornaria imutável como uma estrela fixa.
Bem, você também tem poder sobre mim, e pode magoar-me: contudo, não ouso
dizer-lhe onde sou vulnerável, para que, apesar de fiel e amiga como é, não me
trespasse de uma vez.
— Se o senhor não tem mais medo do Sr. Mason do que de mim, então está
em muita segurança.
— Deus queira que assim seja! Aqui, Jane, está um cara-manchão; sente-se.
O caramanchão era um arco na parede, coberto de hera; continha um rústico
assento. O Sr. Rochester ocupou-o, deixando no entanto espaço para mim, mas
fiquei de pé à sua frente.
— Sente — ele disse. — O banco é suficientemente comprido para dois. Você
não hesita em sentar-se junto a mim, hesita? Isso é errado, Jane?
Respondi sentando-me: senti que recusar seria pouco sábio.
— Agora, minha amiguinha, enquanto o sol bebe o orvalho, enquanto todas as
flores neste jardim velho se abrem e expandem, e os pássaros trazem o desjejum
de seus filhos do milharal, e as primeiras abelhas fazem seu primeiro turno de
trabalho, eu lhe porei uma questão, que você deve tentar supor ser sua: mas
primeiro, olhe para mim e me diga se está à vontade, e não teme que eu erre
detendo-a, ou que você erre ficando.
— Não, senhor, estou satisfeita.
— Bem, então, Jane, recorra à sua imaginação: suponha que não fosse mais
uma moça bem-educada e disciplinada, mas um rapaz aloucado e mimado desde a
infância; imagine-se numa distante terra estrangeira; conceba que ali tenha
cometido um erro capital, não importa de que tipo ou por quais motivos, mas um
erro cujas conseqüências devem acompanhá-lo por toda a vida e empanar toda a
sua existência. Veja que não digo um crime; não estou falando em derramar
sangue ou qualquer ato de culpa, que pudesse tornar o perpetrador conduzível à
lei: a palavra que uso é erro. Os resultados do que você fez se tornam com o
tempo extremamente insuportáveis, você toma medidas para conseguir alívio;
medidas incomuns, mas não ilegais nem culpáveis. Mas continua infeliz; pois a
esperança a deixou nos próprios confins da vida; seu sol, ao meio-dia, escurece-se
num eclipse, que você sente que não o deixará até a hora do poente. Associações
amargas e baixas tornaram-se o único alimento de sua memória; você vagueia de
um lado para outro, buscando repouso rio exílio; felicidade no prazer... quero
dizer, no prazer bruto, sensual... que embota o intelecto e fere os sentimentos.
Com o coração cansado e a alma murcha, você volta para casa após anos de
banimento voluntário; faz um novo conhecimento... como ou onde, não importa;
encontra nessa pessoa estranha muitas das boas e brilhantes qualidades que vem
buscando há vinte anos e jamais encontrou antes; e são todas novas, saudáveis,
sem mácula. Uma companhia dessas revive, regenera; você sente que dias
melhores voltaram... desejos mais elevados, sentimentos mais puros; deseja
recomeçar sua vida, e passar os dias que lhe restam de uma maneira mais digna de
um ser imortal. Para atingir essa meta, estará justificada em saltar um obstáculo
dos costumes... um simples impedimento convencional que nem sua consciência
santifica nem seu julgamento aprova?
Parou, à espera de uma resposta: que podia eu dizer? Oh, se algum espírito
benévolo me sugerisse uma resposta judiciosa e satisfatória! Vã aspiração! O
vento oeste sussurrava na hera à minha volta; mas nenhum gentil Ariel
emprestava seu fôlego como um meio de fala; os pássaros cantavam no topo das
árvores; mas a canção deles, por mais doce que fosse, não deixava de ser
incompreensível.
O Sr. Rochester propôs novamente sua questão: — Estará o homem errante e
pecaminoso, mas agora em busca de repouso e arrependido, justificado em
enfrentar a opinião do mundo, a fim de ligar a ele para sempre essa gentil,
graciosa e jovial estranha, assegurando com isso sua paz de espírito e a
regeneração de sua vida?
— Senhor — respondi — o repouso de um errante ou a reforma de um
pecador não devem jamais depender de uma criatura-irmã. Homens e mulheres
morrem; os filósofos falham em sabedoria, e os cristãos em bondade: se alguém
que o senhor conhece sofreu e errou, que olhe mais alto que a seus iguais, em
busca de força para consertar e alívio para curar.
— Mas o instrumento! O instrumento! Deus, que faz a obra, ordena o
instrumento. Eu próprio... digo-lhe sem parábolas... tenho sido um homem
mundano, dissipado, inquieto; c acredito que encontrei o instrumento para minha
cura em...
Parou; os pássaros continuavam cantando, as folhas farfalhando levemente.
Eu quase me admirava de eles não pararem suas músicas e sussurros, para captar
a revelação iminente; mas
teriam tido de esperar muitos minutos — tanto se prolongou o silêncio.
Afinal, ergui o olhar para o atrasado orador; ele me olhava ansiosamente.
— Amiguinha — disse, num tom inteiramente mudado, enquanto seu rosto
também mudava, perdendo toda a suavidade e gravidade, e tornando-se duro e
sarcástico — você notou minha terna queda pela Srta. Ingram: não acha que se a
desposasse ela me regeneraria com alguma vingança?
Levantou-se no mesmo instante, foi até o fim do sendeiro, e quando voltou
trauteava uma melodia.
— Jane, Jane — disse, parando à minha frente —, você está muito pálida,
com suas vigílias; não me maldiz por perturbar seu repouso?
— Maldizê-lo? Não, senhor.
— Apertemos as mãos, em confirmação da palavra. Que dedos frios! Estavam
mais quentes na noite passada, quando os toquei na porta do misterioso quarto.
Jane, quando fará vigília comigo de novo?
— Sempre que possa ser útil, senhor.
— Por exemplo, na noite anterior a meu casamento tenho certeza de que não
poderei dormir. Promete ficar acordada comigo e me fazer companhia? A você eu
posso falar de minha amada, pois agora você a viu e a conhece.
— Sim, senhor.
— É uma pessoa rara, não é, Jane?
— Sim, senhor.
— Uma mulherona... uma verdadeira mulherona, Jane: grande, morena e
rosada; com cabelos exatamente como as mulheres de Cartago devem ter tido.
Deus me abençoe! Lá estão Dent e Lynn nos estábulos. Entre por aquelas moitas,
por aquela portinhola.
Enquanto eu seguia por um lado, ele ia pelo outro, e o ouvi dizer no pátio
animadamente:
— Mason passou à frente de vocês todos esta manhã: partiu antes do sol
nascer; levantei-me às quatro para despedir-me.
CAPITULO 21
OS PRESSENTIMENTOS são coisas estranhas! E o mesmo acontece com as
simpatias; e com os sinais; e os três combinados compõem um mistério para o
qual a humanidade ainda não encontrou a chave. Nunca ri dos pressentimentos em
minha vida, porque eu mesma tive alguns bem estranhos. Existem simpatias, creio
(por exemplo, entre parentes separados por grandes distâncias, há muito tempo, e
inteiramente afastados, que afirmam, apesar da separação, a unidade da fonte na
qual cada um identifica suas origens), cujo funcionamento confunde a
compreensão mortal. E os sinais, por tudo que sabemos, podem ser apenas as
simpatias da natureza com o homem.
Quando eu era pequena, com apenas seis anos, uma noite ouvi Bessie Leaven
dizer a Martha Abbott que sonhara com uma criança; e que sonhar com criança
era um sinal certo de problemas, para a própria pessoa ou para um parente. A
história poderia ter-se apagado em minha memória, não fosse uma circunstância
que se seguiu imediatamente, e que serviu para fixá-la indelevelmente. No dia
seguinte, mandaram chamar Bessie à sua casa, para o leito de morte de sua
irmãzinha.
Nos últimos tempos, eu me lembrava com freqüência dessa história e desse
incidente; pois durante a semana anterior dificilmente passava uma noite em
minha cama sem sonhar com uma criança que eu às vezes acalentava nos braços,
às vezes balançava nos joelhos, às vezes via brincar com margaridas no gramado,
ou ainda enfiar as mãos na água corrente. Era uma criança chorando numa noite,
uma criança rindo na outra; ora se aninhava junto a mim, ora fugia de mim; mas,
fosse qual fosse o estado de espírito que a aparição demonstrasse, fosse qual fosse
o aspecto que tivesse, não deixou, durante sete noites, sucessivas, de vir ao meu
encontro assim que eu entrava na terra do sono.
Eu não gostava da insistência dessa idéia — da estranha recorrência dessa
imagem, e ficava nervosa quando se aproximava a hora de ir para a cama, e da
visão. Fora por companheirismo com esse bebê-fantasma que eu despertara
naquela noite enluarada em que ouvi o grito; e foi na tarde do dia seguinte que fui
chamada lá embaixo por um recado de que alguém me procurava no quarto da
Sra. Fairfax. Apresentando-me lá, encontrei um homem à minha espera, com a
aparência do criado de um cavalheiro: trajava luto fechado, e o chapéu que tinha
nas mãos estava cercado com o crepe preto.
— Eu diria que a senhorita não se lembra de mim — ele disse, levantando-se
quando entrei. — Mas meu nome é Leaven; eu era cocheiro da Sra. Reed quando
a senhorita estava em Gateshead, há oito ou nove anos, e ainda moro lá.
— Oh, Robert! Como vai? Lembro-me muito bem de você: costumava me
montar de vez em quando no pônei baio da Srta. Georgiana. Como está Bessie?
Você se casou com Bessie?
— Sim, senhorita, minha mulher está muito bem, obrigado; ela me deu outro
pimpolho há cerca de dois meses... temos três agora... e a mãe e a criança vão
bem.
— E os donos da casa estão bem, Robert?
— Sinto não poder dar-lhe melhores notícias deles, senhorita, estão muito mal
atualmente... em grande aflição.
— Espero que não tenha morrido ninguém — eu disse, olhando seu traje
negro. Ele também olhou o crepe negro no chapéu e respondeu:
— O Sr. John morreu fez uma semana ontem, em seus aposentos em Londres.
— O Sr. John?
— Sim.
— E como está a mãe dele?
— Ora, a senhorita sabe, Srta. Eyre, não se trata de um infortúnio comum: a
vida dele foi muito desastrada, nestes últimos três anos ele se entregou a estranhos
hábitos, e sua morte foi chocante.
— Eu soube por Bessie que ele não ia indo bem.
— Indo bem! Não podia ir pior; arruinou a saúde e a fortuna em companhia
dos piores homens e mulheres. Afundou em dívidas e foi para a cadeia: a mãe o
ajudou duas vezes, mas assim que se via livre, ele voltava aos velhos
companheiros e hábitos. Não tinha a cabeça forte, os patifes no meio dos quais
vivia o iludiam além de qualquer limite que eu tenha sabido. Ele veio a Gateshead
cerca de três semanas atrás, e queria que a patroa lhe entregasse tudo. Ela recusou;
as extravagâncias dele há muito reduziram bastante os bens dela; assim, ele voltou
de novo, e a próxima notícia que tivemos foi de que estava morto. Como morreu,
só Deus sabe... dizem que se matou.
Fiquei calada; as notícias eram pavorosas. Robert Leaven recomeçou:
— A patroa não está bem de saúde há já algum tempo; ficou muito gorda, mas
não forte; e a perda do dinheiro e o medo da pobreza a enfraqueceram muito. A
informação sobre a morte do Sr. John e a maneira como se deu vieram demasiado
de repente, causaram um ataque. Ela ficou três dias sem falar, mas na última
terça-feira parecia melhor; parecia querer dizer alguma coisa, e ficava fazendo
sinais a minha mulher e murmurando. Só ontem de manhã, no entanto, foi que
Bessie entendeu que ela pronunciava o nome da senhorita; e terminou
compreendendo as palavras: "Traga Jane... vá buscar Jane Eyre, quero falar com
ela." Bessie não sabe se ela está em seu juízo perfeito, ou se queria mesmo dizer
alguma coisa com essas palavras; mas ela falou à Srta. Reed e à Srta. Georgiana, e
aconselhou-as a mandar chamar a senhorita. As jovens damas recusaram a
princípio; mas a mãe ficou muito agitada e dizia "Jane, Jane" tantas vezes, que
afinal elas consentiram. Parti de Gateshead ontem; e se a senhorita puder se
aprontar, eu a levarei lá amanhã de manhã cedo.
— Sim, Robert, eu me aprontarei, parece-me que devo ir.
— Eu também acho, senhorita. Bessie disse que tinha certeza de que a
senhorita não se recusaria; mas suponho que tenha de pedir licença para poder ir?
— Sim; e vou fazer isso agora mesmo. — E, tendo-o encaminhado à sala dos
criados, e recomendado à mulher de John que cuidasse dele, e ao próprio John
também, saí à procura do Sr. Rochester.
Ele não estava em nenhum dos quartos de baixo; não estava no pátio, nos
estábulos ou nos jardins. Perguntei à Sra. Fairfax se o tinha visto — sim, ela
acreditava que ele estava jogando bilhar com a Srta. Ingram. Corri ao salão de
bilhar; vinham dali o chocalhar das bolas e um zumbido de vozes; o Sr.
Rochester, a Srta. Ingram, as duas Srtas. Eshton e seus admiradores estavam todos
ocupados com o jogo. Foi preciso alguma coragem para incomodar um grupo tão
interessante; minha missão, contudo, era das que não podem ser adiadas, e assim
me aproximei do patrão, que estava ao lado da Srta. Ingram. Ela se voltou quando
me aproximei, e me olhou altivamente: seus olhos pareciam perguntar: "Que pode
querer agora essa criatura rastejante?" E quando eu disse em voz baixa: "Sr.
Rochester", ele fez um movimento como se se sentisse tentada a mandar-me
embora. Lembro-me de sua aparência no momento — muito graciosa e
impressionante, usava um vestido matinal de crepe azul-celeste e tinha uma
diáfana echarpe azul em volta do cabelo. Estava toda animada com o jogo, e o
orgulho irritado não reduziu a expressão de seus traços altivos.
— Essa pessoa quer falar com você? — ela perguntou ao Sr. Rochester; e ele
se voltou para ver quem era a "pessoa". Fez uma careta curiosa — uma dessas
demonstrações estranhas e equívocas — largou o taco e me seguiu para fora da
sala.
— Bem, Jane? — disse, recostando-se na porta da sala de aula, que tinha
fechado.
— Por favor, senhor, quero uma licença de um ou duas semanas.
— Para fazer o quê... para ir aonde?
— Para ir ver uma dama doente que mandou me chamar.
— Que dama doente? Onde mora?
— Em Gateshead, em ... shire.
— ...shire? Isso fica a cem milhas! Quem pode mandar chamar pessoas para
vê-la a essa distância?
— O nome dela é Reed, senhor... Sra. Reed.
— Reed de Gateshead? Havia um Reed de Gateshead que era magistrado.
— É a viúva dele, senhor.
— E que tem você a ver com ela? Como a conhece?
— O Sr. Reed era meu tio... irmão de minha mãe.
— O diabo que era! Você nunca me disse isso antes; sempre disse que não
tinha parentes.
— Não tinha nenhum que me reconhecesse, senhor. O Sr. Reed morreu, e a
mulher dele me mandou embora.
— Por quê?
— Porque eu era pobre e um fardo, e ela me detestava.
— Mas Reed deixou filhos? Você deve ter primos? Sir George Lynn falava
ontem de um Reed de Gateshead, que segundo disse era um dos maiores patifes
da cidade; e Ingram falou de uma Georgina Reed do mesmo lugar, que foi muito
admirada por sua beleza uma ou duas temporadas atrás, em Londres
— John morreu, senhor; arruinou-se e quase arruinou a família, e supõe-se
que tenha cometido suicídio. A notícia causou um tal choque na mãe, que resultou
num ataque apoplético.
— E que bem pode fazer você a ela? Bobagem, Jane! Eu nunca pensaria em
correr cem milhas para ver uma velha que talvez já esteja morta antes de você
alcançá-la; além disso, você diz que ela a expulsou.
— Sim, senhor, mas isso foi há muito tempo; e quando as circunstâncias dela
eram muito diferentes: eu não ficaria tranqüila se ignorasse seus desejos agora.
— Quanto tempo vai ficar?
— O mais curto tempo possível, senhor.
— Prometa-me que só ficará uma semana...
— É melhor eu não dar minha palavra, senhor; posso ser obrigada a quebrá-la.
— De qualquer forma, vai voltar, não será induzida, sob pretexto nenhum, a
fixar residência com ela?
— Oh, não! Certamente voltarei, se tudo correr bem.
— E quem vai com você? Não vai viajar cem milhas sozinha.
— Não senhor, ela mandou seu cocheiro.
— Pessoa digna de confiança?
— Sim, senhor, ele vive há dez anos com a família.
O Sr. Rochester pensou um pouco. — Quando deseja ir?
— Amanhã de manhã cedo, senhor.
— Bem, deve levar algum dinheiro; não pode viajar sem dinheiro, e aposto
que não tem muito: não lhe paguei nenhum salário ainda. Quanto tem você no
mundo, Jane? — perguntou sorrindo.
Peguei minha bolsa; era uma coisinha magra. — Cinco xelins, senhor.
Ele tomou a bolsa, despejou o conteúdo na palma da mão e deu uma
risadinha, como se aquela pobreza o divertisse. Logo puxou sua carteira:
— Aqui — disse, oferecendo-me uma nota; eram cinqüenta libras, e ele só me
devia quinze.
Eu lhe disse que não tinha troco.
— Não quero troco; você sabe disso. Pegue seu salário.
Recusei-me a aceitar mais do que me era devido. Ele armou uma carranca a
princípio; depois, como se se lembrasse de algo disse:
— Certo, certo! É melhor não lhe dar tudo agora: você talvez ficasse três
meses fora se tivesse cinqüenta libras. Aqui estão dez; não é o bastante?
— Sim, senhor, mas agora o senhor me deve cinco.
— Volte para recebê-las, então; sou seu banqueiro para quarenta libras.
— Sr. Rochester, posso muito bem mencionar-lhe outro assunto de negócios,
enquanto tenho a oportunidade.
— Assunto de negócios? Estou curioso para ouvir.
— O senhor teve a bondade de me informar que vai se casar em breve.
— Sim; e então?
— Neste caso, senhor, Adèle deve ir para uma escola: tenho certeza de que
perceberá a necessidade disso.
— Para tirá-la do caminho de minha noiva, que de outro modo poderia
atropelá-la com demasiada gana? É uma sugestão sensata; e você, é claro, deve
marchar diretamente para... para o diabo.
— Espero que não, senhor; mas preciso procurar outro emprego, em outra
parte.
— Decerto! — ele exclamou, com um tom de voz e as feições distorcidas de
um modo ao mesmo tempo fantástico e cômico. Olhou-me por alguns minutos.
— E suponho que pedirá à velha Madame Reed, ou às senhoritas, suas filhas,
que lhe arranjem um lugar?
— Não, senhor; não estou em tais termos, com minhas parentas, que
justifiquem pedir favores a elas... mas porei um anúncio.
— Você subirá as pirâmides do Egito — ele rosnou. — Você que ponha
anúncio! Eu gostaria de ter-lhe dado apenas um soberano, em vez das dez libras.
Devolva-me nove libras, Jane; preciso delas.
— E eu também, senhor — respondi, pondo as mãos e a bolsa às costas. —
Não posso dispor do dinheiro em hipótese alguma.
— Sua avarentazinha! — ele disse. — Recusando-me um pedido de dinheiro!
Dê-me cinco libras, Jane.
— Nem cinco xelins, senhor; nem cinco pence.
— Deixe-me só ver o dinheiro.
— Não, senhor; não confio no senhor.
— Jane!
— Senhor?
— Prometa-me uma coisa.
— Prometo-lhe qualquer coisa, senhor, que eu me ache capaz de realizar.
— Não ponha anúncio, e confie essa questão do emprego a mim. Eu lhe
encontrarei um no devido tempo.
— Terei prazer em fazer isso, se o senhor, em troca, me prometer que eu e
Adèle estaremos seguras na casa enquanto sua noiva não entrar nela.
— Muito bem! Muito bem! Dou minha palavra quanto a isso. Você parte
amanhã, então?
— Sim, senhor; bem cedo.
— Descerá à sala de estar após o jantar?
— Não, senhor, tenho de me preparar para a viagem.
— Então temos de nos despedir por algum tempo?
— Suponho que sim, senhor.
— E como as pessoas realizam essa cerimônia de despedida, Jane? Ensine-
me; não estou muito à altura.
— Elas dizem adeus, ou qualquer outra forma que prefiram.
— Então diga.
— Adeus, Sr. Rochester, por enquanto.
— Que devo eu dizer?
— O mesmo, se quiser, senhor.
— Adeus, Srta. Jane, por enquanto; é só isso?
— Sim.
— Parece-me pouca coisa, em minha opinião, e seco, e inamistoso. Gostaria
de alguma coisa mais, um pequeno acréscimo ao rito. Se apertássemos as mãos,
por exemplo; mas não... isso tampouco me deixaria satisfeito. Então não fará mais
que dizer adeus, Jane?
— É o bastante, senhor; pode-se transmitir tanta boa vontade numa palavra
sincera quanto em muitas.
— É bem provável; mas é vazio e frio... "Adeus". "Quanto tempo ele vai ficar
recostado contra a porta?" eu me perguntava. "Preciso começar a fazer as malas."
A sineta do jantar tocou, e de repente ele se afastou, sem mais uma sílaba: não
tornei a vê-lo durante o dia, e parti antes que ele se levantasse na manhã seguinte.
Cheguei ao portão de Gateshead cerca das cinco horas da tarde de 1.° de
maio: entrei no alojamento do porteiro, antes de subir para a mansão. Estava
muito limpo e arrumado, as janelas ornamentais tinham pequenas cortinas
brancas, o piso estava imaculado; a grade da lareira e os atiçadores brilhavam de
polimento; e o fogo ardia límpido. Bessie sentava-se junto à lareira, ninando seu
recém-nascido, e Robert e a irmã brincavam tranqüilamente num canto.
— Bendita seja! Eu sabia que a senhorita viria! — exclamou a Sra. Leaven
quando entrei.
— Sim, Bessie — eu disse, depois de tê-la beijado. — E espero não chegar
muito atrasada. Como está a Sra. Reed? Viva ainda, espero?
— Sim, ela está viva; e mais consciente e aprumada que antes. O médico diz
que ela pode durar mais uma ou duas semanas ainda; mas não acha que se
recupere.
— Ela falou em mim ultimamente?
— Estava falando da senhorita esta manhã mesmo, e desejando que viesse,
mas está dormindo agora, ou estava há dez minutos, quando fui à casa. Ela
geralmente fica numa espécie de torpor a tarde toda, e acorda lá pelas seis ou sete
horas. Quer descansar aqui por uma hora, e depois eu subo com a senhorita?
Robert entrou, e Bessie pôs sua criança adormecida no berço e foi recebê-lo;
depois, insistiu em que eu tirasse minha touca e tomasse um pouco de chá; pois
disse que eu parecia pálida e cansada. Fiquei satisfeita em aceitar a sua
hospitalidade; e deixei que me aliviasse de meus apetrechos de viagem de modo
tão passivo quanto costumava deixá-la despir-me quando criança.
Os velhos tempos voltaram-me todos, observando-a atarefar-se pela casa —
arrumando a bandeja do chá com sua melhor louça, cortando o pão e a manteiga,
fazendo um bolo, e nos intervalos dando no pequeno Robert ou em Jane um tapa
ou empurrão ocasionais, do mesmo modo como me dava em outra época. Bessie
continuava pouco paciente, e com os mesmos pés ágeis e a boa aparência.
Pronto o chá, ia aproximar-me da mesa; mas ela quis que eu ficasse quieta, no
mesmo tom peremptório de antigamente. Tinha de ser servida diante da lareira,
disse, e colocou à minha frente uma mesinha com a xícara e um prato de torrada,
absolutamente como costumava me acomodar, com alguma fina iguaria apanhada
às escondidas, numa cadeira no quarto das crianças, e eu lhe sorri e obedeci como
nos dias passados.
Ela queria saber se eu era feliz em Thornfield Hall, e que tipo de pessoa era a
patroa; e quando eu lhe disse que havia apenas um patrão, se ele era um
cavalheiro decente, e se eu gostava dele. Eu lhe disse que era um homem mais
para feio, mas um completo cavalheiro; e que me tratava com bondade, e que eu
estava satisfeita. Depois passei a descrever para ela o alegre grupo que se
hospedava nos últimos tempos na casa: e Bessie ouviu esses detalhes com
interesse: eram precisamente do tipo que ela apreciava.
Nessa conversa, passou-se logo uma hora: Bessie devolveu-me minha touca
etc, e, acompanhada por ela, deixei o alojamento e fui para a mansão. Também
fora acompanhada por ela que eu descera, quase nove anos atrás, o caminho que
agora subia. Numa manhã escura, nevoenta e crua de janeiro, deixara um teto
hostil com o coração desesperado e amargurado — uma sensação de proscrição e
quase de reprovação — para ir em busca do frio abrigo de Lowood; aquela meta
tão distante e inexplorada. O mesmo teto hostil erguia-se agora novamente diante
de mim; minhas perspectivas ainda eram duvidosas; e ainda tinha o coração
dolorido. Ainda me sentia como uma errante na face da terra; mas experimentava
uma confiança mais firme em mim mesma e em minhas próprias forças, e menos
medo da opressão. A ferida aberta de meus malfeitos, também, estava agora
inteiramente curada; e a chama do ressentimento, extinta.
— A senhorita irá à sala de desjejum primeiro — disse Bessie, ao atravessar o
saguão na minha frente. — As jovens senhoras estarão lá.
No momento seguinte, eu estava no aposento. Todas as peças de mobiliário
pareciam exatamente do jeito que estavam na manhã em que fui apresentada ao
Sr. Brocklehurst: o tapete sobre o qual ele ficara ainda cobria o piso. Olhando as
estantes de livros, julguei poder distinguir os dois volumes dos Pássaros
Britânicos, de Bewick, ocupando seu antigo lugar na terceira prateleira, e as
Viagens de Gulliver e As Mil e Uma Noites logo acima. Os objetos inanimados
não tinham mudado; mas as coisas vivas se haviam alterado além de qualquer
reconhecimento.
Duas jovens damas surgiram à minha frente, uma delas muito alta, quase
como a Srta. Ingram — muito esguia também, com um rosto pálido e uma
expressão severa. Havia alguma coisa de ascético em sua aparência, que era
acentuada pela extrema simplicidade de uma saia reta, vestido de tecido preto, um
colarinho de linho engomado, cabelo penteado para trás, e enfeitado como uma
freira, com um cordão de contas de ébano e um crucifixo. Aquela, tive certeza de
que era Eliza, embora só conseguisse identificar uma pequena semelhança com a
pessoa de antes naquele rosto alongado e sem cor.
A outra era certamente Georgiana, mas não a Georgiana de quem eu me
lembrava — a menina esguia e parecendo uma fada, de onze anos. Aquela era
uma donzela plenamente desenvolvida, muito cheia, branca como uma figura de
cera, com feições regulares e bonitas, lânguidos olhos azuis e cabelo louro e
cacheado. A cor de seu vestido era negra também; mas o modelo era tão diferente
do da irmã — tão mais fluido e assentado — que parecia tão sofisticado quanto o
outro era puritano.
Em cada uma das irmãs havia um traço da mãe — e um apenas; a filha mais
velha, magra e pálida, tinha os olhos da Sra. Reed; a mais jovem, em flor e
luxuriante, o contorno da mandíbula e do queixo — talvez um pouco suavizado,
mas transmitindo ainda uma indescritível dureza ao rosto, fora isso tão voluptuoso
e rosado.
Quando me aproximei, elas se levantaram e ambas se dirigiram a mim
chamando-me de "Srta. Eyre". O cumprimento de Eliza foi em voz breve, abrupta,
sem um sorriso; e depois ela voltou a sentar-se, fixou os olhos no fogo e pareceu
esquecer-me. Georgiana acrescentou ao seu "Como vai?" vários lugares-comuns
sobre minha viagem, o tempo, e essas coisas, ditos num tom um tanto arrastado, e
acompanhado por várias olhadas de lado, que me avaliavam dos pés à cabeça —
ora varando as dobras de minha gasta peliça de merino, ora demorando-se no
debrum barato de minha touca. As jovens damas têm uma maneira notável de nos
fazer saber que nos acham um "enigma", sem na verdade o dizerem com palavras.
Uma certa arrogância no olhar, uma certa frieza nos modos, uma certa indiferença
no tom expressam plenamente seus sentimentos nesse ponto, sem comprometê-las
por meio de qualquer rudeza clara nas palavras ou atos.
Mas um olhar de desprezo, disfarçado ou aberto, não tinha mais sobre mim
aquele poder que tinha antigamente; sentada ali entre minhas primas, eu me
surpreendia ao descobrir como me sentia à vontade diante da total indiferença de
uma e das atenções meio sarcásticas da outra — Eliza não me deixou mortificada,
nem Georgiana me irritou. A verdade era que eu tinha outras coisas em que
pensar; nos últimos meses haviam-se agitado dentro de mim sentimentos tão mais
poderosos que os que elas podiam me provocar — sofrimentos e prazeres tão
mais agudos e estranhos do que quaisquer uns que estivesse em seu poder infligir
ou provocar — que seus ares não me preocupavam, nem para o bem nem para o
mal.
— Como está a Sra. Reed? — perguntei logo, olhando calmamente para
Georgiana, que julgou adequado empertigar-se à pergunta direta, como se fosse
uma liberdade inesperada.
— A Sra. Reed? Ah! mamãe, você quer dizer; ela está extremamente mal,
duvido que possa vê-la esta noite.
—Se — eu disse — você simplesmente subisse e dissesse a ela que cheguei,
eu lhe ficaria muito agradecida. Georgiana quase saltou, e arregalou os olhos
azuis.
— Sei que ela tinha um desejo particular de me ver — acrescentei — se não
adiaria o atendimento de seu desejo mais tempo que o absolutamente necessário.
— Mamãe não gosta de ser perturbada à tarde — observou Eliza. Eu me
levantei logo, peguei tranqüilamente minha touca e minhas luvas, sem ser
convidada a isso, e disse que iria ver Bessie — que se achava, sem dúvida, na
cozinha — e pedir-lhe para verificar se a Sra. Reed estava disposta a me receber
ou não naquela noite. Saí, e, tendo encontrado Bessie e mandado que ela desse o
recado, passei a tomar outras medidas. Até então, costumava evitar a arrogância:
recebida como fora naquele dia, decidiria, um ano atrás, deixar Gateshead na
manhã seguinte; agora, descobria que isso teria sido um plano tolo. Eu fizera uma
viagem de cem milhas para ver minha tia, e devia ficar com ela até que
melhorasse — ou morresse: quanto ao orgulho ou loucura de suas filhas, devia
ignorá-los, tornar-me independente deles. Assim, dirigi-me à governanta; pedi-lhe
que me desse um quarto, disse-lhe que provavelmente ficaria por uma semana ou
duas, fiz com que levassem minha mala ao meu quarto e acompanhei-a
pessoalmente até lá; encontrei Bessie no patamar da escada.
— A patroa está acordada — ela disse. — Eu disse a ela que a senhorita está
aqui; venha e vamos ver se ela a reconhece.
Eu não precisava ser conduzida ao conhecido quarto, ao qual fora tantas vezes
convocada para ser castigada ou repreendida em outros tempos. Segui depressa à
frente de Bessie; abri a porta de mansinho; sobre a mesa havia uma luz velada,
pois estava ficando escuro. Lá estava a cama de quatro colunas, com as cortinas
ambarinas, de antigamente; a mesa de toalete, a poltrona e o banquinho de
descansar os pés, no qual eu fora uma centena de vezes sentenciada a ajoelhar-me,
para pedir perdão por faltas que não cometera. Olhei para um certo canto
próximo, meio esperando ver a fina forma de uma temida vara que costumava
esconder-se ali, à espera para saltar como um demônio e atingir minha mão
trêmula ou meu pescoço encolhido. Aproximei-me da cama; abri as cortinas e
curvei-me sobre os travesseiros empilhados altos.
Bem me lembrava do rosto da Sra. Reed, e busquei avidamente a conhecida
imagem. É uma boa coisa que o tempo sufoque os anseios de vingança e silencie
os impulsos de raiva e aversão. Eu tinha deixado aquela mulher com amargor e
ódio, e voltava a ela agora sem outra emoção que uma espécie de pesar pelo seus
grandes sofrimentos, e um forte anseio de esquecer e perdoar todas as ofensas —
de reconciliar-me com ela e apertar sua mão em amizade.
O conhecido rosto ali estava; severo, inflexível como sempre — ali estavam
aqueles olhos peculiares que nada poderia derreter, e as sobrancelhas um tanto
alçadas, imperiosas, despóticas. Quantas vezes me haviam lançado ameaça e
ódio! E como a lembrança dos terrores e mágoas da infância revivia enquanto eu
identificava suas linhas duras agora! E no entanto, curvei-me e beijei-a.
— É Jane Eyre? — ela disse.
— Sim, Tia Reed. Como está, cara tia?
Eu tinha jurado outrora que jamais a chamaria de tia de novo; achei que não
era pecado esquecer e quebrar esse juramento agora. Meus dedos haviam agarrado
a mão dela, que repousava para fora do cobertor; se ela houvesse comprimido a
minha bondosamente, eu teria experimentado naquele momento um verdadeiro
prazer. Mas as naturezas não impressionáveis não se suavizam tão cedo, nem se
erradicam tão prontamente antipatias naturais. A Sra. Reed recolheu a mão, e,
desviando um pouco o rosto de mim, observou que a noite estava cálida. Olhou-
me outra vez de modo tão gélido, que senti logo que a opinião que tinha de mim
— seus sentimentos para comigo — não mudará e não mudaria. Soube por seus
olhos pétreos — opacos para a ternura, indissolúveis para as lágrimas — que ela
estava decidida a me considerar má até o fim; porque julgar-me boa não lhe daria
nenhum prazer generoso, apenas uma sensação de mortificação.
Senti dor, e depois ira; e depois uma determinação de subjugá-la — dominá-la
a despeito de sua natureza e sua vontade. As lágrimas me inundavam os olhos:
exatamente como na infância, ordenei que retornassem às suas fontes. Trouxe
uma cadeira para junto da cabeceira da cama; sentei-me e curvei-me sobre o
travesseiro.
— A senhora mandou me chamar — eu disse — e aqui estou; e pretendo ficar
até ver como vai a senhora.
— Oh, decerto! Viu minhas filhas?
— Sim.
— Bem, pode dizer a elas que quero que você fique até que eu possa discutir
algumas coisas que tenho em mente com você. Esta noite já está tarde demais e
tenho dificuldade em lembrá-las. Mas havia alguma coisa que eu queria dizer...
deixe-me ver...
O olhar errante e o tom mudado mostravam o estrago que ocorrera em sua
estrutura outrora tão vigorosa. Virando-se agitada, puxou os cobertores à sua
volta; meu cotovelo, apoiado num canto da colcha, prendia-a; ela ficou logo
irritada.
— Sente-se ereta! — disse. — Não me aborreça prendendo os lençóis. Você é
Jane Eyre?
— Sou Jane Eyre.
— Eu tive mais problemas com essa criança do que qualquer um acreditaria.
Um tal fardo para ser deixado em minhas mãos... e tanto aborrecimento ela me
causava a cada dia, a cada hora, com sua natureza incompreensível e seus súbitos
ataques de mau gênio, e aquela vigilância contínua e incomum sobre os
movimentos da gente! Afirmo que ela uma vez me falou como alguma coisa
louca, ou como um demônio... nenhuma criança jamais falou ou teve a aparência
dela naquele dia; fiquei aliviada por mandá-la embora de casa. Que fizeram com
ela em Lowood? A febre grassou por lá, e muitas das alunas morreram. Mas ela
não morreu, embora eu dissesse que morrera... gostaria que tivesse morrido!
— Um estranho desejo, Sra. Reed; por que a odeia tanto assim?
— Sempre detestei a mãe dela; porque era a única irmã de meu marido, e a
grande favorita dele; opôs-se a que a família a deserdasse quando ela fez aquele
casamento infeliz; e quando se soube da morte dela, ele chorou como um
bobalhão. Queria mandar buscar o bebê da irmã; embora eu lhe pedisse que a
entregasse a uma babá e pagasse por sua manutenção. Odiei-a desde a primeira
vez que pus os olhos nela... uma coisinha doentia, chorona, definhante! Chorava
no berço a noite toda... não gritando bravamente como qualquer outra criança,
mas soluçando e gemendo. Reed tinha pena dela; e costumava niná-la e dar-lhe
atenções como se fosse sua própria filha; mais, na verdade, do que jamais dera
atenção aos seus naquela idade. Tentava fazer meus filhos gostarem da
mendigazinha: os queridinhos não podiam suportá-la, e ele ficava furioso com
eles quando demonstravam sua antipatia. Em sua última doença, ele a fazia trazer
constantemente para o lado da cama; e apenas uma hora antes de morrer, prendeu-
me por um juramento de manter a criatura. Eu preferiria ficar encarregada de uma
moleca do asilo de pobres: mas ele era fraco, naturalmente fraco. John não se
parece em nada ao pai, e alegra-me isso: John é como eu e como meus irmãos...
um verdadeiro Gibson. Oh, eu gostaria que ele deixasse de me atormentar com
cartas pedindo dinheiro! Não tenho mais dinheiro para dar-lhe, estamos ficando
pobres. Preciso mandar embora metade dos criados e fechar parte da casa; ou
alugá-la. Jamais poderei me submeter a isso... e no entanto, como vamos passar?
Dois terços de minha renda vão para pagar os juros de hipotecas. John joga
terrivelmente, e sempre perde... pobre coitado! Está cercado de trapaceiros;
afundou na degradação... tem uma aparência pavorosa... sinto vergonha por ele
quando o vejo.
Estava ficando muito excitada.
— Creio que é melhor eu deixá-la agora — eu disse a Bessie, que eslava de pé
do outro lado da cama.
— Talvez seja, senhorita, mas ela muitas vezes fala assim ao anoitecer... pela
manhã fica mais calma.
Levantei-me.
— Pare! — exclamou a Sra. Reed. — Há outra coisa que eu queria dizer. Ele
me ameaça... ameaça-me continuamente com sua própria morte, ou a minha, e eu
às vezes sonho que o vejo caído com um grande ferimento na garganta, ou com o
rosto inchado e enegrecido. Cheguei a uma estranha situação, tenho sérios
problemas. Que se pode fazer? Como se vai conseguir dinheiro?
Bessie tentou persuadi-la a tomar uma bebida sedativa; conseguiu-o com
dificuldade. Pouco depois, a Sra. Reed se recompôs mais e afundou numa
madorna. Então, eu a deixei.
Passaram-se mais de dez dias antes que eu tivesse outra conversa com ela.
Continuava ou delirante ou letárgica; e o médico proibiu tudo que pudesse excitá-
la dolorosamente. Enquanto isso, eu me havia o melhor que podia com Georgiana
e Eliza. Elas foram muito frias, na verdade, a princípio. Eliza ficava o dia todo
sentada a costurar, ler ou escrever, e mal dizia uma palavra a mim ou à irmã.
Georgiana falava tolices ao seu canário toda hora, e não me dava atenção. Mas eu
decidi não parecer à cata de ocupação ou diversão; tinha trazido meu material de
pintura, e isso me serviu para ambas as coisas.
Armada com uma caixa de lápis e algumas folhas de papel, sentava-me numa
cadeira longe delas, perto da janela, e ocupava-me em desenhar vinhetas de
fantasia, representando qualquer cena que por acaso se formasse no momento no
sempre cambiante caleidoscópio de minha imaginação: uma nesga de mar entre
dois penhascos; a lua nascendo, com um barco atravessando o seu disco; um
grupo de juncos e caniços, e uma cabeça de náiade coroada com flores de lótus,
erguendo-se do meio deles; um duende sentado num ninho de pardal, sob uma
guirlanda de flores de espinheiro.
Certa manhã, pus-me a desenhar um rosto: que tipo de rosto ia ser, não me
importava nem eu sabia. Peguei um lápis negro mole, fiz-lhe uma ponta grossa e
comecei a trabalhar. Em breve,
havia riscado no papel uma testa larga e pontuda, e o contorno inferior
quadrado de um rosto; esse contorno causou-me satisfação; meus dedos foram em
frente ativamente, enchendo-o de feições. Sob aquela testa, devia-se traçar
sobrancelhas horizontais fortemente acentuadas; depois vinha, naturalmente, um
nariz bem definido, com uma crista reta e narinas amplas; em seguida, uma boca
de aparência flexível, de modo nenhum estreita; um queixo firme, com uma nítida
fenda no meio; evidentemente, eram necessárias umas suíças negras, e um cabelo
negro, com tufos nas têmporas e ondulado acima da testa. Agora, os olhos;
deixara-os por último, porque exigiam o trabalho mais cuidadoso. Desenhei-os
grandes; dei-lhes boa forma; tracei os cílios longos e negros; as íris lustrosas e
grandes. "Está bom! Mas não é a coisa exata", pensei, examinando o efeito.
"Precisa de mais força e espírito." E tornei as sombras mais escuras, para que as
luminosidades pudessem sobressair mais brilhantes... um ou dois toques felizes
asseguraram o êxito. Lá estava, tinha um rosto amigo sob meu olhar, e que
importava que as duas jovens damas me ignorassem? Olhei-o; sorri com a visível
semelhança, estava absorta e contente.
— É um retrato de alguém que você conhece? — perguntou Eliza, que se
aproximara de mim sem ser notada. Respondi que era apenas uma cabeça
desenhada de imaginação, e apressei-me a cobri-la com outras folhas. É claro que
mentia; era, de fato, uma fiel imagem do Sr. Rochester. Mas que significava isso
para ela, ou para qualquer outra pessoa além de mim mesma? Georgiana também
se aproximou para olhar. Os outros desenhos muito lhe agradaram, mas ela
chamou a cabeça de "um homem feio". Ambas pareceram surpresas com o meu
talento. Ofereci-me para desenhar seus retratos; e as duas, uma de cada vez,
posaram para um desenho a lápis. Depois Georgiana mostrou seu álbum. Prometi
contribuir com uma aquarela; isso a pôs de bom humor. Sugeriu um passeio pelo
jardim. Ainda não estávamos lá fora duas horas, e já nos achávamos em uma
profunda conversa confidencial: ela me presenteara com uma descrição do
brilhante inverno que passara em Londres duas temporadas atrás — da admiração
que causara — da atenção que recebera; e obtive até mesmo insinuações da
aristocrática conquista que ela fizera. Com o correr da tarde e da noite, essas
insinuações se ampliaram; várias entrevistas românticas foram narradas, e cenas
sentimentais representadas; e, em suma, um volume de um romance sobre a vida
mundana foi naquele dia improvisado por ela para mim. A comunicação renovou-
se dia a dia, sempre sobre o mesmo tema — ela mesma, seus amores e
sofrimentos. Era estranho que jamais se referisse à doença da mãe, à morte do
irmão ou ao sombrio estado atual das perspectivas da família. Parecia ter o
espírito inteiramente tomado por reminiscências de prazeres passados, e
aspirações de dissipações futuras. Passava cerca de cinco minutos, cada dia, no
quarto de doente da mãe, e nunca mais que isso.
Eliza ainda falava pouco, evidentemente; não tinha tempo para falar. Nunca vi
uma pessoa mais ocupada do que ela parecia; contudo, era difícil dizer o que
fazia, ou antes, descobrir qualquer resultado de sua diligência. Tinha um
despertador para acordá-la cedo. Não sei como se ocupava antes do desjejum, mas
após essa refeição dividia seu tempo em períodos regulares, e cada hora tinha sua
tarefa marcada. Três vezes por dia, estudava um livrinho, que descobri, ao
examinar, ser um Livro de Preces. Perguntei-lhe certa vez qual era a grande
atração daquele volume, e ela disse: "A Rubrica". Dedicava três horas a
pespontar, com linha dourada, a bainha de um pedaço quadrado de pano
vermelho, quase grande o bastante para um tapete. Em resposta às minhas
perguntas sobre o uso desse artigo, informou-me que era uma toalha para cobrir o
altar de uma nova igreja construída recentemente perto de Gateshead. Dedicava
duas horas ao seu diário; duas a trabalhar sozinha na horta; e uma a pôr em dia
suas contas. Parecia não precisar de companhia ou de conversas. Creio que era
feliz à sua maneira; essa rotina bastava-lhe; e nada a aborrecia tanto como a
ocorrência de qualquer incidente que a obrigasse a variar essa regularidade de
relógio.
Disse-me uma noite, quando mais disposta a ser comunicativa que de hábito,
que a conduta de John, e a ameaça de ruína da família, tinham sido uma fonte de
profunda aflição para ela; mas já acalmara a mente e tomara sua decisão. Tivera o
cuidado de assegurar sua própria fortuna; e quando a mãe morresse — e era
totalmente improvável, observava muito tranqüila, que se recuperasse ou
resistisse por muito tempo — ela executaria um projeto havia muito acalentado:
buscar um retiro onde os hábitos de pontualidade estivessem permanentemente a
salvo de distúrbios, e pôr barreiras entre si mesma e o mundo frívolo. Perguntei se
Georgiana a acompanharia.
Decerto que não. Georgiana e ela nada tinham em comum, nunca tinham tido.
Ela não toleraria a companhia da outra sob nenhuma hipótese. Georgiana deveria
seguir seu próprio caminho; e ela, Eliza, seguiria o seu.
Georgiana, quando não estava aliviando o coração comigo, passava a maior
parte do tempo reclinada no sofá, queixando-se do tédio da casa e desejando
repetidas vezes que sua Tia Gibson lhe enviasse um convite para ir à cidade.
— Seria tão melhor — dizia — se pudesse sair dali apenas por um mês ou
dois, até que tudo estivesse acabado.
Não perguntei o que queria dizer com "tudo estar acabado", mas suponho que
se referia ao esperado falecimento da mãe e aos tristes ritos funerários
subseqüentes. Eliza em geral não tomava mais conhecimento da indolência da
irmã do que se tais murmúrios e anseios não se fizessem à sua frente. Um dia, no
entanto, ao pôr de lado seu livro de contabilidade e desdobrar seu bordado, ela
reagiu de repente da seguinte maneira:
— Georgiana, um animal mais vaidoso e mais absurdo que você jamais teve
permissão para estorvar a terra. Você não tinha o direito de nascer; pois não faz
nenhum uso da vida. Em vez de viver para si, em si e consigo, como deve fazer
um ser racional, busca apenas ligar sua fraqueza à força de alguma outra pessoa:
se não pode encontrar ninguém disposto a carregar uma coisa tão gorda, fraca e
inchada, grita que é maltratada, negligenciada, infeliz. Também, a existência deve
ser para você um cenário de contínua mudança e excitamento, pois senão o
mundo é uma masmorra; tem de ser admirada, tem de ser cortejada, tem de ser
lisonjeada... tem de ter música, dança e companhia... senão enlanguesce, definha.
Não tem senso para imaginar um sistema que a torne independente de todos os
esforços, e de todas as vontades, além dos seus próprios? Tome um dia; divida-o
em partes; a cada parte atribua uma tarefa, não deixe nem um quarto de hora, dez
minutos, cinco minutos, ociosos — inclua tudo; faça cada coisa de vez e com
método, com rígida regularidade. O dia acabará antes que você perceba que
começou; e você não estará em dívida com ninguém por ajudá-la a livrar-se de um
momento vago; não precisará buscar a companhia de ninguém, nem a conversa, a
simpatia, a tolerância de ninguém; terá vivido, em suma, como um ser
independente deve viver. Aceite este conselho, o primeiro e último que lhe dou; e
não precisará de mim e de ninguém mais, aconteça o que acontecer. Ignore-o...
continue como até agora, ansiando, choramingando e mandriando... e sofra as
conseqüências de sua idiotice, por mais ruins e insuportáveis que sejam. Digo-lhe
isto claramente, e ouça, pois embora eu não vá repetir mais o que estou para dizer,
agirei decididamente assim. Após a morte de minha mãe, lavo minhas mãos de
você: a partir do dia que o caixão dela for levado para a cripta da igreja de
Gateshead, você e eu estaremos tão separadas quanto se nunca tivéssemos
conhecido uma à outra. Não deve pensar que, por termos nascido casualmente dos
mesmos pais, vou tolerar que você me prenda mesmo que seja pela mais frágil
reivindicação; posso dizer-lhe isto: se toda a raça humana, com exceção de nós,
desaparecesse, e só nós duas restássemos sobre a terra, eu a deixaria no Velho
Mundo e me transportaria para o Novo.
Fechou os lábios.
— Podia ter-se poupado o trabalho de lançar essa tirada — respondeu
Georgiana. — Todo mundo sabe que você é a criatura mais egoísta e cruel que
existe; e eu conheço o seu ódio despeitado contra mim: tive uma amostra dele
antes, no truque que você me pregou com Lorde Edwin Vere: não podia ver-me
elevar-me acima de você, ter um título, ser recebida em círculos onde você não
ousa mostrar o rosto, e por isso bancou a espiã e delatora, e arruinou minhas
perspectivas para sempre. — Georgiana tirou o lenço e ficou a assoar o nariz
durante uma hora, após isso; Eliza continuou sentada, fria, impassível e sempre
industriosa.
É verdade, há quem faça pouco dos sentimentos generosos; mas ali estavam
duas naturezas tornadas, uma intoleravelmente acre, a outra desprezivelmente
insípida, pela falta de tais sentimentos. O sentimento indiscriminado é algo
intragável, sem dúvida; mas a sensatez não temperada pelo sentimento é
demasiado amarga e áspera para a deglutição humana.
Era uma tarde de chuva e vento; Georgiana adormecera no sofá, lendo um
romance; Eliza saíra, para assistir ao serviço de um santo na nova igreja — pois
em questão de religião era uma rígida formalista; nenhum tempo impedia nunca o
cumprimento pontual do que ela considerava seus deveres de devota; com sol ou
com chuva, ia à igreja três vezes todo domingo, e tantas vezes durante a semana
quantas houvesse preces.
Decidi subir e ver como ia a agonizante, que ficava lá deitada quase sem
assistência: os próprios criados só lhe davam atenção de vez em quando; a
enfermeira contratada, sendo pouco vigiada, escapulia para fora do quarto sempre
que podia. Bessie era fiel; mas tinha sua própria família para cuidar, e só
ocasionalmente podia vir à mansão. Encontrei o quarto da doente abandonado,
como esperava: não havia sinal da enfermeira; a paciente estava deitada imóvel e
aparentemente letárgica, o rosto lívido afundado nos travesseiros: o fogo morria
na lareira. Renovei o combustível, rearrumei os lençóis da cama, olhei enquanto
isso àquela que não podia olhar-me, e depois me afastei para a janela.
A chuva batia fortemente contra as vidraças, o vento soprava tempestuoso:
"Aqui jaz uma", eu pensei, "que logo estará além da guerra dos elementos
terrestres. Para onde voará esse espírito
— que agora luta para deixar sua morada material — quando finalmente se
libertar?"
Ponderando sobre o grande mistério, pensei em Helen Burns, lembrei-me de
suas palavras ao morrer — sua fé — sua doutrina da igualdade das almas
desencarnadas. Ainda ouvia em pensamentos sua saudosa voz — ainda via na
imaginação aquela aspecto pálido e espiritual, aquele rosto desgastado e aquele
olhar sublime, ali deitada em seu plácido leito de morte e murmurando o anseio
de ser devolvida ao seio do divino Pai — quando uma voz débil murmurou da
cama atrás de mim:
— Quem é?
Eu sabia que a Sra. Reed não falava havia dias; estava se recuperando? Fui até
ela.
— Sou eu, Tia Reed.
— Eu... quem? — foi sua resposta. — Quem é você? — olhando-me com uma
espécie de alarme, mas ainda não desvairada.
— Você me é inteiramente estranha... onde está Bessie?
— No alojamento do porteiro, tia.
— Tia! — ela repetiu. — Quem me chama de tia? Você não é uma das
Gibson; e no entanto eu a conheço... esse rosto, os olhos e a testa me são bastante
familiares: você é como... ora, se parece com Jane Eyre!
Eu nada disse: temia causar algum choque declarando minha identidade.
— Mas — ela disse — receio que seja um engano, meus pensamentos me
iludem. Eu queria ver Jane Eyre, e imagino uma imagem onde não existe
nenhuma: além disso, ela deve ter mudado em oito anos. — Assegurei-lhe então
que eu era a pessoa que ela supunha e desejava que fosse, e vendo que me
entendia, e que seus sentidos estavam inteiramente atilados, expliquei-lhe que
Bessie mandara o marido buscar-me em Thornfield.
— Estou muito doente, você sabe — ela disse pouco tempo depois. — Estava
tentando me virar há pouco, e descobri que não posso mover um membro. É bom
que possa aliviar a mente antes de morrer: aquilo de que fazemos pouco caso
quando estamos sãos pesa sobre nós numa hora como é a atual para mim. A
enfermeira está aí? Ou não há mais ninguém no quarto além de você?
Assegurei-lhe que estávamos sós.
— Bem, eu lhe fiz mal duas vezes, o que agora lamento. Uma foi quando
quebrei a promessa que fiz a meu marido de criá-la como minha filha; a outra...
— parou. — Afinal, talvez não tenha grande importância — murmurou para si
mesma. — E depois, eu posso ficar melhor; e humilhar-me desta maneira é muito
penoso.
Fez um esforço para mudar de posição, mas não conseguiu; seu rosto mudou;
ela parecia experimentar alguma sensação interna — precursora, talvez, da última
pontada.
— Bem, tenho de acabar com isso. A eternidade está diante de mim, é melhor
dizer a ela. Vá à minha mala de toalete, abra-a e retire uma carta que encontrará
ali.
Obedeci às suas instruções.
— Leia a carta — ela disse.
Era curta, e nos seguintes termos:
Madame,
Quer ter a bondade de enviar-me o endereço de minha sobrinha, Jane Eyre, e
dizer-me como está ela? Pretendo escrever brevemente a ela e dizer-lhe que
venha ter comigo em Madeira. A Providência abençoou meus esforços para
conseguir independência, e como sou solteiro e sem filhos, desejo adotá-la
durante minha vida, e legar-lhe após minha morte tudo que possa deixar.
Sou, Madame, etc. etc,
John Eyre, Madeira.
Datava de três anos atrás.
— Por que eu nunca soube disso? — perguntei.
— Porque eu a detestava tão fixa e totalmente, que jamais daria uma ajuda
para elevá-la à prosperidade. Não podia esquecer de sua conduta comigo, Jane.. a
fúria com a qual uma vez se voltou contra mim; o tom com que declarou que me
detestava mais que a qualquer pessoa no mundo; a aparência e a voz nada infantis
com que afirmou que até a idéia de mim a nauseava, e que eu a tratara com
miserável crueldade. Não podia esquecer minhas sensações quando você saltou
assim e despejou o veneno de sua mente: senti medo, como se um animal que eu
tivesse golpeado ou empurrado erguesse o olhar para mim com olhos humanos e
me maldissesse em voz humana. Traga-me um pouco d'água! Oh, depressa!
— Cara Sra. Reed — eu disse, ao oferecer-lhe o gole que pedira — não pense
mais em nada disso, afaste tudo de sua mente. Perdoe-me por minha linguagem
apaixonada; eu era uma criança então; passaram-se oito, nove anos desde então.
Ela não deu atenção a nada do que eu disse; mas quando provou a água e
suspirou, prosseguiu:
— Digo-lhe que não podia esquecer; e me vinguei, pois não podia suportar
que você fosse adotada por seu tio e colocada em condições de independência e
conforto. Escrevi a ele; disse que sentia por sua decepção, mas Jane Eyre estava
morta; morrera de tifo em Lowood. Agora aja como quiser, escreva e contradiga
minha afirmação... denuncie minha falsidade assim que quiser. Você nasceu, eu
acho, para ser meu tormento: minha última hora é angustiada pela recordação de
um ato que, não fosse por você, eu jamais teria sido tentada a cometer.
— Se eu pudesse convencê-la a não pensar mais nisso, tia, e a encarar-me
com bondade e perdão...
— Você tem uma natureza muito má — ela disse — uma natureza que até
hoje não consegui entender: como durante nove anos conseguiu ser paciente e
tolerante sob todos os tratamentos, e no décimo irrompeu em fogo e violência, é
algo que jamais poderei compreender.
— Minha natureza não é tão má quanto a senhora pensa. Eu sou apaixonada,
mas não vingativa. Muitas vezes, em criança, eu teria ficado satisfeita por amá-la,
se a senhora me tivesse deixado, e anseio por me reconciliar com a senhora agora:
beije-me, tia.
Aproximei a face de seus lábios: ela não quis tocá-la. Disse que eu a abafava,
curvando-me sobre a cama, e tornou a pedir água. Quando a larguei — pois a
tinha erguido e segurado nos braços enquanto ela bebia — cobri sua mão gelada e
úmida com a minha: os dedos frágeis encolheram-se ao meu toque — os olhos
vítreos evitaram os meus.
— Ame-me, então, ou me odeie, como quiser — eu disse afinal. — A senhora
tem meu pleno e livre perdão: agora peça o de Deus e descanse em paz.
Pobre sofredora! Era demasiado tarde para que ela fizesse então o esforço
para mudar seu habitual esquema mental: viva, sempre me odiara — agonizante,
tinha de me odiar ainda.
A enfermeira entrou, seguida por Bessie. Ainda me demorei mais meia hora,
esperando ver algum sinal de amizade, mas ela não deu nenhum. Recaía
rapidamente no estupor; e não recuperou a consciência de novo: morreu às doze
horas daquela noite. Eu não estava presente para fechar-lhe os olhos; tampouco
estava qualquer uma das filhas. Vieram dizer-nos na manhã seguinte que tudo
terminara. A essa altura, ela já estava exposta. Eliza e eu fomos olhá-la,
Georgiana, que irrompera num choro alto, disse que não ousava ir. Lá estava
estendida a figura outrora robusta e ativa de Sarah Reed, rígida e imóvel; os olhos
pétreos cobertos pelas frias pálpebras; a testa e os traços fortes ainda exibiam a
impressão de sua alma inexorável. Estranho e solene objeto era aquele corpo para
mim. Olhei-o com tristeza e dor; não inspirava nada suave, nada doce, nada
piedoso ou esperançoso; só uma áspera angústia pelas misérias dela, — não pela
minha perda — e uma consternação sombria e sem lágrimas diante da coisa
terrível que era a morte daquela forma.
Eliza examinou a mãe calmamente. Após um silêncio de alguns minutos,
observou:
— Com a constituição dela, devia ter vivido até uma boa idade; sua vida foi
abreviada por problemas. — E então um espasmo contorceu-lhe a boca por um
instante: quando passou, ela se virou e deixou o quarto, e o mesmo fiz eu.
Nenhuma de nós derramara uma lágrima.
CAPÍTULO 22
O SR. ROCHESTER me dera apenas uma semana de licença; mas passou-se
um mês até eu deixar Gateshead. Eu queria partir imediatamente após o funeral,
mas Georgiana me pediu que ficasse até ela viajar para Londres, onde fora agora
afinal convidada pelo tio, o Sr. Gibson, que viera orientar o enterro da irmã e
acertar os assuntos da família. Georgiana disse que temia ser deixada só com
Eliza; dela, não recebia nem simpatia na tristeza, nem apoio nos temores, nem
ajuda nos preparativos; assim, suportei como pude seus choros de pessoa fraca e
suas lamentações egoístas, e fiz o melhor que pude costurando para ela e pondo
seus vestidos nas malas. É verdade que, enquanto eu trabalhava, ela não fazia
nada; e eu pensava comigo mesma: "Se fôssemos viver sempre juntas, prima,
começaríamos as coisas num pé diferente. Eu não me resignaria brandamente a
ser a parte tolerante; designaria sua parte do trabalho, e a obrigaria a realizá-la;
senão, ficaria sem fazer; insistiria também em que você guardasse parte dessas
lamentações arrastadas, não muito sinceras, para si mesma. Apenas porque nossa
relação é bastante transitória, e vem numa época particularmente triste, é que
consinto em tolerá-la de modo tão paciente e flexível."
Afinal embarquei Georgiana; mas então foi a vez de Eliza me pedir que
ficasse mais uma semana. Disse que seus planos lhe exigiam todo o tempo e
atenção; estava para partir com destino a algum local ignorado; e ficava o dia todo
em seu quarto, com a porta fechada por dentro, enchendo baús, esvaziando
gavetas, queimando papéis, sem se comunicar com ninguém. Desejava que eu
cuidasse da casa, que recebesse os visitantes e respondesse às cartas de
condolências.
Certa manhã, ela me disse que eu estava livre.
— E — acrescentou — sou-lhe grata por seus valiosos serviços e sua conduta
discreta! Há certa diferença entre viver com alguém como você e com Georgiana;
você faz sua parte na vida, e não se encosta em ninguém. Amanhã — continuou
— eu parto para o Continente. Vou viver numa casa religiosa perto de Lisle... um
convento, pode-se dizer; ali ficarei tranqüila, sem ninguém me molestar. Vou me
dedicar por algum tempo ao exame dos dogmas católicos romanos, e a um
cuidadoso estudo do funcionamento do sistema deles; se achar que c, como já
estou meio desconfiada de que é, o mais bem calculado para fazerem-se
decentemente e em ordem todas as coisas, abraçarei os princípios de Roma e
provavelmente tomarei o véu.
Eu nem manifestei surpresa diante dessa resolução nem tentei dissuadi-la. "A
vocação lhe assentará como uma luva", pensei; "pode fazer-lhe muito bem".
Quando nos despedimos, ela disse:
— Adeus, prima Jane Eyre, desejo-lhe felicidade, você tem algum senso.
Eu respondi:
— Você também não deixa de ter, prima Eliza; mas suponho que o que tem,
dentro de mais um ano estará emparedado vivo num convento francês. Contudo,
não é de minha conta, e se isso lhe serve... não me importo muito.
— Você está certa — ela disse, e com estas palavras cada uma seguiu seu
caminho distinto. Como não terei ocasião de voltar a referir-me a ela ou à sua
irmã, posso muito bem mencionar aqui que Georgiana fez um vantajoso
casamento com um homem rico e decadente, da moda; e que Eliza realmente
tomou o véu, e é hoje Superiora do convento onde passou o período de noviciado,
e ao qual legou sua fortuna.
Eu não sabia como as pessoas se sentem quando voltam à casa, após uma
ausência, longa ou curta: nunca experimentara essa sensação. Sabia o que era
voltar a Gateshead, quando criança, após uma longa caminhada — para ser
repreendida por parecer fria ou sombria; e depois, o que era voltar da igreja para
Lowood — para ansiar por uma refeição abundante e um bom fogo, e não
conseguir nenhuma das duas coisas. Nenhuma dessas voltas era muito agradável
ou desejável; nenhum magneto me atraía para um determinado ponto,
aumentando sua força de atração à medida que me aproximava. A volta a
Thornfield, eu ainda estava por experimentar.
Minha viagem pareceu-me tediosa — muito tediosa, cinqüenta milhas num
dia, uma noite passada numa estalagem; cinqüenta milhas no dia seguinte.
Durante as primeiras doze horas, pensei na Sra. Reed em seus últimos momentos;
via seu rosto desfigurado e descorado, e ouvia sua voz estranhamente alterada.
Pensava no dia do funeral, o caixão, o carro fúnebre, a negra fila de rendeiros e
criados — pequeno era o número dos parentes — a abóbada escancarada, a igreja
silenciosa, o serviço solene. Depois pensei em Eliza e Georgiana; via uma como o
centro de atração de um salão de baile, e a outra como a interna de uma cela de
convento; e demorava-me e analisava as diferentes peculiaridades pessoais e de
caráter de cada uma. A chegada da noite, na grande cidade de..., dispersou esses
pensamentos, e deu-lhes outro curso; deitada em minha cama de viajante, deixei a
lembrança pela previsão.
Voltava a Thornfield, mas quanto tempo ficaria lá? Não muito; disso tinha
certeza. Tivera notícias da Sra. Fairfax no intervalo de minha ausência; o grupo da
mansão se dispersara; o Sr. Rochester partira para Londres havia três semanas,
mas esperava-se que voltasse dentro de uma quinzena. A Sra. Fairfax supunha que
ele fora fazer arranjos para seu casamento, pois falara em comprar uma nova
carruagem: ela dizia que a idéia de ele casar-se com a Srta. Ingram ainda lhe
parecia estranha; mas pelo que todo mundo dizia, e pelo que ela própria vira, não
podia mais duvidar de que o acontecimento teria lugar dentro de pouco tempo. "A
senhora seria estranhamente incrédula se duvidasse", foi meu comentário mental.
"Eu não duvido."
Seguia-se a questão: "Para aonde eu iria?" Sonhei com a Srta. Ingram a noite
toda: num vivido sonho matinal, vi-a fechando os portões de Gateshead em minha
cara e apontando-me outra estrada; e o Sr. Rochester apenas olhava, com os
braços cruzados — sorrindo sardonicamente, ao que parecia, tanto de mim quanto
dela.
Eu não comunicara à Sra. Fairfax o dia exato de minha chegada; pois não
queria que um carro ou carruagem viesse me esperar em Millcote. Dispunha-me a
percorrer a distância calmamente, sozinha; e muito calmamente, após deixar
minha mala aos cuidados do moço da estrebaria, esgueirei-me da George Inn,
cerca de seis da tarde de um dia de junho, e tomei a velha estrada para Thornfield,
uma estrada que passava sobretudo por campos, e era àquela hora pouco
freqüentada.
Não era uma brilhante ou esplêndida noite de verão, embora estivesse bonita e
suave; os cortadores de feno trabalhavam ao longo de toda a estrada; e o céu,
embora tivesse nuvens, prometia bom tempo à frente; o azul — onde se via o azul
— era suave e parado, e as camadas de nuvens, altas e finas. Também o oeste
estava quente, nenhum brilho aquoso o esfriava — era como se houvesse um fogo
aceso, um altar ardendo por trás da cortina de marmóreo vapor, e pelas aberturas
refulgisse uma dourada vermelhidão.
Sentia-me satisfeita à medida que a estrada se encurtava à minha frente, tão
satisfeita, que parei uma vez para perguntar-me o que significava aquela alegria, e
para lembrar à razão que não era à minha casa que eu ia, ou a um lugar de repouso
permanente, ou a um lugar onde amigos bondosos ansiassem por mim e
aguardassem minha chegada. "A Sra. Fairfax lhe dará um tranqüilo sorriso de
acolhida, sem dúvida", disse a mim mesma; "e a pequena Adèle baterá palmas e
pulará para vê-la, mas você sabe muito bem que está pensando em outro que não
elas, e que ele não está pensando em você".
Mas que existe de mais obstinado que a juventude? E de tão cego quanto a
inexperiência? Estas afirmavam que já era suficiente prazer ter o privilégio de
tornar a olhar o Sr. Rochester, quer ele me olhasse ou não; e acrescentavam:
"Depressa! Depressa! Fique com ele enquanto pode: mais uns poucos dias ou
semanas, no máximo, e será separada dele para sempre!" E então estrangulei uma
recém-nascida agonia — uma coisa deformada, que eu não podia convencer-me a
aceitar e criar — e corri.
Estão preparando o feno, também, nos campos de Thornfield, ou antes, os
trabalhadores deixam o trabalho e voltam para casa com seus ancinhos nos
ombros, agora, na hora em que chego. Falta-me atravessar apenas um ou dois
campos, e depois cruzarei a estrada e chegarei aos portões. Como as sebes estão
cheias de rosas! Mas não tenho tempo de colher nenhuma; quero estar em casa.
Passei por uma sarça alta, que lança galhos folhudos e floridos por sobre a
estrada; vejo o estreito passadiço por cima da cerca com seus degraus de pedra; e
vejo — o Sr. Rochester ali sentado, com um livro e um lápis nas mãos; está
escrevendo.
Bem, não é um fantasma; contudo, cada um de meus nervos se desata; por um
momento, perco todo domínio. Que significa isso? Eu não pensava que tremeria
assim quando o visse, ou que perderia a voz e o poder de me movimentar em sua
presença. Voltarei tão logo consiga mexer-me: não preciso dar um espetáculo.
Conheço outro caminho para a casa. Mas não importava que conhecesse até vinte
caminhos; pois ele me vira.
— Alô! — ele grita; e depõe o livro e o lápis. — Aí está você! Venha, por
favor.
Suponho que me aproximo; embora, de que modo, não sei; mal tendo
consciência de meus movimentos, e preocupada apenas em parecer calma; e,
acima de tudo, em controlar os músculos móveis de meu rosto — que sinto se
rebelarem insolentemente contra minha vontade, lutando para manifestar o que
decidi ocultar. Mas estou usando um véu — e ele está abaixado: posso agir ainda
de modo a me conduzir com decente compostura.
— Essa é Jane Eyre? Está vindo de Millcote, e a pé? Sim... é bem um de seus
truques, não mandar buscar uma carruagem, e vir caminhando por ruas e estradas
como um mortal comum, para se esgueirar pela vizinhança de sua casa ao
anoitecer, como se fosse um sonho ou uma sombra. Que diabos fez consigo
mesma este último mês?
— Estive com minha tia, que morreu.
— Uma verdadeira resposta de Jane! Que bons anjos me guardem! Ela vem
do outro mundo... da morada dos mortos; e me diz isso ao me encontrar aqui
sozinho no crepúsculo! Se eu me atrevesse, tocaria em você, para ver se é
concreta ou uma sombra, sua duende! Mas seria o mesmo que tentar segurar um
ignis fatuus azul num pântano. Gazeteira! Gazeteira! — acrescentou, após uma
curta pausa. — Longe de mim por todo um mês, e me esquecendo inteiramente,
juro.
Eu sabia que teria prazer em encontrar novamente o meu amo; mesmo abatida
pelo temor de que logo deixasse de ser meu amo, e pelo conhecimento de que
nada representava para ele: mas havia sempre no Sr. Rochester (pelo menos, eu
assim pensava) uma tal abundância do poder de transmitir felicidade, que provar
mesmo as migalhas que ele espalhava aos pássaros perdidos e estranhos como eu
era um agradável banquete. Suas últimas palavras foram bálsamo, pareciam dar a
entender que lhe importava alguma coisa se eu o esquecia ou não. E falara de
Thornfield como minha casa — quem dera que fosse!
Ele não abandonou o passadiço, e eu não gostaria de pedir para passar. Logo
perguntei se não fora a Londres.
— Sim; suponho que descobriu isso por uma visão.
— A Sra. Fairfax me disse, numa carta.
— E lhe informou do que fui fazer?
— Oh, sim, senhor! Todo mundo sabia de sua missão.
— Você deve ver a carruagem, Jane, e dizer-me se não acha que ela
combinará exatamente com a Sra. Rochester; e se ela não ficará parecendo com a
Rainha Boadicea, reclinada naquelas almofadas púrpura. Eu desejaria, Jane, ser
um pouco melhor adaptado ao casamento com ela externamente. Diga-me, agora,
já que é uma fada... não pode me dar um feitiço, um filtro, ou alguma coisa desse
tipo, para tornar-me um homem bonito?
— Isso está além do poder de minha mágica, senhor. — E, em pensamento,
acrescentei: "Um olho amante é todo o encanto de que o senhor precisa; para um
olho assim, o senhor já é bonito o bastante; ou antes, a sua severidade tem um
poder que vai além da beleza."
O Sr. Rochester tinha às vezes lido meus pensamentos não expressos com um
tino que eu não compreendia: no caso presente, não tomou conhecimento de
minha resposta vocal; mas sorriu-me com um certo sorriso que tinha, e que só
usava em raras ocasiões. Parecia julgá-lo bom demais para fins comuns, era o
verdadeiro sol do sentimento — e ele o lançava sobre mim agora.
— Passe, Jane — disse, abrindo espaço para que eu atravessasse o passadiço.
— Suba para a casa, e descanse seus cansados e errantes pezinhos na soleira de
um amigo.
A única coisa que eu podia fazer era obedecer-lhe em silêncio: não havia
necessidade de maiores colóquios. Passei pelo passadiço sem uma palavra, e
pretendia deixá-lo calmamente. Mas um impulso me deteve — uma força me fez
virar-me. Eu disse — ou alguma coisa dentro de mim disse por mim, e a despeito
de mim:
— Obrigada, Sr. Rochester, por sua grande bondade. Sinto-me estranhamente
satisfeita por voltar de novo ao senhor; e onde quer que o senhor esteja, aí será
minha casa... minha única casa.
Parti tão depressa, que mesmo ele dificilmente poderia ter-me alcançado, se
houvesse tentado. A pequena Adèle ficou meio doida de alegria quando me viu. A
Sra. Fairfax recebeu-me como sua simples amizade costumeira. Leah sorriu, e até
Sophie me deu um "Bon soir" alegre. Aquilo foi muito agradável; não há
felicidade como a de ser amada pelas criaturas nossas irmãs, e sentir que nossa
presença é um acréscimo ao conforto delas.
Naquela noite, fechei decididamente os olhos para o futuro, tapei os ouvidos
contra a voz que continuava me avisando da separação próxima e da dor que viria.
Quando terminou o chá, depois de a Sra. Fairfax ter pegado seu tricô, de eu ter
tomado um banquinho baixo junto dela, e Adèle, ajoelhada no tapete, ter-se
aninhado perto de mim, e quando uma sensação de afeição parecia cercar-nos
com uma aura de dourada paz, fiz uma prece silenciosa para que não nos
separássemos tão cedo; mas quando, estando nós todas assim sentadas, o Sr.
Rochester entrou sem se fazer anunciar, e, olhando-nos, pareceu sentir prazer com
o espetáculo de um grupo tão amigável — quando disse que a velha dama estava
em paz agora, por ter conseguido sua filha adotiva de volta, e acrescentou que
Adèle estava "prête à croquer sa petite mamem Anglaise"* — aventurei-me a
esperar que ele, mesmo após seu casamento, nos mantivesse juntas em alguma
parte, sob o manto de sua proteção, e não inteiramente exiladas do sol de sua
presença. *Pronta para devorar sua mãezinha inglesa. (N. do T.)
Seguiu-se à minha volta a Thornfield Hall uma quinzena de dúbia calma. Não
se dizia nada sobre o casamento do patrão, e eu não via nenhum preparativo em
andamento para tal acontecimento. Quase todo dia eu perguntava à Sra. Fairfax se
soubera de alguma coisa decisiva: sua resposta era sempre negativa. Uma vez, ela
disse que fizera a pergunta ao Sr. Rochester, sobre quando ia trazer sua noiva para
casa; mas ele lhe respondera apenas com uma piada e um de seus olhares
esquisitos, e ela não soubera o que pensar.
Uma coisa me surpreendia especialmente: era que não havia viagens de um
lado para outro, não havia visitas a Ingram Park: evidentemente, isso ficava a
vinte milhas de distância, nas fronteiras de outro condado; mas que era essa
distância para um amante ardente? Para um cavaleiro tão treinado e incansável
como o Sr. Rochester, seria apenas uma manhã de cavalgada. Comecei a
alimentar esperanças que não tinha o direito de conceber: de que o casamento fora
desfeito; que os rumores tinham sido errados; que um ou ambos os lados tinham
mudado de idéia. Olhava o rosto de meu amo, para ver se estava triste ou
zangado; mas não podia lembrar um tempo em que estivesse tão uniformemente
desprovido de nuvens ou maus sentimentos. Se, nos momentos que eu e minha
pupila passávamos com ele, me faltava a coragem e eu afundava em inevitável
abatimento, ele se tornava até alegre. Jamais tinha me chamado com mais
freqüência à sua presença; jamais fora tão bondoso comigo quando me achava ali
— e, ai!, jamais o tinha eu amado tanto.
CAPITULO 23
UM ESPLÊNDIDO solstício de verão refulgia sobre a Inglaterra: céus tão
puros, sóis tão radiantes quanto os que se sucediam em longa série, quase nunca
favoreciam nossa terra sombria, mesmo isoladamente. Era como se dias italianos
tivessem vindo do sul, como um bando de pássaros gloriosos, e pousassem para
descansar nos rochedos de Albion. O feno fora todo armazenado; as estradas
estavam brancas e crestadas; as árvores, exuberantemente verdes; sebes e
bosques, cobertos de folhagens e de uma cor profunda, faziam um belo contraste
com a coloração ensolarada dos campos ceifados entre eles.
Na véspera do solstício, Adèle, cansada de colher morangos silvestres em Hay
Lane durante metade do dia, fora para a cama com o sol. Vi-a cair no sono, e
quando a deixei, fui para o jardim.
Era a mais doce hora das vinte e quatro do dia: "um dia que seu próprio fogo
ardente consumira", e o sereno caía frio nos prados ofegantes e nos cumes
crestados. Nos locais onde o sol se pusera com simples imponência — sem a
pompa das nuvens — espalhara um púrpura solene, ardente com a luminosidade
do rubi e da chama da fornalha num ponto, num pico de montanha, e estendendo-
se alta e imensa, cada vez mais suave, por metade do céu. O leste tinha seu
próprio encanto de belo e profundo azul, e sua própria gema modesta, uma estrela
nascente e solitária; logo ostentaria a lua; mas ela ainda estava abaixo do
horizonte.
Caminhei um pouco sobre o calçamento; mas um odor sutil e conhecido — o
de um charuto — escapava por uma janela; vi o caixilho da biblioteca entreaberto;
sabia que podia ser observada dali; assim, afastei-me para o pomar. Não havia
recanto na propriedade mais abrigado e mais paradisíaco: um muro muito alto
ocultava-o do pátio, de um lado; do outro, uma alameda de faias isolava-o do
gramado. No fundo, havia uma cerca caída, a única separação dos campos
solitários: um sendeiro serpeante, ladeado por loureiros e terminando num
gigantesco castanheiro, cercado na base por um banco, descia até a cerca. Ali,
podia-se vaguear sem ser visto. Enquanto caía aquele sereno, reinava aquele
silêncio e aquele crepúsculo se adensava, eu sentia que poderia habitar aquele
abrigo para sempre. Mas enquanto percorro as leiras de flores e frutos na parte de
cima do cercado, atraída para lá pela luz que a lua agora nascente lança nesse
trecho mais aberto, meus passos se detêm — não devido a um som, não devido a
uma visão, mas uma, vez mais por uma fragrância de aviso.
Rosas amarelas e flores do sul, jasmins, cravos e rosas há muito fazem sua
vespertina oferenda de incenso: esse novo odor não é de arbusto nem flor: é —
conheço-o bem — é o charuto do Sr. Rochester. Olho em redor e escuto. Vejo
árvores carregadas de frutos maduros. Ouço um rouxinol cantar num bosque a
uma meia milha: não se vê forma alguma, não se ouve passo algum; mas o
perfume aumenta, tenho de escapar. Encaminho-me para a portinhola que leva ao
matagal, e vejo o Sr. Rochester entrando. Afasto-me para dentro do recesso de
hera; ele não ficará por muito tempo, logo retornará ao lugar de onde veio, e se eu
ficar quieta, jamais me verá.
Mas não — o crepúsculo é tão agradável para ele quanto para mim, e este
jardim antigo é atraente; e ele perambula, ora erguendo os ramos da groselheira
para olhar os frutos, grandes como ameixas, com os quais estão carregados; ora
colhendo uma cereja madura do muro; ora curvando-se para uma touceira de
flores, para aspirar sua fragrância ou admirar as gotas de sereno em suas pétalas.
Uma grande mariposa passa zumbindo por mim; pousa numa planta aos pés do
Sr. Rochester; ele a vê e se curva para examiná-la.
"Agora ele está de costas para mim", penso, "e ocupado também; talvez, se
caminhar de mansinho, eu possa me esgueirar sem ser notada".
Andava pelo mato à beira do caminho, para que o ranger dos seixos não me
denunciasse; ele estava parado entre as leiras e uma ou duas jardas de onde eu
tinha de passar; a mariposa aparentemente o prendera. "Vai dar para eu passar",
calculei. Quando cruzei a sua sombra, projetada muito comprida sobre o jardim
pela lua, que ainda não ia alta, ele disse baixinho, sem se voltar:
— Jane, venha olhar esse sujeito.
Eu não fizera barulho algum; ele não tinha olhos atrás da cabeça — será que
sua sombra tinha sentidos? Assustei-me a princípio, e depois me aproximei.
— Olhe as asas dele — disse o Sr. Rochester. — Lembra-me um pouco um
inseto das Índias Ocidentais; não se vê como muita freqüência um vagueante
noturno tão grande e alegre na Inglaterra; pronto! voou!
A mariposa se afastou. Eu também me retirava, timidamente; mas o Sr.
Rochester me seguiu, e quando chegamos- ao portãozinho, disse:
— Volte; numa noite tão adorável, é uma vergonha ficar dentro de casa; e
certamente ninguém pode querer ir para a cama quando o pôr-do-sol se encontra
assim com o nascer da lua.
Um de meus defeitos é que, embora minha língua às vezes se mostre bastante
expedita para responder, outras vezes me falha tristemente quando se trata de
arranjar uma desculpa; e o lapso sempre ocorre em alguma crise, quando preciso
especialmente de uma palavra fácil ou de um pretexto plausível para tirar-me de
um penoso embaraço. Eu não gostaria de passear àquela hora, sozinha, com o Sr.
Rochester, no escuro pomar; mas não encontrei nenhum motivo a alegar para
deixá-lo. Segui arrastando os passos, o pensamento muito ocupado em descobrir
um meio de escapulir; mas ele próprio parecia tão calmo e tão grave, também, que
me envergonhei de sentir qualquer confusão: o mal — se mal havia, real ou em
perspectiva — parecia estar apenas em mim; ele tinha a mente inconsciente e em
paz.
— Jane — ele recomeçou, quando entramos na alameda de loureiros e
lentamente nos desviamos em direção à cerca caída e ao castanheiro —
Thornfield é um lugar agradável no verão, não é?
— Sim, senhor.
— Você deve ter-se ligado, em certa medida, à casa... você, que tem olho para
as belezas naturais, e muita capacidade de apego.
— Estou ligada a ela, na verdade.
— E embora eu não compreenda como é isso, percebo que adquiriu um certo
grau de interesse por aquela menininha tola, Adèle, também; e até pela simples
Sra. Fairfax.
— Sim, senhor; de modos diferentes, tenho afeição pelas duas.
— E sentiria ter de separar-se delas?
— Sim.
— Que pena! — ele disse, suspirou e fez uma pausa.
— É sempre assim com as coisas desta vida — continuou finalmente. —
Assim que a gente se instala num agradável lugar de repouso, uma voz nos manda
levantar e ir andando, pois a hora de repouso expirou.
— Tenho de ir andando, senhor? — perguntei. — Tenho de deixar
Thornfield?
— Creio que tem, Jane. Sinto muito, Janet, mas creio realmente que tem.
Isso foi um golpe, mas não deixei que me derrubasse.
— Bem, senhor, estarei pronta quando a ordem de partida vier,
— Já chegou... tenho de dá-la esta noite.
— Então o senhor vai mesmo se casar?
— E-xa-ta-men-te... pre-ci-sa-men-te; com sua habitual perspicácia, você
acertou na mosca.
— Em breve, senhor?
— Muito breve, minha... isto é, Srta. Eyre, e você se lembrará, Jane, da
primeira vez em que eu, ou os boatos, demos a entender claramente que eu
pretendia pôr meu pescoço de velho solteirão no sagrado laço, entrar no sagrado
estado do matrimônio... tomar a Srta. Ingram em meu peito, em suma (ela mal
cabe num abraço, mas não é disso que se trata... uma coisa tão excelente como
minha linda Blanche nunca tem nada sobrando): bem, como eu ia dizendo...
escute-me, Jane! Não está se voltando em busca de outras mariposas, está? Era
apenas uma joaninha, filha, -'voando para casa". Desejo lembrar-lhe que foi você
quem primeiro me disse, com essa discrição que respeito em você... com essa
previsão, prudência e humildade que condizem com sua posição responsável e
dependente... que no caso de eu me casar com a Srta. Ingram, seria melhor que
você e Adèle partissem. Passo por cima do descrédito que essa sugestão lança
sobre o caráter de minha amada; na verdade, quando você estiver distante, Janet,
tentarei esquecer isso, notarei apenas sua sabedoria; que é tal, que fiz dela minha
lei de ação. Adèle deve ir para a escola; e você, Srta. Eyre, deve encontrar um
novo emprego.
— Sim, senhor, porei um anúncio imediatamente, e enquanto isso, suponho...
— Ia dizer: "suponho que posso ficar aqui, até encontrar outro abrigo para onde
me mudar"; mas parei, sentindo que não seria bom arriscar uma longa sentença,
pois não tinha pleno domínio sobre minha voz.
— Dentro de um mês, espero ser um noivo no altar — continuou o Sr.
Rochester. — E nesse ínterim, eu mesmo buscarei emprego e amparo para você.
— Obrigada, senhor; sinto muito dar...
— Oh, não precisa se desculpar! Considero que, quando uma dependente
cumpre o seu dever tão bem quando você cumpriu o seu, tem uma espécie de
direito sobre o patrão a qualquer pequena ajuda que ele possa convenientemente
lhe prestar; na verdade, através de minha futura sogra, eu já soube de um lugar
que lhe servirá: vai encarregar-se da educação das cinco filhas da Sra. Dionysius
O'Gall, de Bitternut Lodge, Connaught, na Irlanda. Você vai gostar da Irlanda,
creio; é uma gente tão generosa lá, dizem.
— É um bocado distante, senhor.
— Não importa... uma moça com seu senso não fará objeções à viagem ou à
distância.
— À viagem, não, mas à distância, sim; e depois, o mar é uma barreira...
— Contra quê, Jane?
— A Inglaterra e Thornfield, e...
— Sim?
— O senhor, senhor.
Eu disse isso quase involuntariamente, e com tão pouca sanção do livre
arbítrio, que minhas lágrimas jorraram. Mas não chorei a ponto de ser ouvida;
evitei os soluços. A idéia da Sra. 0'Gall, de Bitternut Lodge, gelou-me o coração;
e mais gelado ainda ficou à idéia de todas aquelas ondas e águas que iam se
interpor entre mim e o patrão a cujo lado eu passeava agora; e ainda mais gelado
com a lembrança do mais amplo oceano — riqueza, casta, costumes — entre mim
e aquele que eu natural e inevitavelmente amava.
— É muito longe — tornei a dizer.
— É, sem dúvida; e quando você estiver em Bitternut Lodge, Connaught,
Irlanda, nunca mais tornarei a vê-la, Jane, isto é moralmente certo. Nunca vou à
Irlanda, pois não me atrai o país. Fomos bons amigos, Jane; não fomos?
— Sim, senhor.
— E quando os amigos estão em vésperas de se separar, gostam de passar o
pouco tempo que lhes resta juntos. Vamos! Falaremos da viagem e da separação
tranqüilamente, meia hora, mais ou menos, enquanto as estrelas entram em sua
brilhante vida no céu lá em cima: eis o castanheiro, aí está o banco em suas velhas
raízes. Venha, vamos nos sentar aqui em paz esta noite, embora estejamos
destinados a nunca mais nos sentar aí juntos.
Ele nos sentou, a mim e a si mesmo.
— É muito longe a Irlanda, Janet, e sinto enviar minha amiguinha em viagens
tão cansativas; mas se não posso fazer algo melhor, que jeito se pode dar? Você
acha que tem alguma ligação comigo, Jane?
Eu não podia arriscar nenhuma espécie de resposta dessa vez: tinha o coração
paralisado.
— Porque — ele disse — tenho às vezes uma sensação esquisita com relação
a você... especialmente quando está junto a mim, como agora; é como se eu
tivesse um fio em alguma parte debaixo de minhas costelas esquerdas, firme e
inextricavelmente amarrado a um fio semelhante situado na parte correspondente
de seu pequeno corpo. E se aquele tempestuoso Canal, e mais umas duas milhas
de terra, se interpuserem entre nós, receio que essa linha de comunicação se parta;
e aí, tenho a nervosa idéia de que sangrarei internamente. Quanto a você... me
esquecerá.
— Isso eu nunca farei, senhor; o senhor sabe... — Impossível prosseguir.
— Jane, está ouvindo aquele rouxinol cantando no bosque? Escute!
Ao escutar, solucei convulsivamente; pois não podia mais reprimir o que
sentia; fui obrigada a ceder, e uma intensa angústia me sacudiu dos pés à cabeça.
Quando falei, foi apenas para manifestar o incontível desejo que sentia de nunca
ter nascido, ou de jamais ter vindo para Thornfield.
— É porque está sentida por ter de deixá-la?
A força da emoção, agitada pelo sofrimento e o amor dentro de mim, me
vencia, lutava pelo completo domínio, e afirmava o direito de predominar,
superar, viver, crescer e reinar afinal; sim — e falar.
— Dói-me deixar Thornfield, amo Thornfield, amo-a, porque vivi aqui uma
vida plena e deliciosa... momentaneamente, ao menos. Não fui espezinhada. Não
fui petrificada. Não fui enterrada com mentalidades inferiores e excluída de todo
vislumbre de comunhão com o que é brilhante, vigoroso e elevado. Falei face a
face com o que reverencio, com o que me dá prazer... com uma mente original,
vigorosa, ampla. Conheci o senhor, Sr. Rochester; e causa-me terror e angústia
sentir que tenho de me separar do senhor para sempre. Vejo a necessidade da
partida; e é como contemplar a necessidade da morte.
— Onde você vê essa necessidade? — ele perguntou subitamente.
— Onde? O senhor a colocou à minha frente.
— De que forma?
— Na forma da Srta. Ingram; uma mulher nobre e bela... sua noiva.
— Minha noiva? Que noiva? Eu não tenho noiva!
— Mas terá.
— Sim... terei! Terei! — cerrou os dentes.
— Então eu tenho de partir... o senhor mesmo o disse.
— Não; você deve ficar! Eu juro... e o juramento será mantido.
— Digo-lhe que tenho de ir! — retruquei, inflamada por alguma coisa
semelhante à paixão. — Pensa que posso ficar para tornar-me um nada para o
senhor? Pensa que sou um autômato... uma máquina sem sentimentos? E que
posso suportar ter meu naco de pão arrancado de meus lábios, e minha vital gota
d'água derramada de meu copo? Pensa que, porque sou pobre, obscura, sem
atrativos e pequena, não tenho alma nem coração? Está pensando errado! Tenho
alma tanto quanto o senhor... e um coração tão pleno quanto o seu! E se Deus me
houvesse dotado de alguma beleza e muita riqueza, eu tornaria tão duro para o
senhor deixar-me quanto é para mim deixá-lo. Não lhe falo agora por meio dos
costumes, convencionalismos, nem mesmo da carne mortal: é meu espírito que
fala ao seu; do mesmo modo como se ambos tivéssemos passado pela sepultura e
estivéssemos aos pés de Deus, iguais... como somos!
— Como somos! — repetiu o Sr. Rochester. — É isso — acrescentou,
encerrando-me em seus braços, tomando-me contra o peito, comprimindo seus
lábios nos meus. — É isso, Jane!
— Sim, é isso, senhor — repeti. — E no entanto, não é, pois o senhor é um
homem casado... ou o mesmo que casado, e com alguém que lhe é inferior...
alguém por quem não sente nenhuma simpatia... a quem não acredito que ame
realmente; pois o tenho visto e ouvido zombar dela. Eu desprezaria uma tal união;
assim, sou melhor que o senhor... deixe-me ir!
— Para aonde, Jane? Para a Irlanda?
— Sim... para a Irlanda. Eu disse o que pensava, e posso ir para qualquer parte
agora.
— Fique quieta, Jane; não lute assim, como um frenético pássaro selvagem
que solta a plumagem em desespero.
— Não sou nenhum pássaro; e nenhuma rede me prende; sou um ser humano
livre, com uma vontade independente, que agora exercerei para deixá-lo.
Outro esforço me libertou, e ergui-me ereta à frente dele.
— E sua vontade decidirá o seu destino — ele disse. — Ofereço-lhe meu
coração, minha mão e uma parte de todos os meus bens.
— O senhor desempenha uma farsa, da qual eu simplesmente rio.
— Estou lhe pedindo que passe a vida a meu lado... que seja meu segundo eu
e a melhor companheira terrena.
— Para esse destino, o senhor já fez sua escolha, e deve a ter-se a ela.
— Jane, fique quieta só alguns momentos: você está superexcitada, eu ficarei
parado também
Uma rajada de vento varreu a alameda de loureiros e tremulou por entre os
galhos do castanheiro; afastou-se — para longe — para uma distância infinita —
e morreu. O canto do rouxinol tornou-se então a única voz daquela hora: ouvindo-
a, tornei a chorar. O Sr. Rochester permanecia sentado, quieto, olhando-me suave
e seriamente. Passou-se algum tempo antes que falasse; finalmente, disse:
— Venha para junto de mim, Jane, e expliquemos e compreendamos um ao
outro.
— Nunca mais irei para junto do senhor, estou separada agora, e não posso
voltar.
— Mas, Jane, eu a chamo como minha esposa, é só com você que pretendo
me casar.
Fiquei calada: achava que ele se divertia comigo.
— Venha, Jane, chegue aqui.
— Sua noiva se interpõe entre nós.
Ele se levantou e, com uma passada, me alcançou.
— Minha noiva está aqui — disse, puxando-me novamente para si — porque
minha igual está aqui, e minha imagem. Jane, quer casar-se comigo?
Também desta vez não respondi, e me encolhi diante dele. pois ainda não
acreditava.
— Duvida de mim, Jane?
— Inteiramente.
— Não tem fé em mim?
— Nem um pouco.
— Quer dizer que sou um mentiroso a seus olhos? — ele perguntou
apaixonadamente. — Pequena cética, você será persuadida. Que amor sinto eu
pela Srta. Ingram? Nenhum, e disso estou certo. Que amor tem ela por mim?
Nenhum: como me dei o trabalho de provar: fiz com que chegasse a ela o rumor
de que minha fortuna não era nem um terço do que se supunha, e após isso me
apresentei para ver o resultado; foi só frieza da parte dela e da mãe. Eu não
casaria... não poderia... com a Srta. Ingram. Você... sua coisinha estranha, quase
exótica!... eu a amo como à minha própria carne. Você... pobre e obscura,
pequena e sem atrativos como é... peço-lhe que me aceite como marido.
— Que, eu! — exclamei, começando a acreditar em sua sinceridade, devido à
sua seriedade e, especialmente, à sua incivilidade. — Eu, que não tenho um só
amigo no mundo além do senhor... se é que é meu amigo; que não tenho um xelim
além do que o que o senhor me deu?
— Você, Jane: preciso tê-la para mim... inteiramente para mim. Você será
minha? Diga sim, depressa.
— Sr. Rochester, deixe-me olhar o seu rosto, volte-se para a luz da lua.
— Por quê?
— Porque quero ler sua expressão... volte-se!
— Aí está. Você dificilmente a achará mais legível que uma página amassada,
rabiscada. Leia: apenas, apresse-se, pois estou sofrendo.
O rosto dele estava muito agitado e muito ruborizado, e havia fortes tensões
em suas feições, e estranhos lampejos em seus olhos.
— Oh, Jane, você me tortura! — ele exclamou. — Com esse olhar penetrante,
e apesar disso fiel e generoso, você me tortura!
— Como posso fazer isso? Se o senhor é sincero, e sua oferta real, meus
únicos sentimentos para com o senhor devem ser de gratidão e dedicação... não
podem torturar.
— Gratidão! — ele exclamou; e acrescentou meio louco: — Jane, aceite-me
logo. Diga: Edward... chame-me pelo meu nome... Edward... eu me casarei com
você.
— Fala sério? Realmente me ama? Deseja sinceramente que eu seja sua
esposa?
— Desejo; e se é necessário um juramento para satisfazê-la, eu juro.
— Então, senhor, eu me casarei com o senhor.
— Edward... minha mulherzinha!
— Querido Edward!
— Venha para mim... venha para mim inteiramente agora — ele disse; e
acrescentou no tom mais profundo, falando em meu ouvido, a face colada na
minha:
— Faça a minha felicidade... eu farei a sua.
— Deus me perdoe — acrescentou dentro em pouco. — E que homem algum
se meta comigo: eu a tenho, e a manterei.
— Não há ninguém para se meter, senhor. Não tenho parente para interferir.
— Não... isso é o melhor — ele disse. E se eu o amasse menos teria julgado
seu tom e aparência de uma exaltação selvagem; mas, sentada ao lado dele,
despertada do pesadelo da separação — chamada ao paraíso da união — pensava
apenas na felicidade que me davam a beber num fluxo tão abundante. Repetidas
vezes ele disse: "Sente-se feliz, Jane?" E repetidas vezes eu respondi: "Sim".
Após o que ele murmurava: "Isso expiará... expiará. Não a encontrei sem amigos,
com frio e sem conforto? Não a protegerei, estimarei e consolarei? Não há amor
em meu coração, e constância em minhas decisões? Isso expiará no tribunal de
Deus. Eu sei que meu Criador aprova o que estou fazendo. Quanto ao julgamento
do mundo... lavo minhas mãos dele. Quanto à opinião humana, eu a desafio."
Mas que acontecera à noite? A lua ainda não descera, e estávamos
mergulhados em sombras: eu mal podia ver o rosto de meu amo, apesar de tão
perto. E que afligia o castanheiro? Ele estremecia e gemia; enquanto o vento rugia
na alameda de loureiros, e avançava sobre nós.
— Temos de ir — disse o Sr. Rochester. — O tempo está mudando. Eu
poderia ficar sentado aqui com você até a manhã, Jane.
"E eu também", pensei, "com você". Devia tê-lo dito, talvez, mas uma lívida e
vivida faísca desprendeu-se de uma nuvem que eu olhava, e houve um estrondo,
um baque, e um estrepitoso matraquear perto; e pensei apenas em proteger os
olhos ofuscados no ombro do Sr. Rochester.
A chuva desabou. Ele me fez subir correndo a alameda, atravessar os jardins e
entrar em casa; mas já estávamos bastante molhados quando cruzamos a soleira.
Ele tirava meu xale no saguão, e espremia a água de meus cabelos encharcados,
quando a Sra. Fairfax surgiu de seu quarto. Não a vi a princípio, nem o Sr.
Rochester. A lâmpada estava acesa. O relógio ia bater doze horas.
— Tire logo essas coisas molhadas — ele disse. — E antes de se ir... boa-
noite... boa-noite, minha querida.
Beijou-me repetidas vezes. Quando ergui o olhar, ao deixar os seus braços, lá
estava a viúva, pálida, séria e pasmada. Apenas sorri para ela e corri para cima.
"A explicação ficará para outra hora", pensei. Contudo, ao chegar ao meu quarto,
senti uma pontada à idéia de que ela poderia, mesmo temporariamente, entender
errado o que vira. Mas a alegria logo apagou todos os outros sentimentos; e
embora o vento sofresse ruidoso, os trovões estrondassem próximos e profundos,
os raios luzissem ferozes e freqüentes, e a chuva caísse em cataratas, numa
tempestade de duas horas, não senti medo e só pouco temor. O Sr. Rochester veio
três vezes à minha porta durante a borrasca, para perguntar se eu estava segura e
tranqüila; e isso era conforto, era força para qualquer coisa.
Antes de deixar a cama na manhã seguinte, a pequena Adèle veio correndo
dizer-me que o grande castanheiro no fundo do pomar fora atingido por um raio à
noite e rachado ao meio.
CAPITULO 24
DEPOIS de levantar-me e vestir-me, pensei em tudo que acontecera e
perguntei-me se não fora um sonho. Não poderia ter certeza da realidade até ver
novamente o Sr. Rochester, e ouvi-lo renovar suas palavras de amor e promessa.
Enquanto arrumava o cabelo, olhei meu rosto no espelho, e senti que não era
mais o de uma jovem de aparência comum: havia esperança em seu aspecto e vida
em sua cor; e meus olhos pareciam ter contemplado a fonte do prazer, e dela
tomado de empréstimo os raios das ondas lustrosas. Muitas vezes eu não quisera
olhar o meu amo, temendo que não lhe fosse agradável a minha aparência, mas
agora tinha certeza de que poderia erguer o rosto para o dele, e não esfriar sua
afeição com minha expressão. Peguei um vestido simples, mas limpo e leve, de
verão, em minha gaveta e o vesti: parecia que nenhum traje me assentara tão bem
antes, porque eu nunca usara nenhum num estado de espírito de tamanha
felicidade.
Não me surpreendi, quando desci correndo para o saguão, ao ver que uma
luminosa manhã de junho sucedera à tempestade da noite passada; e ao sentir,
através da porta de vidro aberta, o sopro de uma brisa fresca e fragrante. A
natureza devia estar satisfeita quando eu me sentia tão feliz. Uma mendiga e seu
filhinho — ambos pálidos, maltrapilhos — subiam a entrada da propriedade, e
desci correndo e dei-lhes todo o dinheiro que tinha, na bolsa — uns três ou quatro
xelins: bons ou maus, tinham de partilhar de meu júbilo. Os corvos crocitavam, e
pássaros ainda mais alegres cantavam, mas nada era tão feliz ou tão musical
quanto meu coração transbordante de alegria.
A Sra. Fairfax surpreendeu-me, olhando pela janela com uma expressão triste
e dizendo gravemente:
— Srta. Eyre, quer entrar para o desjejum?
Durante a refeição, ela permaneceu calada e fria, mas eu não podia tirá-la de
seu engano então. Tinha de esperar que meu amo desse as explicações; e ela
também. Comi o que pude, e depois corri lá para cima. Encontrei Adèle saindo da
sala de aula.
— Aonde vai você? É a hora das lições.
— O Sr. Rochester me mandou para o quarto das crianças.
— Onde está ele?
— Aí dentro — indicando o aposento que deixara; e eu entrei, e lá estava ele.
— Venha desejar-me bom-dia — ele disse. Adiantei-me alegremente; e não
foi apenas uma palavra fria agora, ou mesmo um aperto de mão, o que recebi, mas
um abraço e um beijo. Parecia natural, parecia reconfortante ser tão amada, tão
acariciada por ele.
— Jane, você parece em flor, sorridente, e linda — ele disse. — Realmente
linda esta manhã. Será essa minha pálida duendezinha? Será essa o meu grão de
mostarda? Essa mocinha de rosto ensolarado, com faces cheias de covinhas e
lábios róseos; o cabelo de avelã liso como cetim, e radiantes olhos de avelã? (Eu
tinha olhos verdes, leitor; mas deve perdoar o engano: para ele, eles tinham novas
cores, suponho).
— É Jane Eyre, senhor.
— Em breve, Jane Rochester — ele acrescentou — dentro de quatro semanas,
Jane; nem um dia mais. Está ouvindo isso?
Eu estava, e não podia compreender inteiramente: deixava-me zonza. A
sensação que o anúncio causou em mim era mais forte do que a alegria podia
suportar — algo que batia e estonteava: era, creio, quase medo.
— Você corou, e agora está pálida, Jane, por que isso?
— Porque o senhor me deu um novo nome... Jane Rochester; e parece tão
estranho.
— Sim, Sra. Rochester — ele disse —; a jovem Sra. Rochester... a noiva de
Fairfax Rochester.
— Nunca poderá ser assim, senhor; não soa convincente. Os seres humanos
jamais gozam de completa felicidade neste mundo. Não nasci para um destino
diferente do do resto de minha espécie: imaginar que uma tal sorte me caberá é
um conto de fadas... sonhar acordada.
— Um sonho que eu posso realizar e realizarei. Começarei hoje. Esta manhã,
escrevi a meu banqueiro em Londres para que me enviasse algumas jóias que tem
sob sua guarda... heranças tradicionais das damas de Thornfield. Dentro de um ou
dois dias, espero despejá-las em seu colo, pois todos os privilégios, todas as
atenções que eu concederia à filha de um par, se estivesse para desposá-la, serão
seus.
— Oh, senhor, esqueça as jóias! Não gosto de ouvir falar delas. Jóias para
Jane Eyre soa não natural e estranho: eu preferia não tê-las.
— Eu próprio porei o colar de diamantes em torno de seu pescoço, e a tiara
em sua cabeça... onde assentará bem, pois a natureza, ao menos, imprimiu sua
patente de nobreza nessa testa, Jane; e fecharei os braceletes nesses belos pulsos,
e encherei de anéis esses dedos de fada.
— Não, não, senhor! Pense em outras coisas, e fale delas, e em outro tom.
Não me fale como se eu fosse uma beldade; sou sua governante de aparência
comum, como uma Quaker.
— Você é uma beldade a meus olhos, e uma beldade na medida exata de meu
coração... delicada e diáfana.
— Fraca e insignificante, o senhor quer dizer. Está sonhando, senhor... ou
estará se divertindo? Por Deus, não seja irônico!
— E também farei com que o mundo a reconheça como uma beldade — ele
prosseguiu, enquanto eu realmente me tornava inquieta com o tom que ele
adotara, porque sentia que estava se iludindo ou tentando me iludir. — Vestirei
minha Jane de cetim e rendas, e ela usará rosas nos cabelos; e cobrirei a cabeça
que mais amo com um véu inestimável.
— E aí não me reconhecerá, senhor; e não serei mais sua Jane Eyre, mas uma
macaca num traje de Arlequim... um gaio com plumas emprestadas. Eu preferiria
vê-lo ao senhor, Sr. Rochester, vestido com trajes teatrais, do que a mim vestida
em trajes de dama da corte; e não o chamo de bonito, senhor, embora o ame
muitíssimo; muitíssimo mesmo, para lisonjeá-lo. Não me lisonjeie.
Ele prosseguiu em seu tema, no entanto, sem dar atenção à minha advertência.
— Hoje mesmo eu a levarei na carruagem a Millcote, e você escolherá alguns
vestidos para si. Já lhe disse que nos casaremos dentro de quatro semanas. O
casamento deverá realizar-se discretamente, na igreja ali embaixo; e depois eu a
raptarei logo para a cidade. Após uma breve estada ali, levarei meu tesouro para
regiões mais próximas do sol, às vinhas francesas e às planícies italianas; e ela
verá tudo que há de famoso na velha história e nos anais modernos; provará
também da vida nas cidades; e aprenderá a valorizar-se pela justa comparação
com outros.
— Vou viajar? E com o senhor?
— Você passará temporadas em Paris, Roma e Nápoles; em Florença, Veneza
e Viena; toda a terra que percorri será revisitada por você; onde quer que eu tenha
posto o pé, seu pezinho de sílfide pisará também. Há dez anos, voei pela Europa
meio louco, tendo o desgosto, o ódio e a raiva como companheiros; agora a
revisitarei curado e limpo, tendo um verdadeiro anjo como minha confortadora.
Sorri dele quando disse isso.
— Não sou um anjo — afirmei. — E não serei até morrer; serei eu mesma. Sr.
Rochester, o senhor não deve esperar nem exigir nada celestial de mim... pois não
conseguirá, não mais do que eu conseguirei do senhor; o que não prevejo de modo
algum.
— Que prevê de mim?
— Por algum tempo, o senhor será talvez como é agora... por muito pouco
tempo; e depois se tornará frio; e depois caprichoso; e depois severo, e terei muito
trabalho para agradar-lhe; mas quando se acostumar comigo, talvez volte a gostar
de mim... digo gostar, não amar. Suponho que seu amor fervilhará durante seis
meses ou menos. Tenho observado em livros escritos por homens que esse é o
período atribuído como o máximo a que se estende o ardor de um marido.
Contudo, afinal, como amiga e companheira, espero nunca me tornar inteiramente
desagradável ao meu querido senhor.
— Desagradável! E eu voltar a gostar de você! Creio que voltarei a gostar de
você, e voltarei de novo; e a farei confessar que não apenas gosto de você, mas a
amo... com sinceridade, ardor, constância.
— Mas o senhor não é caprichoso?
— Com mulheres que me agradam apenas pelos seus rostos, sou o próprio
demônio quando descubro que elas não têm alma nem coração... quando me
revelam uma perspectiva de chatice, trivialidade, e talvez imbecilidade, grosseria
e mau gênio; mas à visão clara e à língua eloqüente, à alma feita de fogo e ao
caráter que enverga mas não quebra... ao mesmo tempo flexível e estável, tratável
e consistente... sou sempre terno e sincero.
— Já teve alguma experiência com um caráter assim, senhor? Já amou alguém
assim?
— Estou amando agora.
— Mas antes de mim, se é que eu, em algum aspecto, correspondo ao seu
difícil padrão?
— Nunca conheci alguém como você, Jane. Você me agrada, e me domina...
parece submeter-me, e gosto da sensação de flexibilidade que transmite; e
enquanto enrolo no dedo esse fio macio e sedoso, ele envia braço acima uma
emoção que vai até o coração. Sou influenciado... vencido; e a influência é mais
doce do que o que consigo expressar; e a derrota que sofro tem um feitiço que
ultrapassa qualquer triunfo que eu possa conquistar. Por que está sorrindo, Jane?
Que significa essa expressão inexplicável e esquisita?
— Eu estava pensando, senhor (vai desculpar a idéia; foi involuntária), estava
pensando em Hércules e Sansão com suas feiticeiras...
— Estava, não estava, sua duendezinha?...
— Silêncio, senhor! Não está falando com muita sensatez agora; não mais do
que aqueles heróis se portaram sensatamente. Contudo, se eles se tivessem
casado, teriam sem dúvida, com a severidade de maridos, compensado a
debilidade de quando eram pretendentes; e assim fará o senhor, receio. Imagino
como me responderá daqui a um ano, se eu lhe pedir um favor que não lhe seja
conveniente ou agradável conceder.
— Peça-me alguma coisa agora, Jane... a mínima coisa, desejo ser solicitado
a...
— Eu o farei mesmo, senhor; já tenho o pedido pronto.
— Fale! Mas se me olhar e sorrir com essa expressão, jurarei conceder antes
de saber o quê, e isso fará de mim um idiota.
— De modo nenhum, senhor; peço-lhe apenas isso: não mande buscar as
jóias, e não me coroe com rosas: seria o mesmo que pôr uma borda dourada em
torno desse seu lenço de bolso.
— Seria o mesmo que "dourar ouro refinado". Sei disso, seu pedido está
concedido então... por enquanto. Cancelarei a ordem que mandei ao meu
banqueiro. Mas você ainda não pediu nada, pediu que um presente fosse
retomado; tente outra vez.
— Bem, então, senhor, tenha a bondade de satisfazer minha curiosidade, que
está muito espicaçada quanto a uma coisa.
Ele pareceu inquieto.
— Quê? Quê? — apressou-se a dizer. — Curiosidade é um pedido perigoso;
ainda bem que não jurei conceder todos os pedidos...
— Mas não há perigo algum em atender a este, senhor.
— Diga-o, Jane; mas eu desejava que, em vez de uma simples pergunta sobre
um segredo, talvez, fosse um desejo de ter metade de meus bens.
— Ora, Rei Ashaverus! Que quero eu com metade de suas propriedades?
Acha que sou um usurário judeu, buscando bom investimento em terras? Eu
preferiria muito mais ter metade de sua confiança. Não vai me excluir de sua
confiança, quando me admite em seu coração?
— Você é bem-vinda a toda a minha confiança que valha a pena ter, Jane;
mas, pelo amor de Deus, não deseje um fardo inútil! Não anseie pelo veneno...
não se transforme numa completa Eva em minhas mãos!
— Por que não, senhor? Acabou de me dizer que gostava muito de ser
vencido, e que o excesso de persuasão lhe era muito agradável. Não acha que era
melhor eu me aproveitar da confissão e começar a pedir e adular... e mesmo
chorar e ficar macambúzia, se necessário... apenas para testar meu poder?
— Você que faça qualquer experiência desse tipo! Invada, seja presunçosa, e
o jogo está acabado.
— Está, senhor? O senhor cede logo. Como parece severo agora! Suas
sobrancelhas se tornaram grossas como meu dedo, e a testa parece o que, numa
poesia bastante surpreendente, vi uma vez descrito como "um pára-raios envolto
em azul". Será essa a sua aparência quando casado, senhor, suponho?
— Se essa for a sua aparência quando casada, eu, como cristão, logo
abandonarei a idéia de consorciar-me com um mero espírito ou salamandra. Mas
que tinha a perguntar, coisinha... vamos com isso?
— Aí está, o senhor se mostra menos polido agora; e eu gosto muito mais da
rudeza do que da lisonja. Prefiro ser uma coisinha a um anjo. O que tenho a
perguntar é o seguinte: por que se esforçou tanto para fazer-me crer que desejava
casar-se com a Srta. Ingram?
— É só isso? Graças a Deus não é algo pior! — E ele afrouxou as negras
sobrancelhas; baixou o olhar, sorrindo-me, e alisou-me o cabelo, como satisfeito
por ver um perigo evitado. — Creio que posso confessar — continuou — mesmo
correndo o risco de deixá-la um pouco indignada, Jane... e já vi que espírito de
fogo você se torna quando indignada. Você ardeu à fria luz da lua ontem à noite,
quando se revoltou contra o destino e reivindicou igualdade de condições comigo.
A propósito, Jane, foi você quem me fez a proposta.
— É claro que fiz. Mas atenha-se a questão, por favor, senhor... a Srta.
Ingram?
— Bem, fingi fazer a corte à Srta. Ingram porque queria deixar você tão
loucamente apaixonada por mim quanto eu estava por você; e sabia que o ciúme
seria o melhor aliado que poderia convocar para chegar a esse fim.
— Excelente! Agora o senhor está pequeno... nem um tiquinho maior que a
ponta de meu dedo mindinho. Foi uma indesculpável vergonha e uma escandalosa
desgraça agir dessa forma. Não pensou nada nos sentimentos da Srta. Ingram,
senhor?
— Os sentimentos dela se concentram num só: orgulho; e isso precisa ser
humilhado. Ficou com ciúmes, Jane?
— Deixe isso para lá, Sr. Rochester; não lhe interessa de modo algum saber
isso. Responda-me sinceramente mais ".'ma vez. Acha que a Srta. Ingram não
sofrerá com sua desonesta coqueteria? Não se sentirá ela abandonada e desertada?
— Impossível! Quando já lhe disse que foi ela, ao contrário, quem me
desertou: a idéia de minha insolvência esfriou, ou antes extinguiu, o ardor dela
num instante.
— O senhor tem uma mente curiosa, calculista, Sr. Rochester. Receio que
seus princípios sejam excêntricos em alguns pontos.
— Meus princípios nunca foram treinados, Jane: devem ter-se tornado um
tanto tortos por falta de atenção.
— Mais uma vez, falemos sério; será que posso desfrutar do grande bem que
me foi concedido, sem temer que qualquer outra pessoa esteja sofrendo a amarga
dor que eu própria sentia há pouco?
— Isso pode, sim, minha boa menininha; não existe outro ser no mundo que
tenha o mesmo amor puro por mim que você tem... pois despejo esse agradável
ungüento em minha alma, Jane, a crença em sua afeição.
Volvi os lábios para a mão que pousava em meu ombro. Amava-o muito —
mais do que poderia confiar em mim mesma para dizer — mais do que as
palavras podiam expressar.
— Peça mais alguma coisa — ele disse afinal. — É um prazer para mim ser
solicitado, e conceder.
Mais uma vez, eu estava pronta com meu pedido.
— Comunique suas intenções à Sra. Fairfax, senhor; ela me viu com o senhor
na noite passada, no saguão, e ficou chocada. Dê-lhe alguma explicação antes que
eu torne a vê-la. Dói-me ser mal julgada por uma mulher tão boa.
— Vá para seu quarto, e ponha sua touca — ele respondeu. — Quero que
você me acompanhe a Millcote esta manhã; e enquanto se prepara para a viagem,
esclarecerei a velha dama. Será que ela pensou, Jane, que você tinha dado o
mundo pelo amor, considerando-o bem perdido?
— Creio que ela pensou que me esqueci de minha posição, e da posição do
senhor.
— Posição! Posição!... Sua posição é no meu coração, e no pescoço daqueles
que a insultaram, agora e daqui por diante. Vá.
Eu logo estava vestida; e quando ouvi o Sr. Rochester deixar o parlatório da
Sra. Fairfax, apressei-me a descer. A velha dama estivera lendo seu trecho matinal
das Escrituras... a Lição do dia; tinha a Bíblia aberta diante de si, e os óculos em
cima dela. Sua ocupação, suspensa pelo anúncio do Sr. Rochester, parecia
esquecida agora; os olhos, fixos na branca parede defronte, manifestavam a
surpresa de uma mente tranqüila agitada por acontecimentos desusados. Ao ver-
me, despertou, fez uma espécie de esforço para sorrir, e formulou algumas
palavras de congratulação; mas o sorriso morreu, e a frase foi abandonada
inacabada. Ela pôs os óculos, fechou a Bíblia c afastou sua cadeira da mesa.
— Estou tão surpresa — começou — que mal sei o que dizer-lhe, Srta. Eyre.
Não estive sonhando, certamente, estive? Às vezes caio no sono quando estou
sentada sozinha e imagino coisas que jamais aconteceram. Já me pareceu mais de
uma vez, quando cochilo, que meu querido marido, que morreu há quinze anos,
entrava e se sentava a meu lado; e até o ouvia me chamar pelo meu nome, Alice,
como costumava fazer. Agora, pode dizer-me se é realmente verdade que o Sr.
Rochester lhe pediu que se casasse com ele? Não ria de mim. Mas realmente
pensei que ele veio aqui há cinco minutos e disse que, dentro de um mês, você
será esposa dele.
— Ele me disse a mesma coisa — respondi.
— Disse! E você acredita nele? Aceitou-o?
— Sim.
Ela me olhava espantada.
— Eu jamais teria pensado nisso. Ele é um homem orgulhoso; todos os
Rochester foram orgulhosos, e o pai dele, pelo menos, gostava de dinheiro. Ele
também sempre foi chamado de cuidadoso. Pretende casar-se com você?
— Foi o que me disse.
Ela examinou toda a minha pessoa: li em seus olhos que hão encontrara
nenhum poder suficientemente forte para solucionar o enigma.
— Não entendo! — ela continuou. — Mas sem dúvida é verdade, uma vez
que você o diz. O que resultará disso, eu não sei; realmente não sei. A igualdade
de posições e fortuna é muitas vezes aconselhável em tais casos; e há vinte anos
de diferença nas idades de vocês. Ele quase podia ser seu pai.
— Não, deveras, Sra. Fairfax! — exclamei, irritada: — ele não tem nada de
meu pai! Ninguém que nos tenha visto juntos suporia isso, por um só instante. O
Sr. Rochester parece tão jovem, e é tão jovem, quanto alguns homens aos vinte e
cinco anos.
— Será realmente por amor que ele vai se casar com você? — ela perguntou.
Fiquei tão magoada com sua frieza e ceticismo, que as lágrimas me subiram
aos olhos.
— Sinto magoá-la — prosseguiu a viúva — mas você é tão jovem, e conhece
tão pouco os homens, que eu desejava pô-la de sobreaviso. Há um velho ditado
que diz que "nem tudo que reluz é ouro"; e neste caso eu receio que se descubra
alguma coisa diferente do que eu ou você esperamos.
— Por quê? Serei eu um monstro? — eu disse. — Será impossível que o Sr.
Rochester tenha um afeto sincero por mim?
— Não, você está muito bem; e muito melhor ultimamente; e o Sr. Rochester,
eu diria, gosta de você. Sempre notei que você era uma espécie de bichinho de
estimação dele. Houve algumas vezes em que, por sua causa, fiquei um pouco
inquieta com essa acentuada preferência, e desejei pô-la em guarda; mas não
gostava de sugerir sequer a possibilidade de erro. Sabia que uma tal idéia a
chocaria, e talvez até a ofendesse; e você era tão discreta, e tão inteiramente
recatada e sensata, que eu esperava que se pudesse confiar em que soubesse
proteger-se. Não posso lhe dizer o que sofri na noite passada, quando a procurei
por toda a casa e não consegui encontrá-la em parte alguma, e nem ao patrão; e
então, às doze horas, vi você entrando com ele.
— Bem, esqueça isso agora — interrompi impaciente. — Basta saber que era
tudo correto.
— Espero que seja tudo correto no fim — ela disse; — mas, creia-me, todo
cuidado é pouco de sua parte. Tente manter o Sr. Rochester à distância, desconfie
tanto de você quanto dele. Cavalheiros na posição dele não costumam desposar
suas governantas.
Eu estava ficando verdadeiramente irritada: felizmente, Adèle entrou
correndo.
— Deixe-me ir... deixe-me ir a Millcote também! — gritava. — O Sr.
Rochester não deixa, embora haja tanto espaço na nova carruagem. Peça a ele que
me deixe ir, mademoiselle.
— Vou pedir, Adèle. — E apressei-me a sair com ela, satisfeita por deixar
minha sombria monitora. A carruagem estava pronta: traziam-na para a frente da
casa, e meu amo passejava pela calçada, com Pilot seguindo-o de um lado para
outro.
— Adèle pode acompanhar-nos, não pode, senhor?
— Eu já disse a ela que não. Não tolerarei fedelhas... só levarei você.
— Deixe-a ir, Sr. Rochester, por favor, seria melhor.
— Não, ela será um impedimento.
Era muito peremptório, tanto na aparência quanto na voz. A água fria das
advertências da Sra. Fairfax e a umidade de suas dúvidas caíram sobre mim:
alguma coisa de insubstancial e incerto toldara minhas esperanças. Perdi a
sensação de poder sobre ele. Estava para obedecer-lhe mecanicamente, sem
maiores resistências; mas quando me ajudava a entrar na carruagem, ele me olhou
o rosto.
— Qual é o problema? — perguntou. — Toda a luz do sol se foi. Deseja
realmente que a criança vá? Ficará aborrecida se a deixarmos para trás?
— Eu preferia que ela fosse, senhor.
— Então corra a buscar sua touca, e volte como um raio! — ele gritou para
Adèle.
Ela obedeceu com a rapidez que podia.
— Afinal, a interrupção de uma única manhã não importará muito — ele disse
— quando pretendo muito breve reclamá-la... seus pensamentos, conversas e
companhia... para a vida toda.
Adèle, quando a ergueram para dentro da carruagem, começou a beijar-me,
como forma de manifestar sua gratidão por minha intercessão; foi no mesmo
instante afastada para um canto, do outro lado dele. Ela então espiou para onde eu
me sentava; um vizinho tão severo era muito restritivo; a ele, em seu atual estado
de espírito rabugento, ela não ousava murmurar observações, nem pedir nenhuma
informação.
— Deixe-a vir para junto de mim — pedi. — Talvez o incomode, senhor: há
bastante espaço deste lado.
Ele me entregou a menina como se fosse um cãozinho fraldiqueiro.
— Ainda a mando para a escola — disse, mas agora sorria. Adèle ouviu-o, e
perguntou se ia para a escola "sans mademoiselle". * * Sem a senhorita. (N. do T.)
— Sim — ele respondeu —, absolutamente sans mademoiselle; pois eu vou
levar mademoiselle para a lua, e ali buscarei uma caverna num dos vales brancos
entre os cumes dos vulcões, e mademoiselle viverá comigo lá, só comigo.
— Ela não terá nada para comer; o senhor vai matá-la de fome — observou
Adèle.
— Apanharei maná para ela de manhã e de noite: as planícies e encostas da
lua estão brancas de maná, Adèle!
— Ela precisará de se aquecer: que usará para fazer uma fogueira?
— O fogo brota das montanhas lunares; quando ela tiver frio, eu a carregarei
para um pico, e a depositarei na beira de uma cratera.
— Oh, qu'elle y será mal... peu confortable!** E as roupas dela, que se
gastarão, como poderá conseguir novas? ** Oh, como ela ficará mal, lá... pouco confortável! (N. do T.)
O Sr. Rochester admitiu que estava enrascado.
— Hem! — disse. — Que faria você, Adèle? Esprema o cérebro para arranjar
um jeito. Que tal uma nuvem branca ou rosa para um vestido, hem? E podia-se
fazer uma bela echarpe com um pedaço do arco-íris.
— Ela está muito melhor assim — concluiu Adèle, após pensar por algum
tempo. — Além disso, se cansaria de viver apenas com o senhor na lua. Se eu
fosse mademoiselle, jamais consentiria em ir com o senhor.
— Ela consentiu, deu sua palavra.
— Mas o senhor não pode levá-la lá; não há estrada para a lua; só ar; e nem o
senhor nem ela podem voar.
— Adèle, olhe aquele campo. — Estávamos agora fora dos portões de
Thornfield, percorrendo a suave estrada para Millcote, onde a poeira fora bem
assentada pela tempestade, e onde as baixas sebes e as vistosas árvores em cada
lado reluziam verdes e refrescadas pela chuva.
— Naquele campo, Adèle, eu caminhava ao fim de uma tarde, há uma
quinzena... na noite do dia em que você me ajudou a arrumar o feno nos prados do
pomar; e como estava cansado de arrumar os montes de feno com o ancinho,
sentei-me para descansar num passadiço; e ali peguei um caderninho e um lápis, e
comecei a escrever sobre o infortúnio que se abateu sobre mim há muito tempo, e
sobre o desejo que tinha de dias felizes no futuro. Escrevia muito rápido, embora
a luz do dia esmorecesse na página, quando alguma coisa surgiu na estrada e
parou a duas jardas de mim. Olhei-a. Era uma coisinha com um véu de gaze na
cabeça. Pedi que se aproximasse; e logo ela estava em meu joelho. Não falei com
ela, nem ela comigo, em palavras; mas eu lia os olhos dela, e ela lia os meus; e
nosso mudo colóquio tratou do seguinte:
"Era uma fada, e vinha da terra dos duendes, segundo ela; e sua missão era
fazer-me feliz: eu devia sair com ela do mundo comum e ir para um lugar
solitário... como a lua, por exemplo... e ela acenou com a cabeça para a lua, que se
erguia sobre Hayhill, falou-me da caverna de alabastro e do vale de prata onde
poderíamos viver. Eu disse que gostaria de ir; mas lembrei-lhe, como você, de que
não tinha asas para voar.
"— Oh — respondeu a fada —, isso não significa nada! Eis aqui um talismã
que afastará as dificuldades." — E estendeu um belo anel de ouro. — "Ponha-o"
— disse — "no quarto dedo de minha mão esquerda, e serei sua, e você meu: e
deixaremos a terra, e faremos nosso próprio céu além". — Indicou novamente a
lua com um aceno. O anel, Adèle, está no meu bolso, disfarçado de um soberano;
mas pretendo em breve transformá-lo em anel de novo.
— Mas que tem mademoiselle a ver com isso? Não me interessa a fada: o
senhor disse que era a mademoiselle que levaria para a lua.
— Mademoiselle é uma fada — ele disse, sussurrando misteriosamente. Ao
que eu disse a ela que não se importasse com a travessura dele; e ela, por sua
parte, demonstrou um fundo de genuíno ceticismo francês; denominando o Sr.
Rochester de "un vrai mentem"*, e assegurando-lhe que não levava em conta
nenhum de seus "contes de fée"**, e que, "du reste, il n'y avait pas de fées, et
quand même il y en avait"***, tinha certeza de que jamais apareceriam a ele, e
jamais lhe dariam anéis, ou se ofereceriam para viver com ele na lua. * Um verdadeiro mentiroso.
** Contos de fada.
*** Além do mais, não havia fadas, e mesmo que houvesse... (N. do T.)
A hora que passamos em Millcote foi um tanto incômoda para mim. O Sr.
Rochester obrigou-me a ir a uma certa loja de sedas: ali, ordenaram-me que
escolhesse meia dúzia de vestidos. Odiei o problema, pedi para adiá-lo: não —
tinha de ser resolvido na hora. Através de pedidos expressos em enérgicos
sussurros, reduzi a meia dúzia a dois, mas estes, ele jurou que os escolheria
pessoalmente. Com ansiedade, observei seu olhar vagar pelos alegres estoques:
fixou-se numa bela seda da cor da mais brilhante ametista, e num soberbo cetim
rosa. Eu lhe disse, numa nova série de sussurros, que tanto fazia me comprar logo
um vestido de ouro e uma touca de prata: eu certamente jamais usaria os que ele
escolhera. Com infinita dificuldade, pois ele era teimoso como uma pedra,
convenci-o a fazer uma troca em favor de um sóbrio cetim negro e uma seda cor
de pérola.
— Podia passar por agora — ele disse — mas ainda me veria reluzente como
um. canteiro de flores.
Fiquei feliz por arrancá-lo da loja de sedas, e depois de uma joalheria: quanto
mais ele fazia compras para mim, mais minhas faces ardiam com uma sensação de
aborrecimento e degradação. Quando voltamos a subir na carruagem, e me sentei,
febril e exausta, lembrei-me daquilo que, na pressa de todos aqueles
acontecimentos, tristes e alegres, tinha esquecido completamente — a carta de
meu tio, John Eyre, à Sra. Reed, sua intenção de adotar-me e fazer-me sua
herdeira. "Seria realmente um alívio", pensei, "se eu tivesse mesmo uma pequena
independência dessa; jamais poderei suportar ser vestida como uma boneca pelo
Sr. Rochester, ou ficar sentada como uma segunda Danae, com a chuva de ouro
caindo todo dia à minha volta. Escreverei para a ilha da Madeira assim que chegar
em casa, e direi ao tio John que vou me casar, e com quem: se tivesse ao menos a
perspectiva de um dia trazer ao Sr. Rochester alguma fortuna, poderia suportar
melhor o ser mantida por ele". E, um tanto reconfortada por essa idéia (que não
deixei de executar naquele dia), aventurei-me uma vez mais a enfrentar o olhar de
meu senhor e amo, que buscava o meu com a máxima insistência, embora eu
desviasse tanto o rosto como os olhos. Ele sorriu; e achei que aquele sorriso era o
que um sultão, num momento de felicidade e bondade, teria dado a uma escrava a
quem seu ouro e jóias houvessem enriquecido; apertei fortemente a mão dele, que
estava sempre à procura da minha, e a soltei vermelha da apaixonada pressão.
— O senhor não precisa olhar dessa maneira — eu disse. — Se olhar, só
usarei meus velhos vestidos de Lowood até o fim. Me casarei com aquele de
algodãozinho lilás; o senhor pode fazer um robe para o senhor com seda cor de
pérola, e uma série infinita de coletes com o cetim preto.
Ele deu uma risadinha; esfregou as mãos.
— Oh, como é belo vê-la e ouvi-la! — exclamou. — Não é original? Não é
provocante! Eu não trocaria essa mocinha inglesa por todo o serralho do Grão
Turco... com olhos de gazela e tudo!
A alusão ao Oriente me irritou novamente.
— Não substituirei um serralho para o senhor de modo nenhum — eu disse.
— Assim, não me considere o equivalente de um. Se gosta de alguma coisa nesse
estilo, vá procurar os bazares de Istambul sem mais demora, senhor, e aplique na
compra de muitas escravas o dinheiro que parece não saber onde gastar
satisfatoriamente aqui.
— E que fará você, Jane, enquanto eu negocio tantas toneladas de carne
humana e um tal sortimento de olhos negros?
— Estarei me preparando para ir como missionária pregar a liberdade às
escravas... as integrantes de seu harém entre elas. Eu me farei admitir lá e
provocarei motins; e o senhor, como paxá, se verá num instante a ferros em
nossas mãos, e eu, pelo menos, não consentirei em abrir suas cadeias até que
tenha assinado uma carta, a mais liberal que um déspota já concedeu.
— Eu consentiria em ficar à sua mercê, Jane.
— Eu não teria mercê, Sr. Rochester, mesmo que o senhor a suplicasse com
um olhar desses. Olhando assim, eu teria certeza de que, fosse qual fosse a carta
que concedesse sob coerção, seu primeiro ato, quando libertado, seria violar suas
condições.
— Ora, Jane, que quereria você? Receio que me obrigue a submeter-me a uma
cerimônia de casamento privada, além de que se realizará no altar. Estipulará,
vejo, termos particulares... quais serão eles?
— Desejo apenas tranqüilidade de espírito, senhor; não quero ter o espírito
esmagado sob obrigações. Lembra-se do que disse de Céline Varens? Dos
diamantes, das casimiras que deu a ela? Eu não serei sua Céline Varens inglesa.
Continuarei a agir como governanta de Adèle; com isso ganharei minha casa e
comida, e mais trinta libras por ano. Guarnecerei meu guarda-roupa com esse
dinheiro, e o senhor me dará apenas...
— Bem, o quê?
— Sua consideração; e se eu lhe der a minha em troca, a dívida estará quitada.
— Bem, quanto a fria impudência e puro orgulho inatos, você não tem rival
— ele disse. Aproximávamo-nos agora de Thornfield. — Ser-lhe-á agradável
jantar comigo esta noite? — perguntou, quando atravessamos os portões.
— Não, obrigada, senhor.
— E por que esse "não, obrigada, senhor", se se pode perguntar?
— Eu nunca jantei com o senhor; e não vejo porque deva agora; até...
— Até o quê? Você adora frases inacabadas.
— Até que eu não possa evitar.
— Será que você acha que eu como um ogre ou monstro, para temer me fazer
companhia em meu repasto?
— Não fiz nenhuma idéia quanto a isso, senhor; mas quero continuar como
até agora por mais um mês.
— Você deixará sua escravidão de governanta imediatamente.
— Na verdade, e pedindo-lhe perdão, senhor, não farei isso. Continuarei
como até agora. Vou me manter longe de seu caminho o dia todo, como estou
acostumada a fazer; o senhor pode mandar me chamar à noite, quando tiver
vontade de me ver, e eu irei então; mas não em outra hora.
— Quero fumar, Jane, ou tomar uma pitada de rape, para confortar-me em
tudo isso, "pour me donner une contenance"*, como diria Adèle; e infelizmente,
não trouxe nem minha caixa de charutos nem minha caixa de rape. Mas escute.
Agora é sua vez, pequena tirana, mas você acabará sendo minha; e assim que eu
me apodere de você, para ter e manter, eu simplesmente ... usando uma linguagem
figurada... a porei em cadeias assim (tocando a corrente do relógio). Sim, coisinha
bonita, eu a usarei no peito, para não perder minha jóia. * Para disfarçar meu embaraço. (N. do T.)
Disse isso ao me ajudar a descer da carruagem; e enquanto tomava depois
Adèle nos braços, entrei em casa e me recolhi lá em cima.
Ele me convocou à sua presença à noite, como combinado. Eu tinha preparado
uma ocupação para ele; pois estava decidida a não passar todo o tempo numa
conversa tête-à-tête. Lembrei-me de sua bela voz; sabia que ele gostava de cantar
— os bons cantores geralmente gostam. Eu não era nenhuma vocalista, e, no
fastidioso julgamento dele, tampouco uma boa música; mas adorava ouvir quando
a apresentação era boa. Assim que o crepúsculo, hora romântica, começou a
baixar sua cortina azul e estrelada sobre a gelosia, levantei-me, abri o piano e
pedi-lhe, pelo amor de Deus, que cantasse para mim. Ele disse que eu era uma
feiticeira caprichosa, e que preferia cantar em outra hora; mas afirmei que
nenhuma hora era como aquela.
— Eu gostava de sua voz? — ele me perguntou.
— Muito. — Não me agradava alimentar sua suscetível vaidade; mas por
aquela vez, e por uma questão de interesse, eu a bajularia e estimularia.
— Então, Jane, você deve tocar o acompanhamento.
— Muito bem, senhor, vou tentar.
Tentei, mas acabei sendo afastada do banquinho e denominada de "uma
desastradazinha". Sendo eu posta de lado com tão pouca cerimônia — que era
precisamente o que desejava — ele usurpou meu lugar e passou a se acompanhar
a si mesmo; pois sabia tocar tão bem quanto cantar. Corri a instalar-me no vão de
uma janela; e enquanto me sentava ali e olhava lá fora as árvores paradas e o
escuro gramado, a seguinte canção era cantada com uma música suave e em tons
suaves:
O amor mais sincero que um coração
já sentiu em seu âmago ardente,
Despejou em cada veia, em rápido ritmo,
a onda da existência.
Eu esperava a sua vinda, a cada dia,
E sua partida era a minha dor;
O acaso que retardava seus passos
Era gelo em todas as veias.
Eu sonhava que seria uma felicidade indizível
pois amava, para ser amado;
E a esse objeto me abraçava
cega e avidamente.
Mas vasto e sem caminhos era o espaço
Que havia entre nossas vidas,
E perigoso como a espumosa impetuosidade
Das verdes ondas do oceano.
E assombrado como a estrada do assaltante,
Através de desertos e bosques;
Pois a Força, o Direito, a Desgraça e a Ira
Se erguiam entre nossos espíritos.
Perigos enfrentei; obstáculos desprezei;
Maus augúrios desafiei;
Tudo que ameaçava, perseguia, advertia,
passei com impetuosidade.
Adiante seguia meu arco-íris, veloz como a luz;
Eu voava como em sonhos;
Pois gloriosa surgia à minha vista
Aquela filha da Chuva e do Sol.
Ainda brilhante em nuvens de penosa escuridão
Refulge aquela alegria suave, solene;
E neto me importa agora como os desastres
Se acumularão em breve.
Não me importa neste doce momento,
Mesmo que tudo para o que corri
Viesse aparado, forte e passageiro,
Proclamando dorida vingança.
Mesmo que o altivo ódio me golpeasse,
E o Direito, a prisão me trouxesse,
E a Força esmagadora, com furiosa carranca,
Me jurasse eterna inimizade.
Meu amor pôs sua mãozinha
Com nobre fé sobre a minha,
E jurou que o sagrado laço do matrimônio
Nossa natureza entrelaçaria.
Meu amor jurou, com o selo de um beijo,
Comigo viver — e morrer;
Tenho afinal minha felicidade indizível:
Como amo — amado sou!
Ele se levantou e se aproximou de mim, e vi aquele rosto ardente, aqueles
olhos de falcão chispando, ternura e paixão em todos os seus traços. Fraquejei por
um instante — mas logo me refiz. Não toleraria cenas melosas, manifestações
ousadas; e estava em perigo de ambas; precisava preparar uma arma de defesa —
afiei a língua; e quando ele me alcançou, perguntei com aspereza "a quem ele ia
desposar".
— Aquela era uma estranha pergunta a ser feita por sua querida Jane.
— De fato! Eu considerava uma pergunta muito natural e necessária, ele
falara de sua futura esposa morrendo consigo. Que queria dizer com tal idéia
paga? Eu não tinha nenhuma intenção de morrer com ele... podia contar com isso.
— Oh, tudo que ansiava, tudo por que rezava, era que eu vivesse com ele! A
morte não era para alguém como eu.
— Na verdade era, eu tinha tanto direito a morrer, quando chegasse minha
hora, quanto ele, mas esperaria essa hora, e não seria apressada como uma esposa
hindu.
— Será que eu lhe perdoaria a idéia egoísta, e demonstraria meu perdão com
um beijo de reconciliação?
— Não, eu preferiria que me desculpassem.
Neste ponto ouvi-me chamada de "coisinha dura"; e acrescentou-se que
"qualquer outra mulher se teria derretido até a medula ao ouvir tais stanzas
cantadas em seu louvor".
Assegurei-lhe que eu era naturalmente dura — bastante empedernida, e que
ele muitas vezes me acharia assim; e que, além disso, estava decidida a mostrar-
lhe diversos pontos espinhosos de meu caráter: antes de se passarem as quatro
semanas seguintes, ele devia saber plenamente que espécie de barganha fizera,
enquanto ainda havia tempo de rescindi-la.
— Poderia eu ficar quieta e falar racionalmente?
— Eu ficaria quieta se ele quisesse; e quanto a falar racionalmente, eu me
gabava de estar fazendo exatamente isso agora.
Ele se lamuriou, muxoxeou. "Muito bem", pensei, "pode fumegar e se agitar,
como quiser, mas este é o melhor plano a seguir com o senhor, estou certa. Gosto
mais do senhor do que posso exprimir; mas não vou mergulhar em
sentimentalismo; e com esse aguilhão de despedida o manterei afastado da borda
do fosso, também; e, além disso, manterei com sua ajuda perfurante essa distância
entre o senhor e eu, que é o que melhor conduz à nossa mútua vantagem".
Pouco a pouco, eu o pusera num considerável estado de irritação; depois,
quando se retirara ressentido para o outro extremo da sala, levantei-me e, dizendo
"Desejo-lhe uma boa noite, senhor", em minha natural e costumeira maneira,
esgueirei-me pela porta lateral e me fui.
Prossegui com o sistema assim iniciado durante todo o período de
experiência; e com o maior sucesso. Ele ficou, evidentemente, um tanto irritado e
encrespado; mas no todo eu podia ver que estava sendo excelentemente entretido,
e que uma submissão de ovelha e uma sensibilidade de rolinha, embora
alimentassem mais o seu despotismo, teriam agradado menos o seu julgamento,
satisfeito menos o seu bom senso e servido menos ao seu gosto.
Na presença de outras pessoas, eu era, como antes, deferente e calada;
qualquer outra linha de conduta teria sido inoportuna: só nas entrevistas noturnas
é que o frustrava e afligia assim. Ele continuava a mandar chamar-me
pontualmente assim que o relógio batia sete horas; embora, quando eu aparecia à
sua frente, não usasse mais termos melosos como "amor" e "querida": as melhores
palavras a meu serviço eram "boneca provocante", "duende maliciosa", "bruxa",
"enjeitada" etc. Em vez de carícias, também, eu recebia agora caretas; em vez de
um aperto na mão, um beliscão no braço; em vez de um beijo no rosto, um severo
puxão de orelha. Estava tudo bem: no momento, eu decididamente preferia esses
ferozes favores a qualquer coisa mais carinhosa. Via que a Sra. Fairfax me
aprovava; sua ansiedade a meu respeito desaparecera; desta forma, eu tinha
certeza de que agia bem. Enquanto isso, o Sr. Rochester afirmava que eu o estava
desgastando até a pele e o osso, e ameaçava com terrível vingança por minha
conduta atual em um período que se aproximava rapidamente. Eu sorria à socapa
de suas ameaças. "Posso mantê-lo em razoável contenção agora", refletia, "e não
duvido de que seja capaz de fazê-lo depois: se um expediente perde sua eficácia,
imagina-se outro".
Contudo, minha tarefa não era fácil, afinal; muitas vezes eu preferiria agradá-
lo a irritá-lo. Meu futuro marido tornava-se para mim o mundo inteiro; e mais que
o mundo; quase a minha esperança de paraíso. Erguia-se entre mim e toda idéia
de religião, como um eclipse intervém entre o homem e o vasto sol. Naqueles
dias, eu não conseguia ver Deus por causa de Sua criatura, à qual idolatrava.
CAPITULO 25
O MÊS de namoro passou: suas últimas horas estavam contadas. Não havia
como adiar o dia que se aproximava — o dia dos esponsais; e todos os
preparativos para sua chegada estavam completos. Eu, pelo menos, nada mais
tinha a fazer: lá estavam meus baús, arrumados, fechados a chave, encordoados,
enfileirados junto à parede de meu quartinho; no dia seguinte, àquela hora,
estariam longe, a caminho de Londres; e o mesmo aconteceria comigo (Data
Vertia) — ou antes, não comigo, mas com uma certa Jane Rochester, uma pessoa
a quem eu ainda não conhecia. Só faltava pregar as etiquetas com os endereços, e
lá estavam elas, quatro cartõezinhos quadrados, na gaveta. O próprio Sr.
Rochester escrevera o endereço: "Sra. Rochester, Hotel..., Londres", em cada um:
eu não conseguia decidir-me a colá-los, ou a mandar colá-los. Sra. Rochester!
Não existia uma tal pessoa, só nasceria na manhã seguinte, em algum momento
após as oito horas; e eu esperaria para ter certeza de que viera ao mundo viva,
antes de atribuir-lhe toda aquela propriedade. Bastava que no armário do outro
lado, defronte à minha penteadeira, roupas que se dizia serem dela já houvessem
substituído meu vestido negro e meu chapéu de palha, pois não era a mim que
pertencia aquele conjunto de vestes matrimoniais; o vestido cor de pérola, o
vaporoso véu suspenso da usurpada valise. Fechei o armário para esconder o
estranho objeto em forma de visagem que continha; e que, àquela hora noturna —
nove horas — emitia sem dúvida um fulgar bastante fantasmagórico em meio à
penumbra do aposento. "Eu o deixarei sozinho, meu sonho branco", disse. "Estou
febril, ouço o vento soprando; sairei ao ar livre para senti-lo."
Não era apenas o corre-corre dos preparativos que me deixava febril; não era
apenas a antecipação da grande transformação — a nova vida que se iniciaria no
dia seguinte: essas duas circunstâncias tinham sua parcela, sem dúvida, na
produção daquele estado de espírito irrequieto e excitado que me impelia a uma
hora tão tardia para os jardins mergulhados na escuridão; mas uma terceira causa
me influenciava o espírito mais que essas.
Eu tinha no íntimo uma estranha e ansiosa idéia. Acontecera alguma coisa que
não conseguia entender; ninguém soubera do acontecimento nem o vira, a não ser
eu: ocorrera na noite anterior. O Sr. Rochester estava ausente de casa, e não tinha
voltado ainda; fora a negócios a uma pequena propriedade de duas ou três
fazendas que possuía a trinta milhas de distância — negócios que tinha de acertar
pessoalmente, antes da planejada partida da Inglaterra. Eu aguardava seu retorno,
ansiosa por aliviar meu espírito e buscar junto a ele a solução do enigma que me
deixava perplexa. Espere até a volta dele, leitor; e, quando eu lhe revelar meu
segredo, você partilhará da confidencia.
Busquei o pomar, impelida ao seu abrigo pelo vento, que soprara forte e pleno
todo o dia vindo do sul, sem no entanto trazer uma gota de chuva. Em vez de
amainar com o avanço da noite, parecia aumentar de impetuosidade e aprofundar
seu rugido: as árvores inclinavam-se uniformemente numa só direção, jamais
voltando à posição normal, e mal recolhendo os galhos uma vez a cada hora; tão
contínua era a força que as curvava para o norte — as nuvens vagavam de um
pólo a outro, passando rápido, massa após massa: não se vira nenhum vislumbre
de céu azul naquele dia de julho.
Não foi sem certo prazer que corri diante do vento, entregando minha
perturbação mental à imensurável torrente de ar que rugia pelo espaço. Descendo
a alameda de loureiros, cheguei diante dos destroços do castanheiro; ele se erguia,
negro e rachado; o tronco, dividido ao meio, abria-se fantasmagoricamente. As
duas metades não se haviam separado uma da outra, pois a base firme e as fortes
raízes as mantinham unidas embaixo; embora a comunidade vital estivesse
destruída — a seiva não mais poderia fluir, os grandes galhos de ambos os lados
estavam mortos, e as tempestades do inverno seguinte certamente derrubariam
uma ou ambas; por enquanto, porém, podia-se dizer que formavam uma árvore —
uma ruína, mas uma ruína inteira.
— Vocês fizeram bem em se apegarem uma à outra — eu disse, como se os
monstruosos fragmentos fossem coisas vivas e pudessem ouvir. — Acho que,
mesmo danificadas como estão, carbonizadas e crestadas, deve haver uma
pequena sensação de vida em vocês ainda: brotando dessa adesão às fiéis e
honestas raízes, jamais voltarão a ter folhas verdes — jamais verão os pássaros
fazendo ninhos e cantando idílios em seus galhos; para vocês, acabou-se o tempo
do prazer e do amor; mas não estão desoladas; cada uma tem uma companheira
para simpatizar consigo em sua decomposição. — Enquanto as olhava, a lua
apareceu por um momento na parte do céu que ficava na fissura, o disco de um
vermelho sangrento e meio encoberto; parecia lançar-me um olhar espantado,
lúgubre, e voltou a ocultar-se no mesmo instante na profunda vaga de nuvens. O
vento se abateu por um segundo em torno de Thornfield; mas lá longe, sobre
bosques e ribeiros, ressoou um bárbaro e melancólico lamento: era triste de ouvir,
e pus-me novamente a correr.
Vagueei de um lado para outro pelo pomar, recolhi as maçãs que juncavam o
relvado em torno das raízes das árvores; depois me ocupei em separar as maduras
das verdes; levei-as para dentro de casa e guardei-as na despensa. Depois fui à
biblioteca, para ver se a lareira estava acesa, pois, embora fosse verão, sabia que
numa noite tão escura o Sr. Rochester gostaria de ver um fogo vivo quando
voltasse; sim, a lareira fora atiçada algumas vezes, e ardia bem. Coloquei a
poltrona dele no canto da chaminé; rolei a mesa para junto dela; baixei a cortina, e
mandei vir velas prontas para serem acesas.
Mais inquieta que nunca, depois de concluir esses arranjos, não conseguia
ficar parada, nem mesmo permanecer dentro de casa: um pequeno relógio na sala
e o velho relógio do saguão bateram dez horas simultaneamente.
— Como está ficando tarde! — eu disse. — Vou correr até os portões lá
embaixo; há luar de vez em quando; posso ver a uma boa distância na estrada. Ele
pode estar vindo agora, e ir ao seu encontro me poupará alguns minutos de espera.
O vento rugia no topo das grandes árvores que ladeavam os portões; mas a
estrada, até onde eu podia ver, parecia inteiramente silenciosa e deserta, em
ambas direções; a não ser pelas sombras das nuvens que a cruzavam
ocasionalmente, quando a lua aparecia, era apenas uma longa e pálida linha, não
assinalada por um único ponto.
Uma lágrima pueril turvou-me a vista enquanto olhava — uma lágrima de
decepção e impaciência; envergonhada dela, enxuguei-a. E fui ficando; a lua
fechou-se inteiramente em sua câmara, e cerrou a cortina de densa nuvem; a noite
escureceu; veio a chuva, soprada com força pelo vento.
— Eu queria que ele viesse! Eu queria que ele viesse! — exclamei, tomada de
hipocondríaco pressentimento. Esperara a chegada dele antes do chá; agora já
estava escuro, que poderia tê-lo retido? Ocorrera um acidente? O acontecimento
da noite passada me voltou à mente. Interpretei-o como um aviso de desgraça.
Temia que minhas esperanças fossem demasiado brilhantes para se realizarem; e
gozara de tanta felicidade ultimamente, que imaginava que minha felicidade
passara o auge, e devia agora declinar.
"Bem, não posso voltar à casa", pensei. "Não posso ficar sentada diante da
lareira, enquanto ele está lá fora neste tempo inclemente; melhor cansar as pernas
que angustiar o coração; vou ao seu encontro."
Parti; andava rápido, mas não fui muito longe; não tinha ainda percorrido um
quarto de milha, e já ouvia o bater dos cascos; surgiu um cavaleiro a todo galope;
um cachorro corria a seu lado. Fora com os maus pressentimentos! Era ele, ali
estava, montado em Mesrour, acompanhado por Pilot. Viu-me, pois a lua abrira
um campo azul no céu e nadava em aquosa luminosidade: ele tirou o chapéu e o
agitou sobre a cabeça. Corri ao seu encontro.
— Aí está! — ele exclamou, estendendo a mão e curvando-se sobre a sela. —
Você não pode passar sem mim, isso é evidente. Pise na ponta de minha bota; dê-
me ambas as mãos: monte!
Obedeci; a alegria tornava-me ágil; saltei para a frente dele. Como boas-
vindas, recebi um ardente beijo e uma demonstração de triunfo, que engoli como
pude. Ele se conteve em sua exaltação para perguntar:
— Mas há algum problema, Janet, para que você venha ao meu encontro a
esta hora? Alguma coisa errada?
— Não, mas pensei que o senhor jamais viria. Não pude agüentar ficar
esperando-o dentro de casa, especialmente com esta chuva e este vento.
— Chuva e vento, realmente! Sim, você está pingando como uma sereia; entre
em meu capote; mas acho que está febril, Jane. O rosto e a mão estão escaldando.
Pergunto novamente: há algum problema?
— Agora, nenhum; não estou com medo nem infeliz. — Então estava assim?
— Mais ou menos; mas lhe direi tudo aos poucos, senhor; e aposto que
simplesmente rirá de meus sofrimentos.
— Vou rir de você com vontade depois de amanhã; até então, não me atrevo,
meu prêmio ainda não é certo. Mas esta é você, que esteve tão escorregadia
quanto uma enguia no último mês, e tão espinhenta como um espinheiro? Eu não
podia pôr um dedo em lugar algum sem ser picado; e agora é como se tivesse
recolhido uma ovelha perdida nos braços. Você se desviou do rebanho para
buscar seu pastor, não foi, Jane?
— Eu queria o senhor; mas não se gabe. Chegamos a Thornfield; agora deixe-
me descer.
Ele me depositou no calçamento. Enquanto John levava o seu cavalo, e ele me
seguia para dentro de casa, disse-me que me apressasse a pôr algumas roupas
secas e depois voltasse para encontrá-lo na biblioteca; e me deteve, quando me
dirigia à escada, para fazer-me prometer que não me demoraria; e não me
demorei; em cinco minutos, juntei-me a ele. Encontrei-o ceando.
— Sente-se e faça-me companhia, Jane: se Deus quiser, esta é a penúltima
refeição que você fará em Thornfield Hall por um longo tempo.
Sentei-me junto dele, mas disse-lhe que não podia comer.
— É porque tem a perspectiva de uma viagem à sua frente, Jane? É a idéia de
que vai para Londres que lhe tira o apetite?
— Não posso ver claramente minha perspectiva esta noite, senhor; e mal sei
que idéias tenho na cabeça. Tudo na vida parece irreal.
— Exceto eu; sou bastante concreto... toque-me.
— O senhor é o mais fantasmal de todos, é um simples sonho.
Ele estendeu a mão, rindo.
— Isto é um sonho? — disse, colocando-a perto de meus olhos. Tinha uma
mão redonda, musculosa e vigorosa, e um braço comprido e forte.
— Sim, mesmo que eu a toque, é um sonho — eu disse, afastando-a de diante
de meu rosto. — Senhor, acabou a ceia?
— Sim, Jane.
Toquei a sineta e ordenei que retirassem a bandeja. Quando voltamos a ficar
sós, aticei o fogo, e depois tomei um banquinho junto aos joelhos de meu senhor.
— É quase meia-noite — eu disse.
— Sim, mas lembre-se, Jane, que prometeu fazer vigília comigo na noite
anterior ao meu casamento.
— Prometi; e manterei minha promessa, ao menos por uma ou duas horas;
não tenho nenhuma vontade de ir para a cama.
— Todos os seus preparativos já estão concluídos?
— Todos, senhor.
— E os meus também — ela retrucou. — Já acertei tudo, e deixaremos
Thornfield amanhã, meia hora após nossa volta da igreja.
— Muito bem, senhor.
— Você disse essa expressão... "muito bem", com um extraordinário sorriso,
Jane! Que bela mancha de rubor tem em cada face! E como seus olhos brilham
estranhamente! Está se sentindo bem?
— Creio que estou.
— Crê! Que é que há? Diga-me o que está sentindo.
— Eu não poderia, senhor, nenhuma palavra poderia exprimir o que sinto.
Queria que esta hora agora jamais cessasse: quem sabe que destino a próxima
pode trazer?
— Isso é hipocondria, Jane. Você tem estado superexcitada, ou superfatigada.
— O senhor se sente calmo e feliz?
— Calmo?... Não; mas feliz... até o fundo do coração. Ergui o olhar para ele,
para ler os sinais de felicidade em seu rosto: estava ardente e corado.
— Dê-me sua confiança, Jane — ele disse. — Descarregue o espírito de
qualquer peso que o oprima, comunicando-o a mim. Que teme você? Que eu não
me revele um bom marido?
— É a idéia mais distante de meus pensamentos.
— Sente-se apreensiva quanto à nova esfera em que está para entrar? Quanto
à nova vida para a qual está passando?
— Não.
— Você me intriga, Jane, sua aparência e seu tom de sentida audácia me
deixam perplexo e sofrendo. Quero uma explicação.
— Então, senhor, escute. O senhor esteve fora ontem à noite?
— Estive, sei disso, e você insinuou há pouco algo que aconteceu em minha
ausência; nada importante, provavelmente; mas, em suma, a perturbou. Ouçamos
o que foi. A Sra. Fairfax disse alguma coisa, por acaso? Ou você ouviu os criados
falando? Seu sensível respeito próprio foi ferido?
— Não, senhor. — Bateram doze horas; esperei que o reloginho da sala
concluísse seu trinado cristalino, e o da sala suas grossas e vibrantes badaladas, e
depois prossegui: — Durante todo o dia, ontem, estive ocupada, e muito satisfeita
com minha incessante ocupação; pois não me sinto perturbada, como o senhor
parece pensar, por quaisquer temores obsessivos sobre a nova esfera etc: acho
uma coisa gloriosa ter a esperança de viver com o senhor, porque o amo. Não,
senhor, não me acaricie agora... deixe-me falar sem atrapalhação. Ontem eu
confiava muito na Providência, e acreditava que os acontecimentos trabalhavam
em combinação para o seu bem e o meu; fez um belo dia, se o senhor se lembra...
a calma do ar e do céu impedia apreensões a respeito de sua segurança ou
conforto, em sua viagem. Passeei um pouco no calçamento após o chá, pensando
no senhor; e o via tão perto de mim, em minha imaginação, que mal sentia a sua
ausência. Pensava na vida que tinha diante de mim... sua vida, senhor... uma
existência mais ampla e movimentada que a minha, tanto mais quanto as
profundezas do oceano o são do riacho que corre para ele. Perguntava-me por que
os moralistas chamam este mundo de um lúgubre deserto: para mim, ele florescia
como uma rosa. Ao pôr-do-sol, o ar se tornou frio e o céu nublado: entrei. Sophie
me chamou lá em cima para ver meu vestido de noiva, que acabavam de trazer; e
debaixo dele, dentro da caixa, encontrei seu presente... o véu que, em sua
principesca extravagância, o senhor mandou buscar em Londres, resolvido,
suponho, já que eu não aceitaria jóias, a tapear-me para aceitar uma coisa
igualmente cara. Sorri ao desdobrá-lo, e imaginei de que modo ia arreliá-lo sobre
seus gostos aristocráticos e seus esforços para disfarçar uma noiva plebéia nos
atributos de uma nobre. Pensei em como lhe traria o quadrado de renda sem
bordado que mandei preparar como cobertura para minha cabeça de baixa
extração, e perguntaria se aquilo não era suficientemente bom para uma mulher
que não podia trazer ao marido nem fortuna, nem beleza, nem ligações. Via
claramente a aparência que o senhor teria; e ouvia suas respostas impetuosamente
republicanas, e a altiva negação de qualquer necessidade de aumentar sua riqueza,
ou elevar sua posição casando-se com uma bolsa ou com uma coroa.
— Como viu bem dentro de mim, sua feiticeira! — interrompeu o Sr.
Rochester. — Mas que encontrou no véu além do bordado? Encontrou veneno, ou
uma adaga, para parecer tão triste agora?
— Não, não, senhor; além da delicadeza e riqueza do tecido, não encontrei
nada a não ser o orgulho de Fairfax Rochester, e isso não me assustou, porque
estou acostumada à visão desse demônio. Mas, senhor, à medida que escurecia, o
vento ficou mais forte, soprou ontem à noite não como sopra agora... violento e
impetuoso... mas "com um som triste, lamentoso", muito mais sinistro. Eu
desejava que o senhor estivesse em casa. Vim a esta sala, e a visão da poltrona
vazia e da lareira sem fogo me causou um calafrio. Durante algum tempo depois
de ter ido para a cama, não consegui dormir... uma sensação de ansiosa excitação
me perturbava. O vento, sempre aumentando de força, parecia a meus ouvidos
abafar um lamentoso sub-som: se era dentro de casa ou lá fora, eu não podia
distinguir a princípio, mas voltava sempre, incerto mas dolente a cada rajada;
afinal decidi que devia ser algum cachorro uivando longe. Fiquei satisfeita quando
acabou. Quando adormeci, continuei em sonhos com a idéia de uma noite escura e
tempestuosa. Continuei também a desejar estar com o senhor, e experimentava
uma estranha e lamentável consciência de que alguma barreira nos dividia.
Durante todo o primeiro sono, eu percorria os meandros de uma estrada
desconhecida; cercava-me uma total escuridão; a chuva me açoitava; eu estava
assoberbada com o peso de uma criança, uma criaturinha bem pequena,
demasiado nova e frágil para andar, e que tremia em meus braços frios e chorava
impiedosamente em meus ouvidos. Eu achava que o senhor estava na estrada
muito à minha frente; e forçava cada nervo do corpo para alcançá-lo, e fazia
repetidos esforços para emitir o seu nome e pedir-lhe que parasse... mas meus
movimentos estavam acorrentados, e minha voz morria inarticulada; enquanto o
senhor, eu sentia, afastava-se mais e mais a cada momento.
— E esses sonhos pesam em seu espírito agora, Jane, que estou junto a você?
Coisinha nervosa! Esqueça as desgraças imaginárias, pense apenas na felicidade
real! Você diz que me ama, Jane: sim... não vou esquecer isso; e você não pode
negá-lo. Essas palavras não morreram inarticuladas em seus lábios. Eu as ouvi,
claro e suave; um pensamento demasiado solene, talvez, mas doce como música:
"Acho uma coisa gloriosa ter a esperança de viver com o senhor, porque o amo."
Você me ama, Jane? Repita.
— Amo, senhor... amo, com todo o meu coração.
— Bem — ele disse, após um silêncio de alguns minutos — é estranho; mas
essa sentença entrou dolorosamente em meu peito. Por quê? Acho que porque
você a disse com um vigor tão sério, tão religioso, e porque seu olhar, erguido
para mim agora, é a própria sublimidade da fé, da verdade, da devoção; é
demasiado como se um espírito estivesse junto a mim. Pareça má, Jane, como
você bem sabe parecer; fabrique um de seus sorrisos loucos, tímidos,
provocativos; diga que me odeia... arrelie-me, embarace-me; eu preferia ser
insultado a entristecido.
— Eu o arreliarei e embaraçarei a seu gosto, senhor, quando acabar minha
história; mas ouça-me até o fim.
— Eu pensava, Jane, que roce já tinha me contado tudo. Achava que tinha
descoberto a origem de sua melancolia num sonho.
Balancei a cabeça.
— Quê! Ainda há mais coisas? Mas não creio que seja algo importante.
Comunico-lhe antecipadamente minha incredulidade. Prossiga!
A inquietude de sua expressão, a impaciência um tanto apreensiva de suas
maneiras me surpreenderam; mas prossegui.
— Tive outro sonho, senhor; sonhei que Thornfield Hall era uma lúgubre
ruína, um reduto de morcegos e corujas. Pensei que de todo o imponente frontão
nada mais restava a não ser um muro parecido a uma casca, muito alto e de
aparência muito frágil. Eu vagueava ao luar pelo terreno lá dentro, invadido pelo
mato; aqui, dava com uma lareira de mármore, ali, com um pedaço caído de
cornija. Envolta num xale, levava ainda a criancinha desconhecida; não podia
depositá-la em parte alguma, por mais cansados que estivessem meus braços —
por mais que o peso dela impedisse o meu avanço, eu tinha de segurá-la. Ouvia o
galope de um cavalo distante, na estrada; tinha certeza de que era o senhor, que
partia por muitos anos, e para um país distante. Trepei na fina parede com rapidez
frenética, perigosa, ansiosa por conseguir ter um vislumbre do senhor lá de cima;
as pedras rolavam sob meus pés, os ramos de hera a que me agarrava cediam, a
criança se agarrava a meu pescoço aterrorizada, e quase me estrangulava. Via o
senhor como um ponto numa trilha branca, diminuindo a cada instante. O
temporal soprava tão forte, que eu não conseguia me aprumar. Sentei-me na
estreita borda; silenciei a estranha criança que tinha no colo: o senhor dobrou uma
curva da estrada, curvei-me para ter uma última visão; a parede desmoronou; fui
sacudida; a criança rolou-me dos joelhos, perdi o equilíbrio, caí e acordei.
— E agora, Jane, é tudo?
— Todo o prefácio, senhor: a história ainda está por vir. Ao despertar, um
brilho me ofuscou os olhos, pensei: oh, já é dia! Mas estava enganada; era apenas
uma vela. Sophie, eu supunha, tinha entrado. Havia uma luz em minha
penteadeira, e a porta do armário, onde eu pendurara meu vestido de noiva c meu
véu antes de ir para a cama, estava aberta; ouvi um farfalhar lá dentro. Perguntei:
"Sophie, que está fazendo?" Ninguém respondeu; mas um vulto emergiu do
armário; pegou a vela, ergueu-a, e examinou as roupas penduradas. "Sophie!
Sophie!" tornei a gritar, e novamente só houve silêncio. Eu me tinha erguido na
cama, e me curvei: primeiro a surpresa, e depois o pasmo tomaram conta de mim;
e então senti o sangue gelar-me nas veias. Sr. Rochester, aquela não era Sophie,
não era Leah, não era a Sra. Fairfax; não era... não, eu tinha certeza, e ainda
tenho... não era nem mesmo aquela estranha mulher, Grace Poole.
— Deve ter sido uma delas — interrompeu-me o meu amo.
— Não, senhor, asseguro-lhe solenemente que não. A forma à minha frente
jamais cruzara minha vista dentro de Thornfield Hall antes; a altura, os contornos
eram novos para mim.
— Descreva-a, Jane.
— Parecia, senhor, uma mulher, alta e grande, com cabelos bastos e negros
que lhe caíam até as costas. Não sei que traje usava: era branco e reto; mas se era
vestido, lençol ou mortalha, não sei dizer.
— Viu o rosto dela?
— A princípio, não. Mas ela acabou tirando o véu de seu lugar; ergueu-o,
olhou-o demoradamente, e depois o jogou sobre a cabeça, e se voltou para o
espelho. Nesse momento, vi o reflexo do rosto e as feições bem distintamente, no
escuro espelho retangular.
— E como eram?
— Para mim, pavorosos e fantasmagóricos... oh, senhor, nunca vi um rosto
como aquele! Era um rosto descorado... era um rosto selvagem. Gostaria de poder
esquecer o rolar daqueles olhos injetados e a pavorosa inchação negra daqueles
traços!
— Os fantasmas geralmente são pálidos, Jane.
— Aquele senhor, era violáceo; os lábios inchados e negros; a testa vincada;
as sobrancelhas negras erguidas num grande arco sobre os olhos rubros. Posso
dizer-lhe o que me lembrou?
— Pode.
— O abominável espectro alemão... o vampiro.
— Ah! Que foi que ela fez?
— Senhor, tirou o véu da descarnada cabeça, rasgou-o em duas partes e,
jogando ambas no chão, pisoteou-as.
— E depois?
— Puxou a cortina da janela e olhou para fora; talvez visse a madrugada se
aproximando, pois, pegando a vela, recuou para a porta. Bem ao lado de minha
cama, parou, os olhos de fogo me encararam... ela aproximou a vela de meu rosto,
e apagou-a sob meus olhos. Eu tinha consciência de que seu rosto lúgubre ardia
acima do meu, e perdi os sentidos; pela segunda vez em minha vida... só a
segunda vez... tornei-me insensível ao terror.
— Quem estava a seu lado quando voltou a si?
— Ninguém, senhor, só o dia claro. Levantei-me, lavei a cabeça e o rosto,
bebi um longo gole d'água; sentia que, apesar de enfraquecida, não estava doente,
e decidi que ninguém, a não ser o senhor, saberia dessa visão. Agora, senhor,
diga-me quem, o que era essa mulher?
— Criação de um cérebro superestimulado; uma coisa é certa, preciso cuidar
de você, meu tesouro; nervos como os seus não foram feitos para duros tratos.
— Senhor, pode acreditar em mim, a culpa não foi de meus nervos; a coisa foi
real, o incidente realmente aconteceu.
— E seus sonhos anteriores, foram reais também? Thornfield Hall é uma
ruína? Estou separado de você por obstáculos insuperáveis? Estou deixando-a sem
uma lágrima... sem um beijo... sem uma palavra?
— Ainda não.
— Estou para fazer isso? Ora, já nasceu o dia que nos unirá
indissoluvelmente; e uma vez unidos, não haverá repetições desses terrores
mentais; isso eu garanto.
— Terrores mentais, senhor! Eu gostaria de poder acreditar que fossem
apenas isso; gostaria agora mais do que nunca, uma vez que nem mesmo o senhor
consegue explicar-me o mistério daquela horrível visitante.
— E, já que não posso explicá-lo, Jane, deve ter sido irreal.
— Mas, senhor, quando eu disse isso a mim mesma ao me levantar hoje de
manhã, e quando olhei em volta do quarto para ganhar coragem e conforto com o
aspecto revificante de cada objeto familiar em plena luz do dia, lá... no tapete... vi
o que desmentia claramente a minha hipótese, o véu, rasgado de alto a baixo em
duas metades!
Senti o Sr. Rochester estremecer; apressou-se a passar os braços em torno de
mim.
— Graças a Deus! — exclamou — pelo fato de que, se alguma coisa maligna
chegou perto de você na noite passada, foi só o véu que ficou danificado. Oh,
pensar no que poderia ter acontecido!
Inspirou e puxou-me para tão perto de si, que eu mal podia respirar. Após um
silêncio de alguns minutos, continuou animadamente:
— Agora, Janet, vou lhe explicar tudo isso. Foi meio sonho, meio realidade.
Não duvido de que uma mulher entrou em seu quarto, e essa mulher era... devia
ser... Grace Poole. Você mesma a chama de um ser estranho: por tudo o que sabe,
tem motivos para chamá-la assim... o que ela me fez... o que fez a Mason? Num
estado entre o sono e a vigília, você notou a entrada e os atos dela; mas febril,
quase em delírio como estava, deu-lhe uma aparência de gobelino, diferente da
que ela tem: os longos cabelos descabelados, o escuro rosto inchado, a estatura
exagerada, foram criações de sua imaginação; resultados do pesadelo, o
desdenhoso rompimento do véu foi real; e isso é bem dela. Vejo que gostaria de
me perguntar por que mantenho uma mulher dessas em casa: quando tivermos um
ano e um dia de casados, eu lhe direi; mas não agora. Está satisfeita, Jane? Aceita
minha solução para o mistério?
Refleti, e na verdade me pareceu a única possível: satisfeita não estava, mas
para agradá-lo tentei parecer estar — aliviada, certamente me sentia; assim,
respondi-lhe com um sorriso de satisfação. E então, como passava muito de uma
hora, preparei-me para deixá-lo.
— Sophie não dorme com Adèle no quarto das crianças? — ele me perguntou,
quando acendi minha vela.
— Sim, senhor.
— E há espaço suficiente na cama do Adèle para você. Deve partilhá-la com
ela esta noite, Jane: não admira que o incidente que você me relatou a deixe
nervosa, e eu preferia que não dormisse sozinha: prometa-me ir para o quarto das
crianças.
— Terei muito prazer em fazer isso, senhor.
— E tranque a porta firmemente por dentro. Acorde Sophie quando subir, a
pretexto de pedir-lhe que a acorde cedo amanhã; pois deve estar vestida e
alimentada antes das oito. E agora, chega de pensamentos sombrios, expulse essas
aborrecidas preocupações, Janet. Não ouve a que suaves murmúrios o vento se
reduziu? E a chuva não bate mais nas vidraças: olhe aqui (ergueu a cortina)... está
uma noite adorável!
E estava mesmo. Metade do céu mostrava-se pura e sem mancha: as nuvens,
que agora cavalgavam diante do vento, que mudara para o oeste, enchiam os lados
do leste em colunas compridas e prateadas. A lua luzia pacificamente.
— Bem — disso o Sr. Rochester, olhando-me inquisitivamente nos olhos —
como está minha Janet agora?
— A noite está serena, senhor; eu também.
— E não sonhará com separação e sofrimento esta noite; mas com um amor
feliz e uma união benfazeja.
Essa previsão só se cumpriu pela metade: não sonhei realmente com
sofrimento, mas tampouco sonhei com alegrias; pois nem cheguei a dormir. Com
a pequena Adèle nos braços, fiquei observando o sono da infância — tão
tranqüilo, tão desapaixonado, tão inocente — à espera da chegada do dia: toda a
minha vida estava desperta e se agitava dentro de mim, e assim que o sol nasceu,
levantei-me também. Adèle agarrou-se a mim quando a deixei; lembro-me de que
a beijei ao tirar suas mãozinhas de meu pescoço; e chorei curvada sobre ela com
uma estranha emoção, deixando-a por temer que meus soluços interrompessem
seu ainda tranqüilo repouso. Ela parecia o símbolo de minha vida passada; e
aquele para quem eu ia agora me ataviar, o símbolo temido, mas adorado, de
meus desconhecidos dias futuros.
CAPÍTULO 26
SOPHIE veio às sete para vestir-me; demorou-se muito, de fato, para realizar
essa tarefa; tanto, que o Sr. Rochester, impacientando-se, suponho, com minha
demora, mandou perguntar por que eu não descia. Ela acabava de pregar-me o
véu (o simples quadrado de renda, afinal) nos cabelos com um broche; apressei-
me a sair de suas mãos assim que pude.
— Pare! — ela gritou em francês. — Olhe-se no espelho, não deu nem uma
olhada.
Assim, voltei-me à porta; vi uma figura vestida e velada, tão diferente de
minha costumeira imagem que parecia quase a imagem de uma estranha.
— Jane! — gritou uma voz, e corri para baixo. Fui recebida aos pés da escada
pelo Sr. Rochester. — Retardatária! — ele disse. — Tenho a cabeça em fogo de
impaciência, e você demora tanto!
Levou-me para a sala de jantar, examinou-me toda cuidadosamente, declarou-
me "bela como um lírio, e não apenas o orgulho de sua vida, mas o desejo de seus
olhos", e depois, dizendo-me que me daria cerca de dez minutos para comer o
desjejum, tocou a sineta. Um dos criados que ele contratara ultimamente, um
palafreneiro, respondeu-lhe.
— John está aprontando a carruagem?
— Sim, senhor.
— A bagagem já foi trazida para baixo?
— Estão trazendo-a, senhor.
— Vá à igreja, veja se o Sr. Wood (o clérigo) e o ajudante estão lá, volte e me
diga.
A igreja, como sabe o leitor, ficava logo além dos portões; o palafreneiro logo
retornou.
— O Sr. Wood está na sacristia, senhor, pondo a sobrepeliz.
— E a carruagem?
— Os cavalos estão sendo atrelados.
— Não queremos que vá à igreja; mas deve estar pronta assim que voltarmos,
todas as caixas e bagagens arrumadas e amarradas, e o cocheiro em seu assento.
— Sim, senhor.
— Jane, está pronta?
Levantei-me. Não havia damas de companhia nem parentes para assistir ou
pôr em ordem: ninguém, a não ser o Sr. Rochester e eu. A Sra. Fairfax estava no
saguão quando passamos. Eu gostaria de falar com ela, mas minha mão estava
presa num aperto de ferro: era arrastada por uns passos que mal conseguia
acompanhar; e bastava olhar para o rosto do Sr. Rochester para ver que não se
toleraria nem um segundo de atraso, por nenhum motivo. Imagino se outro noivo
algum dia pareceu com ele — tão decidido a um propósito, tão sombriamente
resoluto; ou que, debaixo de sobrancelhas tão franzidas, revelasse olhos tão
inflamados e chispantes.
Não sei se o dia estava bonito ou feio; ao descer o caminho de entrada da
propriedade, não olhei nem o céu nem a terra: meu coração estava com meus
olhos; e ambos pareciam ter migrado para o corpo do Sr. Rochester. Queria ver a
coisa invisível que, enquanto prosseguíamos, ele parecia olhar ferozmente. Queria
sentir os pensamentos cuja força ele parecia enfrentar e resistir.
No portão do cemitério, paramos: ele descobriu que eu estava inteiramente
sem fôlego.
— Estou sendo cruel em meu amor? — ele perguntou. — Descanse um
momento, apóie-se em mim, Jane.
E agora consigo lembrar-me da imagem da velha casa cinzenta de Deus
erguendo-se tranqüila à minha frente, de um corvo voando em círculos em torno
do campanário, de um encrespado céu matinal acima. Lembro-me alguma coisa,
também, das sepulturas cobertas de verde; e não esqueci tampouco de duas
figuras estranhas andando entre os montículos e lendo gravemente as inscrições
gravadas nas poucas lápides musgosas. Notei-as porque, quando nos viram,
passaram para os fundos da igreja; e não tive dúvidas de que iam entrar pela porta
lateral e assistir à cerimônia. O Sr. Rochester não os viu; olhava seriamente meu
rosto, do qual o sangue tinha momentaneamente fugido, aposto, pois sentia a testa
molhada, e as faces e os lábios gelados. Quando me refiz, o que logo aconteceu,
ele subiu delicadamente comigo o caminho até o pórtico.
Entramos no silencioso e humilde templo; o sacerdote esperava com sua
sobrepeliz branca no altar baixo, o sacristão ao lado. Tudo estava parado, só duas
sombras se moviam num canto remoto. Minha conjectura fora correta: os
estranhos haviam-se esgueirado à nossa frente, e agora estavam ao lado da cripta
dos Rochester, de costas para nós, olhando através do corrimão o túmulo de
mármore manchado pelo tempo, onde um anjo ajoelhado guardava os restos de
Damer Rochester, assassinado em Marston Moor, na época das guerras civis, e de
Eliza-beth, sua mulher.
Tomamos nosso lugar na grade de comunhão. Ouvindo um passo cauteloso
atrás de mim, olhei por cima do ombro: um dos estranhos — um cavalheiro,
evidentemente — adiantava-se pela capela. O serviço começou. A explicação da
intenção do casamento passou, e depois, o clérigo deu um passo à frente, e,
curvando-se ligeiramente para o Sr. Rochester, prosseguiu:
— Exijo e cobro de vocês dois (pois terão de responder no terrível Dia do
Julgamento, quando os segredos de todos os corações serão revelados), que se
qualquer um conhece algum impedimento pelo qual não possam ser legalmente
unidos em matrimônio, confesse agora; pois saibam bem que os que não se unem
pela Palavra de Deus, não estão unidos por Deus, nem seu casamento é legal.
Fez uma pausa, como manda o costume. Quando é que a pausa após essa
sentença é quebrada por uma resposta? É possível que nem uma só vez em cem
anos. E o clérigo, que não erguera os olhos de seu livro, e suspendera a respiração
apenas por um momento, ia prosseguir: já tinha a mão estendida para o Sr.
Rochester, e seus lábios se abriam para perguntar: "Aceita essa mulher como sua
legítima esposa?", quando uma voz clara e próxima disse:
— O casamento não pode prosseguir: eu declaro a existência de um
impedimento.
O sacerdote ergueu o olhar para o homem que falara e ficou mudo; o sacristão
fez a mesma coisa; o Sr. Rochester moveu-se ligeiramente, como se um terremoto
houvesse rolado sob seus pés: tomando uma posição mais firme, e sem voltar a
cabeça ou os olhos, disse:
— Prossiga.
Um profundo silêncio se abateu quando ele pronunciou esta palavra, com
entonação baixa mas profunda. Afinal, o Sr. Wood disse:
— Não posso prosseguir sem fazer uma investigação sobre o que foi
afirmado, e provar sua verdade ou falsidade.
— A cerimônia está inteiramente interrompida — acrescentou uma voz às
nossas costas. — Tenho condições de provar minha acusação: existe um
impedimento insuperável a esse casamento.
O Sr. Rochester ouviu, mas não deu atenção: permaneceu obstinado e rígido,
sem fazer movimento algum, a não ser para se apoderar de minha mão. Que
aperto quente e forte dava! E como sua fronte, como mármore lapidado, estava
pálida e maciça naquele momento! Como seus olhos fulgiam, ainda atentos, ainda
alucinados!
O Sr. Wood parecia não saber o que fazer.
— Qual é a natureza do impedimento? — perguntou. — Talvez possa ser
superado... afastado com alguma explicação.
— É difícil — foi a resposta. — Eu o chamei de insuperável, e falei
judiciosamente.
O homem que falava se adiantou e se apoiou na grade. E continuou, emitindo
cada palavra distintamente, calmamente, mas não em voz muito alta:
— Consiste simplesmente na existência de um casamento anterior. O Sr.
Rochester tem uma esposa viva.
Meus nervos vibraram, com aquelas palavras faladas em voz baixa, como
jamais tinham vibrado com o trovão — meu sangue sentiu a sua sutil violência
como jamais sentira o gelo ou o fogo; mas estava calma, em nenhum perigo de
desmaiar. Olhei o Sr. Rochester; fiz com que ele me olhasse. Todo o seu rosto era
uma rocha sem cor; os olhos eram ao mesmo tempo chispas e pedra. Ele não
negava nada; parecia pronto a desafiar tudo. Sem falar, sem sorrir, sem parecer
reconhecer em mim um ser humano, apenas puxou-me pela cintura com o braço e
me pôs a seu lado.
— Quem é o senhor? — perguntou ao intruso.
— Meu nome é Briggs, solicitador da Rua..., em Londres.
— E me atribui uma esposa?
— Lembro-lhe a existência de sua senhora, senhor, que a lei reconhece,
mesmo que o senhor não.
— Tenha a bondade de dar-me uma descrição dela... com nome, filiação,
lugar de moradia.
— Certamente. — O Sr. Briggs tomou um papel do bolso e o leu, numa
espécie de voz oficial, anasalada: — "Afirmo c posso provar que a 20 de outubro,
A. D.... (uma data de quinze anos atrás), Edward Fairfax Rochester, de Thornfield
Hall, no condado de..., e de Ferndean Manor, em......shire, Inglaterra, casou-se
com minha irmã, Bertha Antoinetta Mason, filha de Jonas Mason, comerciante, e
de Antoinetta Mason, sua esposa, uma mestiça, na Igreja de..., Spanish Town,
Jamaica. O registro do casamento será encontrado no cartório daquela igreja — e
uma cópia está agora em meu poder. Assinado, Richard Mason".
— Este... se é um documento autêntico... prova que me casei, mas não prova
que a mulher aí mencionada como minha esposa ainda está viva.
— Estava viva há três meses — respondeu o advogado.
— Como o senhor sabe?
— Tenho uma testemunha do fato, cujo depoimento nem mesmo o senhor
contradirá.
— Apresente-a, ou vá para o inferno.
— Prefiro apresentá-lo... ele está no local. Sr. Mason, tenha a bondade de
adiantar-se.
O Sr. Rochester, ao ouvir esse nome, cerrou os dentes; experimentou também
uma espécie de forte tremor convulsivo;
perto dele como eu estava, senti o espasmódico movimento de fúria ou
desespero percorrer-lhe o corpo. O segundo estranho, que até então tinha ficado
no fundo, aproximou-se; um rosto pálido apontou por sobre o ombro do
solicitador — sim, era o próprio Sr. Mason. O Sr. Rochester voltou-se e fuzilou-o
com o olhar. Seus olhos, como já disse muitas vezes, eram negros, agora tinham
uma luz fulva, ou antes, sangrenta, de ira; e o rosto enrubesceu — as faces
oliváceas e a testa descorada receberam um fulgor semelhante ao de um incêndio
que se alastra: ele se moveu, ergueu o forte braço — poderia ter atingido o Sr.
Mason, tê-lo atirado no chão da igreja, ter-lhe tirado o fôlego com um golpe brutal
— mas Mason recuou e gritou debilmente,
— Deus de piedade!
O desprezo caiu gélido sobre o Sr. Rochester — sua paixão morreu, como se
um furo a tivesse feito murchar: ele apenas perguntou:
— Que é que você tem a dizer?
Uma resposta inaudível escapou dos lábios brancos do Sr. Mason.
— Diabos o levem se não responder claramente. Pergunto-lhe novamente o
que você tem a dizer?
— Senhor, senhor — interrompeu o sacerdote — não esqueça de que está
num lugar sagrado. — Depois, dirigindo-se a Mason, perguntou delicadamente:
— O senhor sabe, senhor, se a esposa deste cavalheiro está viva ou não?
— Coragem — exortou o advogado. — Fale!
— Ela está agora em Thornfield Hall — disse Mason, em tom mais
articulado. — Eu a vi em abril passado. Sou o irmão dela.
— Em Thornfield Hall! — exclamou o clérigo. — Impossível! Moro aqui há
muito tempo, senhor, e nunca ouvi falar de uma Sra. Rochester em Thornfield
Hall.
Vi um triste sorriso contorcer os lábios do Sr. Rochester, e ele murmurou:
— Não, por Deus! Eu cuidei para que ninguém soubesse dela... pelo menos
com esse nome. — Refletiu por alguns instantes; por uns dez minutos, consultou-
se a si mesmo, tomou sua decisão e anunciou-a.
— Já chega! Tudo deve ser expelido de uma vez, como a bala de um cano.
Wood, feche seu livro, e tire sua sobrepeliz; John Green (ao acólito), saia da
igreja; não haverá casamento hoje. — O homem obedeceu.
O Sr. Rochester continuou, ousada e indiferentemente:
— Bigamia é uma palavra feia! E no entanto, eu pretendia ser um bígamo;
mas o destino me cercou, ou a Providência me conteve... talvez a última. Sou
pouco melhor que um demônio neste momento; e, como me diria o meu pastor
aqui, mereço sem dúvida os mais severos julgamentos de Deus, até a condenação
ao fogo eterno e aos vermes imortais. Cavalheiros, meu plano foi destroçado! O
que esse advogado e seu cliente dizem é verdade, fui casado, e a mulher com
quem me casaram está viva! Você diz que jamais soube de uma Sra. Rochester na
casa ao lado, Wood; mas aposto que muitas vezes deu ouvidos aos mexericos
sobre a misteriosa louca mantida sob guarda lá. Alguém lhe sussurrou que ela é
minha meia irmã bastarda; outro, minha amante abandonada. Informo-lhe agora
que ela é minha esposa, a quem desposei há quinze anos... de nome Bertha
Mason; irmã desse decidido personagem, que está agora, com os membros
trêmulos e as faces pálidas, mostrando-lhe o que um homem corajoso pode
enfrentar. Ânimo, Dick... não tenha medo de mim! Eu antes bateria numa mulher
do que em você. Bertha Mason está louca; e veio de uma família de loucos;
idiotas e maníacos por três gerações. A mãe, a mestiça,, era louca e bêbada! Como
descobri após ter desposado a filha, pois silenciaram os segredos da família antes.
Bertha, como uma filha obediente, copiou a mãe em ambos os pontos. Eu tinha
uma cônjuge encantadora... pura, sensata, modesta, podem imaginar que era um
homem feliz. Passei por belas cenas! Oh, minha experiência foi celestial, se vocês
soubessem! Mas não lhes devo mais nenhuma explicação. Briggs, Wood, Mason,
convido-os todos a virem à casa e visitarem a paciente da Sra. Poole, e minha
esposa! Verão que tipo de ser me tapearam para desposar, e julgarão se eu tinha
ou não o direito de romper o acordo e procurar simpatia junto a alguma coisa ao
menos humana. Esta moça — continuou, olhando-me — não sabia mais do que
você, Wood, sobre esse repugnante segredo: ela pensava que tudo era direito e
legal, e jamais sonhou em que ia ser apanhada numa união fingida com um infeliz
lesado, já amarrado a uma cônjuge louca e embrutecida! Venham todos... sigam-
me!
Ainda me segurando firme, deixou a igreja; os três cavalheiros vieram atrás.
Na porta da frente da mansão, encontramos a carruagem.
— Leve-a de volta à cocheira, John — disse o Sr. Rochester friamente — não
será necessária hoje.
À nossa entrada, a Sra. Fairfax, Adèle, Sophie, Leah adiantaram-se para
cumprimentar-nos.
— Dêem o fora... todas! — gritou o amo. — Fora com suas congratulações!
Quem precisa delas? Eu, não! Estão quinze anos atrasadas!
Seguiu em frente e subiu a escada, ainda segurando-me a mão, e ainda
chamando os cavalheiros a acompanhá-lo, o que eles faziam. Subimos a primeira
escada, atravessamos a galeria, seguimos para o terceiro andar: a porta baixa e
negra, aberta pela chave-mestra do Sr. Rochester, admitiu-nos num quarto com
tapeçarias, uma grande cama e um armário.
— Você conhece o local, Mason — disse nosso guia. — Ela o mordeu e
esfaqueou aqui.
Levantou as cortinas da parede, revelando uma segunda porta, que também
abriu. Num quarto sem janela, ardia um fogo, protegido por uma grade alta e
forte; uma lâmpada pendia de uma corrente do teto. Grace Poole curvava-se sobre
o fogo, aparentemente cozinhando alguma coisa numa caçarola. No fundo escuro,
do outro lado do quarto, uma figura corria de um lado para outro. Não se podia
dizer à primeira vista o que era, uma fera ou um ser humano; aparentemente,
arrastava-se de quatro; abocanhava e rosnava como algum estranho animal
selvagem; mas estava coberta de roupas, e uma massa de cabelos negros,
grisalhos, revoltos como uma crina, ocultava a cabeça e o rosto.
— Bom-dia, Sra. Poole! — disse o Sr. Rochester. — Como vai? E como está
sua protegida hoje?
— Estamos suportáveis, senhor, obrigada — respondeu Grace, erguendo a
comida fumegante até um pino. — Um tanto brava, mas não furiosa.
Um grito feroz pareceu desmentir seu favorável comunicado: a hiena vestida
ergueu-se e postou-se, muito alta, sobre as patas traseiras.
— Ah, senhor, ela o vê! — exclamou Grace. — É melhor não ficar aqui.
— Só uns poucos momentos, Grace, deve me permitir alguns momentos.
— Cuidado então, senhor! Por Deus, tenha cuidado!
A maníaca uivou; afastou as mechas embaraçadas de cabelo do rosto e olhou
selvagemente seus visitantes. Reconheci o rosto violáceo — as feições desfeitas.
A Sra. Poole se adiantou.
— Mantenha-se afastada — disse o Sr. Rochester, empurrando-a para um
lado. — Ela não tem nenhuma faca agora, creio? E estou em guarda.
— A gente nunca sabe o que ela tem, senhor; é tão astuta: não há mortal que
possa prever o que fará.
— É melhor deixarmo-la — sussurrou Mason.
— Vá para o inferno — foi a resposta de seu cunhado.
— Cuidado! — gritou Grace. Os três cavalheiros recuaram ao mesmo tempo.
O Sr. Rochester me empurrou para trás de si; a lunática saltou e agarrou-lhe
traiçoeiramente a garganta, e ferrou-lhe os dentes na face; lutaram. Era uma
mulher grande, quase igualando o marido em estatura, e além disso corpulenta:
demonstrou força viril na disputa — por mais de uma vez quase o estrangulou,
apesar de ele ser atlético. Ele poderia tê-la prostrado com um soco bem dado; mas
não queria bater, apenas lutar. Finalmente, subjugou os braços dela; Grace Poole
deu-lhe uma corda; ele os amarrou por trás; com mais cordas, que estavam à mão,
amarrou-a a uma cadeira. Essa operação se realizou em meio aos berros mais
ferozes e aos mais convulsivos mergulhos. O Sr. Rochester voltou-se então para
os espectadores, olhou-os com um sorriso ao mesmo tempo sarcástico e desolado.
— Esta é minha esposa — disse. — Esse é o único abraço conjugai que
conhecerei... essas são as carícias que me confortam nas horas de lazer. E isso era
o que eu desejava ter (pondo a mão em meu ombro), esta jovem, tão grave e
quieta na boca do inferno, olhando calmamente as cambalhotas de um demônio.
Eu a queria como uma mudança, após esse bárbaro ragu. Wood e Briggs, vejam a
diferença! Comparem esses olhos límpidos com os globos rubros ali... esse rosto
com aquela máscara... essa forma com aquela massa; depois me julguem,
sacerdote do evangelho e homem da lei, e lembrem-se de que, como julgarem,
assim serão julgados. Saiam agora! Devo trancar meu tesouro. Retiramo-nos
todos. O Sr. Rochester quedou-se um momento atrás, para dar mais alguma ordem
a Grace Poole. O solicitador falou-me quando descíamos a escada.
— A senhorita, madame — disse — está isenta de toda culpa: seu tio terá
prazer em saber disso... se na verdade ainda estiver vivo... quando o Sr. Mason
voltar a Madeira.
— Meu tio? Que há com ele? O senhor o conhece?
— O Sr. Mason conhece. O Sr. Eyre é o correspondente em Funchal da casa
dele há alguns anos. Quando seu tio recebeu sua carta informando a projetada
união entre a senhorita e o Sr. Rochester, o Sr. Mason, que estava em Madeira
para recuperar a saúde, a caminho da Jamaica, o encontrou por acaso. O Sr. Eyre
comunicou a informação; pois sabia que meu cliente conhecia um cavalheiro
chamado Rochester. O Sr. Mason, espantado e perturbado como a senhorita pode
imaginar, revelou a verdadeira situação. Sinto dizer que seu tio está agora doente,
de cama; da qual, considerando-se a natureza da doença... velhice... e o estágio
que atingiu, não é provável que volte a levantar-se. Assim, ele não pôde correr
pessoalmente à Inglaterra para salvá-la da armadilha em que caíra, mas implorou
ao Sr. Mason que não perdesse tempo para tomar medidas que evitassem o falso
casamento. Enviou-o a mim, para que lhe desse assistência. Usei de todos os
recursos, e estou satisfeito por não ter chegado tarde demais, como a senhorita,
sem dúvida, também deve estar. Se não tivesse certeza de que seu tio estará morto
antes da senhorita chegar a Madeira, eu a aconselharia a acompanhar o Sr. Mason
na volta; mas, do jeito que estão as coisas, creio que é melhor permanecer na
Inglaterra, até obter mais notícias, do Sr. Eyre ou sobre ele. Temos mais alguma
coisa a fazer aqui? — perguntou ao Sr. Mason.
— Não, não, vamo-nos — foi a ansiosa resposta; e sem esperarem para
despedir-se do Sr. Rochester, saíram pela porta da mansão. O sacerdote ficou,
para trocar algumas palavras, de advertência ou censura, com o altivo paroquiano;
cumprido esse dever, também ele se foi.
Ouvi-o sair parada na porta entreaberta de meu quarto, para o qual me havia
retirado. Esvaziada a casa, tranquei-me, passei o ferrolho, para que ninguém se
intrometesse, e pus-me — não a chorar, não a lamentar, pois estava demasiado
calma para isso, mas — mecanicamente, a tirar o vestido de noiva e substituí-lo
pelo de tecido barato que usara no dia anterior, segundo pensava pela última vez.
Depois me sentei: sentia-me fraca e cansada. Apoiei os braços numa mesa e
deixei cair sobre eles a cabeça. E então comecei a pensar: até então apenas ouvira,
vira, me movimentara — seguira acima e abaixo aonde me levavam ou
arrastavam — observara um acontecimento após outro, revelação após revelação;
mas agora, pensava.
A manhã fora bastante tranqüila — com exceção da breve cena com a louca, o
incidente na igreja não fora barulhento; não houvera explosão de paixão,
discussão em voz alta, disputa; não houvera contestação ou desafio; lágrimas,
soluços: umas poucas palavras tinham sido trocadas, uma objeção fora
calmamente expressa ao casamento; algumas perguntas curtas, severas, feitas pelo
Sr. Rochester; respostas, explicações, provas; uma clara admissão da verdade feita
pelo meu amo; depois vira-se a prova viva; os intrusos tinham partido; e tudo
estava acabado.
Eu estava em meu quarto, como sempre — simplesmente eu mesma, sem
nenhuma mudança óbvia, nada me atingira, ferira ou estropiara. E no entanto,
onde estava a Jane Eyre do dia anterior? Onde estava a sua vida? Onde estavam as
suas perspectivas?
Jane Eyre, que fora uma mulher ardente e esperançosa — quase uma noiva —
era novamente uma moça fria e solitária; suas perspectivas, desoladas. Uma geada
de Natal viera em pleno solstício; uma branca tempestade de dezembro
redemoinhara sobre junho; o gelo cobria as maçãs maduras, nevascas esmagavam
as rosas em flor; sobre os campos de feno e de milho jazia uma gélida mortalha;
paisagens que ontem enrubesciam cheias de flores, hoje estavam cobertas de neve
imaculada; e os bosques, que doze horas antes ondeavam folhudos e fragrantes
como canteiros nos trópicos, agora se estendiam, desertos, selvagens e brancos
como florestas de pinheiros na invernal Noruega. Minhas esperanças estavam
todas mortas — atingidas por uma sutil condenação, como a que, numa só noite,
se abatera sobre todos os primogênitos do Egito. Eu contemplava minhas nutridas
esperanças, ainda ontem tão florescentes e luminosas; estavam por terra,
cadáveres rígidos, frios, lívidos, que jamais ressuscitariam. Contemplei o meu
amor, aquele sentimento que era de meu amo — que ele criara; tiritava em meu
coração, como um bebê doente num berço frio; a doença e a angústia haviam-se
apoderado dele; não podia buscar os braços do Sr. Rochester — não podia extrair
calor de seu peito. Oh, eu nunca mais poderia voltar-me para ele; pois a fé fora
ferida — a confiança destruída! O Sr. Rochester não era mais para mim o que
tinha sido; pois não era o que eu julgava que fosse. Eu não lhe atribuiria maldade;
não diria que me traíra; mas o atributo da imaculada verdade se desligara da idéia
que eu fazia dele, e eu tinha de sumir de sua presença; isso eu percebia bastante
bem. Quando — como — para aonde, não podia ainda discernir; mas não
duvidava de que ele próprio me tocaria de Thornfield. Parecia-me que não poderia
ter uma verdadeira afeição por mim; fora apenas uma paixão, derrotada; ele não
me quereria mais. Eu devia temer até cruzar o seu caminho agora: minha visão
devia ser-lhe odiosa. Oh, como meus olhos tinham sido cegos! Como fora fraca a
minha conduta!
Tinha os olhos tapados e fechados; a escuridão parecia redemoinhar à minha
volta, e as reflexões me vinham como uma negra e confusa torrente. Abandonada,
relaxada e sem esforço, era como se me tivesse deitado no leito seco de um
grande rio; ouvia uma inundação desencadear-se nas montanhas distantes, e sentia
a vinda da torrente, mas de levantar-me não tinha vontade, e para fugir não tinha
forças. Jazia débil, ansiando pela morte. Só uma idéia pulsava ainda, como a vida,
dentro de mim — uma lembrança de Deus: isso gerou uma prece muda, cujas
palavras vaguearam de um lado para outro em minha escura mente, como algo
que devia ser murmurado, mas não havia energia alguma para emiti-las.
"Não se afaste de mim, porque o mal está perto; não há ninguém para ajudar."
Estava perto; e, como eu não elevara nenhum pedido aos Céus para desviá-lo
— não juntara as mãos, nem dobrara os joelhos, nem movera os lábios — chegou:
com toda força, a torrente se despejou sobre mim. Toda a consciência de minha
vida despedaçada, meu amor perdido, minha esperança morta, pairou inteira e
poderosa acima de mim numa única e sombria massa. Essa hora amarga não pode
ser descrita: na verdade, "as águas me inundaram a alma; afundei em profunda
lama; não tomava pé; caí em águas profundas; a enchente me cobriu".
CAPITULO 27
ACERTA altura da tarde ergui a cabeça e, olhando em torno e vendo o sol no
ocidente, traçando em ouro a marca de seu declínio na parede, perguntei: "Que
devo fazer?"
Mas a resposta dada por minha mente — "Deixe Thornfield imediatamente"
— foi tão imediata, tão terrível, que tapei os ouvidos. Disse que não podia tolerar
tais palavras agora. "O fato de eu não ser a esposa de Edward Rochester é a parte
mínima de minha infelicidade", afirmei. "O fato de que despertei dos sonhos mais
gloriosos, e os descobri vazios e vãos, é um horror que eu poderia suportar e
dominar; mas que tenha de deixá-lo decididamente agora mesmo, por completo, é
intolerável. Não posso fazer isso."
Mas então uma voz dentro de mim admitiu que eu podia fazê-lo, e previu que
o faria. Lutei com minha própria resolução: quis ser fraca, para poder evitar a
terrível passagem por outros sofrimentos que via à minha espera; e a Consciência,
transformada num tirano, agarrou a Paixão pela garganta, disse-lhe
escarnecedoramente que ela por enquanto só afundara os delicados pés na lama, e
jurou que, com aquele seu braço de ferro, a empurraria para insondáveis
profundezas de agonia.
"Que me tirem disso então!" gritei. "Que alguém me ajude!"
"Não; você mesma sairá; ninguém vai ajudá-la; você mesma arrancará o seu
olho direito; você mesma cortará sua mão direita: seu coração será a vítima, e
você a sacerdotisa que o trespassará".
Levantei-me de repente, aterrorizada por aquela solidão habitada por tão
impiedoso juiz — pelo silêncio preenchido por aquela voz tão terrível. Minha
cabeça girava quando me pus de pé. Percebi que estava adoecendo de excitação e
inanição; nem comida nem bebida passara por meus lábios naquele dia, pois eu
não tomara desjejum. E, com uma estranha pontada, refleti então que, apesar do
tempo que passara trancada ali, não se mandara ninguém saber como eu estava ou
convidar-me lá para baixo; nem mesmo a pequena Adèle batera na porta; nem
mesmo a Sra. Fairfax me procurara. "Os amigos sempre esquecem aqueles a
quem a fortuna abandona", murmurei, ao puxar o ferrolho e sair. Tropecei num
obstáculo; ainda tinha a cabeça zonza, a vista turva e as pernas muito fracas. Não
pude me recuperar imediatamente. Caí, mas não no chão; um braço estendido me
amparou: ergui o olhar — estava segura pelo Sr. Rochester, que se sentava numa
cadeira defronte à soleira de minha porta.
— Você saiu, afinal — ele disse. — Bem, estive muito tempo à sua espera, e
a escuta; mas não ouvi nenhum movimento, nenhum soluço; mais cinco minutos
desse silêncio mortal, e eu teria forçado a fechadura como um arrombador. Quer
dizer que me evita? Tranca-se e sofre sozinha! Eu preferia que viesse me censurar
furiosa. Você é passional, eu esperava uma cena, de algum tipo. Estava preparado
para a ardente chuva de lágrimas; apenas, queria que fossem vertidas em meu
peito; agora, um assoalho insensível as recebeu, ou seu lenço encharcado. Mas me
engano, você não chorou de modo algum! Vejo faces pálidas e olhos baços, mas
nenhum sinal de lágrimas. Suponho, então, que seu coração andou chorando
lágrimas de sangue?
"Então, Jane, nem uma palavra de reprovação? Nada irado... nada ferino?
Nada para matai um sentimento ou ferir uma paixão? Senta-se tranqüilamente
onde a pus, e me olha com uma aparência cansada, passiva?
"Jane, jamais pretendi feri-la desse jeito. Se um homem que tivesse uma
ovelhinha à qual quisesse como a uma filha, que comesse de seu pão e bebesse de
seu copo, e se deitasse em seu colo, a tivesse por algum engano matado no
matadouro, não lamentaria mais o seu sangrento engano do que eu lamento agora.
Será que me perdoará um dia?"
Leitor, eu o perdoei ali e então. Havia um remorso tão profundo em seu olhar,
uma contrição tão sincera em seu tom, uma energia tão varonil em sua maneira; e,
além disso, havia um amor tão intocado em toda a sua aparência e expressão —
que lhe perdoei tudo; mas não com palavras, não externamente; só no fundo do
coração.
— Sabe que sou um patife, Jane? — ele me perguntou melancolicamente,
depois de algum tempo; surpreso, sem dúvida, com a continuação de meu silêncio
e mansidão, resultantes mais da franqueza do que da vontade.
— Sim, senhor.
— Então me diga sonora e duramente... não me poupe.
— Não posso, estou cansada e doente. Quero um pouco d'água.
Ele exalou uma espécie de trêmulo suspiro, e, tomando-me nos braços, levou-
me lá para baixo. A princípio eu não soube para que aposento me levara: tudo
estava enevoado a meus olhos vidrados; acabei sentindo o ressuscitante calor de
uma lareira; pois, embora fosse verão, eu ficara gelada em meu quarto. Ele me
pôs vinho nos lábios; provei-o e revivi; depois comi alguma coisa que ele me
ofereceu, e logo voltava a ser eu mesma. Estava na biblioteca — sentada na
cadeira dele, que se achava bem perto. "Se eu pudesse deixar a vida, agora, sem
uma dor muito aguda, seria bom para mim", pensei; "aí, não teria de fazer o
esforço de partir as cordas de meu coração, ao separá-las das cordas do coração
do Sr. Rochester. Tenho de deixá-lo, parece. Não quero deixá-lo — não posso
deixá-lo".
— Como está você agora, Jane?
— Muito melhor, senhor; logo estarei bem.
— Tome mais vinho, Jane.
Obedeci-lhe; depois, ele pôs o copo sobre a mesa, ergueu-se à minha frente e
olhou-me com atenção. De repente, voltou-se, com uma exclamação
incompreensível, cheia de algum tipo de apaixonada emoção; andou rápido pela
sala e voltou, curvou-se para mim, como para beijar-me, mas me lembrei de que
as carícias estavam proibidas agora. Virei o rosto e afastei-o.
— Quê! Que é isso? — ele se apressou a exclamar. — Oh, eu sei! Você não
quer beijar o marido de Bertha Mason? Considera meus braços tomados e que
meus abraços têm dona?
— Pelo menos, não há nem lugar nem direito para mim, senhor.
— Por que, Jane? Vou lhe poupar o trabalho de falar muito; vou responder
por você... porque eu já tenho uma esposa, você responderia... calculei
corretamente?
— Sim, senhor.
— Se pensa assim, deve ter uma estranha opinião de mim; deve encarar-me
como um manhoso devasso... um patife baixo e vil que simulou amor
desinteressado para atraí-la a uma armadilha deliberadamente colocada, tirar-lhe a
honra e roubar-lhe o respeito próprio. Que tem a dizer sobre isso? Vejo que não
pode dizer nada; em primeiro lugar, está fraca ainda, e tem de fazer muito esforço
para respirar; em segundo lugar, ainda não pode se acostumar à idéia de acusar-
me e ofender-me; e além disso, as comportas das lágrimas estão abertas, e elas
podem se precipitar se você falar muito; e você não tem nenhum desejo de
repreender, censurar, fazer uma cena: está pensando em como agir — pois acha
que falar não adianta. Eu a conheço... estou em guarda.
— Senhor, não desejo agir contra o senhor — eu disse; e minha voz insegura
me aconselhou a abreviar a sentença.
— Não no seu sentido da palavra, mas, no meu, você está planejando destruir-
me. Você praticamente disse que sou um homem casado... e como um homem
casado me repelirá, se manterá longe de meu caminho; ainda há pouco recusou-se
a beijar-me. Pretende tornar-se uma completa estranha para mim; viver sob este
teto apenas como governanta de Adèle; se eu algum dia lhe disser uma palavra
amável, se algum dia um sentimento amável a inclinar para mim, você dirá: "Esse
homem quase me tornou sua amante, devo mostrar-me gelada e pétrea para ele"; e
gelada e pétrea se tornará, conseqüentemente.
Limpei e firmei a voz para responder:
— Tudo à minha volta mudou, senhor; e tenho de mudar também... quanto a
isso, não há dúvida; e para evitar flutuações de sentimentos, e contínuos combates
com lembranças e associações, só há um caminho... Adèle deve ter uma nova
governanta, senhor.
— Oh, Adèle irá para a escola... já acertei isso; e não pretendo atormentá-la
com as hediondas lembranças e associações de Thornfield Hall... este lugar
amaldiçoado... esta tenda de Achan... esta cripta insolente, que oferece a
fantasmagoria da morte em vida à luz do céu aberto... este estreito inferno de
pedra, com seu único demônio real, pior do que uma legião daqueles que
imaginamos. Jane, você não ficará aqui, nem eu. Errei ao trazê-la a Thornfield
Hall, sabendo como sabia que a casa era assombrada. Mandei que escondessem de
você, antes de sequer ter-lhe posto os olhos em cima, todo o conhecimento da
maldição do lugar; simplesmente porque julgava que Adèle jamais teria uma
governanta que ficasse se a, governanta soubesse a paciente que a casa abrigava: e
meus planos não permitiam que transferisse a louca para outra parte... embora eu
possua uma velha casa, Ferndean Manor, ainda mais retirada e escondida que
esta, onde a poderia ter alojado com bastante segurança, se um escrúpulo quanto a
insalubridade da localização, no coração de uma mata, não fizesse minha
consciência recuar desse arranjo. Provavelmente aquelas paredes úmidas logo me
teriam livrado do fardo; mas, a cada vilão, seu próprio vício; e o meu não é uma
tendência ao assassinato indireto, mesmo do que mais odeio.
"Ocultai a vizinhança da louca de você, no entanto, era como cobrir uma
criança com um capote e deixá-la deitada perto de uma planta perigosa: a
vizinhança desse demônio é venenosa, e sempre foi. Mas vou fechar Thornfield
Hall; fecharei com pregos a porta da frente, e com tábuas as janelas de baixo;
darei à Sra. Poole duzentas libras por ano para viver aqui com minha esposa,
como você chama aquele horrível trapo; Grace fará muita coisa por dinheiro, e
terá seu filho, o caseiro de Grimsby Retreat, para fazer-lhe companhia e estar
sempre à mão para lhe dar ajuda nas crises, quando minha esposa é levada a
queimar as pessoas nas camas à noite, esfaqueá-las, mordê-las até o osso, e coisas
assim...
— Senhor — interrompi-o — o senhor é inexorável com aquela infeliz; fala
dela com ódio... com vingativa antipatia. É cruel... não é culpa dela ser louca.
— Jane, minha queridinha (assim a chamo, pois assim é você), você não sabe
do que está falando; julga-me erroneamente de novo; não é por ela ser louca que a
odeio. Se você fosse louca, acha que eu a odiaria?
— Na verdade acho, senhor.
— Então está enganada, e não sabe nada a meu respeito, e nada sobre o tipo
de amor de que sou capaz. Cada átomo de sua carne me é tão querido quanto a
minha própria; na dor e na doença, ainda seria querida. Sua mente é o meu
tesouro, e se se fosse, ainda seria o meu tesouro: se você enlouquecesse, seriam
meus braços que a segurariam, e não uma camisa-de-força... o seu aperto, mesmo
em fúria, teria um encanto para mim: se se lançasse selvagemente contra mim,
como aquela mulher se lançou hoje de manhã, eu a receberia com um abraço, pelo
menos tão bondoso quanto restritivo. Eu não me esquivaria de você, repugnado,
como me esquivei dela: em seus momentos de calma, não teria outro vigia ou
enfermeiro além de mim; e eu me curvaria sobre você com incansável ternura,
mesmo que não me desse nenhum sorriso em troca; e jamais me cansaria de olhar
dentro de seus olhos, mesmo que não mais tivessem um raio de reconhecimento
para mim. Mas por que prossigo nessa linha de idéias? Estava falando de tirá-la
de Thornfield. Tudo está preparado, você sabe, para uma partida imediata:
amanhã você par tira. Peço-lhe apenas que agüente mais uma noite sob este teto,
Jane; e depois, adeus às suas misérias e terrores para sempre! Tenho um lugar
para onde ir que será um abrigo seguro contra as reminiscências odiosas, contra a
intrusão importuna... até contra a falsidade e a calúnia.
— Leve Adèle consigo, senhor — interrompi. — Ela será uma companhia
para o senhor.
— Que quer dizer, Jane? Já lhe disse que ia mandar Adèle para a escola; que
vou fazer tendo uma criança como companhia, e uma criança que não é minha
filha... a bastarda de uma dançarina francesa? Por que me importuna com ela? Por
que me destina Adèle como companhia?
— O senhor falou de um retiro, senhor; e o retiro e a solidão são aborrecidos:
aborrecidos demais para o senhor.
— Solidão! Solidão! — ele repetiu com irritação. — Vejo que tenho de
chegar a uma explicação. Não sei que expressão de esfinge se está armando em
seu rosto. Você partilhará de minha solidão. Está entendendo?
Balancei a cabeça: era necessário ter um certo grau de coragem, diante da
excitação dele, até para arriscar um mudo sinal de discordância. Ele estivera
dando passadas rápidas pelo aposento, e parou, como se subitamente enraizado
naquele ponto. Olhou-me demorada e fixamente: desviei os olhos, fixei-os no
fogo, e tentei assumir uma expressão calma, digna.
— Agora, o defeito no caráter de Jane — ele disse afinal, falando mais
calmamente do que se poderia esperar de sua aparência. — O carretel de seda
desenrolou-se suavemente até agora; mas eu sempre soube que viria um nó, e um
enigma, aqui está. Para vexame, exasperação e infinita encrenca! Por Deus!
Anseio por exercer uma fração da força de Sansão, e romper o nó!
Reiniciou seu passeio, mas logo tornou a parar, e desta vez bem à minha
frente.
— Jane, não quer ouvir a razão? (curvou-se e aproximou os lábios de minha
orelha); porque, se não quer, experimentarei a violência. — A voz estava rouca; a
aparência era a de um homem na iminência de romper um laço insuportável e
mergulhar de cabeça em desenfreada licenciosidade. Vi que, dentro de mais um
instante, e com mais um ímpeto de frenesi, eu não poderia fazer nada com ele. O
presente — o segundo de tempo que passava — era todo o tempo que tinha para
controlá-lo e contê-lo: um movimento de repulsa, fuga, medo teria selado minha
condenação — e a dele. Mas eu não tinha medo — nem um pouco. Sentia uma
força interior; uma sensação de influência, que me suportava. A crise era
perigosa; mas não deixava de ter o seu encanto, como o que o índio, talvez, sente
ao deslizar por uma corredeira em sua canoa. Peguei-lhe a mão cerrada, descerrei
os dedos contorcidos e lhe disse, tranqüilizadoramente:
— Sente-se; falarei com o senhor o quanto quiser, e ouvirei tudo que tenha a
dizer, de razoável ou irrazoável.
Ele se sentou; mas não pôde falar imediatamente. Eu lutava com as lágrimas
havia já algum tempo: fazia grandes esforços para contê-las, porque sabia que ele
não gostaria de me ver chorar. Agora, no entanto, achei que faria bem deixando-as
correr o mais livre e o mais demoradamente que quisessem. Se a inundação o
aborrecesse, tanto melhor. Assim, cedi e chorei à vontade. Logo o ouvi pedindo-
me que me recompusesse. Eu disse que não podia, enquanto ele estivesse numa
tal paixão.
— Mas não estou zangado, Jane: simplesmente a amo demais; e você tinha
endurecido seu pálido rostinho com uma aparência tão decidida, gelada, que eu
não podia suportar. Cale-se agora, e enxugue os olhos.
A voz amaciada indicava que ele fora dominado; assim eu, por minha vez, me
acalmei. Agora ele tentava repousar a cabeça em meu ombro, mas eu não podia
permiti-lo. Depois ele me puxaria para si: não.
— Jane! Jane! — ele disse, num tom de tão amarga tristeza, que me comoveu
todas as fibras. — Não me ama então? Era apenas minha posição, e a condição de
minha esposa, que você valorizava? Agora que me julga incapaz de ser seu
marido, recua de qualquer contato comigo como se eu fosse um sapo ou um
macaco.
Essas palavras me feriram; contudo, que poderia eu fazer ou dizer?
Provavelmente, não devia ter feito ou dito nada; mas estava tão torturada por uma
sensação de remorso, por ferir daquele jeito os sentimentos dele, que não pude
controlar o desejo de deitar bálsamo sobre os lugares que ferira.
— Eu o amo — eu disse — mais que nunca; mas não devo demonstrar ou
permitir-me esse sentimento; e esta é a última vez que o expresso.
— A última vez, Jane! Quê! Acha que pode viver comigo, ver-me
diariamente, e mesmo assim, se ainda me ama, ser sempre fria e distante?
— Não, senhor; isso, eu certamente não poderia fazer; e assim, vejo que só há
um caminho: mas o senhor ficará furioso se eu o mencionar.
— Oh, diga! Se eu explodir, você tem a arte do choro.
— Sr. Rochester, tenho de deixá-lo.
— Por quanto tempo, Jane? Por alguns minutos, enquanto penteia o cabelo...
que está um tanto desfeito; e lavar o rosto... que parece febril?
— Tenho de deixar Adèle e Thornfield. Tenho de me separar do senhor por
toda a vida, tenho de começar uma nova existência entre rostos e cenários
estranhos.
— Evidentemente, eu lhe disse que devia fazer isso. Passarei por cima da
loucura de se separar de mim. Quer dizer que tem de se tornar parte de mim.
Quanto à nova existência, está certo, você ainda será minha esposa; não sou
casado. Você será a Sra. Rochester... virtual e nominalmente eu me apegarei
apenas a você, enquanto vivermos. Você irá para uma casa que tenho no sul da
França, uma vila branca nas margens do Mediterrâneo. Ali viverá uma vida feliz,
protegida e inocentíssima. Jamais tema que eu deseje atraí-la ao erro... torná-la
minha amante. Por que balançou a cabeça? Jane, você tem de ser razoável, ou na
verdade ficarei frenético de novo.
Sua voz e sua mão estremeceram; as largas narinas dilataram-se; o olhar
faiscou; mas ousei falar.
— Senhor, sua esposa está viva: este é um fato que foi reconhecido hoje de
manhã pelo senhor. Se eu vivesse com o senhor, como quer... seria sua amante:
chamar isso de outra coisa é sofisma... é falso.
— Jane, não sou um homem de temperamento delicado... está se esquecendo
disso; não sou resignado; não sou frio e desapaixonado. Por piedade por mim e
por si mesma, ponha o dedo em meu pulso, sinta como lateja, e... cuidado!
Descobriu o pulso e o ofereceu; o sangue deixava-lhe as faces e os lábios, que
se tornavam lívidos; fiquei inteiramente perturbada. Agitá-lo tão profundamente,
com uma resistência que ele odiava tanto, era crueldade; ceder estava fora de
questão. Fiz o que os seres humanos fazem instintivamente quando são levados ao
extremo — busquei ajuda junto a alguém mais elevado que o homem: as palavras
"Deus me ajude" explodiram-me involuntariamente nos lábios.
— Eu sou um idiota! — gritou o Sr. Rochester de repente. — Fico dizendo a
ela que não sou casado, e não lhe explico porquê. Esqueço-me de que ela nada
conhece do caráter daquela mulher, das circunstâncias que cercaram minha
infernal união com ela. Oh, tenho certeza de que Jane concordará comigo em
opinião, quando souber tudo que eu sei! Ponha as mãos nas minhas, Jane... para
que eu tenha a prova do toque, além da visão, para mostrar que você está junto a
mim... e lhe mostrarei em poucas palavras a verdadeira situação. Pode ouvir-me?
— Sim, senhor? durante horas, se o senhor quiser.
— Peço apenas alguns minutos. Jane, já ouviu dizer ou soube que eu não era o
filho mais velho de minha casa; que tive um irmão mais velho?
— Lembro-me de que a Sra. Fairfax me disse isso certa vez.
— E sabia que meu pai era um homem avarento?
— Depreendi algo nesse sentido.
— Bem, Jane, assim sendo, ele decidiu manter a propriedade intata; não
suportava a idéia de dividi-la e deixar-me uma boa parte: tudo deveria ir para meu
irmão, Rowland. Mas tampouco podia suportar a idéia de um filho seu ser um
homem pobre. Eu devia ser provido por um casamento rico. E procurou para mim
uma cônjuge. O Sr. Mason, um fazendeiro e comerciante das índias Ocidentais,
era seu velho amigo. Ele tinha certeza de que as propriedades de Mason eram
concretas e vastas; fez investigações. Descobriu que o outro tinha um filho e uma
filha; e soube do próprio fazendeiro que a filha receberia de dote uma fortuna de
trinta mil libras: era o bastante. Quando deixei a escola, enviaram-me à Jamaica,
para desposar uma noiva já cortejada para mim. Meu pai nada disse sobre o
dinheiro dela; mas me contou que a Srta. Mason era o orgulho de Spanish Town
por sua beleza; e não mentia. Achei-a uma bela mulher, no estilo de Blanche
Ingram: alta, morena e majestosa. A família dela queria segurar-me, porque eu era
de boa cepa; e ela também queria. Mostraram-me a moça esplendidamente
vestida, em festas. Raramente eu a via a sós, e tive muito poucas conversas
privadas com ela. Ela me bajulava, e exibia prodigamente, para meu prazer, seus
encantos e dotes. Todos os homens em seu círculo pareciam admirá-la e invejar-
me. Fiquei deslumbrado, estimulado: meus sentidos se excitaram; e sendo
ignorante, cru e inexperiente, julguei que a amava. Não há loucura tão idiota que
as tolas rivalidades da sociedade, a comichão, a imprudência, a cegueira da
juventude não levem um homem a cometer. Os parentes dela me encorajavam; os
competidores me espicaçavam: ela me atraía: o casamento realizou-se quase antes
que eu soubesse onde esta-
va. Oh, não tenho respeito por mim mesmo quando penso nesse ato! Uma
agonia de íntimo desprezo me toma. Nunca amei, nunca estimei, nem sequer a
conheci. Não sabia da existência de uma só virtude em sua natureza: não notara
nem modéstia nem benevolência, nem candura, nem refinamento em seu espírito
ou em suas maneiras... e desposei-a; cabeça de pau grosseiro, bajulador, toupeira
que era! Com menos pecado poderia... mas deixe-me lembrar com quem estou
falando.
"Nunca vi a mãe de minha noiva; entendi que morrera. Acabada a lua-de-mel,
soube de meu erro; ela estava simplesmente louca, e trancada num asilo de
doidos. Havia um irmão mais novo, também... um completo idiota mudo. O mais
velho, que você viu (e a quem não posso odiar, embora deteste todos os seus
parentes, porque tem algumas migalhas de afeição no débil cérebro, demonstradas
no constante interesse pela desgraçada irmã, e também pelo pegadio canino que
teve outrora comigo), provavelmente se verá no mesmo estado um dia. Meu pai e
meu irmão Rowland sabiam disso tudo; mas pensavam apenas nas trinta mil
libras, e mancomunaram-se na trama contra mim.
"Foram descobertas vis, essas que fiz; mas, a não ser pela traição da
ocultação, eu não as transformaria em motivos de censura à minha esposa, mesmo
quando descobri que tinha uma natureza inteiramente alheia à minha, gostos
odiosos, um espírito vulgar, baixo, estreito, e singularmente incapaz de ser levado
a qualquer coisa mais elevada, expandido para qualquer coisa maior... quando
descobri que não podia passar em conforto uma única noite, nem mesmo uma
única hora do dia com ela; que não podíamos manter uma amistosa conversa entre
nós, porque, fosse qual fosse o assunto que eu abordasse, recebia imediatamente
dela uma resposta ao mesmo tempo grosseira e banal, perversa e imbecil... quando
percebi que jamais teria uma casa tranqüila ou arrumada, porque nenhum criado
podia suportar as contínuas explosões de sua natureza violenta e irracional, ou os
vexames de suas ordens absurdas, contraditórias, exigentes... mesmo então, me
contive; evitava as repreensões, continha as censuras; tentava devorar meu
arrependimento e repugnância em segredo; reprimia a profunda antipatia que
sentia.
"Jane, não vou aborrecê-la com detalhes abomináveis; umas poucas palavras
fortes exprimirão o que tenho a dizer. Vivi com essa mulher lá em cima quatro
anos, e antes desse tempo ela já me tinha feito passar o diabo; seu caráter
amadureceu e se desenvolveu com apavorante rapidez; seus vícios brotaram
rápidos e abundantes: eram tão fortes, que só a crueldade conseguia contê-los, e
eu não queria usar de crueldade. Que intelecto pigmeu tinha, e que gigantescas
tendências! Como eram pavorosas as maldições que essas tendências me
acarretavam. Bertha Mason, verdadeira filha de uma mãe infame, arrastou-me por
todas as horríveis e degradantes agonias que esperam um homem amarrado a uma
esposa ao mesmo tempo imoderada e devassa."
"Meu irmão, nesse intervalo, morreu, e ao fim dos quatro anos também meu
pai. Eu estava bastante rico então... e no entanto pobre até a mais horrível
indigência: a natureza mais grosseira, impura e depravada que já vira estava
ligada à minha, e era chamada pela lei e a sociedade parte de mim. E eu não podia
me livrar dela por quaisquer procedimentos legais; pois os médicos descobriram
então que minha esposa estava louca... seus excessos tinham desenvolvido
prematuramente os germes da insanidade. Jane, você não gosta de minha
narrativa; parece quase doente... devo adiar o resto para outro dia?"
— Não, senhor, termine-a agora; tenho pena do senhor... tenho pena do
senhor.
— A piedade, Jane, vinda de algumas pessoas, é uma odiosa e insultante
espécie de tributo, que se tem razão de lançar de volta nos dentes daqueles que a
oferecem; mas essa é uma espécie de piedade própria de corações empedernidos,
egoístas; é uma dor híbrida e egoísta, ao saberem de sofrimentos, misturada com
um ignorante desprezo por aqueles que os suportaram. Mas não é essa a sua
piedade, Jane; não é esse o sentimento que inunda todo o seu rosto agora... com o
qual seus olhos quase transbordam... com o qual seu coração pesa... com o qual
sua mão treme na minha. Sua piedade, minha querida, é a mãe sofredora do amor;
sua angústia é a própria dor do nascimento da divina paixão. Eu a aceito, Jane;
que a filha tenha livre advento... meus braços esperam para recebê-la.
— Agora, senhor, prossiga: que fez quando descobriu que ela estava louca?
— Jane, cheguei à beira do desespero; só um resto de respeito próprio se
interpunha entre mim e o abismo. Aos olhos do mundo, estava sem dúvida
coberto de suja desonra; mas decidi ser limpo à minha própria vista... e repudiei
até o fim o contágio dos crimes dela, e desgarrei-me de qualquer ligação com seus
problemas mentais. Contudo, a sociedade ligava meu nome e pessoa ao nome e
pessoa dela; eu ainda a via e ouvia diariamente; alguma coisa de seu bafio (ugh!)
se misturava com o ar que eu respirava; e além disso, eu me lembrava de que um
dia fora seu marido... essa lembrança era-me então, e agora, inexprimivelmente
odiosa; e sabia que, enquanto ela vivesse, eu jamais poderia ser marido de outra
esposa, diferente; e, apesar de cinco anos mais velha que eu (a família e o pai
tinham mentido até no detalhe de sua idade), provavelmente viveria tanto quanto
eu, pois era tão robusta no físico quanto enferma na mente. Assim, aos vinte e seis
anos, eu não tinha esperanças.
"Uma noite, fui acordado por berros (desde que os médicos a tinham
declarado louca, ela fora, evidentemente, trancada). Era uma quente noite das
índias Ocidentais; uma daquelas noites que freqüentemente precedem os furacões
em tais climas. Incapaz de dormir na cama, levantei-me e abri a janela. O ar
parecia uma corrente de enxofre... eu não podia me refrescar em parte alguma. Os
mosquitos entravam zumbindo e continuavam a zumbir obstinadamente pelo
quarto; o mar, que eu podia ouvir dali, rumorejava abafado como um terremoto...
nuvens negras se formavam acima dele; a lua se punha sobre as ondas, grande e
rubra, como uma bala de canhão em brasa... lançava uma última olhada sangrenta
sobre um mundo que estremecia com o fermento da tempestade. A atmosfera e o
cenário me influenciavam fisicamente, e eu tinha os ouvidos cheios das maldições
que a louca ainda berrava; e às quais misturou por um momento meu nome com
um tal tom de ódio demoníaco, com tal linguagem ... nenhuma prostituta confessa
jamais teve um vocabulário tão sujo: embora a dois quartos de distância, eu ouvia
cada palavra... pois as finas divisões da casa das índias Ocidentais só opunham
uma leve obstrução a seus gritos de loba."
" 'Esta vida', disse a mim mesmo afinal, 'é o inferno: este é o ar... e aqueles
são os sons do poço sem fundo! Tenho o direito de me livrar daqui se puder. Os
sofrimentos deste mortal estado me deixarão com a pesada carne que agora me
embaraça a alma. Não temo as chamas da eternidade dos fanáticos; não há vida
futura pior do que esta atual... deixe-me romper com tudo, e voltar para Deus!'
"Disse isso de joelhos, abrindo um baú que continha um par de pistolas
carregadas; pretendia dar-me um tiro. Mantive essa intenção apenas por um
momento; pois, não sendo louco, a crise de total e puro desespero, que dera
origem ao desejo e ao plano de autodestruição, passou num segundo."
"Um vento fresco vindo da Europa soprou do oceano e invadiu a janela
aberta: a tempestade se desencadeou, bateu, trovejou, ardeu, e o ar se tornou puro.
Então, formulei e tomei uma decisão. Enquanto passeava sob as laranjeiras
encharcadas de meu jardim, entre romãs e abacaxis, e enquanto a refulgente
aurora tropical se acendia à minha volta, fiz o seguinte raciocínio, Jane... e agora
escute; pois foi a verdadeira Sabedoria que me consolou naquela hora, e me
mostrou o caminho certo a seguir.
"O doce vento da Europa ainda sussurrava nas folhas refrescadas, e o
Atlântico trovejava em gloriosa liberdade; meu coração, seco e calcinado por
longo tempo, reviveu com aquilo e se encheu de sangue vivo... meu ser ansiava
por renovação... minha alma estava sequiosa por um puro gole d'água. Vi a
esperança renascer... e senti que a regeneração era possível. De um arco florido ao
fundo de meu jardim, olhei o mar lá embaixo... mais azul que o céu: o velho
mundo aguardava além; claras perspectivas se abriam, da seguinte maneira:
" 'Parta', dizia a Esperança, 'e volte a viver na Europa: lá não se sabe o nome
conspurcado que você tem, nem que imundo fardo está ligado a você. Pode levar
a louca consigo para a Inglaterra; confine-a com a devida assistência e precauções
em Thornfield; depois viaje para o clima que desejar, e forme a nova ligação que
quiser. Essa mulher, que tanto abusou de sua resignação, que tanto sujou o seu
nome, que tanto ultrajou sua honra, que tanto feriu sua juventude, não é sua
esposa, nem
você é marido dela. Providencie para que seja cuidada como exige a sua
condição, e terá feito tudo que Deus e a humanidade requerem de você. Que a
identidade dela, e sua ligação consigo, se enterrem no esquecimento: não deve
comunicá-las a nenhum ser vivo. Ponha-a em segurança e conforto; guarde sua
degradação em segredo, e deixe-a'.
"Agi exatamente segundo essa sugestão. Meu pai e meu irmão não tinham
comunicado meu casamento a seus conhecidos; porque, na primeira carta que lhes
escrevi para comunicar-lhes a união... tendo já começado a sentir extrema
repugnância por suas conseqüências, e, pelo caráter e constituição da família,
vendo um horrível futuro abrir-se à minha frente... acrescentei um urgente pedido
que se a mantivesse em segredo; e muito em breve a infame conduta da esposa
que meu pai escolhera para mim era tal, que o fazia corar ao reconhecê-la como
sua nora. Longe de desejar tornar pública a ligação, ele se tornou tão preocupado
em ocultá-la quanto eu próprio.
"Para a Inglaterra, então, a trouxe; viagem terrível fiz eu com um tal monstro
no navio. Fiquei satisfeito quando finalmente a trouxe a Thornfield e a vi
seguramente alojada naquele quarto do terceiro andar, cujo gabinete interno faz
dez anos que ela transformou num covil de besta selvagem... uma cela de
gobelino. Tive alguma dificuldade para encontrar-lhe uma assistente, uma vez que
era necessário escolher uma em cuja fidelidade se pudesse confiar; pois os ataques
dela inevitavelmente trairiam meu segredo; além disso, tinha intervalos lúcidos de
dias... às vezes semanas... que preenchia com insultos a mim. Finalmente,
contratei Grace Poole, do Grimsby Retreat. Ela e o médico, Carter (que pensou os
ferimentos de Mason na noite em que ele foi esfaqueado e ficou apavorado), são
os dois únicos seres que admiti em meu segredo. A Sra. Fairfax pode de fato ter
suspeitado de alguma coisa, mas não pode ter adquirido conhecimento preciso dos
fatos. Grace revelou-se, no todo, uma boa guardiã; embora, devido em parte a
uma falta sua, da qual nada parece poder curá-la, e que acompanha sua ingrata
profissão, sua vigilância tenha mais de uma vez sido burlada. A louca é astuta e
maligna; jamais deixou de se aproveitar dos lapsos temporários da guardiã; uma
vez para
esconder a faca com a qual esfaqueou o irmão, e duas vezes para apoderar-se
da chave de sua cela e sair dali à noite. Na primeira dessas ocasiões, perpetrou a
tentativa de atear-me fogo à cama, na segunda fez aquela espectral visita a você.
Dou graças à Providência, que protege você, pelo fato de ela ter esgotado sua
fúria no vestido de noiva, que talvez lhe tenha trazido vagas reminiscências de
seus próprios dias nupciais; mas não agüento refletir no que poderia ter
acontecido. Quando penso na coisa que se atirou à minha garganta hoje de manhã,
aquele rosto negro e escarlate pairando sobre o ninho de minha pombinha, meu
sangue gela..."
— E que, senhor — perguntei-lhe, enquanto ele fazia uma pausa — fez o
senhor quando a instalou aqui? Para onde foi?
— Que fiz, Jane? Transformei-me num fogo fátuo. Aonde fui? Vagueei tão
loucamente quanto o espírito de março. Busquei o Continente, e errei por todas as
suas terras. Meu desejo fixo era buscar e encontrar uma mulher boa e inteligente,
a quem pudesse amar; um contraste com a fúria que deixara em Thornfield...
— Mas não podia casar-se, senhor.
— Eu decidira e estava convencido de que podia e devia. Não pretendia
originalmente enganar, como a enganei. Pretendia contar minha história
claramente, e fazer minhas propostas abertamente; e isso me parecia tão
absolutamente racional, que eu fosse considerado livre para amar e ser amado,
que nunca duvidei de que encontraria uma mulher disposta e capaz de
compreender meu caso e me aceitar, apesar da maldição que pesava sobre mim.
— Bem, senhor?
— Quando você é tão inquisitiva, Jane, sempre me faz sorrir. Arregala os
olhos como um pássaro faminto, e faz de vez em quando um movimento
impaciente, como se as respostas não lhe viessem com bastante prontidão, e
quisesse ler a tábua do coração da gente. Mas, antes de prosseguir, diga-me o que
quer dizer com seu "Bem, senhor?". É uma frasezinha muito freqüente em você; e
que muitas vezes me arrasta a uma conversa interminável, não sei muito bem por
quê.
— O que quero dizer é: e depois? Como agiu o senhor? Que resultou de tal
acontecimento?
— Precisamente! E que deseja saber agora?
— Se encontrou alguma de quem gostasse; se lhe pediu que o desposasse; e
que disse ela?
— Posso dizer-lhe se encontrei alguma de quem gostasse. e se lhe pedi que
me desposasse; mas o que ela disse ainda não foi escrito no Livro do Destino.
Durante dez longos anos vagueei por aí, vivendo primeiro numa capital, depois
noutra, às vezes em São Petersburgo, mais freqüentemente em Paris,
ocasionalmente em Roma, Nápoles e Florença. Munido de bastante dinheiro e de
um passaporte com um nome antigo, podia escolher minhas companhias; não
havia círculos fechados para mim. Busquei meu ideal de mulher entre ladies
inglesas, condessas francesas, signoras italianas, gräfinen alemãs. Não consegui
encontrá-lo. Às vezes, num momento passageiro, pensava que captara um olhar,
ouvira uma voz, contemplara uma forma, que anunciavam a realização de meu
sonho; mas terminava me desenganando. Você não deve supor que eu buscava a
perfeição, espiritual ou física. Buscava apenas o que me servia... o posto da
mestiça, e ansiava em vão. Entre todas elas, não encontrei uma só que, se fosse
livre, eu... advertido como já estava dos riscos, dos horrores, da antipatia das
uniões incongruentes... pediria para casar-se comigo. A decepção deixou-me
inquieto. Experimentei a dissipação... nunca a devassidão; odiava e odeio isso.
Esse era o atributo de minha Messalina índia, uma arraigada repugnância contra
isso e contra ela me refreava bastante, mesmo no prazer. Qualquer divertimento
que beirasse o descontrole parecia aproximar-me dela e de seus vícios, e eu o
repelia.
"Contudo, não podia viver só; assim, tentei a companhia de amantes. A
primeira que escolhi foi Céline Varens... outro daqueles passos que fazem um
homem desprezar-se quando os lembra. Você sabe o que ela era, e como terminou
minha ligação com ela. Céline teve duas sucessoras: uma italiana, Giacinta, e uma
alemã, Clara; ambas consideradas particularmente bonitas. Mas que era a beleza
delas, para mim, dentro de poucas semanas? Giacinta não tinha princípios e era
violenta: cansei-me dela em três meses. Clara era honesta e discreta; mas
pesadona, desmiolada e insensível, nem um pouco ao meu gosto. Fiquei satisfeito
quando lhe dei uma soma considerável para estabelecê-la num bom ramo de
negócios, e assim me livrei decentemente dela. Mas, Jane, vejo por seu rosto que
não está formando uma opinião muito favorável de mim neste momento. Acha-me
um patife insensível, de frouxos princípios; não acha?
— Não gosto tanto do senhor agora como gostei algumas vezes, é verdade,
senhor. Não lhe pareceu nem um pouco errado viver dessa maneira, primeiro com
uma amante e depois com outra? O senhor fala disso como uma coisa normal.
— Era algo que estava em mim; e eu não gostava. Era uma forma de vida vil:
eu não gostaria de voltar nunca mais a ela. Pagar uma amante é a coisa pior do
mundo depois da compra de uma escrava: ambas são freqüentemente por
natureza, e sempre por posição, inferiores, e viver familiarmente com inferiores é
degradante. Hoje odeio a lembrança do tempo que passei com Céline, Giacinta e
Clara.
Senti a verdade dessas palavras; e tirei delas a inferência certa de que, se eu
chegasse ao ponto de esquecer-me de todos os ensinamentos que me haviam sido
insulados, de modo a — sob qualquer pretexto, com qualquer justificação, por
quaisquer tentações — tornar-me a sucessora dessas pobres moças, ele me
encararia um dia com o mesmo sentimento que agora, em sua mente, profanava a
memória delas. Não externei essa convicção; bastava senti-la. Gravei-a em meu
coração, para que ficasse ali e me servisse como ajuda em tempos de provação.
— Agora, Jane, por que não diz "Bem, senhor"? Eu não fiz. Você parece
séria. Ainda me desaprova, estou vendo. Mas deixe-me chegar ao que interessa.
Em janeiro passado, livre de todas as amantes... num estado mental azedo,
amargo, resultado de uma vida inútil, ao léu... corroído pela decepção,
amargamente disposto contra todo mundo, e especialmente contra as mulheres
(pois começara a encarar a idéia de uma mulher intelectual, fiel, amorosa como
um mero sonho), chamado de volta a negócios, retornei à Inglaterra.
"Numa gélida tarde de inverno, eu cavalgava já à vista de Thornfield Hall.
Local detestado! Não esperava paz nem prazer aqui. Num passadiço em Hay
Lane, vi uma figurinha
quieta, sentada sozinha. Passei por ela tão indiferentemente quanto pelo
salgueiro podado defronte dela; não pressentia o que ela se tornaria para mim; não
houve nenhum aviso interior de que a juíza de minha vida... meu gênio para o
bem ou para o mal... esperava ali em humilde disfarce. Não o soube nem mesmo
quando, por ocasião do acidente de Mesrour, ela se aproximou e gravemente me
ofereceu ajuda. Infantil e minúscula criatura! Era como se um milheiro houvesse
saltitado a meus pés e sugerido amparar-me em sua minúscula asa. Eu estava mal-
humorado; mas a coisinha não se ia; ficou a meu lado com estranha perseverança,
e parecia e falava com uma espécie de autoridade. Eu tinha de ser ajudado, e por
aquelas mãos; e fui.
"Assim que me apoiei no frágil ombro, alguma coisa nova... uma nova seiva e
sensação... percorreu-me o corpo. Ainda bem que soubera que aquela duende teria
de voltar a mim... que pertencia à minha casa lá embaixo... ou não teria deixado
que me escapulisse das mãos, vendo-a desaparecer atrás da fina sebe, sem um
certo pesar. Ouvi quando você veio naquela noite, Jane, embora não seja provável
que soubesse que eu pensava em você, ou esperava a sua vinda. No dia seguinte,
observei-a... sem me deixar ver... durante meia hora, enquanto você brincava com
Adèle na galeria. Era um dia de neve, lembro-me, e vocês não podiam sair ao ar
livre. Eu estava em meu quarto, a porta entreaberta; podia ouvi-la e observá-la.
Adèle reclamava sua atenção por algum tempo; mas senti que seus pensamentos
estavam em outra parte, e no entanto, você foi muito paciente com ela, minha
pequena Jane; falou com cia e a entreteve por longo tempo. Quando afinal ela a
deixou, você logo mergulhou em profundo devaneio, pôs-se a andar lentamente
pela galeria. De vez em quando, ao passar por uma janela, olhava lá fora a neve
caindo grossa; ouvia os soluços do vento; e voltava a andar mansamente e a
sonhar. Creio que as visões daquele dia não eram sombrias: havia uma agradável
luminosidade em seus olhos de vez em quando, uma delicada excitação em seu
aspecto, que não traíam pensamentos amargos, biliosos, hipocondríacos: sua
aparência revelava antes as doces meditações da juventude, quando o espírito
segue em asas dispostas o vôo da Esperança rumo a um céu ideal. A voz da Sra.
Fairfax, falando a uma criada no saguão, despertou-a; e como você sorriu
curiosamente consigo mesma, Jane! Havia muito significado naquele sorriso: era
muito astuto, e parecia menosprezar sua própria abstração. Parecia dizer: 'Minhas
belas visões estão muito bem, mas não devo esquecer de que são absolutamente
irreais. Tenho um róseo céu e um verde Éden florido em minha mente; mas aqui
fora, sei perfeitamente, estende-se a meus pés um rude pedaço a viajar, e em meu
redor se armam negras tempestades a enfrentar.' Você correu para baixo e pediu
alguma coisa para fazer à Sra. Fairfax; as contas semanais da casa ou algo desse
tipo, creio eu. Fiquei aflito com você por sair de minhas vistas.
"Esperei impacientemente a noite, quando poderia chamá-la à minha
presença. Suspeitava de que seu caráter era incomum... para mim... inteiramente
novo, desejava investigá-lo mais a fundo e conhecê-lo melhor. Você entrou no
aposento com uma aparência e um ar ao mesmo tempo tímidos e independentes:
vestia-se simplesmente... em grande parte como agora. Fiz com que falasse: em
breve, julguei-a cheia de estranhos contrastes. Suas roupas e maneiras eram
contidas pelas regras; tinha um ar muitas vezes desafiante, e sempre de uma
pessoa refinada por natureza, mas absolutamente desacostumada a companhia, e
bastante receosa de tornar-se desvantajosamente conspícua por algum solecismo
ou erro; contudo, quando lhe dirigiam a palavra, você erguia uns olhos
penetrantes, ousados e refulgentes para o rosto do interlocutor: havia penetração e
força em cada olhar que dava; quando importunada por perguntas indiscretas,
encontrava respostas prontas e completas. Muito em breve pareceu acostumar-se
comigo: creio que sentia a existência de simpatia entre você e seu sombrio e mal-
humorado patrão, Jane; pois foi espantoso ver como logo-logo um certo à-vontade
agradável tranqüilizou seus modos: por mais que eu rosnasse, você não
demonstrava nenhuma surpresa, temor, aborrecimento ou desprazer com meu
enfado; observava-me, e de vez em quando sorria-me com uma graça simples más
sagaz, que não consigo descrever. Eu me sentia ao mesmo tempo satisfeito e
estimulado com o que via; gostava do que
vira e desejava ver mais. Contudo, durante longo tempo a tratei com frieza, e
raramente buscava a sua companhia. Era um epicuro intelectual, e desejava
prolongar a satisfação de estabelecer aquela nova e estimulante amizade; além
disso, fui por algum tempo perturbado por um obcecante temor de que, se tratasse
a flor sem cuidado, ela morreria... o doce encanto do frescor a deixaria. Não sabia
então que não era um desabrochar transitório, mas antes a radiante imagem de um
desabrochar, talhada em uma gema indestrutível. Ademais, desejava ver se você
me procuraria, se eu a evitasse... mas você não o fez; manteve-se na sala de aula,
tão quieta quanto sua mesa e cavalete; se por acaso eu a encontrava, você passava
por mim tão depressa, e com tão pouco sinal de reconhecimento, quanto fosse
condizente com o respeito. Sua expressão habitual naquele tempo, Jane, era uma
aparência pensativa; não triste, pois não era doentia; mas tampouco animada, pois
tinha pouca esperança, e nenhum prazer real. Eu imaginava o que pensava de
mim... ou se chegava a pensar em mim; para descobrir isso, recomecei a dar-lhe
atenção. Havia alguma coisa de alegre em seu olhar, e de agradável em suas
maneiras, quando conversava; eu via que você tinha um coração sociável; era a
silenciosa sala de aula... era o tédio de sua vida... que a tornava circunspecta.
Permiti-me o prazer de ser bom para você; a bondade logo despertou a emoção; a
expressão de seu rosto se suavizou, sua voz se tornou delicada; eu gostava de
ouvir o meu nome pronunciado por seus lábios, com um tom agradecido, feliz.
Gostava de desfrutar um encontro casual com você, Jane, nesse período; havia
uma curiosa hesitação em seus modos; você me olhava com uma leve
perturbação... uma dúvida no ar; não sabia qual seria o meu capricho... se eu ia
bancar o patrão e ser severo, ou o amigo e ser benigno. Eu estava então muito
ligado a você para simular o primeiro capricho; e, quando estendia cordialmente a
mão, subia às suas feições jovens, anelantes, um tal florescer, uma luminosidade,
uma felicidade tais, que muitas vezes eu tinha muito trabalho para evitar apertá-la
ali e então contra o coração." — Não fale mais desse tempo, senhor — interrompi,
vertendo furtivamente algumas lágrimas; a linguagem dele era uma tortura para
mim; pois eu sabia o que tinha de fazer, e fazer logo, e todas aquelas
reminiscências, e aquelas revelações de seus sentimentos, só tornavam minha
tarefa mais difícil.
— Não, Jane — ele recomeçou — que necessidade há de demorar no passado,
quando o presente é tão mais seguro... o futuro tão mais luminoso?
Estremeci ao ouvir essa apaixonada afirmação.
— Vê agora em que pé está o caso, não vê? — ele continuou. — Após uma
juventude e uma vida adulta passadas metade em inexprimível infelicidade, e
metade em horrenda solidão, encontrei pela primeira vez aquela a quem posso
realmente amar... encontrei você. Você é minha simpatia, a melhor parte de mim,
meu anjo bom. Estou atado a você por uma forte ligação. Acho-a boa, talentosa,
adorável: nasceu em meu coração uma paixão ardente, solene, que me puxa para
você, que a atrai para o meu centro e a minha fonte de vida, envolve minha
existência em torno de você, e, brilhando em pura e poderosa chama, nos funde
um no outro.
"Foi porque eu sentia e sabia disso, que resolvi desposá-la. Dizer-me que eu já
tinha uma esposa é uma vazia zombaria: você sabe agora que eu só tenho um
horrendo demônio. Fui errado ao tentar enganá-la; mas temia a obstinação que
existe em seu caráter. Temia os preconceitos insulados na juventude, queria tê-la
segura antes de arriscar-me a confidencias. Isso foi covardia; eu devia ter apelado
para sua nobreza e magnitude primeiro, como faço agora... devia ter aberto a você
claramente minha vida de agonia... devia ter descrito a você minha fome e sede de
uma existência mais elevada e mais digna... devia ter mostrado a você não a
minha decisão (esta palavra é fraca), mas minha irresistível inclinação a amar
fielmente e bem a quem me amasse fielmente e bem em troca. Depois, ter-lhe-ia
pedido que aceitasse minha jura de fidelidade e me desse a sua. Jane... dê-me isso
agora."
Uma pausa.
— Por que está calada, Jane?
Eu passava por uma provação: uma mão de ferro em brasa agarrava minhas
entranhas. Momento terrível, cheio de luta, escuridão, fogo! Nenhum ser humano
que já existiu poderia desejar ser mais amado do que eu; e eu adorava aquele que
me amava assim; e tinha de renunciar ao amor e ao ídolo. Uma triste palavra
compreendia o meu intolerável dever: "Parta!"
— Jane, você entende o que quero de você? Só essa promessa: "Eu serei sua,
Sr. Rochester."
— Sr. Rochester, eu não serei sua. Outro longo silêncio.
— Jane! — ele recomeçou, com uma delicadeza que me partiu de dor e me
deixou fria como pedra com sinistro terror; pois aquela voz baixa era o arquejo de
um leão levantando-se.
— Jane, você pretende seguir para um lado, no mundo, e deixar-me seguir
outro?
— Pretendo.
— Jane — curvando-se para mim e abraçando-me — pretende fazer isso
agora?
— Pretendo.
— E agora? —. beijando-me levemente a testa e a face.
— Pretendo — desvencilhando-me rápida e completamente do abraço.
— Oh, Jane, isso é duro! Isso... isso é mau. Não seria mau amar-me.
— Seria mau obedecer ao senhor.
Uma expressão alucinada ergueu-lhe as sobrancelhas — cruzou-lhe as
feições: ele se levantou; mas se agüentou ainda. Pus a mão nas costas da cadeira,
para apoiar-me: tremia, tremia
— mas decidi.
— Um instante, Jane. Dê uma olhada à minha vida horrível quando se for.
Toda felicidade me será arrancada com você. Que restará então? Por esposa,
tenho uma louca lá em cima; seria o mesmo que você me enviar a um cadáver no
cemitério ao lado. Que farei, Jane? Para onde me voltar, em busca de uma
companheira, e de um pouco de esperança?
— Faça como eu; confie em Deus e em si mesmo. Creia no céu. Espere
encontrarmo-nos de novo lá.
— Então não vai ceder?
— Não.
— Então me condena a viver desgraçado, e a morrer amaldiçoado?
— Aconselho-o a não viver em pecado, e desejo que morra tranqüilo.
— Então tira o amor e a inocência de mim? Lança-me de volta à luxúria em
lugar da paixão... ao vício como ocupação?
— Sr. Rochester, não lhe destino essa sorte mais do que a destino a mim
mesma. Nascemos para lutar e suportar... o senhor tanto quanto eu: faça-o. O
senhor me esquecerá antes que eu o esqueça.
— Você me chama de mentiroso com tal linguagem; conspurca minha honra.
Declarei que não podia mudar; você me diz em minha cara que logo mudarei. E
que distorção em seu julgamento, que perversidade em suas idéias, demonstra
essa sua conduta! É melhor levar uma criatura irmã ao desespero do que
transgredir uma simples lei humana, quando ninguém sai ferido com a violação?
Pois você não tem parentes nem amigos aos quais vá ofender vivendo comigo.
Isso era verdade, e enquanto ele falava, minha própria consciência e razão
tornaram-se traidoras contra mim, e me acusaram de crime ao resistir-lhe.
Falaram quase tão alto quanto o Sentimento; e esse clamava bravamente: "Oh,
ceda!", dizia. "Pense na infelicidade dele; pense no perigo que ele corre; veja o
seu estado quando deixado a sós; lembre-se da natureza precipitada dele;
considere a temeridade dele após o desespero — alivie-o; salve-o; ame-o; diga-lhe
que o ama e será dele. Quem, neste mundo, se interessa por você, ou será
prejudicado pelo que fizer?"
Contudo, a resposta era indômita: "Eu me interesso por mim. Quanto mais
solitária, mais sem amigos, mais sem amparo eu for, mais me respeitarei a mim
mesma. Manterei a lei dada por Deus; sancionada pelo homem. Eu me apegarei
aos princípios que recebi quando estava sã, e não louca, como estou agora. As leis
e princípios não são para épocas em que não há tentação; são para momentos
como este, quando corpo e alma se levantam em motim contra o rigor deles; são
severos; serão invioláveis. Se, por minha conveniência pessoal, eu os quebrasse,
qual seria o valor deles? Têm um valor — sempre acreditei nisso; e se não posso
acreditar agora, é porque estou insana, com fogo correndo nas veias e o coração
batendo mais rápido do que posso contar suas batidas. Opiniões
preconcebidas, decisões superadas são tudo que tenho para me amparar nesta
hora; aí planto meu pé."
E o fiz. O Sr. Rochester, lendo minha expressão, viu que eu o fizera. Sua fúria
chegou ao auge; tinha de ceder a ela por um momento, acontecesse o que
acontecesse; atravessou o aposento, e pegou-me pelo braço e a cintura. Parecia
devorar-me com aquele olhar inflamado; senti-me no momento fisicamente
impotente como um graveto exposto ao calor e fulgor da fornalha; mentalmente,
ainda era dona de meu espírito e, com ele, da certeza da segurança final. O
espírito, felizmente, tem um intérprete — muitas vezes inconsciente, mas ainda
assim fiel — nos olhos. Os meus elevaram-se para os dele; e olhando sua face
feroz, exalei um suspiro involuntário; o aperto dele era doloroso, e minha força,
sobrecarregada, estava exausta.
— Nunca — ele disse, rangendo os dentes — nunca houve uma coisa tão
frágil e tão indomável. Parece um simples caniço em minhas mãos! (E sacudiu-
me com força.) Eu podia dobrá-la com o indicador e o polegar, e que adiantaria
dobrá-la, quebrá-la, esmagá-la? Veja esses olhos; veja a coisa selvagem e livre
que olha por eles, desafiando-me, com muito mais do que coragem... com um
severo triunfo. O que quer que eu faça com sua gaiola, não posso chegar a ela... à
selvagem e bela criatura! Se eu arrombar, se destruir a frágil prisão, meu crime
simplesmente deixará a cativa solta. Posso ser o conquistador da casa; mas a
moradora escaparia para o céu antes que eu pudesse declarar-me dono de sua
morada de barro. E é você, espírito... com determinação e energia, virtude e
pureza... que eu quero, não apenas seu corpo eriçado. Por si mesma, você poderia
vir em vôo suave e aninhar-se em meu coração, se quisesse; apanhada contra sua
vontade, iludirá a posse como uma essência... se evaporará antes que eu inale sua
fragrância. Oh, venha, Jane, venha!
Dizendo isso, libertou-me e apenas ficou me olhando. O olhar era muito pior
de resistir do que o frenético abraço: só uma idiota, no entanto, teria sucumbido
agora. Eu enfrentara e vencera a sua fúria; devia escapar ao seu sofrimento; recuei
para a porta.
— Vai embora, Jane?
— Vou, senhor.
— Está me abandonando?
— Sim.
— Não virá? Não será meu conforto, minha salvadora? Meu profundo amor,
minha louca aflição, minha frenética prece nada significam para você?
Que inexprimível drama havia em sua voz! Como foi duro reiterar mais uma
vez: — Eu vou.
— Jane!
— Sr. Rochester!
— Retire-se então; eu consinto; mas lembre-se, deixa-me aqui em angústia.
Suba ao seu quarto, reconsidere tudo que eu lhe disse, e, Jane, lance uma olhada
aos meus sofrimentos... pense em mim.
Deu-me as costas; atirou-se de rosto no sofá.
— Oh, Jane! Minha esperança... meu amor... minha vida! — as palavras
brotaram-lhe angustiadas dos lábios. Depois veio um soluço fundo, forte.
Eu já tinha chegado à porta; mas, leitor, voltei — voltei tão decidida quanto
tinha recuado. Ajoelhei-me ao lado dele; virei seu rosto da almofada para mim;
beijei-lhe a face; alisei seus cabelos com a mão.
— Deus o abençoe, meu querido amo! — disse. — Deus o proteja do mal e do
erro... Deus o oriente, o console... o recompense bem por sua bondade para
comigo.
— O amor da pequena Jane teria sido minha melhor recompensa — ele
respondeu. — Sem ele, meu coração está partido. Mas Jane me dará o seu amor,
sim... nobremente, generosamente.
O sangue subiu-lhe às faces; seus olhos faiscaram; ele saltou de pé; estendeu
os braços; mas fugi ao abraço, e deixei imediatamente a sala.
"Adeus!", foi o grito de meu coração quando o deixei. O desespero
acrescentou: "Adeus para sempre!"
***
Naquela noite, nem pensei em dormir; mas uma modorra se abateu sobre mim
assim que me deitei. Fui transportada em sonhos às cenas da infância; sonhei que
estava deitada no quarto vermelho de Gateshead; que a noite era escura, e que
estranhos temores me impressionavam a mente. A luz que muito tempo atrás me
causara aquela síncope, recordada nessa visão, parecia subir deslizando a parede e
parar, tremulante, no centro do teto escuro. Eu erguia a cabeça para olhar; o teto
dissolvia-se em nuvens, altas e sombrias, o brilho era como o que a lua transmite
aos vapores que vai desfazer. Observei-a vir — observei-a com a mais estranha
previsão; como se alguma palavra de condenação estivesse para ser escrita em seu
disco. Ela surgiu como nunca lua alguma surgiu das nuvens: primeiro, uma mão
penetrou nas brancas dobras e afastou-as; depois, não a lua, mas uma alva forma
humana brilhou no azul do céu, inclinando a gloriosa testa para a terra. Olhou-me
e olhou-me. Falou ao meu espírito: imensuravelmente distante era a voz, e no
entanto tão próxima, que murmurava em meu coração:
"Minha filha, fuja da tentação."
"Fugirei, mãe."
Assim respondi, após despertar daquele sonho que mais parecia um transe.
Era noite ainda, mas as noites de julho são curtas; a madrugada chega pouco
depois da meia-noite. "Não será demasiado cedo para iniciar a tarefa que tenho de
cumprir", pensei. Levantei-me, estava vestida; pois tirara apenas os sapatos. Eu
sabia onde encontrar, em minhas gavetas, roupa branca, um medalhão, um anel.
Procurando esses artigos, achei as contas do colar de pérolas que o Sr. Rochester
me obrigara a aceitar alguns dias atrás. Deixei-as; não eram minhas; eram da
noiva visionária que se dissolvera no ar. Embrulhei os outros artigos; pus no bolso
minha bolsa, contendo vinte xelins (era tudo que eu tinha), amarrei minha touca
de palha, preguei o xale, peguei o embrulho e as sandálias, que não ia calçar
ainda, e me esgueirei de meu quarto.
— Adeus, bondosa Sra. Fairfax! — murmurei, ao passar pela porta do quarto
dela. — Adeus, minha querida Adèle! — disse, ao olhar para o quarto das
crianças. Não podia admitir nenhuma idéia de entrar para abraçá-la. Tinha de
iludir um
ótimo ouvido: pelo que eu sabia, esse ouvido podia estar à escuta.
Teria passado pelo quarto do Sr. Rochester sem parar; mas, como meu
coração parou momentaneamente de bater naquela soleira, meus pés também se
viram obrigados a parar. Não se dormia ali; o ocupante andava impacientemente
de uma parede a outra; e repetidas vezes suspirou, enquanto eu escutava. Havia
um paraíso — um paraíso temporário — naquele quarto para mim, se eu quisesse:
tinha apenas de entrar e dizer:
— Sr. Rochester, eu o amarei e viverei com o senhor a vida inteira, até a
morte.
E uma fonte de encanto brotaria os meus lábios. Pensei nisso.
Aquele bondoso amo, que não podia dormir agora, esperava o dia com
impaciência. Mandaria me chamar pela manhã; eu teria partido. Ele mandaria me
procurar; inutilmente. Ele se sentiria abandonado; seu amor rejeitado, sofreria;
talvez se desesperasse. Pensei nisso também. Minha mão se moveu em direção à
fechadura: contive-a e afastei-me.
Tristemente, segui meu caminho para baixo: sabia o que tinha de fazer, e o fiz
mecanicamente. Procurei a chave da porta lateral na cozinha; procurei também
um frasco de óleo e uma pena; lubrifiquei a chave e a fechadura. Peguei um pouco
de água, um pouco de pão; pois talvez tivesse de percorrer uma grande distância a
pé; e minhas forças, seriamente abaladas nos últimos dias, não deviam faltar. Fiz
tudo isso sem o menor barulho. Abri a porta, saí, fechei-a silenciosamente. A
mortiça madrugada começava no pátio. Os grandes portões permaneciam
fechados e trancados; mas um portãozinho num deles estava apenas com a
taramela. Por ele eu parti, depois de tornar a fechá-lo; e agora estava fora de
Thornfield.
A uma milha de distância, além dos campos, estendia-se uma estrada que
seguia em direção oposta à de Millcote; uma estrada que eu nunca percorrera, mas
vira muitas vezes e imaginava aonde levava: para lá encaminhei meus passos.
Não podia permitir-me nenhuma reflexão agora: nem um olhar lançado para trás;
nem mesmo para a frente. Não podia dedicar nem um pensamento ao passado ou
ao futuro. O primeiro era
uma página tão celestialmente doce — tão mortalmente triste — que ler uma
linha dela seria dissolver minha coragem e desfazer minha energia. O último era
uma terrível página em branco; algo como o mundo após o dilúvio.
Contornei campos, sebes e alamedas até depois da aurora. Creio que era uma
bela manhã estivai; sei que meus sapatos, que eu pusera após deixar a casa, logo
estavam úmidos de orvalho. Mas não olhei nem o sol nascente, nem o céu
sorridente, nem a natureza que despertava. Quem é levado a passar por um belo
cenário em direção ao cadafalso não pensa nas flores que sorriem à beira da
estrada, mas no cepo e no fio do machado; na separação de ossos e veias; na
sepultura escancarada ao fim; e eu pensava na lúgubre fuga e na peregrinação ao
léu — e, oh! com agonia pensava no que deixara. Não podia deixar de pensar.
Pensava nele agora — em seu quarto, olhando o nascer do sol; esperando que em
breve eu viesse, para dizer-lhe que ficaria consigo e seria sua. Eu ansiava por ser
sua; morria por voltar; não era tarde demais. Podia ainda poupar-lhe a amarga dor
da privação. Tinha certeza de que não haviam ainda descoberto a minha fuga.
Podia voltar e ser sua consoladora — o seu orgulho; sua redenção da infelicidade,
talvez da ruína. Oh, aquele temor de que ele se abandonasse a si mesmo — pior
ainda que o meu abandono — como me aguilhoava! Era uma seta serrilhada em
meu peito; rasgava-me quando eu tentava extraí-la; deixava-me doente quando a
lembrança a enterrava mais. Os pássaros começavam a cantar nos matos e
capoeiras; eram fiéis a seus companheiros; eram símbolos do amor. Que era eu?
Em meio à dor de meu coração e aos frenéticos esforços dos princípios, eu me
detestava. Não tinha o consolo da auto-aprovação: nem mesmo do respeito
próprio. Eu ferira — machucara —, abandonara meu amo. Era odiosa a meus
próprios olhos. Contudo, não podia voltar, refazer um único passo. Deus devia me
conduzir. Quanto à minha própria vontade e consciência, a dor da paixão havia
espezinhado uma e sufocado a outra. Eu chorava desesperadamente ao percorrer
meu caminho solitário; seguia rápido, rápido, como alguém em delírio. Uma
fraqueza que começara interiormente, estendendo-se aos meus membros,
apoderou-se de mim e caí; fiquei no chão alguns minutos, comprimindo o rosto
contra a relva úmida. Tinha um pouco de medo — e de esperança — de morrer
ali; mas logo me ergui, arrastando-me de quatro, e depois me pus de pé — ansiosa
e decidida como nunca a alcançar a estrada.
Quando cheguei lá, fui obrigada a sentar-me para descansar sob a sebe; e ali
sentada ouvi um barulho de rodas, e vi uma diligência aproximar-se. Levantei-me
e ergui a mão; ela parou. Perguntei aonde ia: o cocheiro disse o nome de um lugar
muito distante, e onde eu sabia que o Sr. Rochester não tinha relações. Perguntei-
lhe por quanto me levaria até lá; ele disse trinta xelins; respondi que só tinha
vinte; bem, ele tentaria fazer isso dar. Deu-me permissão para entrar, pois o
veículo estava vazio; entrei, ele fechou a porta, e a diligência seguiu seu caminho.
Gentil leitor, que você jamais sinta o que senti então! Que seus olhos nunca
vertam lágrimas tão abundantes, escaldadantes, arrancadas do coração, como as
que transbordaram dos meus. Que nunca apele aos céus em preces tão
desesperançadas e agônicas como as que deixaram meus lábios naquele dia; pois
que nunca tema você, como eu, ser o instrumento do mal para aquele a quem ama
inteiramente.
CAPÍTULO 28
PASSARAM-SE dois dias. É um entardecer de verão; o co-cheiro me
desembarcou num lugar chamado Whitcross; não podia levar-me mais longe pela
soma que eu lhe dera, e eu não possuía nem mais um xelim no mundo. A
diligência já vai a uma milha de distância a essa altura; estou só. Neste momento,
descubro que esqueci de pegar meu embrulho na mala da diligência, onde o
guardei por segurança; lá está, e lá deverá ficar; e agora, estou na mais absoluta
indigência.
Whitcross não é uma cidade, nem mesmo uma aldeia; apenas um pilar de
pedra numa encruzilhada, caiado, suponho, para tornar-se mais visível à distância,
na escuridão. Quatro braços se projetam no topo da coluna: a cidade mais
próxima, segundo a indicação, fica a dez milhas; a mais distante, cerca de vinte.
Pelos conhecidos nomes dessas cidades, sei em que condado me encontro; um
burgo das Midlands do norte, coberto de charnecas, eriçado de montanhas, é o que
vejo. Há grandes pântanos atrás e a cada lado de mim; e ondas de montanhas até
muito além do vale a meus pés. A população aqui deve ser escassa, e não vejo
passantes por estas estradas, que se estendem para leste, oeste, norte e sul —
brancas, amplas, solitárias; todas cortam as charnecas, e o mato cresce denso e
bravo nas margens. Mas um passante casual aparece; e não desejo que olho algum
me veja agora: um estranho imaginaria o que ando fazendo, parada aqui no poste
de sinalização, evidentemente sem objetivo e perdida. Poderia interrogar-me, e eu
só poderia dar uma resposta que soaria incrível e despertaria suspeitas. Nenhum
laço me liga à sociedade humana neste momento — nem um encanto ou
esperança me chama para junto das criaturas minhas irmãs — ninguém que me
visse teria um pensamento bondoso ou um bom desejo para mim. Não tenho
parente algum, além da mãe universal, a Natureza: buscarei seu seio e pedirei para
descansar.
Enfiei-me na charneca; meti-me numa clareira que sulcava profundamente a
parda margem do pântano; andei enterrada até os joelhos em meio à escura
vegetação; acompanhei suas curvas e, encontrando um rochedo de granito coberto
de musgo num ângulo escondido, sentei-me a seus pés. Estava cercada de altas
margens de pântanos; o rochedo protegia-me a cabeça; o céu pairava acima.
Passou-se algum tempo até que me sentisse tranqüila mesmo ali: eu tinha um
vago temor de que houvesse gado bravo por perto, ou de que algum caçador ou
transgressor me descobrisse. Quando uma rajada de vento açoitava o mato, eu
erguia a cabeça, temendo que fosse a arremetida de um touro. Se uma lavandeira
piava, eu imaginava que era um homem. Descobrindo que minhas apreensões
eram infundadas, no entanto, e tranqüilizada pelo profundo silêncio que reinava
com o cair da tarde, ganhei confiança. Não tinha nenhuma idéia ainda; apenas
ouvira, observara, temera; agora, readquiria a faculdade de refletir.
Que ia fazer? Aonde ir? Oh, perguntas insuportáveis, quando eu nada podia
fazer nem ir a parte alguma! Quando minhas pernas fatigadas e trêmulas ainda
tinham de percorrer uma longa estrada, antes que eu alcançasse uma habitação
humana — quando teria de implorar a fria caridade para conseguir um abrigo; de
importunar a relutante simpatia alheia, e quase certamente incorrer em repulsa,
para que se ouvisse a minha história, ou se satisfizesse qualquer das minhas
necessidades!
Toquei o chão da charneca; estava seco e cálido com o calor de um dia de
verão. Olhei o céu; estava puro, uma bondosa estrela piscava pouco acima da
montanha. O sereno caía, mas com propícia suavidade; não soprava brisa alguma.
A natureza parecia-me benigna e boa; pensei que ela me amava, por mais
abandonada que eu estivesse; e eu, que só poderia esperar desconfiança, rejeição,
insulto do ser humano, agarrei-me a ela com filial devoção. Naquela noite, pelo
menos, seria sua hóspede, como era sua filha: minha mãe me alojaria sem
dinheiro e sem cobrança. Eu ainda tinha um naco de pão, o resto de um pão
inteiro que comprara numa cidade pela qual passáramos ao meio-dia, com um
pêni que encontrara por acaso — minha última moeda. Via bagas de mirtilo
brilhando aqui e ali, como contas negras no matagal: colhi um punhado e as comi
com pão. Minha fome, aguda antes, foi, se não satisfeita, pelo menos apaziguada
por essa refeição de eremita. Fiz minhas preces noturnas ao terminá-la, e depois
escolhi o meu leito.
Além do rochedo, a charneca era muito profunda: quando eu dava uma
passada, o pé afundava nela; elevando-se alta de todos os lados, deixava apenas
um estreito espaço para o ar da noite entrar. Dobrei meu xale, e estendi-o sobre
mim como um cobertor; um tufo de mato baixo, musgoso, era o meu travesseiro.
Assim alojada, não senti frio, pelo menos no começo da noite.
Meu repouso poderia ter sido bastante feliz; só que meu coração partido o
interrompeu. Queixava-se de suas feridas abertas, do sangramento interno, das
cordas partidas. Tremia pelo Sr. Rochester e sua condenação; lamentava-o com
profunda piedade; exigia-o com um anseio incessante; e, impotente como um
pássaro com ambas as asas quebradas, ainda debatia seus cotos despedaçados em
vãs tentativas de ir buscá-lo.
Exausta com essa tortura mental, pus-me de joelhos. A noite caíra, e seus
planetas giravam no céu: uma noite tranqüila, silenciosa, serena demais para se ter
medo. Sabemos que Deus está em toda parte; mas certamente sentimos mais Sua
presença quando Suas obras se mostram em maior escala à nossa frente; e é no
céu noturno sem nuvens, onde Seus mundos giram em círculos silenciosos, que
lemos mais clara a Sua infinitude, a Sua onipotência, a Sua onipresença. Eu me
pusera de joelhos para rezar pelo Sr. Rochester. Erguendo a cabeça, vi, com os
olhos cheios de lágrimas, a poderosa Via Láctea. Lembrando-me do que era —
que incontáveis sistemas varriam ali o espaço como um suave facho de luz —
senti o poder e a força de Deus. Estava certa de Sua eficiência para proteger o que
criara, convenci-me de que nem a terra pereceria, nem qualquer uma das almas
que entesourava. Volvi minha prece para um agradecimento; a Fonte da Vida era
também o Salvador dos espíritos. O Sr. Rochester estava em segurança, pertencia
a Deus, e por Deus seria protegido. Aninhei-me novamente no seio da montanha;
e em pouco tempo esqueci no sono o sofrimento.
Mas no dia seguinte, veio-me a Necessidade, pálida e nua. Muito depois de os
passarinhos terem deixado seus ninhos; muito depois de as abelhas virem, nas
doces primícias do dia, colher o mel das urzes antes que o orvalho secasse —
quando as compridas sombras da manhã se encolheram, e o sol encheu o céu e a
terra — me levantei e olhei em volta.
Que dia quieto, quente, perfeito! Que dourado deserto aquela extensa
charneca! Por toda parte, a luz do sol. Desejei poder viver ali e dali. Vi um lagarto
subir correndo o rochedo; vi uma abelha atarefada entre as doces bagas de mirtilo.
Eu teria de bom grado me transformado em abelha ou lagarto, para encontrar
alimentação adequada e abrigo permanente ali. Mas era um ser humano, e tinha as
necessidades de um ser humano, não devia demorar-me onde não havia nada para
satisfazê-las. Levantei-me; olhei a cama que deixara. Sem esperanças para o
futuro, desejava apenas isso — que meu Criador tivesse naquela noite julgado
bom requisitar minha alma, enquanto eu dormia; e que aquele cansado corpo,
absolvido pela morte de mais outros conflitos com a sorte, tivesse agora apenas de
decompor-se tranqüilamente e misturar-se em paz com o solo do agreste. A vida,
no entanto, ainda me possuía, com todas as suas exigências, e sofrimentos, e
responsabilidades. O fardo tinha de ser carregado; a necessidade satisfeita; o
sofrimento suportado; a responsabilidade cumprida. Parti.
Voltando a Whitcross, segui uma estrada que ia em direção oposta à do sol,
agora ardente e alto. Por nenhuma circunstância tinha eu vontade de decidir
minha sorte. Caminhei por um longo tempo, e quando achei que já tinha andado
bastante, e que poderia conscienciosamente ceder à fadiga que quase me
dominava — poderia relaxar aquela marcha forçada, e, sentando-me numa pedra
que via próxima, submeter-me sem resistência à apatia que me pesava no coração
e nos membros — ouvi um sino tocar, um sino de igreja.
Voltei-me na direção do som, e ali, entre as românticas montanhas, cujas
mudanças e aspecto deixara de notar uma hora atrás, vi uma aldeia e um
campanário. Todo o vale à minha direita estava cheio de campos de pastagem,
campos de milho e florestas; e um reluzente riacho ziguezagueava pelos vários
tons de verde, do grão que amadurecia, da sombria mata, do claro e ensolarado
prado. Atraída pelo rumor de rodas na estrada à minha frente, vi uma carroça
sobrecarregada mourejando colina acima, e não muito além duas vacas e seu
condutor. A vida e o trabalho humanos estavam perto. Eu devia prosseguir na
luta, lutar pela vida e curvar-me sob o trabalho como os demais.
Cerca de duas horas da tarde, entrei na aldeia. No fim de sua única rua, havia
uma lojinha com alguns pães na vitrina. Cobicei um pão. Com aquela restauração,
poderia talvez readquirir um pouco de energia; sem ela, seria difícil prosseguir. O
desejo de ter alguma força e energia me voltaram assim que me vi entre os seres
meus irmãos. Achei que seria degradante desmaiar de fome na rua de uma aldeia.
Não teria nada comigo que pudesse trocar por um daqueles pães? Pensei. Tinha
um pequeno lenço de seda atado em volta do pescoço; tinha minhas luvas. Não
sabia como os homens e mulheres que haviam chegado ao extremo da miséria
agiam. Não sabia se algum daqueles artigos seria aceito, provavelmente não; mas
tinha de tentar.
Entrei na loja; havia uma mulher lá dentro. Vendo uma pessoa
respeitavelmente vestida, uma dama, como supunha, ela se adiantou com
civilidade. Em que podia me servir? Fui tomada de vergonha, minha língua não
exprimia o pedido que eu preparara. Não ousava oferecer-lhe as luvas meio
gastas, o lenço amassado; além disso, sentia que seria absurdo. Pedi apenas
permissão para sentar-me por um momento, pois estava cansada. Decepcionada
na esperança de uma freguesa, ela acedeu friamente ao pedido. Indicou-me um
assento; afundei nele. Sentia uma dolorosa vontade de chorar; mas, sabendo como
seria irrazoável uma tal manifestação, contive-me. Em breve, perguntei "se havia
alguma costureira ou auxiliar de costureira na aldeia?"
— Sim; duas ou três. O bastante para o trabalho que há. Refleti. Fora impelida
ao ponto agora. Fora posta frente a frente com a necessidade. Estava na posição
de uma pessoa sem recursos, sem um amigo, sem uma moeda. Tinha de fazer
alguma coisa. O quê? Tinha de recorrer a alguma coisa. Onde?
— Ela sabia de algum lugar nas vizinhanças onde se precisasse de uma
criada?
— Não; não sabia dizer.
— Qual era a principal atividade daquele lugar? Que era que a maioria das
pessoas fazia?
— Alguns eram trabalhadores de roça; muitos trabalhavam na fábrica de
agulhas do Sr. Oliver, e na fundição.
— O Sr. Oliver empregava mulheres?
— Não; era trabalho de homem.
— E que faziam as mulheres?
— Não sei, não — foi a resposta. — Umas fazem uma coisa, e outras outra. A
gente pobre deve passar como pode.
Parecia estar cansada de minhas perguntas; e, na verdade, que direito tinha eu
de importuná-la? Entraram um ou dois vizinhos; precisavam evidentemente de
minha cadeira.
Subi a rua, olhando ao passar todas as casas de um lado e de outro; mas não
conseguia descobrir nenhum pretexto nem ver nenhum motivo para entrar em
nenhuma delas. Vagueei pela aldeia, às vezes saindo até uma certa distância e
depois voltando, durante uma hora ou mais. Bastante exausta, e sofrendo muito
agora pela falta de comida, dobrei por uma alameda e me sentei sob a sebe. Antes
de passarem muitos minutos, estava novamente de pé, e novamente buscando algo
— um recurso, ou pelo menos um informante. No alto da colina, erguia-se uma
bela casinha, com um jardim na frente, perfeitamente arrumado e brilhantemente
florido. Parei diante dela. Que tinha eu de me aproximar da porta branca e tocar a
reluzente maçaneta? De que modo interessaria aos habitantes daquela morada
ajudar-me? Uma jovem de aparência suave, muito limpa, abriu a porta. Numa voz
como a que se poderia esperar de um coração sem esperança e um corpo a ponto
de desfalecer — uma voz desgraçadamente baixa e falha —, perguntei se
precisavam de uma criada ali.
— Não — ela disse — não temos criada.
— Pode dizer-me onde posso arranjar algum tipo de emprego? — continuei.
— Sou estranha, sem conhecimentos neste lugar. Preciso de um trabalho; não
importa qual.
Mas não era problema dela pensar por mim, ou arranjar um emprego para
mim; além disso, a seus olhos, como deveriam parecer duvidosos o meu caráter, a
minha posição, a minha história. Ela balançou a cabeça, "sentia muito não poder
me dar nenhuma informação", e a porta branca se fechou, muito delicada e
polidamente; mas me deixava de fora. Se a moça » houvesse mantido aberta um
pouco mais, creio que eu teria pedido um pedaço de pão; pois estava agora no
fundo.
Eu não podia suportar um retorno à sórdida aldeia, onde, ademais, não era
visível nenhuma perspectiva de ajuda. Eu devia preferir desviar-me para um
bosque que via não muito distante, e que parecia, com sua densa sombra, oferecer
um abrigo convidativo; mas estava tão doente, tão fraca, tão aferroada pelos
anseios da natureza, que o instinto me manteve rondando casas onde havia
possibilidade de arranjar comida. A solidão não seria solidão, o repouso não seria
repouso, enquanto aquele abutre, a fome, afundasse assim seus esporões e seu
bico em meu flanco.
Aproximei-me das casas; deixava-as e tornava a voltar, e novamente me
afastava: sempre repelida pela consciência de que não tinha direito algum a pedir
— direito algum a esperar qualquer interesse pela minha infeliz sorte. Enquanto
isso, a tarde avançava, enquanto eu vagueava assim, como um cão perdido e
faminto. Ao atravessar um campo, vi uma torre de igreja à minha frente, corri
para ela. Perto do cemitério, e no meio de um jardim, erguia-se uma casa bem
construída, apesar de pequena, que eu não tinha dúvida de que era a casa do
pároco. Lembrei-me de que os estranhos que chegam a um lugar onde não têm
amigos, e que procuram emprego, às vezes apelam para o clérigo, para que os
apresente e ajude. É função do clérigo ajudar — ao menos com conselhos — os
que desejam ajudar-se a si mesmos. Parecia-me que tinha algum direito a buscar
conselho ali.
Recuperando então a coragem, e reunindo meus débeis restos de energia,
segui em frente. Cheguei à casa e bati na porta da cozinha. Uma velha abriu;
perguntei se aquela era a casa paroquial.
— Sim.
— O sacerdote estava?
— Não.
— Voltaria logo?
— Não, estava ausente de casa.
— Longe?
— Não muito... umas três milhas. Fora chamado para lá pela morte súbita de
seu pai: estava em Marsh End agora, e muito provavelmente permaneceria lá por
mais uma quinzena.
— Havia alguma dona da casa?
— Não — havia apenas ela, que era a governanta.
E a ela, leitor, eu não podia suportar pedir alívio da necessidade em que me
afundava, não podia mendigar ainda, e mais uma vez me afastei, arrastando-me.
Mais uma vez peguei meu lenço; mais uma vez pensei nos pães da lojinha.
Oh, ao menos uma migalha! Apenas um bocado para aplacar a dor da fome!
Instintivamente, tornei a voltar-me para a aldeia; tornei a encontrar a loja, e entrei;
e embora houvesse outras pessoas lá, além da mulher, aventurei-me a perguntar:
— Será que ela me daria um pão por aquele lenço? Ela me olhou com
evidente suspeita.
— Não, não vendia coisas como aquela.
Quase desesperada, pedi meio pão; ela tornou a recusar.
— Como podia saber onde eu conseguira o lenço?
— Aceitaria minhas luvas?
— Não! Que iria fazer com elas?
Leitor, não é agradável demorar-me nesses detalhes. Algumas pessoas dizem
que há prazer em lembrar experiências penosas passadas; mas até hoje mal posso
suportar rever a época a que me refiro: a degradação moral, misturada ao
sofrimento físico, deixa uma lembrança demasiado angustiante para que um dia
alguém se demore deliberadamente nela. Eu não censurava a nenhum daqueles
que me repeliam. Sentia que era o que se devia esperar, e que não se podia evitar:
um mendigo comum já é freqüentemente objeto de suspeitas; um mendigo bem
vestido o será inevitavelmente. Sem dúvida, o que eu mendigava era um emprego;
mas de quem era o problema de me arranjar um? Não, certamente, de pessoas que
me viam então pela primeira vez, e que nada sabiam de meu caráter. E quanto à
mulher que não quis aceitar meu lenço em troca de pão, ora, estava certa, se a
oferta lhe parecia sinistra ou a troca não lucrativa. Vou resumir agora. Estou
nauseada do tema.
Pouco antes do anoitecer, passei por uma casa de fazenda, a cuja porta aberta
se sentava o fazendeiro, tomando sua sopa de pão e queijo. Parei e disse:
— O senhor me dá um pedaço de pão? Pois tenho muita fome. — Ele me
lançou um olhar de surpresa; mas, sem responder, cortou uma grossa fatia de seu
pão e me deu. Imagino que não me achava uma mendiga, mas apenas uma espécie
de dama excêntrica, que se tomara de encantos pelo seu pão pardo. Assim que
estava fora das vistas da casa, sentei-me e comi-o.
Não podia esperar conseguir abrigo sob um teto, e busquei-o no bosque a que
me referi há pouco. Mas minha noite foi desgraçada, e meu repouso interrompido:
o chão estava úmido, o ar frio; além disso, intrusos passaram perto de mim mais
de uma vez, e tive de mudar repetidas vezes de lugar; não tinha nenhuma
sensação de segurança ou tranqüilidade. Lá pela madrugada, choveu; e todo o dia
seguinte foi de chuva. Não me peça, leitor, para dar-lhe uma versão detalhada
daquele dia; como antes, fui repelida; como antes, morria de fome; mas comi uma
vez. À porta de uma cabana, uma menina ia jogar um bolo de mingau de aveia
frio num cocho de porcos.
— Você me dá isso? — perguntei. Ela me olhou com olhos arregalados.
— Mãe! — exclamou. — Uma mulher aqui quer que eu lhe dê esse mingau.
— Bem, menina — respondeu uma voz lá dentro — dê, se é uma mendiga. O
porco não quer.
A menina esvaziou o bolo duro em minha mão, e o devorei famintamente.
Quando o chuvoso crepúsculo se adensou, parei no solitário sendeiro que
percorria havia uma hora ou mais.
— Minhas forças me abandonam inteiramente — disse, num solilóquio. —
Sinto que não posso ir muito mais longe. Serei uma marginal outra vez esta noite?
Com a chuva caindo de tal modo, terei de repousar a cabeça no chão frio,
encharcado? Temo que não possa ser de outra forma, pois quem me receberá?
Mas será pavoroso, com esta sensação de fome, fraqueza, frio, e essa desolação...
esta total prostração da esperança. Muito provavelmente, porém, estarei morta
antes do amanhecer. E por que não posso reconciliar-me com a perspectiva da
morte? Por que luto para manter uma vida que não vale nada? Porque sei, ou
creio, que o Sr. Rochester vive, e depois, morrer de privação e frio é uma sorte a
que a natureza não pode se submeter passivamente. Oh, Providência, mantenha-
me ainda um pouco mais! Ajude! Oriente-me!
"Bem, eu preferiria morrer aqui do que numa rua ou num local freqüentado",
refleti. "É muito melhor que os corvos e aves de rapina — se é que os há nesta
região — me tirem as carnes dos ossos do que tê-los aprisionados num caixão de
indigente e mofar numa cova de pobre."
Para a montanha, então, me voltei. Alcancei-a. Restava apenas, agora,
encontrar um buraco onde pudesse deitar-me, e sentir-me ao menos escondida, se
não segura. Mas toda a superfície da mata parecia nivelada. Mostrava variações
apenas de cor; verde, onde os juncos e musgos cobriam os pântanos; negra, onde
o solo seco alimentava apenas a morte. Apesar de estar escurecendo, ainda podia
ver mudanças, embora apenas como alterações de luz e sombra; pois as cores se
tinham apagado com a luz do dia.
Meus olhos ainda vagavam pela melancólica montanha e ao longo da margem
do pântano, perdendo-se em meio ao mais agreste panorama, quando num ponto
obscuro e distante, entre os pântanos e os montes, surgiu uma luz. "É um ignis
fatuus", foi meu primeiro pensamento; e esperei que logo desaparecesse. Mas
continuou a brilhar, com total constância, não recuando nem avançando. "Será
então uma fogueira acesa agora?" perguntei-me. Esperei para ver se se ampliava;
mas não; como não diminuía, tampouco aumentava. "Pode ser uma vela numa
casa", conjeturei então; "mas, se é, jamais poderei alcançá-la. Está longe demais:
e, mesmo que estivesse a uma jarda de mim, de que adiantaria? Bastava bater na
porta para tê-la fechada em minha cara".
E afundei no lugar onde estava, escondendo o rosto contra o solo. Fiquei
imóvel algum tempo: o vento da noite passava pelo monte e por mim, e morria
gemendo na distância; a chuva caía grossa, molhando-me de novo até os ossos. Se
pelo menos eu me enrijecesse até a imobilidade — a amiga dormência da morte
— ela poderia continuar a cair: eu não a sentiria; mas minha carne molhada, ainda
viva, tremia à sua congelante influência. Em breve, levantei-me.
A luz ainda estava lá, brilhando minúscula mas constante através da chuva.
Tentei voltar a caminhar: arrastei as pernas cansadas em direção a ela, o que me
conduziu de viés pela colina, passando por um largo lamaçal, que seria
intransponível no inverno, e que mesmo agora, no auge do verão, era um atoleiro.
Ali caí duas vezes; mas outras tantas me levantei e reuni minhas faculdades.
Aquela luz era minha obstinada esperança; tinha de chegar a ela.
Tendo atravessado o pântano, vi uma tira branca na charneca. Aproximei-me;
era uma estrada ou trilha: levava direto à luz, que agora refulgia de uma espécie
de outeiro, em meio a um grupo de árvores — pinheiros, aparentemente, pelo que
pude distinguir do aspecto de suas formas e folhagens na escuridão. Minha estrela
desapareceu quando me aproximei; algum obstáculo se havia interposto entre eu e
ela. Estendi a mão, para apalpar a massa escura à minha frente: distingui as
ásperas paredes de um muro baixo — acima, alguma coisa como uma paliçada, e
dentro, uma alta e espinhosa sebe. Continuei tateando. Novamente um objeto
esbranquiçado brilhou diante de mim: era um portão — uma pequena cancela, que
se moveu nas dobradiças quando a toquei. De cada lado, havia uma moita escura
— azevinho ou teixo.
Entrando eu pelo portão e passando pelas moitas, ergueu-se à minha vista a
silhueta de uma casa, negra, baixa e um tanto comprida, mas a luz-guia não
brilhava em parte alguma. Tudo era escuridão. Haviam-se os moradores recolhido
para dormir? Eu temia que assim fosse. Ao procurar a porta, dobrei uma esquina;
e lá estava a luz amiga de novo, saindo das vidraças em losango de uma janela
muito pequena, com gelosias, a um pé do chão e tornada ainda menor pela
vegetação de hera ou de alguma outra trepadeira, cujas folhas se concentravam
densamente na parte da parede da casa onde ela ficava. A abertura era tão
obstruída e estreita, que não se julgara necessário cortina ou estore; e quando me
abaixei e afastei a folhagem que a cobria, pude ver tudo lá dentro. Via claramente
uma sala com o assoalho areado, limpo; uma cômoda de nogueira, com vasilhas
de estanho enfileiradas, refletindo o fulgor e a radiação de um rubro fogo de turfa.
Via um relógio, uma mesa branca, algumas cadeiras. A vela, cujos raios tinham
sido meu farol, ardia na mesa; e à sua luz uma mulher idosa, de aparência um
tanto rude, mas escrupulosamente limpa, como tudo à sua volta, tricotava uma
meia.
Notei esses objetos apenas de passagem — nada havia neles de extraordinário.
Um grupo mais interessante reunia-se perto da lareira, todos sentados quietos em
meio à rósea paz e calor que se irradiava dela. Duas jovens graciosas — damas
em todos os sentidos — sentavam-se, uma numa cadeira de balanço baixa, a outra
num banquinho ainda mais baixo; ambas vestiam luto fechado de crepe e
bombazina, trajes negros que ressaltavam singularmente seus brancos pescoços e
rostos; um grande e velho perdigueiro repousava a maciça cabeça no joelho de
uma das moças — no colo da outra se aninhava um gato negro.
Estranho lugar era aquela humilde cozinha para tais ocupantes! As jovens não
podiam ser filhas da velha à mesa; pois ela parecia rústica, e elas eram todas
delicadeza e refinamento. Eu não vira em parte alguma rostos como os delas, e no
entanto, enquanto as olhava, cada traço me parecia conhecido. Não posso dizer
que fossem bonitas — eram demasiado pálidas e graves para esta palavra: como
ambas se curvavam sobre um livro, pareciam pensativas até quase a severidade.
Um suporte entre elas continha uma segunda vela e dois grandes volumes, ao qual
recorriam freqüentemente, comparando-os, aparentemente, com os livros menores
que tinham nas mãos, como pessoas que consultam um dicionário para ajudá-las
numa tradução. A cena era tão silenciosa como se todas as figuras fossem
sombras, e o aposento iluminado pela luz da lareira um quadro: o silêncio era
tanto, que eu podia ouvir a cinza cair da grade, e o relógio bater em seu canto
escuro; e imaginei que podia ouvir até o clique-clique das agulhas de tricô da
mulher. Quando, assim, uma voz quebrou a estranha quietude afinal, foi bastante
audível para mim.
— Escute, Diana — disse uma das absortas estudantes —, Franz e o velho
Daniel estão juntos à noite, e Franz conta um sonho do qual acordou
aterrorizado... escute! — E leu em voz baixa alguma coisa, da qual nem uma
palavra me era inteligível; pois era numa língua desconhecida — nem francês
nem latim. Se era grego ou alemão, eu não sabia.
— Isto é forte — ela disse, quando acabou. — Eu gosto. — A outra moça, que
erguera a cabeça para escutar a irmã, repetiu olhando o fogo uma linha do que
fora lido. Posteriormente, fiquei sabendo do idioma e do livro; assim, citarei aqui
a linha, embora quando a tenha ouvido pela primeira vez me soasse apenas como
algo metálico, sem nenhum sentido:
— Da trat hervor Einer, anzusehen wie die Sternen Nacht. É bom! É bom! —
ela exclamou, os olhos negros e profundos faiscando. — Aí tem você um sombrio
e poderoso arcanjo bem disposto à sua frente! A linha vale cem páginas de
retórica oca. "Ich wäge die Gedanken in der Schale meines Zornes und die Werke
mit dem Gewichte meines Grimms". Gosto disso!
Voltaram a calar-se.
— Existe algum país onde falem desse jeito? — perguntou a velha, erguendo
o olhar de seu tricô.
— Sim, Hannah... um país muito maior que a Inglaterra, onde não falam de
outro jeito.
— Bem, sem dúvida, não sei como podem entender uns aos outros, e se uma
das senhoritas fosse lá, ia saber o que eles diziam?
— Provavelmente poderíamos saber alguma coisa do que dissessem, mas não
tudo... pois não somos tão inteligentes quanto você nos julga, Hannah. Não
falamos alemão, e não podemos lê-lo sem a ajuda de um dicionário.
— E de que lhes serve isso?
— Pretendemos ensiná-lo um dia... ou pelo menos os ru-dimentos, como
dizem; e então ganharemos mais dinheiro do que ganhamos agora.
— É bem possível; mas acabem com o estudo; já fizeram bastante por esta
noite.
— Achamos que sim; pelo menos, eu estou cansada. E você, Mary?
— Morta: afinal, é duro labutar com uma língua sem nenhum outro mestre
além de um dicionário.
— É, especialmente com uma língua como esse intricado, apesar de glorioso,
alemão.
— Certamente ele não vai demorar muito agora; são apenas dez horas
(olhando um reloginho de ouro que tirou da cintura). Está chovendo muito.
Hannah, quer ter a bondade de olhar o fogo na sala de visitas?
A mulher levantou-se, abriu uma porta, pela qual vi um corredor escuro, logo
a ouvi atiçar um fogo num quarto interno, e voltou.
— Ah, meninas — disse — me dá muito trabalho ir na sala ao lado agora:
parece tão solitário com a cadeira vazia e recostada a um canto.
Enxugou os olhos com o avental: as duas moças, sérias antes, pareciam tristes
agora.
— Mas ele está num lugar melhor — continuou Hannah — não devíamos
querê-lo de volta aqui. E depois, ninguém pode ter uma morte tão tranqüila
quanto a que ele teve.
— Você disse que ele não falou nem uma vez em nós? — perguntou uma das
damas.
— Não teve tempo, criança: foi-se num minuto, seu pai. Tinha estado um
pouco mal, como no dia anterior, mas nada sério; e quando o Sr. St. John
perguntou se queria que mandasse chamar uma de vocês, riu bastante dele.
Começou a sentir de novo uma espécie de peso na cabeça, no outro dia... quer
dizer, há quinze dias... e foi dormir e nunca mais acordou: estava quase duro
quando seu irmão entrou lá e o encontrou. Ah, meninas, foi o último da cepa: as
senhoritas e o Sr. St. John são de uma espécie diferente daqueles que se foram,
pois a mãe de vocês era muito parecida com vocês, e muito dada a livros. Era o
retrato da senhorita, Srta. Mary; a Srta. Diana parece mais com o pai.
Eu as achava tão parecidas, que não podia dizer onde a velha criada (pois
agora concluía que era isso que ela era) via a diferença. Ambas eram brancas e
esguias; ambas tinham rostos cheios de distinção e inteligência. Uma, certamente,
tinha o cabelo um pouquinho mais escuro que o da outra, e havia uma certa
diferença no estilo de o pentearem; os cachos castanhos claros de Mary eram
partidos e trançados; as trancas mais escuras de Diana cobriam-lhe o pescoço com
grossos rolos. O relógio bateu dez horas.
— Vão querer sua ceia, tenho certeza — observou Hannah — e o Sr. St. John
também, quando chegar.
E pôs-se a preparar a refeição. As damas levantaram-se: pareciam dispostas a
retirar-se para a sala de visitas. Até esse momento, eu tinha estado tão atenta a
observá-las, a aparência e a conversa delas me tinham provocado um interesse tão
vivo, que eu quase esquecera minha própria posição desgraçada; agora, ela me
voltava. Mais desolada, mais desesperada que nunca, parecia agora em contraste.
E como parecia impossível interessar as habitantes daquela casa por mim; fazê-las
acreditar na verdade de minhas privações e sofrimentos; levá-las a dar um repouso
às minhas andanças! Quando tateava até a porta, e batia nela hesitantemente,
achei que a última idéia era uma simples quimera. Hannah abriu.
— Que é que você quer? — perguntou numa voz de surpresa, examinando-me
à luz da vela que segurava.
— Posso falar com suas patroas? — eu disse.
— É melhor me dizer o que quer falar com elas. De onde vem?
— Sou uma estranha.
— Que quer aqui a esta hora?
— Quero abrigo por uma noite, numa casinha aqui fora ou em qualquer parte,
e um pedaço de pão para comer.
A desconfiança, exatamente o sentimento que eu temia, surgiu no rosto de
Hannah.
— Vou lhe dar um pedaço de pão — ela disse, após uma pausa — mas não
podemos alojar uma vadia. Não é possível.
— Deixe-me falar com suas patroas.
— Não, eu, não. Que podem elas fazer por você? Não devia andar vagando
por aí; isso parece muito mal.
— Mas aonde irei, se você me expulsar? Que farei?
— Oh, garanto que você sabe para onde ir e o que fazer. Cuide de não fazer
nada errado, só isso. Tome aqui um pêni; agora vá...
— Um pêni não pode me alimentar, e não tenho mais forças para ir adiante.
Não feche a porta, oh, não, pelo amor de Deus!
— Tenho de fechar, a chuva está entrando...
— Fale com as jovens damas. Deixe-me vê-las...
— Não vou fazer isso de jeito nenhum. Você não é o que devia ser, senão não
faria tal barulho. Mexa-se.
— Mas vou morrer, se me expulsarem.
— Você, não. Receio que tenha algumas idéias más, que a trazem às casas das
pessoas a esta hora da noite. Se tem cúmplices... arrombadores ou coisas assim...
aí por perto, pode dizer a eles que não estamos sozinhas aqui; temos um
cavalheiro, e cães, e armas. — E a honesta mas inflexível criada bateu a porta e a
aferrolhou por dentro.
Foi o clímax. Uma pontada de total sofrimento — um late-jar do verdadeiro
desespero — lacerou e afundou meu coração. Eu estava na verdade exausta; não
podia dar nem mais um passo. Arriei nos degraus molhados; gemi... torci as mãos
— chorei na maior angústia. Oh, aquele espectro da morte! Oh, aquela última
hora, aproximando-se com tamanho horror! Ai, aquela desolação — aquela
expulsão do meio de minha espécie! Fora-se não apenas a âncora da esperança,
mas a base da fortitude — ao menos por um momento; mas logo me esforcei e
readquiri a última.
— Só posso morrer — eu disse — e acredito em Deus. Vou tentar aguardar
Sua vontade em silêncio.
Estas palavras, não apenas as pensei, mas externei; e afundando toda a minha
miséria no coração, fiz um esforço para obrigá-la a permanecer ali — calada e
quieta.
— Todos devem morrer — disse uma voz tranqüila bem perto — mas nem
todos estão condenados a enfrentar um fim prolongado e prematuro, como seria o
seu se morresse aqui de privação.
— Quem ou que está falando? — perguntei, aterrorizada com o som
inesperado, e incapaz agora de extrair de qualquer ocorrência alguma esperança
de auxílio. Um vulto estava ali junto — que vulto, o negrume da noite me impedia
de distinguir. Com batidas altas e demoradas, o recém-chegado chamou à porta.
— É o senhor, Sr. St. John? —< gritou Hannah.
— Sim... sim; abra agora mesmo.
— Bem, o senhor deve estar molhado e com frio, numa noite tão feia dessa!
Entre... suas irmãs estão bastante preocupadas com o senhor, e creio que há
malfeitores por aí. Esteve aqui uma mendiga... ora, ela ainda não foi embora!
Deitada aqui! Levante-se! Tome vergonha! Vá andando, vamos!
— Cale a boca, Hannah! Tenho de falar com essa mulher. Você cumpriu seu
dever expulsando-a, agora deixe-me cumprir o meu admitindo-a. Eu estava perto,
e ouvi vocês duas. Acho que este é um caso especial... tenho de ao menos
examiná-lo. Levante-se, jovem, e entre em casa.
Obedeci-lhe, com dificuldade. Acabei parada dentro daquela cozinha limpa e
iluminada — diante da própria lareira — tremendo, nauseada; extremamente
consciente de meu aspecto espectral, desvairada e encharcada. As duas damas, o
irmão, Sr. St. John, e a velha criada olhavam-me de olhos arregalados.
— Quem é, St. John? — ouvi uma perguntar.
— Não sei dizer, encontrei-a na porta — foi a resposta.
— Ela parece pálida — disse Hannah.
— Pálida como barro ou a morte — foi a resposta. — Ela vai cair, que se
sente.
E na verdade minha cabeça girava: desabei; mas uma cadeira me recebeu. Eu
ainda tinha o domínio de meus sentidos, embora no momento não pudesse falar.
— Talvez um pouco d'água a restaurasse: Hannah, vá buscar. Mas ela está
reduzida a nada. Como está magra e exangue!
— Um mero espectro!
— Estará doente, ou apenas faminta?
— Faminta, creio. Hannah, isso é leite? Dê-me, e um pedaço de pão.
Diana (eu a reconhecia pelos compridos cachos que vi pendentes diante do
fogo, quando ela se curvou sobre mim) partiu um pedaço de pão, mergulhou-o no
leite e o pôs em meus lábios. Tinha o rosto perto do meu: vi que havia piedade
nele, e senti simpatia em sua respiração acelerada. Também em suas palavras a
mesma emoção que era como um bálsamo falou:
— Tente comer.
— Sim... tente — repetiu Mary, delicadamente; e sua mão retirou minha touca
encharcada e me ergueu a cabeça. Provei o que me davam, debilmente a princípio,
e logo com avidez.
— Não demasiado a princípio... contenham-na — disse o irmão. — Ela já
comeu o bastante. — E retirou a xícara de leite e o prato de pão.
— Um pouco mais, St. John... veja a avidez nos olhos dela.
— Agora, não, irmã. Veja se ela pode falar... pergunte-lhe como se chama.
Senti que podia falar, e respondi:
— Meu nome é Jane Elliot. — Ansiosa como sempre em evitar ser
descoberta, havia decidido antes assumir um outro nome.
— E onde mora? Onde estão seus amigos? Fiquei calada.
— Podemos mandar chamar alguém a quem conheça? Balancei a cabeça.
— Que pode dizer sobre si mesma?
De algum modo, agora que tinha cruzado a soleira daquela casa, e me via
frente a frente com seus donos, eu não me sentia mais abandonada, errante e
deserdada pelo vasto mundo. Ousava deixar o aspecto de mendiga e assumir meus
modos e caráter naturais. Comecei de novo a reconhecer-me; e quando o Sr. St.
John pediu uma explicação — que no momento eu estava demasiado fraca para
dar — eu lhe disse, após uma breve pausa:
— Senhor, não posso lhe dar nenhum detalhe esta noite.
— Mas que espera, então, que eu faça pela senhorita?
— Nada — respondi. Minha força só dava para respostas curtas. Diana tomou
a palavra.
— Quer dizer — perguntou — que já lhe demos o auxílio que você precisa? E
que podemos mandá-la embora para a char-neca e a noite de chuva?
Olhei-a. Tinha, achei, um rosto notável, cheio de força e bondade. Encorajei-
me de repente. Respondendo a seu olhar compadecido com um sorriso, disse:
— Confiarei em você. Se eu fosse um cão sem dono e perdido, sei que você
não me expulsaria de sua casa esta noite: assim, não tenho medo algum. Faça
comigo e para mim o que lhe agradar; mas não me exija que fale muito... estou
sem fôlego... sinto um espasmo quando falo.
Todos os três me examinavam, e todos os três ficaram calados.
— Hannah — disse o Sr. St. John afinal — deixe-a ficar aqui por enquanto, e
não lhe faça perguntas; daqui a dez minutos, dê-lhe o resto daquele pão e leite.
Mary e Diana, vamos para a sala discutir o assunto.
Retiraram-se. Muito em breve uma das damas voltou — eu não podia dizer
qual. Uma espécie de estupor insinuava-se em mim, sentada diante daquele fogo
agradável. Em voz baixa, ela deu algumas instruções a Hannah. Dentro em pouco,
com a ajuda da criada, consegui subir uma escada; minhas roupas encharcadas
foram retiradas; e logo uma cama quente e seca me recebia. Dei graças a Deus,
senti em meio à indizível exaustão um brilho de grata alegria, e adormeci.
CAPÍTULO 29
A LEMBRANÇA dos mais ou menos três dias e noites que se seguiram a isso
é muito vaga em minha mente. Lembro-me de algumas sensações que
experimentei nesse intervalo; mas só de poucos pensamentos que tive, e de
poucas ações que executei. Sabia que estava num quarto pequeno e numa cama
estreita. Parecia ter-me grudado a essa cama; jazia nela imóvel como uma pedra; e
arrancar-me dali seria quase o mesmo que me matar. Não tinha consciência dos
lapsos de tempo — da mudança da manhã para tarde, da tarde para a noite. Via
quando alguém entrava ou deixava o aposento; podia até dizer quem era; entendia
o que se dizia quando quem falava estava junto a mim; mas não podia responder;
abrir os lábios ou mover os membros eram-me igualmente impossíveis. Hannah, a
criada, era minha visitante mais freqüente. Suas vindas me perturbavam. Tinha a
sensação de que ela me queria longe; que não me compreendia a mim ou às
minhas circunstâncias; que tinha preconceitos contra mim. Diana e Mary
apareciam no quarto uma ou duas vezes por dia. Sussurravam frases desse tipo ao
lado de minha cama:
— Foi bom que a tivéssemos acolhido.
— Sim; certamente teria sido encontrada morta na porta pela manhã, se fosse
deixada lá fora a noite toda. Imagino o que ela passou.
— Estranhas privações, imagino... errante pobre, emaciada, pálida.
— Não é uma pessoa inculta, eu diria, pela sua maneira de falar; a pronúncia
era bastante pura; e as roupas que tirou, apesar de enlameadas e molhadas,
estavam pouco gastas e eram boas.
— Tem um rosto peculiar; apesar de descarnado e desfigurado, gosto dele; e
quando em boa saúde e animada, imagino que sua fisionomia seja agradável.
Nem uma vez em seus diálogos ouvi uma sílaba de arrependimento pela
hospitalidade que me haviam concedido, ou de desconfiança, ou de aversão por
mim. Senti-me reconfortada.
O Sr. St. John só veio uma vez; olhou-me e disse que meu estado de letargia
resultava da reação à fadiga excessiva e prolongada. Declarou que não era
necessário mandar chamar um médico; tinha certeza de que a natureza agiria
melhor, entregue a si mesma. Disse que todos os meus nervos tinham sido
demasiado forçados de alguma forma, e que todo o sistema devia ficar em torpor
por algum tempo. Não havia doença. Imaginava que minha recuperação seria
bastante rápida, assim que começasse. Externou essas opiniões em poucas
palavras, numa voz tranqüila e baixa; e acrescentou após uma pausa, no tom de
um homem pouco acostumado a comentários expansivos:
— Uma fisionomia um tanto incomum; certamente, não denota vulgaridade
ou degradação.
— Muito pelo contrário — respondeu Diana. — Para dizer a verdade, St.
John, meu coração simpatiza com a pobre alma. Gostaria de podermos favorecê-la
permanentemente.
— Isso não é muito provável — foi a resposta. — Vai descobrir que é alguma
jovem dama que teve algum mal-entendido com os amigos, e talvez
impensadamente os deixou. Podemos talvez conseguir devolvê-la a eles, se ela
não for teimosa; mas distingo traços de força no rosto dela que me deixam cético
quanto à sua tratabilidade. — Ficou a examinar-me por alguns minutos; depois
acrescentou: — Ela parece sensível, mas de modo nenhum bonita.
— Está tão doente, St. John.
— Doente ou sã, será sempre sem atrativos. Faltam a graça e a harmonia da
beleza nessas feições.
No terceiro dia, eu estava melhor; no quarto, podia falar, mover-me, erguer-
me na cama, e virar-me. Hannah trouxe-me um pouco de sopa de aveia e uma
torrada, mais ou menos, imaginei, na hora do jantar. Comi com gosto; a comida
era boa — sem o sabor febril que até então envenenava tudo que eu engolia.
Quando Hannah me deixou, senti-me relativamente forte e revivida, e logo a
saciedade do repouso e o desejo de agir me agitaram. Desejava levantar-me; mas
que podia vestir? Só minhas roupas úmidas e enlameadas, com as quais dormira
no chão e caíra no pântano. Tinha vergonha de aparecer diante de meus
benfeitores vestida assim. Mas fui poupada dessa humilhação.
Numa cadeira ao lado da cama estavam todas as minhas coisas, limpas e
secas. Meu vestido de seda negra pendia da parede. As manchas de lama haviam
sido removidas; as rugas deixadas pela chuva, alisadas; estava bastante decente.
Até meus sapatos e meias estavam limpos e apresentáveis. Havia meios de me
lavar no quarto, e um pente e uma escova para alisar meu cabelo. Após um
cansativo processo, repousando a cada cinco minutos, consegui vestir-me. Minhas
roupas pendiam frouxas no corpo, pois eu estava muito magra; mas cobri as
deficiências com um xale, e mais uma vez, limpa e com uma aparência respeitável
— nenhum traço de sujeira, de desarrumação, que eu tanto detestava, e que
pareciam degradar-me — arrastei-me por uma escada abaixo, apoiando-me no
corrimão, até um corredor estreito e baixo, e encontrei afinal o caminho até a
cozinha.
O cheiro de pão fresco e o calor de um generoso fogo a inundavam. Hannah
cozinhava. Sabe-se que os preconceitos são muito difíceis de erradicar do coração
cujo solo nunca foi revolvido ou fertilizado pela educação; vicejam ali, firmes
como o mato entre as pedras. Hannah fora fria e rígida, de fato, a princípio;
ultimamente, começara a ceder um pouco; quando me viu entrar arrumada e bem
vestida, chegou mesmo a sorrir.
— Que, levantou-se! — disse. — Está melhor, então. Pode sentar-se em
minha cadeira diante da lareira, se quiser.
Indicou-me a cadeira de balanço. E voltou às suas ocupações, examinando-me
de vez em quando pelos cantos dos olhos. Voltando-se para mim, ao retirar alguns
pães do forno, perguntou sem rodeios:
— Alguma vez mendigou antes de vir aqui?
Fiquei indignada por um momento; mas, lembrando-me de que a raiva estava
fora de questão, e de que na verdade eu lhe aparecera como uma mendiga,
respondi tranqüilamente, mas nem por isso sem uma certa firmeza:
— Está enganada ao achar que sou uma mendiga. Não sou; não mais que você
e suas jovens patroas.
Após uma pausa, ela disse:
— Não entendo isso, você não tem casa nem cobre, suponho?
— A falta de uma casa ou de cobre (pelo que suponho que você quer dizer
dinheiro) não faz de mim uma mendiga, na sua idéia da palavra.
— Você é entendida em livros? — ela perguntou depois de algum tempo.
— Sim, muito.
— Mas nunca esteve num internato?
— Estive num internato durante oito anos. Ela arregalou os olhos.
— Então por que não pode se manter?
— Eu me mantinha; e espero voltar a me manter. Que vai fazer com essas
groselhas? — perguntei, pois ela trazia uma cesta dessas frutas.
— Vou fazer torta.
— Me dê que eu as cato.
— Não; não quero que você faça nada.
— Mas tenho de fazer alguma coisa. Dê-me as groselhas. Ela consentiu; e até
me trouxe uma toalha limpa para pôr em cima dos joelhos, "para não", disse,
"borrá-los todos".
— Você não está acostumada a trabalho de criada, segundo vejo por suas
mãos — ela observou. — Terá sido por acaso costureira?
— Não, está enganada. E agora, esqueça o que eu fui; não canse mais a
cabeça comigo; mas me diga o nome da casa onde estamos.
— Algumas pessoas a chamam de Marsh End, e outras de Moor House.
— E o cavalheiro que mora aqui se chama Sr. St. John?
— Não; ele não mora aqui; está apenas por algum tempo. A casa dele é sua
paróquia em Morton.
— Aquela aldeia a poucas milhas daqui?
— É.
— E que é ele?
— Um clérigo.
Lembrei-me da resposta da velha governanta na casa paroquial, quando lhe
pedi para ver o pároco.
— Então esta casa era a residência do pai dele?
— É; o velho Sr. Rivers morava aqui, e o pai dele, e o avô, e o bisavô, antes.
— O nome desse cavalheiro é então Sr. St. John Rivers?
— É, St. John é nome de batismo.
— E as irmãs se chamam Diana e Mary Rivers?
— Sim.
— O pai morreu?
— Há três semanas, depois de um ataque.
— Eles não têm mãe?
— A patroa morreu faz um ano este mês.
— Você vive com a família há muito tempo?
— Vivo aqui há trinta anos. Criei todos três.
— Isso prova que deve ter sido uma criada honesta e leal. Esse crédito eu lhe
dou, embora tenha tido a indelicadeza de me chamar de mendiga.
Ela tornou a me olhar com uma expressão de surpresa.
— Creio — disse — que estava muito enganada nas idéias que fazia sobre a
senhorita; mas há tantos ladrões por aí, que a senhorita deve me perdoar.
— E embora — continuei, um tanto severamente — você quisesse me enxotar
da porta, numa noite em que não deveria enxotar nem um cachorro.
— Bem, foi cruel, mas que é que a gente pode fazer? Pensei mais nas meninas
que em mim mesma, coitadas! Não têm ninguém para cuidar delas a não ser eu.
Eu sou cautelosa.
Mantive um grave silêncio por alguns minutos.
— Não deve me levar muito a mal — ela observou de novo.
— Mas eu levo — eu disse — e vou lhe dizer porque... não tanto porque se
recusou a me dar abrigo, ou por me encarar como uma impostora, mas porque
ainda há pouco você fez uma espécie de censura por eu não ter "cobre" nem casa.
Algumas das melhores pessoas que já viveram foram tão pobres quanto eu; e se
você é uma cristã, não devia considerar a pobreza um crime.
— Não vou mais fazer isso — ela disse. — O Sr. St. John me disse a mesma
coisa; e vejo que estava errada... mas tenho uma idéia muito diferente da
senhorita, agora, do que tinha antes. A senhorita parece uma criaturinha bastante
decente.
— Assim está bem... vou perdoá-la desta vez. Aperte minha mão.
Ela pôs a mão enfarinhada e curtida na minha; outro sorriso, mais gostoso,
iluminou-lhe o rosto duro, e a partir desse momento nos tornamos amigas.
Hannah gostava evidentemente de falar. Enquanto eu catava as frutas, e ela
fazia a massa para as tortas, deu-me vários detalhes sobre os falecidos patrão e
patroa, e sobre as "crianças", como chamava os jovens.
Disse que o velho Sr. Rivers era um homem bastante comum, mas um
cavalheiro, e de uma família tão antiga quanto se podia encontrar. Marsh End
pertencia aos Rivers desde que fora construída; e tinha, ela afirmava, "mais de
duzentos anos — embora parecesse uma casa pequena e humilde, que não podia
se comparar com a grande mansão do Sr. Oliver lá embaixo, em Morton Vale.
Mas ela se lembrava do pai de Bill Oliver, um fabricante de agulhas diarista;
enquanto os Rivers eram fidalgos já nos velhos tempos dos Henry, como qualquer
um podia ver olhando os registros na sacristia da igreja de Morton". Contudo,
reconhecia que "o velho amo era como qualquer outro... não muito fora do
comum; louco por caça e pelo trabalho agrícola, e coisas assim". A patroa era
diferente. Era uma grande leitora, e estudava um bocado; e as "crianças" tinham
saído a ela. Não havia nada como eles por aquelas bandas, e nunca houvera;
gostavam de estudar, todos três, quase desde o momento que tinham aprendido a
falar; e sempre tinham sido "de um jeito" próprio. O Sr. St. John, quando
crescesse, deveria ir para um colégio e tornar-se sacerdote; e as moças, assim que
deixassem a escola, buscariam empregos como governantas, pois lhe tinham dito
que o pai, havia alguns anos, perdera muito dinheiro quando um homem em quem
confiava fora à bancarrota; e como ele não era então suficientemente rico para
deixar-lhes fortuna, tinham de se haver consigo mesmos. Durante muito tempo,
tinham vivido muito pouco em casa, e só tinham vindo agora por algumas
semanas, devido à morte do pai; mas gostavam muito de Marsh End e de Morton,
e de todas aquelas charnecas em torno. Tinham estado em Londres e em muitas
outras cidades grandes, mas sempre diziam que não havia lugar como a terra
deles; e depois, sentiam-se tão bem uns com os outros — jamais brigavam ou se
ameaçavam. Ela não sabia de família tão unida quanto aquela.
Tendo acabado minha tarefa de catar as groselhas, perguntei onde estavam
agora as duas damas e o irmão.
— Tinham ido dar um passeio em Morton; mas voltariam em meia hora para
o chá.
Eles voltaram dentro do prazo que Hannah lhes atribuíra; entraram pela porta
da cozinha. O Sr. St. John, ao me ver, simplesmente me fez uma curvatura e
seguiu em frente; as duas damas pararam: Mary, em poucas palavras, manifestou
bondosa e calmamente o prazer que sentia em me ver suficientemente boa para
descer; Diana tomou-me a mão, balançou a cabeça para mim.
— Devia ter esperado que eu lhe permitisse descer — disse. — Você ainda
está muito pálida... e tão magra! Pobre criança... pobre moça!
A voz de Diana parecia a meus ouvidos o arrulhar de uma pomba. Deliciava-
me encontrar os olhos dela. Todo o seu rosto me parecia cheio de encanto. O rosto
de Mary era igualmente inteligente — as feições igualmente bonitas; mas sua
expressão era mais reservada, e suas maneiras, apesar de delicadas, mais
distantes. Diana aparentava e falava com certa autoridade, era voluntariosa,
evidentemente. Estava em minha natureza sentir prazer em ceder a uma
autoridade como a dela, e curvar-me, no que minha consciência e respeito próprio
permitissem, a uma vontade ativa.
— E que está fazendo aqui? — ela continuou. — Não e o seu lugar. Mary e eu
nos sentamos na cozinha às vezes, porque em casa gostamos de ser livres, até
demais... mas você é uma visita, e deve ir para a sala de visitas.
— Estou muito bem aqui.
— De modo nenhum, com Hannah atarefada por aí e cobrindo-a de farinha.
— Além disso, o fogo está quente demais para você — interpôs Mary.
— Claro — acrescentou a irmã. — Venha, deve ser obediente. — E, ainda
segurando-me a mão, fez-me levantar e levou-me para a sala interna.
— Sente-se aí — disse, colocando-me no sofá —, enquanto tiramos nossas
coisas e preparamos o chá; é outro privilégio que exercemos quando estamos em
nossa casinha na charneca... preparar nossas próprias refeições quando queremos,
ou quando Hannah está assando pão, cozinhando, lavando ou passando a ferro.
Fechou a porta, deixando-me sozinha com o Sr. St. John, que se sentava
defronte a mim, um livro ou jornal nas mãos. Examinei primeiro a sala, e depois
seu ocupante.
A sala de visitas era um tanto pequena, mobiliada com simplicidade, mas
confortável, porque limpa e arrumada. As cadeiras antigas reluziam muito, e a
mesa de nogueira parecia um espelho. Uns poucos retratos estranhos e antigos, de
homens e mulheres de outras épocas, decoravam as paredes manchadas; um
armário com portas de vidro continha alguns livros e um antigo serviço de louça.
Não havia enfeites supérfluos no aposento — nem uma peça moderna de
mobiliário, a não ser uma prateleira de caixas de costura e uma escrivaninha
portátil de senhora, em pau-rosa, que ficava numa mesa lateral; tudo — inclusive
o tapete e as cortinas — parecia ao mesmo tempo bastante usado e bastante
conservado.
O Sr. St. John, sentado tão quieto como um dos quadros nas paredes,
mantendo os olhos fixos na página que lia, e os lábios mudamente selados — era
bastante fácil de examinar. Fosse uma estátua, em vez de um homem, não poderia
ser mais fácil. Era jovem — talvez de vinte e oito a trinta anos —, alto, esbelto; o
rosto atraía o olhar; era como um rosto grego, de linhas muito puras, um nariz
bastante reto, clássico; boca e queixo inteiramente atenienses. É raro, na verdade,
um rosto inglês se aproximarem tanto dos modelos antigos quanto o seu. Ele bem
podia ficar um tanto chocado com a irregularidade de minhas feições, uma vez
que as suas eram tão harmoniosas. Tinha olhos grandes e azuis, com cílios
castanhos; a testa alta, pálida como marfim, era em parte coberta por descuidadas
mechas de cabelo louro.
Trata-se de uma descrição delicada, não é, leitor? Contudo, aquele a quem se
descreve dificilmente daria a idéia de uma natureza delicada, generosa,
impressionável ou mesmo plácida. Quieto como se sentava agora, havia algo em
suas narinas, em sua boca, em sua testa, que para mim indicava elementos
internos de inquietação, dureza ou impetuosidade. Ele não me disse uma palavra,
nem mesmo me dirigiu um olhar, até que suas irmãs voltaram. Diana, entrando e
saindo na preparação do chá, trouxe-me um pequeno bolo, assado em cima do
fogão.
— Coma isso agora — disse. — Deve estar com fome. Hannah disse que você
não comeu nada, a não ser um pouco de mingau de aveia, desde o desjejum.
Não recusei, pois meu apetite estava desperto e aguçado. O Sr. Rivers fechou
então o seu livro, aproximou-se da mesa, e, ao sentar-se, fixou os olhos azuis,
parecendo os de um quadro, diretamente em mim. Havia uma direiteza sem
cerimônia, uma penetração, uma decidida firmeza em seu olhar agora, que dizia
que fora intencionalmente, e não por indiferença, que o tinha mantido desviado
até então da estranha.
— Está com muita fome — ele disse.
— Estou, senhor. — É meu costume, sempre foi, por instinto, responder à
coisa breve com brevidade, à coisa direta com simplicidade.
— Foi bom que a febrezinha a tenha obrigado a abster-se nos últimos três
dias; seria perigoso ceder aos anseios de seu apetite a princípio. Agora pode
comer, embora ainda não sem moderação.
— Espero não comer muito tempo às suas custas, senhor foi minha resposta,
inteiramente desastrada e indelicada.
— Não — ele disse friamente. — Quando nos tiver indicado a residência de
seus amigos, poderemos escrever a eles, e a senhorita será mandada de volta à sua
casa.
— Isso, devo dizer-lhe claramente, está fora de meu poder fazer; pois não
tenho, absolutamente, casa ou amigos.
Os três me olharam, mas não com desconfiança; senti que não havia suspeita
em seus olhares, mas antes curiosidade. Falo particularmente das jovens damas.
Os olhos do Sr. St. John, apesar de bastante claros no sentido literal, num sentido
figurativo eram difíceis de sondar. Ele parecia usá-los mais como instrumentos
para investigar os pensamentos dos outros do que como agentes para revelar os
seus: combinação de agudeza e reserva que era consideravelmente mais calculada
para embaraçar do que para encorajar.
— Quer dizer — ele perguntou — que está inteiramente isolada de toda
ligação?
— Quero. Nenhum laço me liga a qualquer coisa viva: não tenho nenhum
direito a ser admitida sob nenhum teto na Inglaterra.
— Posição singularíssima, em sua idade!
Nesse ponto vi que dirigia o olhar às minhas mãos, que estavam cruzadas
sobre a mesa. Imaginei o que buscava ali, mas suas palavras logo explicaram o
que era.
— Nunca se casou? É uma solteirona? Diana riu.
— Ora, ela não pode ter mais de dezessete ou dezoito anos, St. John — disse.
— Tenho quase dezenove, mas não sou casada. Não. Senti um ardente rubor
subir-me às faces; pois a alusão ao casamento despertara amargas e inquietantes
lembranças. Todos notaram meu embaraço e emoção. Diana e Mary trouxeram-
me alívio desviando os olhos de meu rosto corado; mas o irmão, mais frio e
severo, continuou a olhar, até que a angústia que provocara me fez chorar, além
de corar.
— Onde morou pela última vez? — ele perguntou então.
— Você é muito inquisitivo, St. John — murmurou Mary em voz baixa; mas
ele se curvou sobre a mesa e exigiu uma resposta com um segundo e penetrante
olhar.
— O nome do lugar onde vivi, e da pessoa com quem vivi, é um segredo meu
— respondi concisamente.
— E que, em minha opinião, você tem, se quiser, o direito de guardar, tanto
de St. John quanto de qualquer outro interrogador — observou Diana.
— Mas, se não sei nada sobre a senhorita ou sua história, não posso ajudá-la?
— ele disse. — E precisa de ajuda, sabe disso.
— Preciso, e busco, senhor, até onde um verdadeiro filantropo me ponha em
posição de arranjar um trabalho que eu possa fazer, e com cuja remuneração possa
me manter, mesmo que apenas quanto às mais elementares necessidades da vida.
— Não sei se sou um verdadeiro filantropo; mas estou disposto a ajudá-la o
máximo que puder num objetivo tão honesto. Assim, diga-me primeiro o que está
acostumada a fazer, e o que sabe fazer.
Eu tinha agora tomado o meu chá. Fora vigorosamente revigorada pela
infusão; tanto quanto um gigante com vinho, a bebida dera um novo tom a meus
nervos destroçados e permitia-me dirigir-me com firmeza àquele jovem juiz.
— Sr. Rivers — eu disse, voltando-me para ele, que me olhava abertamente e
sem acanhamento — o senhor e suas irmãs me prestaram um grande favor... o
maior que o homem pode prestar a seus irmãos; com sua nobre hospitalidade,
resgataram-me da morte. Esse benefício feito lhes dá um direito ilimitado à minha
gratidão, e em certa medida à minha confiança. Vou-lhes contar tanto, da história
da errante que abrigaram, quanto possa contar sem comprometer minha paz de
espírito..., minha segurança, moral e física, e a de outros.
— Sou órfã, filha de um sacerdote. Meus pais morreram antes que eu pudesse
conhecê-los. Fui criada como uma dependente; educada numa instituição de
caridade. Vou lhes dizer até o nome do estabelecimento, onde passei seis anos
como aluna e dois como professora, o Asilo de Órfãs de Lowood, em ... shire, o
senhor sem dúvida já ouviu falar dele, Sr. St. John? O Rev. Robert Brocklehurst é
o tesoureiro.
— Ouvi falar do Sr. Brocklehurst, e conheço a escola.
— Deixei Lowood há quase um ano, para tornar-me governanta particular.
Obtive uma boa colocação, e era feliz. Fui obrigada a deixar esse lugar quatro dias
antes de chegar aqui. A razão de minha partida, não posso nem devo explicar:
seria inútil, perigoso, e soaria incrível. Não tenho nenhuma culpa, estou tão livre
de culpabilidade quanto qualquer um de vocês três. Sou infeliz, e assim tenho de
ser por algum tempo; pois a catástrofe que me expulsou de uma casa onde
encontrei um paraíso foi de natureza estranha e terrível. Cuidei de apenas dois
pontos ao planejar minha partida: rapidez e segredo; para assegurá-los, tive de
deixar para trás tudo que possuía, com exceção de um embrulho pequeno; que, em
minha pressa e perturbação mental, esqueci de pegar na diligência que me trouxe
até Whitcross. Cheguei assim a esta região inteiramente na miséria. Dormi duas
noites ao relento, e vagueei por aí durante dois dias sem entrar numa casa, mas
duas vezes, nesse espaço de tempo, comi alguma coisa; e foi quando cheguei pela
fome, a exaustão e o desespero até quase o último suspiro, que o senhor, Sr.
Rivers, me impediu de morrer de privação em sua porta, e tomou-me sob a
proteção de seu teto. Sei tudo que suas irmãs têm feito por mim desde então... e
tenho para com a compaixão espontânea, autêntica e amável delas uma dívida tão
grande quanto a que tenho para com sua caridade evangélica.
— Não a obrigue a falar mais agora, St. John — disse Diana, quando parei. —
Ela ainda não está, evidentemente, em condições de excitar-se. Venha para o sofá
e sente-se agora, Srta. Elliot.
Tive um involuntário estremecimento ao ouvir o nome falso; esquecera-o. O
Sr. Rivers, a quem nada parecia escapar, notou-o imediatamente:
— A senhorita disse que se chamava Jane Elliot — observou.
— Disse, sim; e é o nome pelo qual acho conveniente que me chamem por
enquanto; mas não é meu nome verdadeiro, e quando o ouço, soa-me estranho.
— Não nos dirá seu verdadeiro nome?
— Não, temo ser identificada acima de tudo; e evito qualquer revelação que
leve a isso.
— Tenho certeza de que está inteiramente correta — disse Diana. — Agora,
irmão, deixe-a em paz por algum tempo.
Mas St. John, depois de refletir alguns instantes, recomeçou, tão
imperturbável e com tanta argúcia quanto antes.
— A senhorita não gostaria de depender por muito tempo de nossa
hospitalidade... vejo que gostaria de dispensar o mais breve possível a compaixão
de minhas irmãs, e acima de tudo a minha caridade (sou muito sensível à
distinção feita, e não me ressinto... é justa); deseja ser independente de nós?
— Desejo: já o disse. Mostre-me como trabalhar, ou como buscar trabalho: é
só o que peço agora; depois, deixe-me ir mesmo que seja para a mais pobre
cabana; mas até então, deixe-me ficar aqui: temo outra prova dos horrores da
pobreza sem lar.
— Na verdade, você vai ficar aqui — disse Diana, pondo a alva mão em
minha cabeça.
— Vai — repetiu Mary, no tom de discreta sinceridade que lhe parecia
natural.
— Minhas irmãs, como está vendo, têm prazer em mantê-la aqui — disse o
Sr. St. John — como teriam prazer em manter e cuidar de um pássaro meio
congelado que um vento invernal lançasse através de suas janelas. Eu me sinto
mais inclinado a pô-la em posição de manter-se a si mesma, e me esforçarei por
fazer isso; mas veja, meu campo é estreito. Sou apenas o cura em exercício da
paróquia de um pequeno condado: minha ajuda tem de ser do tipo mais humilde;
e se a senhorita se inclina a desprezar coisas pequenas, deve buscar auxílio mais
eficiente que o que eu lhe posso dar.
— Ela já disse que está disposta a fazer qualquer coisa honesta que possa
fazer — respondeu Diana por mim. — E você sabe, St. John, que ela não pode
estar escolhendo quem a ajudará: é obrigada a haver-se com gente rabugenta
como você.
— Serei costureira; serei uma operária comum; serei criada, babá, se não
encontrar coisa melhor — respondi.
— Certo — disse St. John bastante friamente. — Se essa é sua disposição,
prometo ajudá-la, à minha maneira e no devido tempo.
Voltou então ao livro com que se ocupava antes do chá. Eu logo me retirei,
pois tinha falado tanto, e ficado tanto tempo sentada, quanto minhas forças no
momento me permitiriam.
CAPÍTULO 30
QUANTO mais eu conhecia os moradores de Moor House, mais gostava
deles. Em poucos dias, recuperara de tal modo a saúde, que podia ficar sentada o
dia todo, e passear algumas vezes. Podia juntar-me a Diana e Mary em suas
ocupações, conversar com elas o tanto que quisessem, e ajudá-las quando e onde
me deixavam. Havia um prazer restaurador nesse relacionamento, de um tipo que
eu experimentava pela primeira vez — o prazer nascido da perfeita harmonia de
gostos, sentimentos e princípios.
Eu gostava de ler o que elas gostavam; o que lhes dava prazer me deliciava; o
que aprovavam, eu reverenciava. Elas gostavam de sua casa isolada. Eu também
encontrava, na construção cinzenta, pequena, antiga — com seu teto baixo, suas
janelas com gelosias, as paredes mofadas, a avenida de vetustos pinheiros, todos
curvados sob a força dos ventos da montanha, o jardim cheio de teixos e
azevinhas, onde só floresciam as flores dos tipos mais resistentes — um encanto
ao mesmo tempo poderoso e permanente. Elas se apegavam às púrpuras charnecas
atrás e em volta da casa — ao vale côncavo ao qual conduzia o sendeiro de seixos
que partia do portão, descendo, e que serpeava primeiro entre grupos de
samambaias, e depois por entre alguns dos mais agrestes campos de pastagem que
já ladearam um deserto de urzes, ou alimentaram um rebanho de cinzentas
ovelhas das charnecas, com cordeirinhos de focinhos musgosos — apegavam-se a
esse cenário com total entusiasmo. Eu compreendia o sentimento, e partilhava de
sua força e sinceridade. Via o fascínio do local. Sentia a consagração de sua
solidão; meus olhos se banqueteavam com as silhuetas dos morros — com as
loucas cores emprestadas à cordilheira e ao vale pelo musgo, a urze, a turfa
salpicada de flores, a brilhante samambaia e os rochedos de granito. Esses
detalhes eram para mim exatamente o que eram para elas — outras tantas fontes
puras e doces de prazer. O vento forte e a brisa suave, o dia feio e o bonito, as
horas do amanhecer e do crepúsculo, a noite de lua e a nublada exerciam sobre
mim, naquelas regiões, a mesma atração que exerciam sobre elas — envolvia
minhas faculdades no mesmo fascínio que deixava as delas em transe.
Dentro de casa, concordávamos igualmente bem. As duas eram mais
preparadas e mais lidas que eu; mas eu seguia avidamente o caminho do
conhecimento que elas haviam trilhado à minha frente. Devorava os livros que me
emprestavam; depois, era uma plena satisfação discutir com elas à noite o que lera
durante o dia. Os pensamentos se encaixavam; as opiniões correspondiam umas às
outras; em suma, coincidíamos em tudo perfeitamente.
Se havia em nosso grupo uma superiora e condutora, era Diana. Fisicamente,
superava-me em muito; era bonita; era vigorosa. Havia em sua natureza uma
abundância de vida e uma certeza que provocavam minha admiração, embora me
confundissem a compreensão. Eu podia falar um pouco quando começava a noite,
mas, esgotado o primeiro ímpeto de vivacidade e fluência, gostava de sentar-me
num banquinho aos pés de Diana, repousar a cabeça em seu joelho e ouvir ora
Mary, ora ela, que dissecavam inteiramente o tópico em que eu apenas tocara.
Diana ofereceu-se para ensinar-me alemão. Eu gostava de aprender com ela; via
que o papel de instrutora lhe agradava e servia; e o de estudante não me agradava
e servia menos. Nossas naturezas se complementavam; e disso resultava a mútua
afeição — do tipo mais forte. Elas descobriram que eu sabia desenhar, e
imediatamente puseram seus lápis e caixas de tintas à minha disposição. Minha
habilidade, maior nesse ponto que a delas, surpreendeu-as e encantou-as. Mary
sentava-se e olhava horas e horas, depois tomava lições; e era uma aluna dócil,
inteligente, aplicada. Assim ocupadas, e mutuamente entretidas, os dias passavam
como horas, e as semanas como dias.
Quanto ao Sr. St. John, a intimidade que nascera tão natural e rapidamente
entre eu e suas irmãs não se estendeu a ele. Um dos motivos para a distância ainda
observada entre nós era que ele ficava relativamente pouco em casa; grande parte
de seu tempo parecia ser dedicada a visitar os doentes e pobres, entre a dispersa
população de sua paróquia.
Nenhum tipo de tempo parecia atrapalhá-lo nessas excursões pastorais: com
chuva ou com sol, quando acabavam suas horas de estudo matinal, ele pegava o
chapéu, e, acompanhado pelo velho perdigueiro do pai, Carlo, saía em sua missão
de amor e dever — eu não sabia em que luz ele a via. Às vezes, quando o dia era
muito desfavorável, as irmãs o repreendiam. Ele então dizia, com um sorriso
peculiar, mais solene que animado:
— E se eu deixar que uma rajada de vento ou um salpico de chuva me
desviem dessas fáceis tarefas, que preparativo essa indolência seria para o futuro
que me proponho?
A resposta de Diana e Mary a esta questão em geral era um suspiro, e alguns
minutos de meditação aparentemente triste.
Mas, além de suas freqüentes ausências, havia outra barreira à amizade com
ele; o Sr. St. John parecia ter uma natureza reservada, absorta e mesmo
meditativa. Zeloso em seus trabalhos paroquiais, inatacável em sua vida e hábitos,
ele no entanto não parecia gozar da serenidade mental, da satisfação íntima, que
devia ser a recompensa de todo cristão sincero e de todo filantropo na prática.
Muitas vezes, à noite, quando se sentava à janela, a escrivaninha e os papéis à sua
frente, parava de ler ou escrever, apoiava o queixo na mão e entregava-se a não
sei qual pensamento; mas podia-se ver que era perturbador e inquietante pelos
freqüentes lampejos e dilata-ções de seus olhos.
Penso além disso que a natureza não era para ele o tesouro de deleite que era
para as suas irmãs. Ele manifestou uma vez, e só uma vez ao alcance de meus
ouvidos, um forte sentimento pelo rústico encanto das montanhas, e uma inata
afeição pelas escuras e vetustas paredes do que chamava de seu lar; porém havia
mais melancolia que prazer no tom e nas palavras com que se manifestou esse
sentimento; e ele nunca parecia vagar pelas charnecas em busca de seu
tranqüilizante silêncio — nunca buscava ou se demorava nos milhares de
apaziguantes deleites que elas podiam proporcionar.
Incomunicativo como era, passou-se algum tempo até eu ter oportunidade de
avaliar sua mente. Tive a primeira idéia do calibre dessa mente quando o ouvi
pregar em sua igreja, em Morton. Gostaria de poder descrever esse sermão; mas
está além de minhas forças. Não posso sequer transmitir fielmente o efeito que
causou em mim.
Começou calmo — e na verdade, no que se referia à expressão e ao tom de
voz, foi calmo até o fim; um zelo avidamente sentido, mas estritamente contido,
porém logo inspirou a pronúncia clara, e provocou a linguagem nervosa, que
ganhou força — comprimida, condensada, controlada. Emocionava o coração,
pasmava a mente, com o poder do pregador; mas nem o coração nem a mente
eram tranqüilizados. Em todo o sermão havia um estranho amargor; uma ausência
da delicadeza que consola; severas alusões às doutrinas calvinistas — escolha,
predestinação, reprovação — eram freqüentes; e cada referência a esses pontos
soava como uma sentença de condenação. Quando acabou, em vez de me sentir
melhor, mais calma, mais esclarecida pelo seu sermão, eu experimentava uma
inexprimível tristeza, pois me parecia — não sei se ocorria o mesmo com os
outros — que a eloqüência que estivera ouvindo brotara de um fundo poço onde
jaziam turvos vestígios de decepção, onde se agitavam inquietantes impulsos de
anseios não saciados e perturbadoras aspirações. Estava certa de que St. John
Rivers — um homem de vida pura, zeloso, consciente como era — ainda não
encontrara aquela paz divina que ultrapassa todo entendimento, não a encontrara
mais, pensei, do que eu, com meus pesares ocultos e lacerantes em relação ao meu
ídolo partido e ao meu paraíso perdido — pesares aos quais evitava me referir
ultimamente, mas que me possuíam e me tiranizavam impiedosamente.
Enquanto isso, passou-se um mês. Diana e Mary logo deixariam Moor House
e voltariam àquela vida e cenário muito diferentes que as aguardavam, como
governantas numa grande e mundana cidade do sul da Inglaterra, onde tinham
empregos em casas de famílias cujos ricos e orgulhosos membros as
consideravam apenas como humildes dependentes, não conheciam nem buscavam
nenhum de seus dotes excelentes, e apreciavam apenas os conhecimentos
adquiridos, como apreciavam a habilidade da cozinheira ou o gosto da dama de
companhia. O Sr. St. John nada me dissera sobre o emprego que me prometera
conseguir; e no entanto, tornava-se urgente arranjar uma ocupação de alguma
espécie. Certa manhã, ficando sozinha com ele por alguns minutos na sala de
visitas, aventurei-me a aproximar-me do recesso da janela consagrado por sua
cadeira, mesa e escrivaninha como uma espécie de estúdio; e já ia falar, embora
não sabendo muito bem com que palavras formular minha pergunta — pois é
sempre difícil quebrar o gelo de reserva que recobre naturezas como a dele —
quando ele me poupou o trabalho sendo o primeiro a iniciar o diálogo.
Erguendo a cabeça ao ver-me aproximar-me, disse:
— Tem uma pergunta a fazer-me?
— Sim, desejo saber se o senhor soube de algum serviço que eu possa me
apresentar para fazer?
— Encontrei ou imaginei alguma coisa para a senhorita há três semanas; mas
como parecia útil e feliz aqui... como minhas irmãs se tinham evidentemente
ligado à senhorita, e sua companhia lhes dava um prazer incomum... julguei
inconveniente interromper a satisfação de todas até que a próxima partida delas de
Marsh End tornasse a sua necessária.
— E elas partirão dentro de três dias agora?
— Sim; e quando partirem, eu voltarei à casa paroquial de Morton; Hannah
me acompanhará; e esta velha casa será fechada.
Esperei alguns instantes, julgando que prosseguiria com o assunto em pauta;
mas ele pareceu entrar em outra linha de pensamento; sua aparência denotava
abstração de mim e de meu assunto. Fui obrigada a chamá-lo de volta a um tema
que me era necessariamente próximo e de ansioso interesse.
— Qual era o emprego que o senhor tinha em vista, Sr. Rivers? Espero que
essa demora não tenha aumentado a dificuldade de consegui-lo. ,
— Oh, não; uma vez que é um emprego que depende apenas de mim, para
oferecer, e da senhorita, para aceitar.
Fez nova pausa: como parecia haver uma certa relutância em prosseguir,
fiquei impaciente: um ou dois movimentos de inquietação, e um olhar ávido e
exigente grudado em seu rosto, transmitiram-lhe essa sensação tão efetivamente
quanto o teriam feito as palavras, e com menos problema.
— Não precisa se apressar em saber — ele disse. — Deixe-me dizer-lhe
francamente: não tenho nada disponível ou lucrativo a sugerir. Antes de explicar,
lembre-se, por favor, de meu aviso, dado anteriormente, de que se a ajudasse,
seria como o cego ajudando ao aleijado. Eu sou pobre; pois descobri que, depois
de pagar as dívidas de meu pai, todo o patrimônio que me resta é esta granja
caindo aos pedaços, a fileira de esparsos pinheiros atrás, e o pedaço de solo
pantanoso, com os teixeiros e azevinheiros na frente. Sou obscuro; Rivers é um
nome antigo, mas dos três únicos descendentes da raça, duas ganham o pão da
dependência entre estranhos, e o terceiro considera-se um estrangeiro em seu país
natal... não apenas para a vida toda, mas também na morte. Sim, e se julga, e é
obrigado a se julgar, honrado com essa sorte, e aspira apenas pelo dia em que a
cruz da separação dos laços da carne lhe seja posta sobre os ombros, e em que o
Chefe dessa Igreja militante, da qual ele é um dos membros mais humildes, dê a
ordem: "Levanta-te e segue-Me!"
St. John disse estas palavras como pronunciava seus sermões, com uma voz
tranqüila e profunda; com o rosto em sua cor normal, e um brilho coruscante no
olhar. Recomeçou:
— E como sou pobre e obscuro, só posso oferecer-lhe um serviço de pobreza
e obscuridade. A senhorita pode até julgá-lo degradante... pois vejo agora que
seus hábitos têm sido daqueles que o mundo chama de refinados: seus gostos
tendem para o ideal, e seu lugar foi pelo menos entre pessoas educadas; mas acho
que nenhum serviço degrada se pode aprimorar nossa raça. Afirmo que, quanto
mais árido e abandonado for o solo que mandam o trabalhador cristão arar...
quanto mais magra a recompensa que lhe traga o seu esforço... maior a honra. O
seu destino, em qualquer circunstância, é o do pioneiro, e os primeiros pioneiros
do Evangelho foram os apóstolos... e o capitão deles, o próprio Jesus, o Redentor.
— Bem? — eu disse, quando ele tornou a parar. — Prossiga.
Ele me olhou antes de prosseguir; na verdade, parecia ler-me calmamente o
rosto, como se minhas feições e traços fossem caracteres numa página.
Manifestou em parte as conclusões tiradas desse escrutínio nas observações que
fez a seguir.
— Creio que aceitará o posto que lhe ofereço — disse. — E ficará nele por
um tempo; mas não permanentemente, não mais do que eu poderia ficar no cargo
estreito e estreitante... tranqüilo e obscuro... de cura rural inglês; pois há em sua
natureza uma liga tão contrária ao repouso quanto na minha, embora de uma
espécie diferente.
— Explique — pedi, quando ele parou mais uma vez.
— Vou explicar; e saberá como é pobre a proposta... como é trivial, tacanha.
Não vou ficar muito tempo em Morton, agora que meu pai morreu e que sou dono
de mim. Ocuparei o cargo provavelmente por doze meses; mas enquanto
permanecer, me esforçarei ao máximo para melhorá-lo. Morton, quando lá
cheguei há dois anos, não tinha escola: os filhos dos pobres estavam excluídos de
toda esperança de progresso. Estabeleci uma para meninos; pretendo agora abrir
uma segunda escola para meninas. Aluguei uma casa para isso, com uma cabana
de dois aposentos pegada para a professora morar. O salário dela será de trinta
libras por ano: a casa já está mobilizada, muito simplesmente, mas com o
suficiente, graças à bondade de uma dama, a Srta. Oliver, filha única do único
homem rico de minha paróquia... o Sr. Oliver, proprietário de uma fábrica de
agulhas e uma fundição no vale. A mesma dama pagará pela educação e
vestimenta de uma órfã do asilo de pobres, com a condição de que ela ajude a
professora nos trabalhos domésticos relacionados com a casa e a escola, uma vez
que sua ocupação magisterial a impedirá de cuidar disso ela própria. Quer ser a
professora?
Ele fez a pergunta um tanto abruptamente; parecia meio temeroso de uma
rejeição indignada, ou pelo menos desdenhosa, à oferta, não conhecendo todos os
meus pensamentos e sentimentos, embora imaginando alguns deles: não sabia em
que luz aquela proposta se me apresentava. Na verdade era humilde — mas
também era uma segurança, e eu queria um abrigo seguro; era trabalho duro —
mas também, comparado com o de uma governanta numa casa rica, era
independente, e o medo da servidão a estranhos me penetrava a alma como ferro;
não era ignóbil — indigno — nem mentalmente degradante. Tomei minha
decisão.
— Agradeço-lhe .a proposta, Sr. Rivers, e aceito-a de todo coração.
— Mas será que me compreende? — ele disse. — Ê uma escola de aldeia,
suas estudantes serão apenas meninas pobres ... filhas das cabanas... na melhor
das hipóteses, filhas de agricultores. Terá de ensinar apenas tricô, costura, a ler, a
escrever, contar. Que fará com suas qualificações? E com a maior parte de sua
mente, de seus sentimentos, gostos?
— Eu os guardarei até que sejam necessários. Eles se manterão.
— Sabe o que vai empreender, então?
— Sei.
Ele sorriu então; e não um sorriso amargo ou triste, mas de prazer e muito
agradecido.
— E quando começará a exercer suas funções?
— Vou para minha casa amanhã, e abrirei a escola, se o senhor quiser, na
próxima semana.
— Muito bem, que assim seja.
Levantou-se e andou pela sala. Parando, tornou a olhar-me. Balançou a
cabeça.
— Que é que o senhor desaprova, Sr. Rivers? — perguntei.
— A senhorita não ficará muito tempo em Morton, não, não!
— Por quê? Que motivos tem para dizer isso?
— Leio-o em seus olhos; não são daquele tipo que promete a manutenção de
um mesmo teor de vida.
— Eu não sou ambiciosa.
Ele estremeceu à palavra "ambiciosa". Repetiu:
— Não. Que a fez pensar em ambição? Quem é ambicioso? Eu sei que sou;
mas como descobriu?
— Eu falava de mim mesma.
— Bem, se a senhorita não é ambiciosa, é... — parou.
— O quê?
— Eu ia dizer: apaixonada. Mas talvez a senhorita entendesse mal a palavra, e
se aborrecesse. Quero dizer que as afeições e simpatias humanas têm um
poderoso domínio sobre a senhorita. Tenho certeza de que não se contentará por
muito tempo em passar suas horas de lazer em solidão, e em dedicar suas horas de
trabalho a uma atividade monótona inteiramente desprovida de estímulo, não mais
do que eu me contento — acrescentou, com ênfase — em viver enterrado aqui no
pântano, preso entre estas montanhas. Minha natureza, que Deus me deu, está em
conflito com isso; minhas faculdades, concedidas pelos céus, estão paralisadas,
inúteis. Vê agora como me contradigo, eu, que preguei a satisfação com uma sorte
humilde, e justifiquei a profissão até dos cortadores de madeira e dos carregadores
de água a serviço de Deus... eu, ministro ordenado d'Ele, quase enlouqueço em
minha impaciência. Bem, as inclinações e os princípios devem se reconciliar de
algum modo.
Deixou a sala. Nessa breve ocasião, eu aprendera mais sobre ele do que em
todo o mês anterior; contudo, ele ainda me intrigava.
Diana e Mary tornavam-se mais tristes e caladas à medida que se aproximava
o dia em que deixariam a casa e o irmão. Tentavam parecer as mesmas; mas o
sofrimento contra o qual tinham de lutar não podia ser inteiramente dominado ou
ocultado. Diana disse que aquela seria uma separação diferente de qualquer uma
que já tinham conhecido. Provavelmente, no que se referia a St. John, seria uma
separação por anos; podia ser uma separação pela vida toda.
— Ele sacrificará tudo às suas decisões, há muito tomadas — ela disse. —
Afeições naturais e sentimentos ainda mais fortes. St. John parece tranqüilo, Jane;
mas esconde uma febre em seu íntimo. A gente o julgaria delicado, mas em
algumas coisas é tão inexorável quanto a morte; e o pior é que minha consciência
não me permitirá dissuadi-lo de sua severa decisão: certamente não posso, nem
por um momento, culpá-lo por ela. É correta, nobre, cristã; mas me parte o
coração! — E as lágrimas brotaram de seus belos olhos. Mary curvou a cabeça
sobre o trabalho que fazia.
— Agora não temos mais um pai, logo ficaremos sem casa e sem irmão —
murmurou.
Nesse momento, sobreveio um pequeno acidente, que pareceu expressamente
destinado pela sorte a provar a verdade do ditado segundo o qual "as desgraças
nunca vêm sozinhas", e a acrescentar à angústia daquelas moças mais uma
provação. St. John passou pela janela lendo uma carta. Entrou.
— Nosso tio John morreu — disse.
As duas irmãs pareceram paralisadas, não chocadas ou apavoradas; as notícias
pareciam a seus olhos mais significativas que aflitivas.
— Morreu? — repetiu Diana.
— Sim.
Ela pregou um olhar interrogativo no rosto do irmão.
— E agora? — perguntou em voz baixa.
— E agora, Di? — ele respondeu, mantendo uma imobilidade de mármore nas
feições. — E agora? Ora... nada. Leia.
Jogou a carta no colo dela, que a olhou e passou para Mary. Esta a leu em
silêncio e a devolveu ao irmão. Os três se olhavam, e sorriram — um sorriso
muito triste e pensativo.
— Amém! Ainda podemos viver — disse Diana afinal.
— De qualquer forma, não nos deixa em pior situação do que antes —
observou Mary.
— Apenas nos faz pensar mais fortemente no que poderia ter sido — disse o
Sr. Rivers — e o contrasta mais vivida-mente com o que é.
Dobrou a carta, guardou-a em sua escrivaninha e tornou a sair.
Durante alguns minutos, ninguém falou. Depois, Diana voltou-se para mim.
— Jane, você deve estar admirada conosco e com nossos mistérios — disse —
e julgar-nos seres empedernidos, por não estarmos mais comovidos com a morte
de um parente tão próximo quanto um tio; mas nós nunca o vimos ou
conhecemos. Era irmão de minha mãe. Meu pai e ele brigaram há muito tempo.
Foi a conselho dele que meu pai arriscou a maior parte de seus bens na
especulação que o arruinou. Houve recriminações mútuas entre eles, separaram-se
furiosos, e jamais se reconciliaram. Meu tio se meteu depois disso em
empreendimentos bastante prósperos: parece que amealhou uma fortuna de vinte
mil libras. Nunca se casou, e não tinha parentes próximos além de nós e de uma
outra pessoa, não mais próxima como parente do que nós. Meu pai sempre
alimentou a idéia de que ele repararia seu erro deixando-nos seus bens; aquela
carta nos informa de que ele deixou até o último pêni à outra parenta, com
exceção de trinta guinéus, a serem divididos entre St. John, Diana e Mary Rivers,
para a compra de três fumos de luto. Ele tinha o direito, evidentemente, de fazer o
que quisesse; mas os espíritos sofrem um momentâneo abatimento ao receberem
uma notícia dessas. Mary e eu nos teríamos julgado ricas com mil libras cada; e
para St. John, uma soma dessas seria valiosa, pelo bem que lhe possibilitaria
fazer.
Dada esta explicação, o assunto foi abandonado, e nem o Sr. Rivers nem suas
irmãs fizeram mais referência a ele. No dia seguinte, parti de Marsh End para
Morton. Um dia depois, Diana e Mary partiram para a distante B... Uma semana
depois, o Sr. Rivers e Hannah estavam na casa paroquial: e assim a velha granja
foi abandonada.
CAPÍTULO 31
MINHA casa, assim — quando finalmente encontro uma casa — é uma
cabana; uma salinha de paredes caiadas e assoalho areado, contendo quatro
cadeiras pintadas e uma mesa, um relógio, um guarda-louça com dois ou três
pratos e um serviço de chá holandês. Em cima, há um quarto das mesmas
dimensões da cozinha, com uma cama de tábuas e uma cômoda — pequena, mas
apesar disso demasiado grande para ser enchida com meu pobre guarda-roupa,
embora a bondade de minhas gentis e generosas amigas o tenha aumentado de um
modesto estoque de coisas necessárias.
É noite. Despedi, com o pagamento de uma laranja, a pequena órfã que me
serve de criada. Estou sentada sozinha junto à lareira. Hoje de manhã, inaugurou-
se a escola da aldeia. Tenho vinte estudantes. Apenas três delas sabem ler;
nenhuma sabe escrever ou contar. Várias tricotam, e umas poucas costuram um
pouco. Falam com o sotaque mais rústico do distrito. Por enquanto, elas e eu
temos uma certa dificuldade em entender a linguagem umas das outras. Algumas
são mal-educadas, grosseiras, intratáveis, além de ignorantes; mas outras são
dóceis, desejam aprender, e demonstram uma disposição que me agrada. Preciso
não esquecer que essas camponesinhas mal vestidas são de carne e osso, tão boas
como os rebentos da mais grã-fina genealogia; e que os germes da excelência,
refinamento, bons sentimentos inatos são tão prováveis em seus corações quanto
nos dos mais bem-nascidos. Minha obrigação será desenvolver essas sementes;
certamente encontrarei alguma felicidade em desincumbir-me desse cargo. Não
espero muito prazer da vida que se abre à minha frente; contudo, me dará sem
dúvida o bastante para viver o dia-a-dia, se eu regular minha mente e exercer
meus poderes como devo.
Estaria eu muito alegre, acomodada, satisfeita, durante as horas que passei na
sala de aula nua e humilde ao lado, hoje de manhã e de tarde? Para não me iludir,
tenho de responder; não; sentia-me em certa medida desolada. Sentia-me — sim,
idiota que sou — degradada. Achava que dera um passo que me afundava, em vez
de elevar-me, na escala da existência social. Fiquei desanimadamente consternada
com a ignorância, a pobreza, a rudeza de tudo que ouvia e via à minha volta. Mas
não devo odiar-me ou desprezar-me demasiado por esses sentimentos; sei que são
errados — que é um grande passo conquistado; lutarei por superá-los. Amanhã,
espero, levarei a melhor sobre eles, em parte; e talvez dentro de algumas semanas
estejam inteiramente dominados. É possível que em poucos meses a felicidade de
constatar progresso e uma mudança para melhor em minhas alunas substitua a
repugnância pela satisfação.
Enquanto isso, deixe-me fazer-me uma pergunta: Que seria melhor? Ter-me
entregue à tentação, dado ouvido à paixão, sem fazer nenhum esforço penoso; não
ter lutado, mas afundado na armadilha de seda; adormecido nas flores que a
cobriam; acordado num clima do sul, entre os luxos de uma mansão do prazer;
estar agora morando na França, amante do Sr. Rochester; delirante com seu amor
metade do tempo — pois ele me teria — oh, teria, sim — amado bastante por
algum tempo. Ele me amava — ninguém jamais me amará tanto. Nunca mais
conhecerei a doce homenagem prestada à beleza, juventude, graça — pois nunca
mais, para ninguém, parecerei ter tais encantos. Ele gostava e sentia orgulho de
mim — o que nenhum outro homem fará. Mas para onde derivo, que estou
dizendo, e acima de tudo sentindo? Seria melhor, pergunto, ser escrava num falso
paraíso em Marselha — febril de ilusória felicidade uma hora — sufocando com
as mais amargas lágrimas de remorso e vergonha na outra — ou ser uma
professora de aldeia, livre e honesta, num ventoso recanto de montanha no
saudável coração da Inglaterra?
Sim; sinto agora que estava certa quando aderi aos princípios e à lei, e
desprezei e esmaguei os insanos impulsos de um momento de frenesi. Deus me
orientou para uma escolha correta; agradeço à Sua Providência pela orientação!
Tendo chegado a este ponto em minhas reflexões do anoitecer, levantei-me,
fui até a porta e olhei o crepúsculo do dia de colheita, e os tranqüilos campos
diante de minha cabana, que, como a escola, distavam meia milha da aldeia. Os
pássaros cantavam seus últimos compassos.
"O ar era suave, o orvalho um bálsamo."
Ali parada, olhando, julguei-me feliz, e surpreendi-me ao descobrir-me
chorando pouco tempo depois — e por quê? Pela condenação que me ficara de
não ter permanecido com meu amo; por aquele a quem não mais veria; pelo
desesperado sofrimento e a fúria fatal — conseqüências de minha partida — que
talvez estivessem agora a arrastá-lo demasiado do caminho da retidão para que
houvesse esperança de retorno. A esse pensamento, virei o rosto do adorável céu
da noite e do solitário vale de Morton — digo solitário porque, naquela curva dele
que me era visível, não se via nenhuma construção além da igreja e da casa
paroquial, meio escondidas entre as árvores, e, lá no fim, o telhado de Vale Hall,
onde moravam o rico Sr. Oliver e sua filha. Cobri os olhos, e encostei a cabeça no
umbral de pedra da porta; mas logo um leve ruído perto do portão que separa meu
minúsculo jardim do prado além me fez erguer a cabeça. Um cão — o velho
Carlo, o perdigueiro do Sr. Rivers, como vi logo — empurrava o portão com o
focinho, e o próprio St. John se debruçava nele com os braços cruzados; a testa
franzida, e o olhar, grave até quase o desagrado, me fixavam. Convidei-o a entrar.
— Não, não posso ficar; só vim lhe trazer um pequeno embrulho que minhas
irmãs lhe deixaram. Acho que contém uma caixa de tintas, lápis e papel.
Aproximei-me para recebê-lo: era um presente muito bem-vindo. Ele me
examinava o rosto, eu pensava, com austeridade, quando me aproximei: os
vestígios das lágrimas estavam sem dúvida bastante visíveis.
— Achou seu primeiro dia de trabalho mais duro do que esperava? — ele
perguntou.
— Oh, não! Ao contrário, acho que com o tempo me darei muito bem com
minhas alunas.
— Mas talvez suas acomodações... sua cabana... seus móveis ... tenham
decepcionado suas expectativas. Na verdade, são bastante pobres, mas...
Interrompi-o.
— Minha cabana é limpa e resistente; meus móveis são suficientes e
cômodos. Tudo que vi me deixou agradecida, e não desesperada. Não sou, em
absoluto, idiota e sensualista para lamentar a ausência de um tapete, um sofá,
prataria; além disso, há cinco semanas não tinha nada... era uma marginal, uma
mendiga, uma errante; agora tenho amizade, um lar, um ofício. Maravilho-me
com a bondade de Deus, a generosidade de meus amigos, a liberalidade de minha
sorte. Não me queixo.
— Mas acha a solidão uma opressão? A casinha aí atrás é escura e vazia.
— Mal tive tempo ainda de desfrutar de uma sensação de tranqüilidade, e
muito menos para me impacientar com a de solidão.
— Muito bem; espero que sinta a satisfação que manifesta; de qualquer modo,
seu bom senso lhe dirá que ainda é cedo demais para ceder aos vacilantes temores
da esposa de Lot. O que deixou para trás antes de eu conhecê-la, certamente não
sei; mas aconselho-a a resistir firmemente a toda tentação que a incline a olhar
para trás; siga seu curso atual com firmeza, pelo menos por alguns meses.
— É o que pretendo fazer — respondi. St. John continuou:
— É tarefa difícil controlar as tendências e conter a inclinação da natureza;
mas pode-se fazer isso, sei-o por experiência própria. Deus nos deu, em certa
medida, o poder de fazer nosso próprio destino; e quando nossas energias
parecem exigir um apoio que não podem conseguir... quando nossa força luta por
um caminho que não podemos seguir... não precisamos nem morrer de fome, nem
ficar parados em desespero: temos apenas de buscar outro alimento para a mente,
tão forte quanto o fruto proibido pelo qual ela ansiava... e talvez mais puro; e abrir
para o pé aventureiro uma estrada tão reta e ampla quanto aquela que a fortuna
bloqueou contra nós, apesar de mais acidentada que ela.
"Há um ano, eu próprio estava extremamente infeliz, porque achava que
cometera um erro ao abraçar o sacerdócio; os deveres uniformes me matavam de
tédio. Eu ardia pela vida mais ativa do mundo... pelos labores mais excitantes de
uma carreira literária... pelo destino de um pintor, escritor, orador, qualquer coisa
que não o de um sacerdote: sim, o coração de um político, de um soldado, de um
adepto da glória, um amante da fama, um ambicioso pelo poder, batia sob minha
sobrepeliz sacerdotal. Eu refletia; minha vida era tão desgraçada que tinha de ser
mudada, ou eu teria de morrer. Após uma temporada de trevas e lutas, surgiu a luz
e veio o alívio: minha tacanha existência subitamente se ampliou numa planície
sem limites; meus poderes ouviram um chamado do Céu para que se erguessem,
reunissem toda a sua força, abrissem as asas e voassem para além do horizonte.
Deus tinha uma missão para mim; para o cumprimento da qual eram necessárias a
habilidade e a força, a coragem e a eloqüência, as melhores qualificações do
soldado, do estadista e do orador, pois tudo isso se concentra no bom missionário.
"E decidi ser um missionário. A partir desse momento, meu estado de espírito
mudou; as cadeias se dissolveram e libertaram todas as faculdades, nada deixando
da servidão, a não ser suas esfoladas machucaduras, que só o tempo pode curar.
Meu pai, na verdade, se opôs a essa decisão; mas após a morte dele não tenho
nenhum obstáculo legítimo a vencer; acertados alguns negócios, arranjado um
sucessor para Morton, um ou dois problemas sentimentais resolvidos ou
simplesmente cortados... um último conflito com a fraqueza humana, que sei que
superarei, porque jurei que vou superar... e deixo a Europa pelo Oriente."
Ele disse isso naquela voz contida, mas enfática, que lhe era peculiar;
olhando, quando deixou de falar, não para mim, mas para o sol poente, que eu
olhava também. Dávamos ambos as costas ao caminho que subia do campo para o
portão. Não ouvíramos nenhum passo na trilha invadida pelo mato; a água que
corria no vale era o único som a embalar a hora e a paisagem; assim, nada mais
natural do que nos sobressaltarmos quando ouvimos uma voz, doce como uma
sineta de prata, exclamar:
— Boa-noite, Sr. Rivers. Boa-noite, velho Carlo. Seu cachorro reconhece os
amigos mais depressa que o senhor; ele ergueu as orelhas e abanou a cauda
quando eu ainda estava lá embaixo, no campo, e o senhor estava de costas para
mim agora.
Era verdade. Embora o Sr. Rivers tivesse estremecido aos primeiros daqueles
sons musicais, como se um raio houvesse rachado em duas uma nuvem sobre sua
cabeça, ainda permanecia, ao final da sentença, na mesma atitude em que a pessoa
que falara o surpreendera — os braços apoiados no portão, o rosto voltado para o
Ocidente. Voltou-se afinal, com medida deliberação. Uma visão, parecia-me,
erguera-se a seu lado. Lá estava a três pés dele, uma forma vestida de puro branco
— uma forma juvenil e graciosa, cheia, mas de finos contornos; e quando, após
abaixar-se para acariciar Carlo, levantou a cabeça e afastou um comprido véu,
floresceu sob o olhar dele um rosto de perfeita beleza. Perfeita beleza é uma
expressão forte; mas não a retiro nem retoco; feições tão doces quanto o clima
temperado de Albion já havia modelado, nuanças tão puras de rosa e lilás quanto
os ventos úmidos e os céus nublados do país já haviam gerado e velado,
justificavam, neste caso, o termo. Não faltava nenhum encanto, não se percebia
nenhum defeito; a jovem tinha traços regulares e delicados; uns olhos com aquela
forma e cor que vemos em belos quadros, grandes, escuros e plenos; aqueles
longos e sombreados cílios que cercam olhos tão lindos de um fascínio tão suave;
as sobrancelhas bem traçadas que dão tamanha nitidez; a testa branca, lisa, que
acrescenta tal repouso às belezas mais vividas de cor e brilho; a face oval, fresca e
meiga; os lábios também, rubros, saudáveis, de formas suaves; os dentes certos e
reluzentes, sem uma falha; o queixo pequeno e com uma covinha; o ornamento de
trancas ricas e abundantes — ela possuía plenamente todas as vantagens, em
suma, que, combinadas, realizavam o ideal da beleza. Eu estava maravilhada,
olhando aquela bela criatura; admirava-a com todo o meu coração. A natureza
certamente a modelara com favoritismo; e, esquecendo-se de sua habitual
parcimônia de dons, dotara aquela sua favorita com uma liberalidade de grande
dama.
Que pensava o Sr. St. John daquele anjo terrestre? Eu me fiz naturalmente
esta pergunta ao vê-lo virar-se para ela e olhá-la; e, com a mesma naturalidade,
busquei a resposta em sua expressão. Ele já retirara os olhos da Peri, e olhava uma
humilde touceira de margaridas que brotava ao lado do portão.
— Uma noite adorável, mas já tarde para a senhorita estar fora de casa
sozinha — disse, esmagando os níveos botões das flores com o pé.
— Oh, acabei de voltar de S... (citou o nome de uma grande cidade, a umas
vinte milhas de distância) esta tarde. Papai me disse que o senhor tinha aberto sua
escola, e que a nova professora chegara; assim, pus minha touca após o chá e subi
o vale para vê-la; é essa? — indicou-me.
— É — disse St. John.
— Você acha que vai gostar de Morton? — ela me perguntou, com um tom e
uma maneira diretos e de uma simplicidade ingênua.
— Espero que sim. Tenho muitos estímulos para isso.
— Achou suas alunas tão atentas quanto esperava?
— Bastante.
— Gosta de sua casa?
— Muito.
— Mobiliei-a bem?
— Muito bem, na verdade.
— E fiz uma boa escolha pondo Alice Wood como sua criada?
— Realmente fez. Ela é inteligente e prestativa. (Esta, então, é a Srta. Oliver,
a herdeira, eu pensava; favorecida, ao que parece, com os dotes da fortuna, além
dos da natureza! Que feliz combinação dos planetas presidiu seu nascimento,
imagino?)
— Subirei algumas vezes para ajudá-la a ensinar — ela acrescentou. — Será
uma mudança, para mim, visitá-la de vez em quando; e gosto de uma mudança.
Sr. Rivers, fiquei tão contente durante minha estada em S... Na noite passada, ou
antes esta madrugada, dancei até as duas horas da manhã. O regimento... está
estacionado lá desde os motins; e os oficiais são os homens mais agradáveis do
mundo; põem todos os nossos jovens fabricantes de facas e comerciantes de
tesouras no chinelo.
Pareceu-me que o lábio inferior do Sr. St. John se projetava para fora, e o
superior para dentro, por um momento. Sua boca certamente pareceu um bocado
franzida, e a parte inferior do rosto incomumente severa e quadrada, quando a
sorridente moça lhe deu essa informação. Ergueu o olhar, também, das
margaridas, e voltou-o para ela. Era um olhar nada sorridente, mas penetrante,
significativo. Ela o respondeu com um segundo sorriso;, e o sorriso assentava à
sua juventude, suas cores rosas, suas covinhas, seus olhos brilhantes.
Enquanto ele permanecia grave e mudo, ela se pôs novamente a acariciar
Carlo.
— O pobre Carlo me ama — disse. — Ele não é severo e distante com sua
amiga; e se pudesse falar, não ficaria calado.
Enquanto ela dava tapinhas na cabeça do cachorro, curvando-se com graça
inata diante do jovem e austero senhor, percebi que um rubor subia às faces do
reverendo. Vi seus olhos solenes derreterem-se com um fogo súbito, e
tremeluzirem com uma irresistível emoção. Assim corado e excitado, ele parecia
quase tão bonito, como homem, quanto ela como mulher. Seu peito subiu e
desceu visivelmente, como se o grande coração, cansado de uma despótica
constrição, se houvesse expandido, independente da vontade, e desse um vigoroso
salto para atingir a liberdade. Mas ele o conteve, creio, como um cavaleiro
decidido refrearia um teimoso corcel. Não respondeu nem com palavras nem com
gestos aos gentis avanços que lhe faziam.
— Papai diz que o senhor nunca vem nos visitar — continuou a Srta. Oliver,
erguendo a cabeça. — É um total estranho em Vale Hall. Ele está sozinho esta
noite, e não passa muito bem; quer voltar comigo e visitá-lo?
— A hora não é apropriada para intrometer-me junto ao Sr. Oliver —
respondeu St. John.
— Não é apropriada? Mas se eu declaro que é. É exatamente a hora em que
papai mais precisa de companhia; quando as fábricas estão fechadas, e ele não
tem nada com que se ocupar. Ora, Sr. Rivers, venha. Por que é tão tímido, e tão
sombrio? —
E preencheu o hiato deixado pelo silêncio dele respondendo ela própria: —
Esqueci! — exclamou, balançando a linda cabeça de cabelos encaracolados, como
se chocada consigo mesma. — Sou tão tonta e desmiolada! Desculpe-me.
Escapou-me da memória o fato de que o senhor tem boa razão para não querer
participar de minha tagarelice. Diana e Mary o deixaram, e Moor House está
fechada, e o senhor se sente muito solitário. Eu certamente tenho pena do senhor.
Venha e veja papai.
— Esta noite, não, Srta. Rosamond, esta noite, não.
O Sr. St. John falou quase como um autômato; só ele próprio sabia o esforço
que lhe custava essa recusa.
— Bem, se é tão obstinado, vou deixá-lo; pois não ousa dizer mais; o sereno
começa a cair. Boa-noite!
Estendeu a mão. Ele apenas a tocou.
— Boa-noite! — repetiu, numa voz baixa e cava como um eco. Ela se voltou,
mas logo retornou.
— O senhor está bem? — perguntou. E com razão; o rosto dele estava branco
como o vestido dela.
— Muito bem — ele enunciou; e, com uma curvatura, deixou o portão.
Ela seguiu um caminho, ele outro. Ela se voltou duas vezes para olhá-lo,
enquanto descia como uma fada em direção ao vale; ele, andando firmemente na
direção oposta, não se voltou nem uma vez.
Esse espetáculo do sofrimento e sacrifício alheios tirou meu pensamento da
exclusiva meditação nos meus. Diana Rivers qualificara o irmão de "inexorável
como a morte". Não tinha exagerado.
CAPITULO 32
CONTINUEI com as tarefas da escola da aldeia tão ativa e fielmente quanto
possível. Foi realmente um trabalho duro a princípio. Passou-se um certo tempo
até que eu pudesse, com todos os meus esforços, compreender minhas alunas e a
natureza delas. Inteiramente incultas, com faculdades inteiramente entorpecidas,
pareciam-me de uma estupidez sem esperança; e, à primeira vista, todas
igualmente estúpidas: mas logo descobri que me enganara. Havia entre elas a
mesma diferença que há entre os educados; e quando vim a conhecê-las, e elas a
mim, essa diferença desenvolveu-se rapidamente. Uma vez vencida a
perplexidade delas comigo, com minha linguagem, minhas regras e maneiras,
constatei que algumas daquelas rústicas de olhar pesado e boca aberta se
revelavam meninas de mente muito viva. Muitas se mostravam prestativas, e
amistosas também; e descobri entre elas não poucos exemplos de polidez natural e
inato respeito próprio, assim como de excelentes capacidades, que conquistaram
minha boa vontade e admiração. Estas logo pegaram o gosto por fazer bem suas
tarefas, manter-se arrumadas, aprender as lições regularmente, adquirir maneiras
ordeiras e discretas. A rapidez do progresso delas, em alguns casos, foi mesmo
surpreendente; e eu sentia um honesto e feliz orgulho com isso; ademais, comecei
a gostar pessoalmente de algumas das melhores meninas; e elas gostavam de
mim. Tinha entre minhas alunas várias filhas de camponeses — jovens crescidas,
quase mulheres. Estas já sabiam ler, escrever e costurar; e a elas ensinei os
primeiros conhecimentos de gramática, geografia, história, e tipos mais finos de
costura. Encontrei caracteres estimáveis entre elas — caracteres desejosos de
informação e dispostos a se aperfeiçoarem — com os quais passei muitas vezes
uma hora agradável, à noite, em suas casas. Os pais então (o agricultor e a esposa)
me cumulavam de atenções. Era um prazer aceitar a simples bondade deles, e
retribuí-la com uma consideração — um escrupuloso respeito por seus
sentimentos — à qual talvez não estivessem acostumados sempre, e que os
encantava e beneficiava; porque, elevando-os a seus próprios olhos, estimulava-os
a merecer o tratamento deferente que recebiam.
Eu sentia que me tornava uma favorita na região. Sempre que saía, ouvia
saudações cordiais de todos os lados, e era acolhida com sorrisos amigos. Viver
em meio à consideração geral, mesmo que seja apenas da gente trabalhadora, é
como "sentar-se ao sol, calmo e doce"; serenos sentimentos íntimos brotam e
florescem sob os raios. Nessa época de minha vida, meu coração se enchia muito
mais vezes de gratidão do que mergulhava em tristeza; e no entanto, leitor, para
dizer-lhe a verdade, em meio a essa calma, a essa existência útil — após um dia
passado em honrosa atividade, uma noite passada desenhando ou lendo satisfeita e
sozinha — eu me precipitava em estranhos sonhos à noite, sonhos de muitas
cores, agitados, cheios do ideal, do excitante, do tempestuoso — sonhos em que,
em meio a cenas incomuns, carregadas de aventura, de agitados perigos e acasos
românticos, encontrava sempre o Sr. Rochester, sempre em alguma crise
dramática; e então a sensação de estar em seus braços, ouvir sua voz, olhar os
seus olhos, tocar sua mão e sua face, amá-lo, ser amada por ele — a esperança de
passar a vida a seu lado, se renovavam, com toda a sua primeira força e ardor.
Então eu acordava. Então me lembrava de onde estava, e em que situação. Então
me levantava de minha cama sem cortinado, tremendo e estremecendo; e então a
noite quieta e negra testemunhava a convulsão de meu desespero, e ouvia a
explosão da paixão. Às nove horas da manhã seguinte, eu estava abrindo
pontualmente a escola; tranqüila, recomposta, preparada para os constantes
deveres do dia.
Rosamond Oliver manteve a palavra, vindo visitar-me. Fazia sua visita à
escola, geralmente, durante o passeio a cavalo que dava pela manhã. Subia a meio
galope até a porta em seu pônei, seguida por um criado de libre também montado.
Dificilmente se pode imaginar qualquer coisa mais perfeita que sua aparência,
naquele traje púrpura, com o boné de amazona, de veludo negro, graciosamente
assentado sobre os longos cachos que lhe acariciavam as faces e lhe caíam em
cascatas até os ombros; e era assim que ela entrava na construção rústica, e
deslizava por entre as deslumbradas fileiras de meninas da aldeia. Em geral, vinha
no momento em que o Sr. Rivers dava sua aula diária de catecismo. Penetrantes,
receio, os olhos da visitante varavam o coração do jovem pastor. Uma espécie de
instinto parecia avisá-lo de sua entrada, mesmo quando não a via; e olhando numa
direção inteiramente oposta à porta, se ela aparecia, as faces dele ardiam, e as
feições de mármore, apesar de se recusarem a relaxar, se transformavam de uma
maneira indescritível, expressando em sua imobilidade um reprimido fervor, mais
forte que a mobilidade dos músculos ou o olhar direto poderiam indicar.
Evidentemente, ela sabia de seu poder; na verdade, ele não o ocultava dela,
porque não podia ocultar. Apesar de seu estoicismo cristão, quando ela se
adiantava e falava com ele, e lhe sorria alegremente, encorajadoramente, e até
amorosamente no rosto, as mãos dele tremiam e os olhos ardiam. Ele parecia
dizer, com sua aparência triste e resoluta, mesmo não o dizendo com os lábios:
"Eu amo você, e sei que me prefere. Não é a desesperança do sucesso que me
emudece. Se oferecesse meu coração, creio que você o aceitaria. Mas este coração
já foi deposto num altar sagrado; o fogo está aceso ao seu redor. Em breve não
será mais que um sacrifício consumado."
E então ela fazia beicinho, como uma criança desapontada; uma nuvem de
reflexão suavizava sua radiante vivacidade; retirava apressadamente a mão da
dele e dará com transitória petulância as costas ao seu aspecto, ao mesmo tão
heróico e tão martirizado. St. John, sem dúvida, teria dado o mundo para segui-la,
chamá-la, retê-la, quando ela assim o deixava, mas não abria mão do céu, não
desistia, pelo elíseo de seu amor, de uma esperança do verdadeiro, do eterno
Paraíso. Além disso, não podia conter tudo que tinha em sua natureza — o
viajante, o aspirante a poeta, o sacerdote — dentro dos limites de uma só paixão.
Não podia — não queria — renunciar ao amplo campo de sua guerra missionária
pelos salões e a paz de Vale Hall. Eu soube disso por ele mesmo, numa incursão
que certa vez, apesar de sua reserva, tive a audácia de fazer em sua confidencia.
A Srta. Oliver já me honrava com freqüentes visitas à minha cabana. Eu já
conhecia todo o seu caráter, que não tinha mistérios nem disfarces. Ela era faceira,
mas não cruel; exigente, mas não indignamente egoísta. Fora mimada desde o
nascimento, mas não estava absolutamente estragada. Era impetuosa, mas bem-
humorada; vaidosa (não podia deixar de sê-lo, quando cada olhar ao espelho lhe
mostrava tanta graça), mas não afetada; generosa; inocente do orgulho da riqueza;
ingênua; suficientemente inteligente; alegre, vivaz c irrefletida. Era muito
encantadora, em suma, mesmo a uma fria observadora de seu próprio sexo como
eu; mas não muito interessante nem inteiramente impressionante. Uma
mentalidade muito diferente, por exemplo, da das irmãs de St. John. Contudo, eu
gostava dela quase tanto quanto de minha pupila Adèle; a não ser pelo fato de
que, por uma criança de quem cuidamos e a quem ensinamos, nasce uma afeição
maior que a que podemos dar a uma amiga adulta igualmente atraente.
Ela pegara um amistoso capricho para comigo. Dizia que eu era como o Sr.
Rivers, só que, sem dúvida, admitia, "nem um décimo tão bonita, embora fosse
uma almazinha bastante boa e limpa, mas ele era um anjo". Eu era no entanto boa,
inteligente, calma e firme como ele. Era um lusus naturae, afirmava, como
professora da aldeia; tinha certeza de que minha história passada, se conhecida,
daria um delicioso romance.
Certa noite em que, como sua costumeira agitação infantil, e sua curiosidade
impensada, embora não ofensiva, remexia no guarda-louça e na mesa com gavetas
de minha cozinha, descobriu primeiro dois livros franceses, um volume de
Schiller, uma gramática e um dicionário alemães, e depois meus materiais de
pintura e alguns desenhos, incluindo uma cabeça a crayon de uma linda
menininha parecendo um querubim, uma de minhas alunas, e várias paisagens da
natureza, tomadas no Vale de Morton e nas charnecas em volta. Primeiro, ficou
paralisada de surpresa, e depois eletrizada de alegria.
— Fora eu que fizera aqueles quadros? Eu sabia francês e alemão? Que amor!
Que milagre era eu! Desenhava melhor que seu professor na primeira escola de
S... Eu desenharia um retrato dela, para mostrar ao papai?
— Com prazer — respondi; e senti uma pontada do prazer do artista à idéia de
ter um modelo tão perfeito e radiante. Ela usava então um vestido de seda azul
escuro; braços e pescoço à mostra; o único adorno eram suas trancas castanhas,
que lhe ondeavam pelos ombros com toda a graça selvagem dos cachos naturais.
Peguei uma folha de fina cartolina e desenhei um cuidadoso esboço. Prometi-me a
mim mesma o prazer de colori-lo; e, como estava ficando tarde, disse-lhe que
devia vir posar outro dia.
Ela falou de tal modo de mim a seu pai, que o próprio Sr. Oliver a
acompanhou na noite seguinte — um homem alto, de feições pesadas, de meia-
idade e grisalho, a cujo lado a adorável filha parecia uma brilhante flor junto a
uma vetusta torre. Ele parecia um personagem taciturno, e talvez orgulhoso; mas
foi muito bondoso comigo. O esboço do retrato de Rosamond agradou-lhe muito;
disse que eu devia fazer um quadro acabado. Insistiu também em que eu fosse no
dia seguinte visitá-lo à noite em Vale Hall.
Eu fui. Achei-a uma residência grande e bonita, demonstrando sinais
abundantes da riqueza do proprietário. Rosamond mostrou-se cheia de alegria e
prazer todo o tempo que permaneci lá. O pai foi afável; e quando começou a
conversar comigo após o chá, manifestou em termos vigorosos sua aprovação ao
que eu tinha feito na escola de Morton, e disse que temia apenas, pelo que via e
ouvia, que eu fosse boa demais para o lugar, e logo o deixasse por um mais
adequado.
— Na verdade — exclamou Rosamond — ela é bastante inteligente para ser
governanta numa família elevada, papai.
Pensei que preferia muito mais ficar onde estava do que com alguma elevada
família da região. O Sr. Oliver falou do
Sr. Rivers — da família Rivers — com grande respeito. Disse que era um
nome muito antigo por ali; que os ancestrais da casa tinham sido ricos; que toda
Morton lhes pertencera outrora; que mesmo agora ele considerava que o
representante daquela casa poderia, se quisesse, fazer uma aliança com os
melhores. Achava uma pena que um jovem tão fino e talentoso tivesse tomado a
decisão de partir como missionário; era jogar fora uma vida valiosa. Parecia,
assim, que o pai não poria obstáculo à união de Rosamond com St. John. O Sr.
Oliver evidentemente encarava o bom nascimento, o nome antigo e a profissão
sagrada do jovem clérigo como compensação suficiente para a falta de fortuna.
Era o dia 5 de novembro, e feriado. Minha pequena criada, após ajudar-me a
limpar a casa, se fora, muito satisfeita com o pagamento de um pêni por sua ajuda.
Tudo à minha volta estava impecável e reluzente — o assoalho areado, a grade da
lareira polida, as cadeiras bem esfregadas. Eu também me arrumara, e agora tinha
diante de mim a tarde, para passar como quisesse.
A tradução de algumas páginas do alemão ocuparam uma hora; depois peguei
minha paleta e pincéis, e entreguei-me à ocupação mais apaziguante, porque mais
fácil, de completar a miniatura de Rosamond Oliver. A cabeça já estava
concluída; faltava apenas pintar o fundo e sombrear os cortinados; e acrescentar
também um toque de carmim aos lábios maduros, um cacho aqui e ali às trancas,
um tom mais escuro à sombra dos cílios sob a pálpebra azulada. Estava absorta na
execução desses detalhes, quando, após uma rápida batida, a porta se abriu,
admitindo St. John Rivers.
— Vim ver como está passando seu feriado — ele disse. — Não pensando,
espero? Não, assim está bem; enquanto pinta, não se sente solitária. Como vê,
ainda desconfio da senhorita, embora tenha se conduzido admiravelmente até
agora. Trouxe-lhe um livro para consolo noturno — e depôs sobre a mesa uma
publicação — um poema; uma daquelas produções tantas vezes concedidas ao
afortunado público daqueles tempos passados... £i era de ouro da literatura
moderna. Ai! os leitores de nossa era são menos favorecidos. Mas coragem! Não
me deterei a acusar nem lamentar. Sei que a poesia não está morta, nem o gênio
perdido; e tampouco Mamom assumiu o poder ainda, para escravizar ou matar;
ambos voltarão a afirmar sua existência, sua presença, sua liberdade e força um
dia. Poderosos anjos, a salvo no céu! Sorriem quando as almas sórdidas triunfam,
e os fracos choram sobre sua própria destruição. A poesia destruída? O gênio
banido? Não! Mediocridade, não; não deixe que a inveja a leve a esse
pensamento. Não; eles não apenas vivem, mas reinam e redimem; e sem sua
divina influência espalhada por toda parte, estaríamos no inferno... o inferno de
nossa própria mesquinhez.
Enquanto eu olhava avidamente as páginas brilhantes de Marmion (pois era
Marmion), St. John se curvou para examinar a pintura. Sua alta figura pôs-se de
novo ereta com o choque; não disse nada. Ergui o olhar para ele. Conhecia bem
seus pensamentos, e podia ler claramente o seu coração; no momento, sentia-me
mais calma c fria que ele; levava temporariamente vantagem, c concebi uma
inclinação a fazer-lhe algum bem, se pudesse.
"Com toda a sua firmeza c controle", pensei, "ele se força demais; tranca
dentro de si todo sentimento e dor... não manifesta, confessa, comunica nada.
Tenho certeza de que lhe faria bem conversar um pouco sobre sua meiga
Rosamond, com quem pensa que não deve casar-se; vou fazê-lo falar."
Eu disse primeiro:
— Pegue uma cadeira, Sr. Rivers. — Mas ele respondeu, como sempre fazia,
que não podia ficar. "Muito bem", respondi mentalmente, "fique de pé se quiser;
mas não se irá ainda, estou decidida; a solidão é pelo menos tão ruim para o
senhor quanto para mim. Tentarei, se puder, descobrir a mola secreta de sua
confiança, e encontrarei uma brecha nesse peito de mármore pela qual possa
deitar uma gota do bálsamo da simpatia".
— O retrato está parecido? — perguntei sem rodeios.
— Parecido! Parecido com quem? Não o olhei de perto.
— Olhou, sim, Sr. Rivers.
Ele também estremeceu com minha súbita e estranha brusquidão; olhou-me
espantado. "Oh, isso ainda não é nada", murmurei para mim mesma. "Não
pretendo ser derrotada por um pouco de rigidez de sua parte; estou disposta a ir a
consideráveis distâncias", continuei. "O senhor o observou de perto e
distintamente; mas não tenho nenhuma objeção a que o olhe de novo." E levantei-
me e o pus nas mãos dele.
— Um quadro bem executado — ele disse. — Cores muito suaves e claras;
desenho muito correto e gracioso.
— Sim, sim; eu sei de tudo isso. Mas que tal a semelhança? Dominando
alguma hesitação, ele respondeu: — A Srta.
Oliver, suponho.
— Evidentemente. E agora, senhor, para recompensá-lo por seu palpite
acurado, prometo-lhe pintar uma cuidadosa e fiel duplicata dessa mesma pintura,
bastando que admita que o presente lhe seria aceitável. Não desejo desperdiçar
meu tempo e esforço numa oferta que o senhor julgaria indigna.
Ele continuou a fitar o quadro; quanto mais olhava, mais firme o segurava e
mais parecia cobiçá-lo.
— Parece! — murmurou. — Os olhos estão bem feitos; as cores, a luz, a
expressão estão perfeitas. Sorri!
— Dar-lhe-á prazer ou sofrimento ter uma pintura idêntica? Diga-me! Quando
estiver em Madagascar, ou no Cabo, ou na índia, seria um consolo ter esse
memento em seu poder? Ou a visão dele traria lembranças capazes de deixá-lo
nervoso ou angustiá-lo?
Ele ergueu furtivamente os olhos; olhou-me, indeciso, perturbado; tornou a
examinar o quadro.
— É certo que eu gostaria de tê-lo; se isso seria sensato ou apropriado, é outra
questão.
Como verificara que Rosamond realmente o preferia, e que não era provável
uma oposição do pai dela, eu — menos exaltada em minhas opiniões que St. John
— me dispusera vigorosamente, no íntimo, a defender a união dos dois. Parecia-
me que, se ele se tornasse dono da grande fortuna do Sr. Oliver, poderia fazer
tanto bem com ela quanto se partisse e deixasse seu gênio murchar, desperdiçando
suas forças, sob um sol tropical. Com essa convicção, respondi então:
— Até onde posso ver, seria mais sensato e apropriado se ficasse de vez com
o original.
A essa altura, ele se sentara; pusera o quadro na mesa à frente, e com a testa
apoiada em ambas as mãos curvava-se amorosamente sobre ele. Percebi que não
estava então nem furioso nem chocado com minha audácia. Vi mesmo que
começava a sentir como um prazer, como um alívio inesperado, que lhe falassem
assim de um assunto que considerava inabordável — ouvi-lo assim livremente
tratado. As pessoas reservadas muitas vezes precisam realmente mais da
discussão franca de seus sentimentos e sofrimentos do que as expansivas. O
estóico de mais severa aparência é humano, afinal; e "irromper" com audácia e
boa vontade no "mar silencioso" de suas almas é muitas vezes conferir-lhes o
primeiro dos favores.
— Ela gosta do senhor, estou certa — eu disse, parada atrás de sua cadeira —
e o pai dela o respeita. Além disso, ela é uma jovem adorável... um tanto
desmiolada; mas o senhor teria miolo suficiente para os dois. Deve casar-se com
ela.
— Ela gosta de mim? — ele perguntou.
— Certamente; mais do que de qualquer outra pessoa. Fala do senhor o tempo
todo; não há assunto de que goste tanto ou que aborde com mais freqüência.
— É muito agradável saber disso — ele disse — muito; continue por mais um
quarto de hora — E na verdade retirou o relógio e o depositou sobre a mesa, para
medir o tempo.
— Mas que adianta prosseguir — perguntei — quando o senhor
provavelmente estará preparando algum férreo golpe de contradição, ou forjando
uma nova cadeia para aprisionar seu coração?
— Não imagine coisas tão duras. Imagine-me cedendo e derretendo-me, como
estou fazendo; o amor humano nascendo como uma fonte recém-aberta em minha
mente e transbordando com uma tão doce inundação todo o campo que preparei
com tanto cuidado e esforço... tão assiduamente semeado com as sementes das
boas intenções, dos planos de autonegação. E agora está inundado com uma
enchente de néctar... os novos brotos afogados... um delicioso veneno a corroê-
los: agora me vejo estendido numa otomana na sala de estar de Vale Hall, aos pés
de minha noiva Rosamond Oliver; ela me fala com sua voz doce... olhando-me
com aqueles olhos que suas mãos habilidosas tão bem copiaram... sorrindo-me
com aqueles lábios de coral. É minha... eu sou dela... meu coração transborda de
prazer... meus sentidos estão em transe... que o tempo que marquei passe em paz.
Fiz a sua vontade; o relógio tiquetaqueava; ele respirava apressado e baixo: eu
permanecia calada. Em meio a esse silêncio, o quarto de hora se acelerou; ele
tornou a guardar o relógio, depôs o quadro, levantou-se e ficou junto da lareira.
— Agora — disse — esse pequeno espaço foi dedicado ao delírio e à ilusão.
Repousei as têmporas no seio da tentação, e pus voluntariamente o pescoço sob
sua canga de flores; provei de sua taça. O travesseiro ardia; há uma áspide na
guirlanda; o vinho tem um gosto amargo; suas promessas são vazias... suas ofertas
falsas: vejo e sei de tudo isso.
Eu o olhava, perplexa.
— É estranho — ele prosseguiu — que enquanto amo Rosamond Oliver tão
loucamente... com toda a intensidade, na verdade, de uma primeira paixão, cujo
objeto é perfeitamente lindo, gracioso e fascinante... experimento ao mesmo
tempo uma calma e reta consciência de que ela não seria uma boa esposa para
mim; que não é a parceira adequada para mim; que eu descobriria isso dentro de
um ano após nosso casamento; e que a doze meses de enlevo se sucederia uma
vida inteira de arrependimento. Sei disso.
— Realmente estranho! — não pude deixar de exclamar.
— Enquanto alguma coisa em mim — ele continuou — é agudamente
sensível aos encantos dela, uma outra coisa se impressiona profundamente com
seus defeitos; e são tais, que não poderiam combinar em nada com aquilo a que
aspiro... não poderiam cooperar em nada que eu empreendesse. Rosamond, uma
trabalhadora, uma sofredora, uma apóstola? Rosamond, esposa de um
missionário? Não!
— Mas o senhor não precisa ser missionário. Podia desistir desse plano.
— Desistir! Quê! Minha vocação? Minha grande obra? O alicerce que
construo na terra para uma mansão no céu? Minhas esperanças de integrar o
conjunto daqueles que fundiram todas as ambições na única e gloriosa ambição de
aprimorar sua raça... de levar o conhecimento aos domínios da ignorância... de
substituir a guerra pela paz, a escravidão pela liberdade, a superstição pela
religião, o temor do inferno pela esperança do céu? Devo desistir disso? É-me
mais caro que o sangue em minhas veias. É o que devo aspirar, aquilo para que
devo viver.
Após uma considerável pausa, eu disse:
— E a Srta. Oliver? O sofrimento e a decepção dela não lhe afetam de modo
nenhum?
— A Srta. Oliver está constantemente cercada de pretendentes e bajuladores;
em menos de um mês, minha imagem se apagará de seu coração. Ela me
esquecerá; e se casará, provavelmente, com alguém que a fará muito mais feliz do
que eu a faria.
— O senhor fala com muita frieza, realmente; mas sofre com o conflito. Está
se desgastando.
— Não. Se eu emagrecer um pouco, será com ansiedade por meus planos,
ainda não acertados... minha partida continuamente adiada. Ainda esta manhã
recebi informação de que o sucessor, cuja chegada espero há tanto tempo, não
pode estar pronto para me substituir por três meses ainda; e talvez os três meses se
estendam para seis.
— O senhor treme e se ruboriza sempre que a Srta. Oliver entra na sala de
aula.
Mais uma vez, a expressão de surpresa cruzou o seu rosto. Ele não imaginara
que uma mulher ousasse falar assim a um homem. Quanto a mim, sentia-me à
vontade nessa espécie de conversa. Não me cansava de comunicar-me com
mentes fortes, discretas e refinadas, masculinas ou femininas, enquanto não
ultrapassasse as barreiras externas da reserva convencional e cruzasse a soleira da
confiança, conquistando um lugar no centro mesmo de seus corações.
— A senhorita ê original — ele disse — e nada tímida. Há alguma coisa
corajosa em seu espírito, e penetrante em seus olhos; mas permita-me assegurar-
lhe que interpreta erroneamente, em parte, minhas emoções. Julga-as mais
poderosas e profundas do que são. Dá-me uma margem de simpatia mais larga
que a que tenho direito. Quando me ruborizo, e quando tremo diante da Srta.
Oliver, não sinto pena de mim mesmo, desprezo a fraqueza. Sei que é ignóbil;
uma mera febre da carne; não, declaro, uma convulsão da alma. Esta é tão fixa
quanto uma rocha, firmemente plantada nas profundezas de um mar agitado.
Reconheça-me pelo que sou... um homem frio e duro. Sorri, incrédula.
— A senhorita tomou de assalto minha confidencia — ele continuou — e
agora ela está em grande parte à sua disposição. Estou, simplesmente, em meu
estado original... despido daquele manto manchado de sangue com o qual o
cristianismo cobre a deformidade humana... um homem frio, duro, ambicioso. Só
a afeição natural, entre todos os sentimentos, tem um poder permanente sobre
mim. A razão, e não o sentimento, é o meu guia; minha ambição não tem limites;
meu desejo de elevar-me mais alto, fazer mais que os outros, é insaciável.
Respeito a resistência, a perseverança, a diligência, o talento; porque esses são os
meios pelos quais os homens atingem grandes metas e se erguem à grande
eminência. Observo sua carreira com interesse, porque a considero um espécime
de mulher diligente, ordenada, enérgica; não porque me compadeça
profundamente pelo que sofreu, ou sofrerá ainda.
— O senhor se descreveria como um simples filósofo pagão? — eu disse.
— Não. Existe a seguinte diferença entre eu e os filósofos deístas; eu creio; e
creio no Evangelho. A senhorita falhou em seu epíteto. Não sou um pagão, mas
um filósofo cristão... um seguidor da seita de Jesus. Como discípulo d'Ele, adoto
Suas doutrinas puras, misericordiosas, benignas. Defendo-as; jurei disseminá-las.
Conquistado para a religião na juventude, foi ela que cultivou minhas qualidades
originais, da seguinte maneira: a partir do minúsculo germe, a afeição natural,
desenvolveu a frondosa árvore, a filantropia. Da mesquinha raiz da retidão
humana, criou um senso correto da justiça divina. Da ambição por conquistar
poder e fama para meu desgraçado eu, formou a ambição para ampliar o Reino de
meu Senhor, conquistar vitórias para o estandarte da Cruz. Foi isso o que a
religião fez por mim; extraindo o melhor dos materiais originais; podando e
treinando a natureza. Mas não podia erradicar a natureza, que não será erradicada
"até que este mortal assuma a imortalidade".
Tendo dito isso, pegou o chapéu, que estava na mesa ao lado de minha paleta.
Olhou mais uma vez o retrato.
— Ela é adorável — murmurou. — Na verdade, seu nome, Rosa do Mundo, é
bem apropriado!
— E não devo pintar um retrato como esse para o senhor?
— Cui bono?* Não. *Para quê? (N. do T.)
Cobriu o retrato com a folha de papel fino em que eu costumava apoiar a mão
ao pintar, para não sujar a cartolina. O que viu de repente naquela folha branca,
não posso dizer; mas alguma coisa prendeu o seu olhar. Ele a levantou com um
gesto brusco; olhou a borda; depois lançou-me um olhar, inexprimivelmente
peculiar e bastante incompreensível; um olhar que parecia tomar nota de todos os
pontos de minha forma, rosto, roupa; pois atravessou tudo, rápido, intenso como
um raio. Seus lábios se abriram, como para dizer alguma coisa; mas ele conteve a
frase que vinha, fosse qual fosse.
— Qual é o problema? — perguntei.
— Absolutamente nada — foi a resposta; e, recolocando o papel no lugar, vi
que rasgava habilmente uma tira da margem, que desapareceu em sua luva; e,
com um apressado aceno de cabeça e um "boa-tarde", sumiu.
— Bem! — exclamei, usando uma expressão do distrito — isso fecha a
questão, de qualquer forma!
Examinei por minha vez o papel; mas nada vi nele a não ser umas pequenas
manchas de tinta, onde experimentara as cores. Ponderei sobre esse mistério por
um ou dois minutos; mas, achando-o insolúvel, e tendo certeza de que não poderia
ter muita importância, afastei-o da mente e esqueci-o.
CAPITULO 33
QUANDO o Sr. St. John se foi, começava a nevar; a tempestade, em
redemoinhos, durou a noite toda. No dia seguinte, um vento penetrante trouxe
novas e cegantes nevascas; ao crepúsculo, o vale estava submerso em neve e
quase intransitável. Eu fechara a janela, colocara um tapete embaixo da porta para
impedir que a neve entrasse por ali, atiçara o fogo, e após sentar-me por quase
uma hora diante da lareira, ouvindo a abafada fúria da tempestade, acendi a vela,
peguei Marmion e comecei a ler:
O dia se fez sobre a acastelada encosta de Norham,
E sobre o belo rio de Tweed, largo e fundo,
E as solitárias montanhas de Cheviot;
As torres maciças, o torreão,
Os muros em volta que os cercam
De amarela luz brilhavam...
E logo esqueci a música da tempestade.
Ouvi um ruído; pensei que era o vento que sacudia a porta. Não; era St. John
Rivers que, erguendo a tranca, entrava, refugiando-se do gelado furacão, da
escuridão uivante, e punha-se à minha frente, o casaco que cobria a sua figura
branco como uma geleira. Eu estava quase consternada, uma vez que não
esperava nenhuma visita vinda do vale bloqueado naquela noite.
— Alguma má notícia? — perguntei. — Aconteceu alguma coisa?
— Não. Como a senhorita se alarma facilmente! — ele respondeu, retirando o
casaco e pendurando-o na porta, para a qual tornou a empurrar o tapete que
afastara ao entrar. Bateu os pés para retirar a neve dos sapatos.
— Vou sujar a pureza de seu chão — disse — mas deve me desculpar por esta
vez. — Aproximou-se do fogo. — Tive muita dificuldade para chegar aqui,
garanto-lhe — observou, aquecendo as mãos sobre as chamas. — Num lugar,
enterrei-me na neve quase até a cintura; felizmente, a neve ainda está bastante
mole.
— Mas por que veio? — não pude deixar de perguntar.
— Eis uma pergunta um tanto inospitaleira a fazer a um visitante; mas, já que
a faz, respondo simplesmente que vim ter uma conversinha com a senhorita;
cansei-me de meus mudos livros e quartos vazios. Além disso, desde ontem
experimento a excitação de uma pessoa a quem se contou uma história pela
metade, e que está impaciente para ouvir a continuação.
Sentou-se. Lembrei-me de sua conduta singular no dia anterior, e realmente
comecei a temer que tivesse o espírito afetado. Se estava insano, porém, sua
insanidade era muito calma e digna; eu nunca vira seu belo rosto mais parecido
com mármore cinzelado do que naquele momento, em que afastava do rosto os
cabelos molhados de neve e deixava a luz da lareira brilhar livremente na testa e
no rosto pálidos, onde me doía descobrir o sinal da preocupação ou mágoa tão
claramente gravado. Aguardei, esperando que dissesse alguma coisa que eu
pudesse ao menos compreender; mas ele tinha agora a mão no queixo, o dedo no
lábio; pensava. Impressionou-me o fato de sua mão parecer tão desgastada quanto
o rosto. Uma onda de piedade talvez inoportuna tomou-me o coração; fui levada a
dizer:
— Eu gostaria que Diana ou Mary viessem morar com o senhor; é muito ruim
que fique inteiramente só; e o senhor é muito duro com sua saúde.
— De jeito nenhum — ele disse. — Cuido de mim quando necessário. Estou
bem agora. Que vê de errado em mim?
Disse isso com uma indiferença descuidada e distraída, que mostrava ser a
minha solicitude, ao menos em sua opinião, inteiramente supérflua. Calei-me.
Ele ainda movia lentamente o dedo sobre o lábio superior, e seus olhos ainda
pousavam sonhadoramente na rubra grade da lareira, julgando urgente dizer
alguma coisa, terminei perguntando-lhe se sentia alguma corrente de ar frio vinda
da porta, às suas costas.
— Não, não! — respondeu, curta e um tanto irritadamente. "Bem!", refleti.
"Se o senhor não quer falar, pode ficar aí parado; vou deixá-lo sozinho agora, e
voltar ao meu livro." Assim, espevitei a vela e retomei a leitura de Marmion. Ele
logo se moveu; meus olhos foram no mesmo instante atraídos para seus
movimentos; mas ele apenas tirou uma carteira de marroquim, e dela uma carta,
que leu em silêncio, dobrou, pôs de volta na carteira e recaiu em sua meditação.
Era inútil tentar ler com uma pessoa tão imóvel diante de mim; tampouco
consentiria, em minha impaciência, em ficar muda; que me repelisse se quisesse,
mas eu falaria.
— Teve notícias de Mary e Diana ultimamente?
— Não depois da carta que lhe mostrei há uma semana.
— Houve alguma mudança em seus preparativos? Não será chamado a deixar
a Inglaterra mais cedo do que esperava?
— Receio que não, na verdade; uma sorte dessas é boa demais para me caber.
— Repelida até então, mudei de terreno. Achei por bem falar da escola e de
minhas alunas.
— A mãe de Mary Garrett está melhor, e Mary voltou à escola hoje de manhã.
Para a semana, terei quatro novas meninas da Fundição Close; teriam vindo hoje,
não fosse pela neve.
— Verdade!
— O Sr. Oliver paga por duas.
— Paga?
— Ele pretende dar a toda a escola um presente no Natal.
— Eu sei.
— Foi sugestão sua?
— Não.
— De quem, então?
— Da filha dele, creio.
— Isso é bem dela; uma natureza tão boa.
— É.
Mais uma vez, o espaço em branco da pausa; o relógio deu oito badaladas.
Isso o despertou; descruzou as pernas, empertigou-se e voltou-se para mim.
— Deixe seu livro por um momento, e aproxime-se mais do fogo — disse.
Intrigada, e não encontrando uma saída para essa intriga, obedeci.
— Meia hora atrás — ele prosseguiu — falei de minha impaciência por ouvir
a continuação da história: refletindo melhor, acho que a questão será mais bem
resolvida se eu assumir o papel do narrador e transformá-la em ouvinte. Antes de
começar, é justo avisá-la de que a história parecerá um tanto trivial a seus
ouvidos; mas os detalhes rançosos muitas vezes readquirem um certo grau de
frescor quando passam por novos lábios. De resto, batida ou nova, é curta.
"Há vinte anos, um pobre cura... não se incomode com o nome dele por
enquanto... se apaixonou pela filha de um rico; ela também se apaixonou por ele e
desposou-o, contra a opinião de todos os seus amigos, que conseqüentemente se
afastaram logo após o casamento. Em menos de dois anos, os dois estavam
mortos, e enterrados discretamente lado a lado sob a mesma lápide. (Vi a
sepultura deles; fazia parte do pavimento de um imenso cemitério que cercava a
sombria e velha catedral, coberta de fuligem, de uma inflada cidade manufatureira
em ... shire.) Deixaram uma filha, que, logo no nascimento, a Caridade tomou no
colo... um colo frio como o da neve em que quase me atolei esta noite. A Caridade
levou a coisinha sem amigos para a casa dos parentes ricos, do lado materno; ela
foi criada por uma tia pelo casamento, chamada (chego aos nomes agora) Sra.
Reed de Gateshead. A senhorita estremece ... ouviu algum barulho? Aposto que é
apenas algum rato subindo pelos caibros do telhado da sala de aula; era um celeiro
antes que eu a consertasse e alterasse, e os celeiros geralmente são cheios de ratos.
Mas, prosseguindo. A Sra. Reed manteve a órfã por dez anos; se a menina foi
feliz ou não com ela, não sei, pois nunca me disseram, mas ao fim desse tempo a
tia a transferiu para um lugar que a senhorita conhece... pois não é outro senão a
Escola Lowood, onde a senhorita morou por tanto tempo. Parece que a carreira
dela ali foi muito honorável: de aluna, passou a professora, como a senhorita...
realmente, parece-me que há pontos paralelos entre a história dela e a sua. Ela
deixou a escola para ser governanta: também nisso seus destinos foram análogos;
ela assumiu a educação da protegida de um certo Sr. Rochester."
— Sr. Rivers! — interrompi-o.
— Posso imaginar seus sentimentos — ele disse — mas contenha-os por
algum tempo; já quase terminei, ouça-me até o fim. Do caráter do Sr. Rochester,
nada sei, a não ser do único fato de que ele professou oferecer um honrado
casamento a essa jovem, e que já no altar ela descobriu que ele tinha uma esposa
viva, embora louca. Quais foram sua conduta e propostas depois disso, é um caso
de pura conjetura; mas quando surgiu um fato que fez com que procurassem a
governanta, descobriu-se que ela partira... ninguém sabia quando, para onde, ou
como. Deixara Thornfield Hall à noite; todas as buscas foram, evidentemente, em
vão; a região foi vasculhada em todos os sentidos; não se conseguiu um vestígio
de informação sobre ela. Contudo, tornou-se de séria urgência que ela fosse
encontrada; puseram-se anúncios nos jornais; eu mesmo recebi uma carta de um
certo Sr. Briggs, solicitador, comunicando os detalhes que acabo de fornecer. Não
é uma história curiosa?
— Diga-me apenas o seguinte — eu disse. — E já que sabe tanto, certamente
pode me dizer: que aconteceu com o Sr. Rochester? Como e onde está ele? Que
está fazendo. Está bem?
— Ignoro tudo o que se refere ao Sr. Rochester: a carta só o menciona para
contar a tentativa fraudulenta e ilegal a que me referi. A senhorita devia antes
perguntar o nome da governanta... o tipo de fato que exige o aparecimento dela.
— Ninguém foi a Thornfield Hall, então? Ninguém viu o Sr. Rochester?
— Suponho que não.
— Mas escreveram a ele?
— Evidentemente.
— E que foi que ele disse? Quem tem as cartas dele?
— O Sr. Briggs dá a entender que a resposta às suas perguntas não vieram do
Sr. Rochester, mas de uma senhora; está assinada "Alice Fairfax".
Eu me sentia gelada e consternada: meus piores temores eram então
verdadeiros: com toda probabilidade, ele deixara a Inglaterra e lançara-se em
imprudente desespero em algum antigo antro do Continente. E que ópio para suas
severas dores... que objeto para suas fortes paixões... buscara ali? Oh, meu pobre
amo... outrora quase meu marido... a quem tantas vezes eu chamara de "meu
querido Edward".
— Ele deve ter sido um homem mau — observou o Sr. Rivers.
— O senhor não o conhece... não emita uma opinião sobre ele — eu disse
com ardor.
— Muito bem — ele respondeu tranqüilamente. — E na verdade minha
cabeça tem outras coisas com que se ocupar, que não ele; tenho de terminar minha
história. Como não pergunta o nome da governanta, devo dizê-lo de moto próprio.
Fique! Tenho-o aqui... é sempre mais satisfatório ver pontos importantes escritos,
bem seguros em preto e branco.
E a carteira foi mais uma vez sacada com deliberação, aberta e revistada; de
um de seus compartimentos, foi extraída uma amassada tira de papel, rasgada às
pressas de algum lugar; reconheci em sua textura e suas manchas de azul-
marinho, carmesim e vermelhão: a margem rasgada da cobertura de meu retrato.
Ele se levantou, segurou-a perto dos olhos! e eu li, escritas em nanquim, e em
minha letra, as palavras: JANE EYRE — obra sem dúvida de algum momento de
distração.
— Briggs escreveu-me sobre uma certa Jane Eyre — ele disse. — Os
anúncios falavam de uma certa Jane Eyre: eu conhecia uma Jane Eliot. Confesso
que tinha minhas suspeitas, mas só ontem à tarde foi que elas se transformaram
em certeza de uma vez. Reconhece o nome e renuncia ao pseudônimo?
— Sim... sim; mas onde está o Sr. Briggs? Talvez ele saiba mais que o senhor
sobre o Sr. Rochester.
— Briggs está em Londres. Duvido que saiba qualquer coisa sobre o Sr.
Rochester; não é no Sr. Rochester que ele está interessado. Enquanto isso, a
senhorita esquece pontos essenciais para ir atrás de bobagens; não quer saber por
que o Sr. Briggs a procurou... o que queria da senhorita?
— Bem, que era que ele queria?
— Simplesmente comunicar-lhe que seu pobre tio, o Sr. Eyre, de Madeira,
está morto; que lhe deixou todos os seus bens, e que a senhorita agora é rica...
simplesmente isso... nada mais.
— Eu! Rica?
— Sim, a senhorita, rica... uma completa herdeira. Seguiu-se um silêncio.
— Tem de provar sua identidade, é claro — recomeçou St. John afinal — um
passo que não oferecerá nenhuma dificuldade; e poderá então entrar na posse
imediata. Sua fortuna está investida em fundos ingleses; Briggs tem o testamento
e os documentos necessários.
Ali estava outra carta jogada! Ê uma coisa magnífica, leitor, ser elevada num
momento da indigência à riqueza... uma coisa magnífica mesmo; mas não algo
que se possa compreender, ou desfrutar, conseqüentemente, assim de repente. E
depois, há outras oportunidades na vida muito mais emocionantes e arrebatadoras:
aquilo era sólido, uma questão do mundo real, não tinha nada de ideal; todas as
associações são sólidas e sóbrias, e suas manifestações também. Não se salta, e
pula, e grita hurra! ao se saber que herdou uma fortuna; começa-se a pensar em
responsabilidades, e a ponderar negócios; sobre uma base de constante satisfação
erguem-se certas preocupações sérias, e nos contemos, e meditamos em nossa
felicidade com uma expressão solene.
Além disso, as palavras Legado, Herança, vêm lado a lado com as palavras
Morte, Funeral. Soubera que meu tio morrera... meu único parente; desde quando
soubera de sua existência, eu alimentava a esperança de um dia vê-lo; agora,
jamais o veria. E depois, aquele dinheiro vinha apenas para mim; não para mim e
uma família regozijante, mas para minha isolada pessoa. Era uma grande dádiva,
sem dúvida; e a independência seria gloriosa — sim, eu sentia isso — esse
pensamento fazia meu coração transbordar de alegria.
— A senhorita move a cabeça, afinal — disse o Sr. Rivers. — Pensei que
Medusa a tinha olhado, e que a senhorita se havia transformado em pedra. Talvez
me pergunte agora quanto possui.
— Quanto possuo?
— Oh, uma ninharia! Nada, certamente, digno de menção... vinte mil libras,
creio que é o que dizem; mas que significa isso?
— Vinte mil libras?
Outra coisa estonteante — eu calculara umas quatro ou cinco mil. Essa notícia
me tirou realmente o fôlego por um momento; o Sr. St. John, a quem eu nunca
vira rir antes, ria agora.
— Bem — ele disse — se a senhorita houvesse cometido um assassinato, e eu
lhe tivesse dito que seu crime fora descoberto, não poderia parecer mais
espantada.
— É uma grande soma... não acha que há algum erro?
— Nenhum erro, absolutamente.
— Talvez tenha lido os números errado... podem ser dois mil!
— Está escrito com letras, não com números... vinte mil! Voltei a sentir-me
um tanto como um indivíduo de poderes gastronômicos apenas medianos
sentando-se para banquetear-se sozinho a uma mesa servida com pratos para cem.
O Sr. Rivers levantou-se então e pôs o casaco.
— Se não fosse uma noite tão inclemente — disse — eu mandaria Hannah
aqui para fazer-lhe companhia; a senhorita parece demasiado descoroçoada para
ser deixada só. Mas Hannah, coitada!, não poderia atravessar a nevada como eu;
não tem as pernas tão compridas: assim, devo deixá-la com suas mágoas. Boa-
noite.
Levantava a tranca; um súbito pensamento me ocorreu.
— Pare um minuto! — gritei.
— Bem?
— Intriga-me saber porque o Sr. Briggs lhe escreveu sobre mim; ou como o
conheceu, ou imaginou que o senhor, vivendo num lugar tão isolado, tivesse
meios de ajudar a encontrar-me.
— Oh! Eu sou um clérigo — ele disse — e freqüentemente se recorre ao clero
em questões curiosas. — Mais uma vez, a tranca da porta rangeu.
— Não; isso não me satisfaz! — exclamei; e de fato havia algo naquela
resposta apressada e nada explicativa que, em vez de acalmar, excitou minha
curiosidade mais que nunca.
— É um caso muito estranho — acrescentei. — Preciso saber mais a respeito.
— Outra hora.
— Não, esta noite! — e, quando ele se voltou da porta, eu me coloquei entre
ela e ele, que pareceu um tanto embaraçado.
— Certamente o senhor não sairá daqui antes de me contar tudo — eu disse.
— Eu preferia não contar neste momento.
— Vai contar! Tem de contar!
— Eu preferia que Diana ou Mary lhe informassem.
É claro que essas objeções levaram minha ansiedade a um clímax; e tinha de
ser satisfeita, sem demora; e eu disse isso a ele.
— Mas eu lhe informei que sou um homem duro — ele disse. — Difícil de
persuadir.
— E eu sou uma mulher dura... impossível de pôr de lado.
— E depois — ele continuou — sou frio, nenhum ardor me contagia.
— Enquanto eu sou quente, e o fogo dissolve o gelo. O fogo ali derreteu toda
a neve de seu casaco; da mesma forma, a água escorreu para o meu assoalho,
transformando-o numa rua em que muitos passam. Como espera um dia ser
perdoado, Sr. Rivers, do grande crime e mau comportamento de sujar uma
cozinha areada, diga-me o que quero saber.
— Bem, então — ele disse — eu cedo; se não à sua ansiedade, ao menos à sua
perseverança; como a água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Além
disso, vai ter de saber algum dia... e tanto faz agora como depois. Seu nome é
Jane Eyre?
— Evidentemente, isso já foi decidido antes.
— Talvez a senhorita não saiba que sou seu xará... que fui batizado com o
nome de St. John Eyre Rivers.
— Não, na verdade! Lembro-me agora de ter visto a letra E entre as suas
iniciais escritas em livros que me emprestou, em ocasiões diferentes; mas nunca
perguntei o que significava. Mas e daí? Sem dúvida...
Parei: não confiava em mim mesma para alimentar, e muito menos
manifestar, o pensamento que me ocorreu de repente — que tomou forma — que,
num segundo, se ergueu como uma forte e sólida probabilidade. As circunstâncias
se emaranharam, se ordenaram, a cadeia que até então jazia como um monte de
elos sem ligações se endireitou — todos os aros eram perfeitos, a conexão
completa. Eu sabia, por instinto, em que pé estavam as coisas, antes de St. John
dizer mais uma palavra; mas não posso esperar que o leitor tenha a mesma
percepção intuitiva, e assim tenho de repetir a informação dele.
— O nome de minha mãe era Eyre-; ela tinha dois irmãos; um, um clérigo,
que se casou com a Srta. Jane Reed, de Gateshead; o outro, lohn Eyre, Esq.,
comerciante, de Funchal, Madeira. O Sr. Briggs, sendo solicitador do Sr. Eyre,
escreveu-nos em agosto para informar-nos da morte de nosso tio, e para dizer que
ele deixara seus bens para a filha órfã de seu irmão clérigo, passando por cima de
nós, em conseqüência de uma disputa, jamais esquecida, entre ele e meu pai.
Voltou a escrever há poucas semanas, para informar que a herdeira desaparecera,
e perguntando se eu sabia alguma coisa sobre ela. Um nome casualmente escrito
numa tira de papel possibilitou-me encontrá-la. A senhorita sabe o resto. —
Novamente, ia saindo, mas me recostei contra a porta.
— Deixe-me falar — eu disse — deixe-me respirar e refletir por um
momento. — Fiz uma pausa — ele estava parado à minha frente, de chapéu na
mão, com uma aparência bastante composta. Recomecei:
— Sua mãe era irmã de meu pai?
— Sim.
— Minha tia, portanto? Ele assentiu com a cabeça.
— Meu tio John era seu tio John? O senhor, Diana e Mary são filhos da irmã
dele, como eu sou filha do irmão?
— Inegavelmente.
— Vocês três então são meus primos; metade do nosso sangue, de cada lado,
provém da mesma fonte?
— Somos primos; sim.
Examinei-o. Parecia-me ter encontrado um irmão; um irmão do qual podia me
orgulhar — a quem podia amar; e duas irmãs, cujas qualidades eram tais que,
quando as conhecia como simples estranhas, me tinham inspirado sincero afeto e
admiração. As duas moças que, ajoelhada no chão molhado, e olhando através da
janela baixa, com gelosias, da cozinha de Moor House, eu olhara com uma
mistura tão amarga de interesse e desespero, eram minhas parentas próximas; e o
jovem e imponente cavalheiro que me encontrara quase morrendo na soleira de
sua porta era meu parente de sangue. Gloriosa descoberta para uma infeliz
solitária! Aquilo era realmente a riqueza! Riqueza para o coração — uma mina de
afetos puros e agradáveis. Era uma bênção, brilhante, vivida e estimulante — não
como a maciça dádiva de ouro, rica e muito bem-vinda à sua maneira, mas que
causava sobriedade com seu peso. Bati então as mãos em repentina felicidade —
meu pulso saltava, minhas veias vibravam.
— Oh, estou feliz! Estou feliz! — exclamei. St. John sorriu.
— Eu não disse que a senhorita esquecera de pontos essenciais para procurar
saber de bobagens? — perguntou. — A senhorita ficou séria quando eu disse que
tinha ganho uma fortuna; e agora, por uma coisa sem importância, está excitada.
— Que quer dizer? Pode não ter importância para o senhor; tem irmãs e não
liga para uma prima; mas eu não tinha ninguém; e agora três parentes... ou duas,
se o senhor preferir não ser incluído... brotaram em meu mundo inteiramente
adultas. Repito; estou feliz!
Andava rápido pelo aposento; parei, meio sufocada com as idéias que surgiam
com mais rapidez do que eu as podia receber, compreender, assentar, idéias do
que poderia, deveria e iria acontecer, e muito em breve. Olhei a parede branca:
parecia um céu cheio de estrelas ascendentes — e cada uma me despertava um
propósito ou um prazer. Aqueles que me haviam salvo a vida, e aos quais até
então eu amava sem poder retribuir, podia agora beneficiá-los. Eles estavam sob
um jugo — eu podia libertá-los; estavam dispersos — eu podia reuni-los; a
independência, a riqueza que eram minhas podiam ser deles também. Não éramos
quatro? Vinte mil libras, divididas igualmente, dariam cinco mil para cada —
bastava e sobrava; a justiça seria feita — e se asseguraria a mútua felicidade.
Agora a riqueza não me pesava; agora não era uma simples herança em moeda —
era um legado de vida, esperança, deleite.
Não sei que aparência eu tinha enquanto essas idéias me tomavam o espírito
de assalto; mas logo percebi que o Sr. Rivers colocara uma cadeira atrás de mim,
e tentava delicadamente fazer-me sentar nela. Também me aconselhou a manter a
calma; desdenhei a insinuação de desamparo e distração, afastei sua mão e pus-
me a andar de novo.
— Escreva a Diana e Mary amanhã — eu disse — e diga-lhes que venham
para casa imediatamente. Diana disse que as duas se considerariam ricas com mil
libras; assim, com cinco mil, ficarão muito bem.
— Diga-me onde posso arranjar-lhe um copo d'água — disse St. John. — A
senhorita deve realmente fazer um esforço para acalmar seus sentimentos.
— Bobagem! E que tipo de efeito a herança terá sobre o senhor? Será que o
manterá na Inglaterra, o levará a casar-se com a Srta. Oliver e assentar-se como
um mortal comum?
— A senhorita se desvaria; sua cabeça torna-se confusa. Fui abrupto demais
ao transmitir as notícias; isso a excitou além de suas forças.
— Sr. Rivers, o senhor me deixa muito impaciente, sou bastante racional; é o
senhor quem está entendendo mal, ou antes, finge entender mal.
— Talvez, se a senhorita se explicasse um pouco mais completamente, eu
compreendesse melhor.
— Explicar! Que há para explicar? O senhor não pode deixar de ver que vinte
mil libras, a soma em questão, dividida igualmente entre o sobrinho e as três
sobrinhas de nosso tio, darão cinco mil libras para cada um? O que desejo é que o
senhor escreva às suas irmãs e conte a elas a fortuna que lhes coube.
— Que coube à senhorita, é o que quer dizer.
— Eu já disse minha opinião sobre o caso; não posso tomar nenhuma outra.
Não sou brutalmente egoísta, cegamente injusta ou demoniacamente ingrata.
Além disso, estou decidida a ter uma casa e parentes. Gosto de Moor House, e
viverei em Moor House; gosto de Diana e Mary, e me ligarei por toda vida a
Diana e Mary. Cinco mil libras me agradariam e beneficiariam; vinte mil me
atormentariam e oprimiriam; e, além disso, jamais poderiam ser minhas com
justiça, embora possam ser pela lei. Abandono-lhes assim o que me é
absolutamente supérfluo. Que não haja oposição e discussão sobre isso;
concordemos e decidamos a questão de uma vez.
— Isso é agir com base em primeiros impulsos; a senho-rita deve levar dias
considerando um assunto desses, antes que sua palavra possa ser encarada como
válida.
— Oh, se duvida apenas de minha sinceridade, estou tranqüila; vê a justiça do
caso?
— Eu vejo uma certa justiça; mas é contrária a todos os costumes. Além
disso, toda a fortuna é sua por direito; meu tio ganhou-a com seus esforços; tinha
a liberdade de deixá-la para quem quisesse; deixou-a para a senhorita. Afinal, a
justiça permite que a mantenha; a senhorita pode, em sã consciência, considerá-la
absolutamente sua.
— Comigo — eu disse — trata-se inteiramente de uma questão mais de
sentimento do que de consciência: tenho de satisfazer meus sentimentos; é tão
raro eu ter uma oportunidade de fazê-lo. Mesmo que o senhor discutisse, se
opusesse e me aborrecesse durante um ano, eu não abriria mão do prazer do qual
consegui um vislumbre... o de pagar, em parte, uma grande dívida, e ganhar
amigos para a vida inteira.
— A senhorita pensa assim agora — retrucou St. John — porque não sabe o
que é possuir, e conseqüentemente desfrutar, da riqueza: não pode formar uma
idéia da importância que vinte mil libras lhe dariam; do lugar que lhe
possibilitariam ocupar na sociedade; das perspectivas que lhe abririam; não
pode...
— E o senhor — interrompi — não pode de modo algum imaginar o anseio
que sinto de amor fraterno. Nunca tive um lar, nunca tive irmãos ou irmãs; preciso
tê-los e os terei agora; o senhor não se opõe a me admitir, e me reconhecer, se
opõe?
— Jane, eu serei seu irmão... minhas irmãs serão suas irmãs... sem exigirmos
esse sacrifício de seus justos direitos.
— Irmão? Sim; à distância de mil léguas! Irmãs? Sim; escravizando-se entre
estranhos! Eu, rica... entupida de ouro que jamais ganhei e não mereço! Vocês,
sem tostão! Bela igualdade e fraternização! Estreita união! Intima ligação!
— Mas, Jane, suas aspirações de laços familiares e felicidade doméstica
podem se realizar por outros meios além daqueles que você pensa; você pode
casar-se.
— Bobagem, de novo! Casar! Não quero me casar, e nunca me casarei.
— Esta é uma afirmação exagerada; afirmações assim arriscadas são uma
prova da excitação sob a qual você age.
— Não é exagerada, sei o que sinto, e como minhas intenções são aversas ao
simples pensamento de casar-me. Ninguém me aceitaria por amor; e não serei
encarada como uma simples especulação monetária. E não quero um estranho...
sem simpatia, alheio, diferente de mim; quero os meus; aqueles com quem tenho
um completo sentimento de companheirismo. Diga de novo que será meu irmão;
quando disse essas palavras eu fiquei satisfeita, feliz; repita-as, se pode repeti-las
com sinceridade.
— Eu acho que posso. Sei que sempre amei minhas irmãs; e sei em que se
baseia meu afeto por elas... respeito pelo valor e admiração pelos talentos delas.
Você também tem uma mente e princípios, seus gostos e hábitos se assemelham
aos de Diana e Mary; sua presença me é sempre agradável; em sua conversa, já
encontrei por algum tempo um alívio salutar. Sinto que posso fácil e naturalmente
abrir espaço em meu coração para você, como minha terceira e mais jovem irmã.
— Obrigada; isso me satisfaz por esta noite. Agora, é melhor ir-se; pois, se
demorar mais, talvez me irrite de novo com algum escrúpulo de desconfiança.
— E a escola, Srta. Eyre? Terá de ser fechada agora, suponho.
— Não. Manterei meu posto de professora até que o senhor consiga uma
substituta.
Ele deu um sorriso de aprovação, apertamo-nos as mãos, e ele partiu.
Não preciso narrar em detalhes as lutas posteriores que enfrentei, e os
argumentos que usei, para acertar como queria os problemas relativos à herança.
Minha tarefa foi muito difícil; mas, como estava absolutamente decidida — como
meus primos viram afinal que eu tinha a mente real e imutavelmente fixa em fazer
uma justa divisão dos bens; como devem ter sentido em seus íntimos a eqüidade
de minha intenção; e como, além disso, deviam estar intimamente conscientes de
que, em meu lugar, teriam feito precisamente o que eu pretendia fazer — cederam
afinal até o ponto de submeter a questão à arbitragem. Os juizes escolhidos foram
o Sr. Oliver e um hábil advogado: os dois concordaram com minha opinião;
venci. Os instrumentos de transferência foram elaborados; St. John, Diana, Mary
e eu tornamo-nos, cada um, possuidores de uma renda suficiente para a
subsistência.
CAPITULO 34
QUANDO tudo ficou acertado, já estávamos perto do Natal; a estação das
férias gerais se aproximava. Fechei a escola de Morton, tendo o cuidado de que a
despedida não fosse estéril de meu lado. A boa sorte abre as mãos, assim como os
corações, de uma forma maravilhosa; e dar alguma coisa quando muito recebemos
é apenas dar uma válvula de escape à incomum ebulição das sensações. Havia
muito que eu achava que muitas de minhas rústicas alunas gostavam de mim, e
quando nos despedimos, essa consciência se confirmou: elas manifestaram seu
afeto clara e vigorosamente. Profunda foi a minha satisfação ao descobrir que
tinha realmente um lugar em seus simples corações: prometi-lhes que não passaria
nem uma semana, no futuro, em que não as visitasse e lhes desse uma hora de
aula em sua escola.
O Sr. Rivers apareceu quando, tendo visto as classes, agora em número de
sessenta meninas, saírem em fila à minha frente, e fechado a porta, eu estava
parada com a chave na mão, trocando algumas palavras de despedida especial
com uma meia dúzia de minhas melhores alunas; mocinhas tão decentes,
respeitáveis, modestas e bem-informadas quanto se podia encontrar nas fileiras do
campesinato inglês. E isso é dizer muito; pois, afinal, o campesinato inglês é o
mais bem treinado, mais bem-educado e que tem mais respeito próprio entre todos
os da Europa; desde então, tenho visto paysannes e Bauerinnen; e mesmo as
melhores delas me pareceram ignorantes, grosseiras e tolas, comparadas com
minhas meninas de Morton.
— Acha que obteve sua recompensa por uma temporada de trabalho? —
perguntou o Sr. Rivers, quando elas se foram. — A consciência de ter feito algum
bem verdadeiro em sua época e geração não lhe dá prazer?
— Sem dúvida.
— E você trabalhou apenas alguns meses! Uma vida dedicada à tarefa de
aperfeiçoar sua gente não seria bem vivida?
— Sim — eu disse — mas eu não poderia continuar para sempre assim: quero
desfrutar de minhas faculdades, além de cultivar as dos outros. E devo desfrutá-
las agora; não me puxe nem a mente nem o corpo para a escola; estou fora dela e
disposta a umas férias completas.
Ele pareceu sério.
— E agora? Que súbito anseio é esse que você demonstra agora? Que vai
fazer?
— Agir; agir tanto quanto possível. E primeiro devo pedir-lhe que libere
Hannah e arranje outra pessoa para servi-lo.
— Você a quer?
— Sim; quero que ela vá comigo para Moor House. Diana e Mary estarão em
casa dentro de uma semana, e quero ter tudo em ordem para a chegada delas.
— Compreendo. Pensava que você ia partir em alguma viagem. É melhor
assim; Hannah irá com você.
— Diga-lhe que esteja pronta amanhã, então; e aqui está a chave da escola; eu
lhe darei a chave de minha cabana pela manhã.
Ele a recebeu.
— Você a entrega com muita alegria — disse. — Não compreendo
inteiramente sua despreocupação, porque não sei que atividade se propõe em
substituição à que está deixando. Que objetivo, que propósito, que ambição na
vida você tem agora?
— Meu primeiro objetivo é limpar (compreende toda a força da expressão?)...
limpar Moor House dos quartos ao porão; depois, encerá-la com cera de abelha,
óleo e uma quantidade infinita de panos, até que ela volte a reluzir; em terceiro
lugar, arrumar toda corrente, mesa, cama, tapete, com precisão matemática; e em
seguida vou levá-lo quase à ruína com as despesas com carvão e turfa para manter
bons fogos em cada aposento; e por último, os dois dias anteriores à chegada de
suas irmãs serão dedicados por Hannah e eu a um tal bater de ovos, catar
groselhas, ralar especiarias, fazer bolos de Natal, cortar ingredientes para pastéis
recheados e outros rituais culinários, que as palavras só podem transmitir uma
idéia inadequada aos não iniciados como você.
St. John deu um leve sorriso; mas continuava insatisfeito.
— Está tudo muito bem, por agora — disse — mas, seriamente, espero que,
quando passar o primeiro impulso de animação, você olhe um pouco mais acima
dos prazeres e alegrias domésticos.
— As melhores coisas do mundo! — interrompi.
— Não, Jane, não; este mundo não é um cenário de deleites; não tente fazê-lo
assim; nem de repouso; não se torne indolente.
— Eu pretendo, ao contrário, me ocupar bastante.
— Jane: eu a desculpo por agora: dou-lhe dois meses de graça para o total
desfrute de sua nova posição, e para refestelar-se com esse recém-descoberto
encanto de parentesco; mas depois, espero que comece a olhar além de Moor
House e Morton, da companhia fraterna, da tranqüilidade egoísta e do conforto
dos sentidos que a riqueza civilizada proporciona. Espero que suas energias
voltem a inquietá-la com sua força.
Olhei-o surpresa.
— St. John — disse — creio que você é quase mesquinho falando assim.
Estou querendo me sentir tão satisfeita quanto uma rainha, e você tenta me causar
inquietação! Para quê?
— Para transformar em lucros os talentos que Deus confiou à sua guarda; e
dos quais Ele certamente lhe pedirá contas exatas um dia. Jane, eu a vigiarei
estreita e ansiosamente... aviso-a disso. E tente conter o fervor desproporcional
com que se atira a prazeres domésticos menores. Não se apegue tão tenazmente
aos laços da carne; poupe sua constância e ardor para uma causa adequada;
abstenha-se de desperdiçá-los com objetivos triviais transitórios. Está ouvindo,
Jane?
— Sim; exatamente como se você estivesse falando grego. Acho que tenho
motivo adequado para ser feliz; e vou ser feliz. Adeus!
E feliz eu fui em Moor House, e trabalhei duro; e também Hannah; ela estava
encantada por ver como eu podia ser alegre em meio às atividades de uma casa
revirada de pernas para o ar — como eu sabia escovar, espanar, limpar e cozinhar.
E realmente, após um ou dois dias de confusão, era um prazer invocar aos poucos
a ordem do caos que nós mesmas tínhamos criado. Eu fizera antes uma viagem a
S... para comprar alguns móveis; meus primos tinham-me dado carte Manche
para efetuar as alterações que me agradasse, e destinara-se uma soma para esse
fim. A sala de estar e os quartos de dormir comuns, eu os deixei em grande parte
como estavam; pois sabia que Diana e Mary teriam mais prazer em rever as
velhas mesas, cadeiras e camas familiares do que com o espetáculo de inovações
mais elegantes. Contudo, era necessária alguma novidade, para dar ao retorno
delas a pungência com que eu desejava investi-lo. Novos e bonitos tapetes e
cortinas escuros, um arranjo de alguns enfeites antigos cuidadosamente
escolhidos, em porcelana e bronze, novas coberturas, espelhos e penteadeiras,
para as mesas de toalete, serviram para isso; pareciam novos sem ser berrantes.
Uma sala c um quarto de reserva, eu os reformei inteiramente, com velho mogno
e guarnições rubras; pus lonas no corredor e tapetes nas escadas. Quando tudo
acabou, achei Moor House um modelo tão completo de modesto conforto por
dentro, quanto era, naquela estação, um modelo de desolação invernal e deserta
solidão por fora.
Chegou afinal a momentosa quinta-feira. Elas eram esperadas ao escurecer,
antes que se acendessem as lareiras no andar de cima e de baixo; a cozinha estava
perfeitamente arrumada; Hannah e eu de roupa trocada, e tudo pronto.
St. John chegou primeiro. Eu lhe pedira que se mantivesse longe de casa até
que tudo estivesse arrumado; e na verdade, a simples idéia da agitação, ao mesmo
tempo suja e trivial, dentro daquelas paredes, era o bastante para assustá-lo e
mantê-lo à distância. Ele me encontrou na cozinha, observando o andamento da
feitura de uns bolos para o chá, e depois assando-os. , Aproximando-se do fogão,
perguntou "se eu estava finalmente satisfeita com o trabalho de criada?" Respondi
convidando-o a acompanhar-me numa generosa inspeção do resultado de meus
esforços. Com alguma dificuldade, consegui que percorresse a casa. Ele apenas
olhava para dentro das portas que eu abria; e enquanto subíamos e descíamos as
escadas, disse-me que eu devia ter passado por muita fadiga e problemas para
fazer mudanças tão consideráveis em tão curto tempo; mas não disse nem uma
sílaba que indicasse prazer com o aspecto melhorado de sua morada.
Esse silêncio tirou-me o entusiasmo. Achei que talvez as alterações tivessem
prejudicado algumas velhas lembranças que valorizasse muito. Perguntei se assim
era, sem dúvida num tom um tanto abatido.
— De modo nenhum; ele observava, ao contrário, que eu havia respeitado
escrupulosamente todas as associações; temia, de fato, que eu tivesse dado mais
importância a esse assunto do que merecia. Quantos minutos, por exemplo, eu
dedicara a estudar o arranjo daquele mesmo aposento? A propósito, poderia dizer-
lhe onde estava tal livro?
Mostrei-lhe o volume na estante; ele o pegou e, retirando-se para seu
costumeiro canto de janela, começou a lê-lo.
Ora, não gostei disso, leitor. St. John era um bom homem; mas eu começava a
sentir que falara a verdade quando dissera que era frio e duro. As humanidades e
amenidades da vida não tinham atração para ele — seus pacíficos prazeres,
nenhum encanto. Ele vivia apenas, literalmente, para aspirar — ao que era grande
e bom, sem dúvida; mas ainda assim nunca descansava, e não aprovava que
outros descansassem à sua volta. Olhando sua vistosa testa, imóvel e pálida como
uma pedra branca — seus finos traços fixados no estudo — compreendi de
repente que dificilmente daria um bom marido, que seria uma provação ser esposa
dele. Entendi, como por inspiração, a natureza de seu amor pela Srta. Oliver;
concordei com ele em que era apenas um amor dos sentidos. Compreendi então
como ele se desprezaria a si mesmo pela febril influência que aquele amor exercia
sobre ele; como gostaria de sufocá-lo e destruí-lo; como duvidava de que algum
dia levasse à felicidade permanente dele ou dela. Vi que era do material com que
a natureza esculpe os heróis — cristãos e pagãos — seus legisladores, seus
estadistas, seus conquistadores; um firme baluarte para sustentar os grandes
interesses; mas, no lar, freqüentemente um frio e incômodo pilar, sombrio e
deslocado.
"Esta sala de visitas não é esfera dele", refleti; "o pico do Himalaia, ou a selva
de Caffre, mesmo o empesteado pântano da Costa da Guiné, lhe serviriam melhor.
Fazia bem em evitar a tranqüilidade da vida doméstica; não era seu elemento; ali,
suas faculdades se estagnavam — não podiam se desenvolver nem se destacar. É
nas cenas de luta e perigo — onde se prova a coragem, se exerce a energia e se
testa a firmeza — que ele falará e se moverá, líder e superior. Uma alegre criança
levaria vantagem sobre ele nesta casa. Ele está certo ao escolher a carreira de
missionário — vejo agora".
— Estão chegando! Estão chegando! — exclamou Hannah, abrindo de chofre
a porta da sala de visitas. Ao mesmo tempo, o velho Carlo se pôs a ladrar
alegremente. Corri para fora. Estava escuro agora; mas ouvia-se um rumor de
rodas. Hannah logo acendia uma lanterna. O veículo parará no portão; o cocheiro
abriu a porta; primeiro uma figura bem conhecida, depois outra, saltaram. Num
minuto, eu tinha o rosto debaixo de suas toucas, em contato primeiro com a macia
face de Mary, e depois com os abundantes cachos de Diana. Elas riam —
beijavam-me — e depois a Hannah; davam tapinhas em Carlo, que estava meio
louco de alegria; perguntaram ansiosamente se tudo estava bem; e, informadas de
que sim, correram para dentro de casa.
Estavam entorpecidas da longa e sacolejante viagem desde Whitcross, e
geladas com o frígido ar noturno; mas seus rostos satisfeitos se abriram para a
viva lareira. Enquanto o cocheiro e Hannah traziam as caixas para dentro,
perguntaram por St. John. Nesse momento, ele avançou da sala de visitas. Deu um
discreto beijo em cada uma delas, disse em voz baixa umas poucas palavras de
boas-vindas, ficou algum tempo para que conversassem com ele, e depois,
dizendo supor que elas logo se juntariam a ele na sala de visitas, retirou-se para lá
como para um local de refúgio.
Eu acendera velas para que elas subissem, mas Diana tinha primeiro de dar
ordens hospitaleiras em relação ao cocheiro; feito isso, as duas me seguiram.
Ficaram deliciadas com a renovação e decoração de seus quartos; com as novas
cortinas e tapetes, e com os vasos de louça de belas cores; manifestaram sua
satisfação sem reservas. Tive o prazer de sentir que meus arranjos combinavam
exatamente com seus desejos, e que o que fizera acrescentava um vivido encanto
à sua feliz volta ao lar.
Adorável foi aquela noite. Minhas primas, cheias de entusiasmo, eram tão
eloqüentes em suas histórias e comentários, que a fluência delas cobriu a
taciturnidade de St. John; ele estava sinceramente feliz por ver as irmãs; mas não
podia simpatizar com todo aquele ardor e alegria. O acontecimento do dia — isto
é, o retorno de Diana e Mary — agradava-lhe; mas a seqüência desse
acontecimento, o alegre tumulto, a gárrula festa da recepção, irritava-o; eu via que
ele desejava a chegada do amanhã mais calmo. No meio das alegrias da noite,
cerca de uma hora após o chá, ouviu-se uma batida na porta. Hannah entrou
dizendo que "um pobre rapaz viera, naquela hora imprópria, buscar o Sr. Rivers
para ver a mãe dele, que estava morrendo".
— Onde mora ela, Hannah?
— Lá em Whitcross Brow, quase quatro milhas, e pântano c mato o caminho
todo.
— Diga a ele que eu vou.
— Estou certa, senhor, de que era melhor não ir. É a pior estrada para se
percorrer após o escurecer; não há trilha nenhuma no lamaçal. E depois, está uma
noite tão feia... o vento mais cortante que já se viu. É melhor mandar dizer,
senhor, que estará lá pela manhã.
Mas ele já estava no corredor, pondo seu velho casaco; e sem uma objeção,
um murmúrio, partiu. Eram então nove horas; não voltou até a meia-noite. Estava
faminto e bastante cansado; mas parecia mais feliz do que quando partira.
Realizara um ato de dever; fizera um trabalho; sentira sua própria força para agir e
negar, e estava em melhores termos consigo mesmo.
Receio que toda a semana seguinte tenha sido uma provação para a sua
paciência. Era a semana do Natal; nós não fizemos nada preciso, mas passamo-la
numa espécie de alegre dissipação doméstica. O ar das charnecas, a liberdade do
lar, a aurora de prosperidade agiram no espírito de Diana e Mary como um elixir
restaurador; elas se mostravam alegres da manhã ao meio-dia, e de meio-dia à
noite. Conversavam o tempo todo; e suas conversas, espirituosas, expressivas,
originais, tinham tal encanto para mim, que eu preferia ouvir, e participar, a fazer
qualquer outra coisa. St. John não censurava nossa animação; mas fugia dela;
raramente estava em casa; sua paróquia era grande, a população dispersa, e ele
encontrava ocupação diária visitando os pobres e doentes nos diferentes distritos.
Certa manhã, ao desjejum, Diana, após parecer pensativa por alguns minutos,
perguntou-lhe "se seus planos não tinham mudado?"
— Não mudaram nem mudarão — foi a resposta. E ele passou a informar-nos
de que sua partida da Inglaterra estava agora definitivamente marcada para o
próximo ano.
— E Rosamond Oliver? — sugeriu Mary, as palavras parecendo escapar-lhe
involuntariamente dos lábios; pois assim que as externou, fez um gesto como se
quisesse recapturá-las. St. John tinha um livro nas mãos — era seu rude hábito ler
durante as refeições — e fechou-o e ergueu o olhar.
— Rosamond Oliver — disse — está para se casar com o Sr. Granby, um dos
moradores mais bem relacionados e mais estimáveis de S..., neto e herdeiro de Sir
Frederic Granby; eu soube a informação pelo pai dela, ontem.
As irmãs se olharam uma à outra, e a mim; e as três o olhamos; ele estava
sereno como vidro.
— O casamento deve ter sido arrumado às pressas — disse Diana. — Eles não
podem ter-se conhecido por muito tempo.
— Apenas dois meses; conheceram-se em outubro, no baile do condado em
S... Mas, quando não existem obstáculos a uma união, como no presente caso;
quando a ligação é desejável em todos os pontos, as demoras são desnecessárias;
eles se casarão assim que S... Place, que Sir Frederic lhes presenteia, seja
remodelada para recebê-los.
Na primeira vez em que encontrei St. John a sós, após essa comunicação,
senti-me tentada a perguntar-lhe se aquele acontecimento o angustiava; mas ele
parecia precisar tão pouco de simpatia que, longe de aventurar-me a oferecer-lhe
mais, experimentei um pouco de vergonha à lembrança da que já arriscara. Além
disso, perdera a prática de falar com ele; sua reserva voltara a ser gélida, e minha
franqueza se congelara sob ela. Ele não mantivera a promessa de tratar-me como a
suas irmãs; fazia continuamente pequenas e frias distinções entre nós, o que não
tendia de modo algum ao desenvolvimento da cordialidade; em suma, agora que
eu era reconhecida como sua parenta e vivia sob o mesmo teto com ele, sentia que
a distância entre nós era muito maior do que quando ele me conhecia apenas
como a professora da aldeia. Quando me lembrava de até onde fora admitida
outrora em sua confiança, mal conseguia compreender sua atual frigidez.
Como este era o caso, senti-me não pouco surpresa quando ele ergueu de
repente a cabeça da mesa sobre a qual se curvava, e disse:
— Sabe, Jane, a batalha foi travada, e a vitória conquistada. Espantada por
ver-me assim abordada, não respondi logo; mas, após um momento de hesitação,
disse:
— Mas tem certeza de que não está na posição daqueles vencedores cujas
vitórias lhes custaram caro demais? Será que outra vitória dessas não o arruinaria?
— Creio que não; e se me arruinasse, isso não teria muita importância; nunca
mais serei chamado a lutar por outra. O resultado do conflito é decisivo; meu
caminho está aberto agora; dou graças a Deus por isso! — E, assim dizendo,
retornou aos seus papéis e ao seu silêncio.
Quando a nossa mútua felicidade (isto é, de Diana, Mary e eu) se assentou
num tom mais calmo, e retomamos nossos hábitos usuais e nossos estudos
regulares, St. John passou a ficar mais em casa; sentava-se conosco na mesma
sala, às vezes durante horas. Enquanto Mary desenhava, Diana prosseguia num
curso de leitura enciclopédica que (para meu pasmo e espanto) empreendera, e eu
mourejava no alemão, ele ponderava sobre uma mística ciência própria — a de
alguma língua oriental, cujo domínio julgava necessário a seus planos.
Assim empenhado, parecia, sentado em seu canto, bastante quieto e
absorvido; mas aqueles seus olhos azuis tinham o hábito de deixar a exótica
gramática e vagar em torno, fixando-se às vezes sobre nós, suas companheiras de
estudo, com uma curiosa intensidade; se surpreendidos, desviavam-se no mesmo
instante; mas sempre retornavam, inquisitivamente, à nossa mesa. Eu imaginava o
que significava aquilo; admirava-me também a infalível satisfação que ele nunca
deixava de exibir numa ocasião que parecia de tão pouca importância, isto é, nas
minhas visitas semanais à escola de Morton; e mais intrigada ainda ficava quando,
se o dia era desfavorável, se nevava, ou chovia, ou ventava forte, e suas irmãs me
pediam que não fosse, ele invariavelmente fazia pouco da solicitude delas e me
encorajava a cumprir a tarefa sem consideração para com os elementos.
— Jane não é essa fraqueza em que vocês gostariam de transformá-la — dizia.
— Ela pode enfrentar uma ventania na montanha, ou um aguaceiro, ou alguns
flocos de neve, tão bem quanto qualquer um de nós. A constituição dela é sadia e
flexível, mais adequada para suportar variações de clima que muitas mais
robustas.
E quando eu voltava, às vezes um bocado cansada e não pouco descoroçoada,
não ousava queixar-me, porque sabia que protestar seria causar-lhe um embaraço;
em todas as ocasiões, a fortitude lhe agradava; o contrário seria um aborrecimento
especial.
Certa tarde, no entanto, deixaram-me ficar em casa, pois realmente tinha um
resfriado. As irmãs dele tinham ido a Morton em meu lugar; eu me sentava lendo
Schiller; ele, decifrando seus espinhosos manuscritos orientais. Quando eu
trocava uma tradução por um exercício, olhei por acaso em sua direção; e vi-me
sob a influência daqueles olhos azuis sempre vigilantes. Por quanto tempo eles me
dissecavam, não posso dizer; eram tão penetrantes, e no entanto tão frios, que me
senti no momento supersticiosa — como se estivesse sentada na sala com alguma
coisa sobrenatural.
— Jane, que está fazendo?
— Aprendendo alemão.
— Quero que você desista do alemão e aprenda hindustânico.
— Não está falando sério.
— Tão sério, que é preciso que seja assim; e lhe direi por quê.
Passou então a explicar que o hindustânico era a língua que estudava no
momento; que, ao avançar, esquecia o começo; que o ajudaria muito ter uma
aluna com a qual pudesse repetir sempre os fundamentos, fixando-os assim
inteiramente na memória; que sua escolha pairara por algum tempo entre mim e
suas irmãs; mas que se fixara em mim porque via que eu podia me dedicar a um
trabalho por mais tempo que elas. Eu lhe faria esse favor? Não teria, talvez, de
fazer esse sacrifício por muito tempo, uma vez que mal faltavam agora três meses
para a sua partida.
St. John não era homem de ser facilmente repelido; sentia-se que cada
impressão que recebia, de dor ou prazer, se gravava profunda e permanentemente
nele. Consenti. Quando Diana e Mary voltaram, a primeira encontrou sua aluna
transferida de si para seu irmão; ela riu, e tanto ela como Mary concordaram com
que St. John jamais as teria persuadido a dar tal passo. Ele se apressou a
responder:
— Eu sei disso.
Achei-o um professor muito paciente, muito tolerante, mas também muito
exigente; esperava que eu realizasse muito; e quando eu correspondia às suas
expectativas, ele, à sua maneira, demonstrava plenamente sua aprovação. Aos
poucos, foi adquirindo sobre mim uma influência que me tirou a liberdade mental;
seus louvores e atenções eram mais restritivos que sua indiferença. Eu não podia
mais falar ou rir livremente quando ele estava por perto, porque um instinto
irritantemente importuno me lembrava de que a animação (pelo menos em mim)
lhe era desagradável. Eu estava tão consciente de que só as expressões e
ocupações sérias eram aceitáveis, que em sua presença todos os esforços para
apresentar ou exercer outras expressões e ocupações se tornavam vãos; caí sob um
gélido sortilégio. Quando ele dizia "vá", eu ia; "venha", eu vinha; "faça isso", eu
fazia. Mas não amava minha servidão; muitas vezes desejei que tivesse
continuado a ignorar-me.
Certa noite, quando, à hora de deitar, suas irmãs e eu estávamos em torno
dele, dando-lhe boa-noite, ele beijou todas, como era seu costume; e, como era
igualmente seu costume, deu-me a mão. Diana, que por acaso se achava num
estado de espírito brincalhão (não era demasiado controlada pela vontade dele;
pois a dela, em outro sentido, era igualmente forte), exclamou:
— St. John, você costuma chamar Jane de sua terceira irmã, mas não a trata
como tal; devia beijá-la também.
E me empurrou para ele. Achei-a muito provocadora, e me senti
incomodomente confusa; e enquanto pensava e me sentia assim, St. John curvou a
cabeça; com o rosto grego no mesmo nível que o meu, seus olhos me
interrogaram penetrantemente — e ele me beijou. Não existem beijos de mármore
ou de gelo, ou talvez eu deva dizer que a saudação de meu eclesiástico primo não
pertencia a nenhuma dessas categorias; mas pode haver beijos experimentais, e
aquele foi um desses. Depois, ele me olhou para ver o resultado; não foi
impressionante, estou certa de que não corei; talvez tenha ficado um pouco pálida,
pois senti aquele beijo como um selo afixado às minhas cadeias. Ele jamais
omitiu a cerimônia depois disso, e a gravidade e aquiescência com que eu a
recebia pareceu investi-la, para ele, de um certo encanto.
Quanto a mim, cada dia queria agradá-lo mais; mas para fazer isso, sentia
cada vez mais que tinha de negar a minha natureza, sufocar metade de minhas
faculdades, tirar meus gostos de sua tendência original, obrigar-me a adotar
interesses para os quais não tinha nenhuma vocação natural. Ele queria treinar-me
para atingir uma altura que eu jamais poderia alcançar; torturava-me aspirar a toda
hora ao padrão que ele apresentava. Aquilo era tão impossível como modelar
minhas feições irregulares no seu padrão correto e clássico, dar a meus mutáveis
olhos verdes a cor azul-marinho e o brilho solene dos dele.
Não era só sua ascendência, porém, que me escravizava no momento.
Ultimamente, tinha sido fácil para mim parecer triste; um mal corrosivo se
instalara em meu coração e sorvia minha felicidade na fonte — o mal da
apreensão.
Talvez pense que eu esquecera o Sr. Rochester, leitor, entre essas mudanças
de lugar e sorte. Nem por um momento. A idéia dele continuava comigo, porque
não era nenhuma névoa que o sol pudesse dispersar, nem uma efígie traçada na
areia, que as tempestades pudessem varrer; era um nome gravado em lápide,
destinado a durar tanto quanto o mármore em que se inscrevia. O anseio por saber
o que lhe acontecera me acompanhava por toda parte; quando estava em Morton,
voltava à minha cabana toda noite para pensar nisso; e agora, em Moor House, eu
procurava meu quarto toda noite para meditar sobre isso.
No curso de minha necessária correspondência com o Sr. Briggs sobre o
testamento, eu perguntara se ele sabia alguma coisa sobre o atual paradeiro e
estado de saúde do Sr. Rochester; mas, como St. John conjeturara, ele ignorava
tudo sobre o outro. Escrevi então à Sra. Fairfax, solicitando informação a esse
respeito. Calculara, com certeza, que esse passo responderia ao meu anseio;
estava segura de que traria alguma resposta. Fiquei surpresa quando se passou
uma quinzena sem qualquer resposta; mas, quando passaram dois meses, e dia
após dia o correio chegava e não trazia nada para mim, fui presa da mais aguda
ansiedade.
Tornei a escrever; havia uma possibilidade de minha primeira carta ter-se
extraviado. À renovada esperança seguiu-se uma renovada tentativa, que brilhou
como a anterior durante algumas semanas, e depois, como a outra, diminuiu,
tremulou; nem uma linha, nem uma palavra me alcançou. Quando passou metade
de um ano em vã expectativa, minha esperança esmoreceu, e então me senti
realmente triste.
Uma bela primavera resplendia à nossa volta, e eu não podia desfrutá-la. O
verão se aproximava; Diana tentou animar-me; disse que eu parecia doente, e quis
acompanhar-me ao litoral. St. John opôs-se a isso; disse que eu não precisava de
dissipação, precisava de ocupação; minha vida atual era sem objetivo; e suponho
que, para sanar essa deficiência, prolongou ainda mais as lições de hindustânico, e
tornou-se mais insistente ao exigir a sua realização; e eu, como uma tola, jamais
pensei em resistir-lhe — não podia resistir-lhe.
Um dia, cheguei para o estudo num estado mais abatido que o usual; o refluxo
fora causado por uma decepção que eu sentira pungentemente. Hannah me dissera
pela manhã que havia uma carta para mim, e quando desci para pegá-la, quase
certa de que as notícias havia muito esperadas me eram concedidas encontrei
apenas um bilhete sem importância do Sr. Briggs, sobre negócios. A amarga
frustração me arrancara algumas lágrimas; e agora, ali sentada estudando os
emaranhados caracteres e os floreados tropos de um texto indiano, meus olhos se
inundaram de novo.
St. John chamou-me a seu lado, para ler; ao tentar fazê-lo, minha voz
fraquejou; as palavras perderam-se em soluços. Ele e eu éramos os únicos
ocupantes da sala de visitas; Diana praticava sua música na sala de estar, Mary
fazia jardinagem — era um belíssimo dia de maio, claro, ensolarado e fresco. Meu
companheiro não demonstrou surpresa com aquela emoção, nem me perguntou
por sua causa; apenas disse:
— Vamos esperar alguns minutos, Jane, até que você se recomponha. — E
enquanto eu me apressava a superar a crise, ele se sentava calmo e paciente,
curvado sobre sua mesa e parecendo um médico, olhando com o olho da ciência
uma crise esperada e plenamente compreendida na doença de um paciente. Tendo
sufocado meus soluços, enxugado os olhos e murmurado alguma coisa, dizendo
que não me sentia bem naquela manhã, retomei minha tarefa, e consegui concluí-
la. St. John guardou meus livros e os dele, fechou a mesa e disse:
— Agora, Jane, você dará um passeio; e comigo.
— Vou chamar Diana e Mary.
— Não; quero só uma companhia esta manhã, e essa deve ser a sua. Ponha
suas coisas; saia pela porta da cozinha; tome a estrada para o alto de Marsh
Green: eu a alcançarei num momento.
Eu não conheço meios termos; nunca em minha vida conheci quaisquer meios
termos, ao lidar com os caracteres positivos, duros, antagônicos ao meu, entre a
submissão absoluta e a revolta decidida. Sempre observei fielmente um, até o
momento mesmo de explodir, às vezes com vulcânica intensidade, na outra; e
como nem as atuais circunstâncias justificavam, nem meu atual estado de espírito
me inclinavam para o motim, observei uma cuidadosa obediência às instruções de
St. John; e dentro de dez minutos estava percorrendo a agreste trilha do estreito
vale, ao lado dele.
O vento soprava do oeste; vinha por sobre os montes, doce com fragrâncias de
urzes e juncos; o céu era de um azul imaculado; o regato que descia a ravina,
engrossado com as passadas chuvas da primavera, corria ao lado abundante e
límpido, captando reflexos dourados do sol, e tons safira do firma-mento. Quando
avançamos e deixamos a trilha, continuamos andando sobre a relva macia,
delicada como musgo e de um verde esmeralda, minusculamente salpicada por
uma florzinha branca e outra amarela em forma de estrela: os morros, enquanto
isso, nos cercavam de todos os lados; pois o valezinho, em sua extremidade,
entrava no próprio seio deles.
— Vamos descansar aqui — disse St. John, quando chegamos às primeiras
rochas dispersas do batalhão que guardava uma espécie de passo, além do qual o
regato se precipitava numa queda d'água; e onde, um pouco mais adiante ainda, a
montanha não aceitava relva ou flor, mas apenas urzes como vestes e rochedos
como enfeites — onde exagerava o agreste até o selvagem, e trocava o verdor
pela escarpa — onde guardava a obstinada esperança de solidão, e de um último
refúgio para o silêncio.
Sentei-me; St. John ficou de pé a meu lado. Ele olhou o passo e a depressão
abaixo; seu olhar vagueou com o regato, e voltou a varar o céu sem nuvens que
coloria as águas; tirou o chapéu, deixou a brisa assanhar-lhe os cabelos e beijar-
lhe a fronte. Parecia em comunhão com o gênio do lugar.
— E eu verei isso de novo — disse em voz alta — em sonhos, quando dormir
à margem do Ganges; e novamente, numa hora mais remota... quando outro sono
se apoderar de mim, na margem de um rio mais negro!
Estranhas palavras, de um estranho amor! A paixão de um austero patriota
pela sua pátria! Ele se sentou; por meia hora, não falamos; nem ele a mim, nem eu
a ele; após esse intervalo, recomeçou:
— Jane, parto dentro de seis semanas; comprei passagem num navio mercante
das Índias Orientais que zarpa a 20 de junho.
— Deus o protegerá; pois você assumiu a obra d'Ele — respondi.
— Sim — ele disse — nisso está minha glória e alegria. Sou servo de um
Amo infalível. Não estou partindo sob orientação humana, sujeito às leis
defeituosas e ao controle falho dos frágeis vermes meus irmãos; meu rei, meu
legislador, meu capitão é o perfeitíssimo. Parece-me estranho que todos à minha
volta não ardam por alistar-se sob a mesma bandeira... juntar-se na mesma
empresa.
— Nem todos têm os seus poderes; e seria loucura os fracos desejarem
marchar com os fortes.
— Não falo dos fracos, nem penso neles; dirijo-me apenas aos que são dignos
da obra, e têm competência para realizá-la.
— Esses são poucos, e difíceis de descobrir.
— Você diz a verdade; mas, quando os descobrimos, é correto incitá-los...
urgi-los e exortá-los ao esforço... mostrar-lhes os seus dons, e porque lhes foram
dados... transmitir a mensagem dos Céus a seus ouvidos... oferecer-lhes,
diretamente de Deus, um lugar nas fileiras de Seus escolhidos.
— Se eles estiverem realmente qualificados para a tarefa, não serão seus
próprios corações os primeiros a informá-los disso?
Eu me sentia como se um terrível encanto se formasse em torno de mim,
concentrando-se; tremia diante da possibilidade de alguma palavra fatal que
revelasse e fixasse o encanto.
— Que diz o seu coração? — perguntou St. John.
— Meu coração está mudo... meu coração está mudo — respondi, pasmada e
emocionada.
— Então eu devo falar por ele — continuou a voz profunda e implacável. —
Jane, venha comigo para a índia; venha como minha ajudante e companheira de
trabalho.
O vale e o céu giraram à minha volta, os montes cresceram! Era como se eu
tivesse ouvido o chamado do Céu — como se um mensageiro visionário, como
aquele da Macedônia, tivesse dito: "Vem e ajuda-nos!" Mas eu não era nenhum
apóstolo — não podia contemplar o arauto — não podia receber seu chamado.
— Oh, St. John! — exclamei — tenha um pouco de piedade.
Apelava a alguém que, no desempenho do que acreditava ser seu dever, não
conhecia piedade nem remorso. Ele continuou:
— Deus e a natureza a destinaram a ser esposa de um missionário. Não foram
dotes pessoais, mas mentais, os que lhe deram; você foi feita para o trabalho, não
para o amor. E esposa de missionário você deve ser... e será. Será minha;
reclamo-a... não para o meu prazer, mas para o serviço de meu Soberano.
— Não sou capaz disso; não tenho vocação — eu disse. Ele contara com essas
primeiras objeções; não se irritou com elas. Na verdade, ao recostar-se no rochedo
às suas costas, cruzar os braços e fixar a expressão, vi que estava preparado para
uma longa e exaustiva oposição, e reservara uma quantidade de paciência
suficiente para durar até o encerramento da luta — decidido, no entanto, a que
esse encerramento fosse uma vitória para ele.
— A humildade, Jane — disse — é a base das virtudes cristãs: você fala certo,
ao dizer que não está capacitada para o trabalho. Quem está? Ou quem, tendo um
dia sendo chamado, se julgou digno do chamado? Eu, por exemplo, não passo de
pó e cinzas. Como São Paulo, reconheço-me o maior dos pecadores; mas não
deixo que esse senso de vileza pessoal me obceque. Conheço meu Condutor; sei
que Ele é tão justo quanto poderoso; e embora tenha escolhido um frágil
instrumento para realizar uma grande tarefa, Ele provera, das infinitas reservas de
Sua providência, a inadequação dos meios para esse fim. Pense como eu, Jane...
confie como eu. É na Rocha das Eras que lhe peço para se apoiar: não duvide de
que ela suportará o peso de sua fraqueza humana.
— Eu não entendo uma vida de missionário, nunca estudei os trabalhos dos
missionários.
— Nisso eu, humilde como sou, posso dar-lhe a ajuda que você precisa; posso
estabelecer seu trabalho hora por hora; ficar sempre a seu lado; ajudá-la a todo
momento. Isso eu posso fazer no início: em breve (pois conheço seus poderes),
você estará tão forte e capaz quanto eu, e não precisará de minha ajuda.
— Mas meus poderes... onde estão eles para essa empresa? Não os sinto.
Nada me fala ou incita enquanto você fala. Não sinto nenhuma luz se acendendo...
nenhuma vida despertando... nenhuma voz aconselhando ou animando. Oh, eu
desejaria poder fazê-lo ver como minha mente neste instante é como uma
masmorra sem luz, com um único temor encolhido e acorrentado em suas
profundezas... o temor de ser convencida por você a tentar o que não posso
realizar!
— Tenho uma resposta para você... ouça-a. Tenho-a observado desde que nos
encontramos pela primeira vez, tenho-a feito objeto de estudo há dez meses.
Testei-a nesse período com variadas provas, e que vi e provoquei? Descobri que
você podia se desincumbir bem na escola da aldeia, pontualmente, honradamente,
de um trabalho contrário a seus hábitos e inclinações; vi que podia realizá-lo com
capacidade e tato, podia conquistar, controlando ao mesmo tempo. Na calma com
que soube que se tinha tornado de repente rica, vi uma mente livre do vício de
Demas... o lucro não exercia um poder indevido sobre você. Na decidida
prontidão com que dividiu sua riqueza em quatro partes, guardando apenas uma
para si, e abrindo mão das três outras ao reclame da justiça abstrata, reconheci
uma alma que se deliciava na chama e excitação do sacrifício. Na docilidade com
que, a meu pedido, abandonou um estudo no qual estava interessada, e adotou
outro porque isso me interessava; na incansável constância com que desde então
perseverou nele... na energia inabalável e no gênio firme com que enfrentou as
dificuldades desse estudo... reconheço o complemento das qualidades que busco.
Jane, você é dócil, diligente, desinteressada, fiel, constante e corajosa; muito
delicada, muito heróica: deixe de desconfiar de si mesma... eu confio em você
sem reservas. Como condutora de escolas indianas, e auxiliar entre as indianas,
sua assistência me será inestimável.
O sudário de ferro contraía-se em torno de mim; a persuasão avançava com
passos lentos, seguros. Por mais que eu fechasse os olhos, essas últimas palavras
dele conseguiram deixar o caminho, que parecia bloqueado, relativamente aberto.
Minha obra, que parecia tão vaga, tão desesperançadamente difusa, condensava-se
à medida que ele prosseguia, e assumia uma forma definida sob sua mão
modeladora. Ele esperava uma resposta. Pedi um quarto de hora para pensar,
antes de voltar a arriscar-me a dá-la.
— Com todo gosto — ele respondeu; e, levantando-se, caminhou até uma
curta distância: no passo, jogou-se numa touceira de urzes e ali quedou-se quieto.
"Eu posso fazer o que ele quer que eu faça, sou forçada a ver e a reconhecer
isso", eu meditava, "quer dizer, se a vida me for poupada. Mas sinto que minha
existência não será longa sob o sol indiano. E então? Ele não liga para isso:
quando chegar a hora de eu morrer, renunciará a mim, com toda serenidade e
santidade, para o Deus que me deu. O caso é muito claro para mim. Deixando a
Inglaterra, eu deixaria uma terra amada mas vazia... o Sr. Rochester não está aqui;
e se estivesse, que é isso, que poderia isso ser algum dia para mim? O que me
resta é viver sem ele agora, e nada é tão absurdo, tão fraco, como arrastar-me de
um dia para outro, como se estivesse à espera de alguma impossível mudança nas
circunstâncias, que pudesse reunir-me a ele. É claro que (como disse St. John)
preciso procurar outro interesse na vida para substituir aquele que perdi: não será
a ocupação que ele agora me oferece realmente a mais gloriosa que o homem
pode adotar ou Deus destinar? Não será, por seus nobres interesses e seus
sublimes resultados, a mais adequada para preencher o vazio deixado por afetos
despedaçados e esperanças destruídas? Acredito que devo dizer sim — mas
tremo. Ai! Se me junto a St. John, abandono metade de mim mesma; se vou para
a índia, vou para a morte prematura. E como se preencherão os intervalos entre
deixar a Inglaterra pela índia, e a índia pela sepultura? Oh, eu sei bem! Também
isso é muito claro à minha visão. Esforçando-me para satisfazer St. John até a
exaustão, eu o satisfarei — até o ponto mais central e o mais amplo círculo de
suas expectativas. Se eu for com ele — se fizer o sacrifício que me pede, o farei
absolutamente, jogarei tudo no altar — coração, entranhas, a vítima toda. Ele
nunca me amará; mas me aprovará; mostrarei a ele energias que ainda não viu,
recursos de que jamais suspeitou. Sim, posso trabalhar tão duro quanto ele, e com
tão pouca reclamação".
"Assim, é possível aceder ao pedido dele; a não ser por um ponto — um ponto
terrível. E este é — que me peça para ser sua esposa, sem me querer mais, como
esposo, do que aquela rocha gigante e carrancuda sob a qual o regato espuma na
garganta além. Ele me dá o valor que um soldado dá a uma boa arma, só isso. Não
sendo casada com ele, isso jamais me magoaria; mas posso eu deixá-lo completar
seus cálculos — pôr friamente era prática seus planos — passar pela cerimônia do
casamento? Posso eu receber dele a aliança, suportar todas as formas de amor
(que não duvido de que cumpriria escrupulosamente) e saber que o espírito está
inteiramente ausente? Poderei suportar a consciência de que todo carinho que me
fizer será um sacrifício feito por princípio? Não; um tal martírio seria monstruoso.
Nunca me submeterei a isso. Como sua irmã, poderei acompanhá-lo — não como
sua esposa; e é o que lhe direi."
Olhei em direção ao outeiro; lá estava ele deitado, imóvel como uma coluna
prostrada; voltou o rosto para mim, os olhos faiscando, vigilantes e penetrantes.
Pôs-se de pé e aproximou-se.
— Estou disposta a ir para a índia, se puder ir livre.
— Sua resposta exige uma explicação — ele disse. — Não é clara.
— Você tem sido até agora meu irmão adotivo... e eu, sua irmã adotiva;
continuemos assim; é melhor você e eu não nos casarmos.
Ele balançou a cabeça.
— A irmandade adotada não servirá neste caso. Se você fosse realmente
minha irmã, seria diferente; eu a levaria, e não buscaria esposa. Mas do jeito que
é, ou nossa união deve ser consagrada e selada pelo casamento, ou não pode
existir; obstáculos práticos opõem-se a qualquer outro plano. Não está vendo,
Jane? Pense um momento... seu forte senso a orientará.
Eu pensei; e mesmo assim meu senso só me orientava para o fato de que nós
não nos amávamos como devem se amar marido e mulher; e assim, deduzia que
não nos devíamos casar. Foi o que eu disse.
— St. John — disse — eu o encaro como um irmão... e você me encara como
uma irmã; continuemos assim.
— Não podemos... não podemos — ele respondeu, com curta e aguda
determinação. — Não daria certo. Você disse que irá comigo para a índia; lembre-
se... disse isso.
— Com uma condição.
— Bem... bem. Vamos ao ponto principal... à partida comigo da Inglaterra, à
cooperação comigo em futuros trabalhos ... você não se opõe. Praticamente já pôs
a mão no arado, e é demasiado coerente para retirá-la. Tem apenas uma meta a
observar... como melhor realizar a tarefa que empreendeu. Simplifique seus
complicados interesses, sentimentos, desejos, objetivos; funda todas as
considerações num só propósito; o de cumprir efetivamente... com poder... a
missão de seu grande Senhor. Para fazer isso, precisa de um coadjutor, não um
irmão... isso é um laço frouxo... mas um marido. Eu, também, não quero uma
irmã: uma irmã poderia um dia ser-me retirada. Quero uma esposa, a única
auxiliar que poderei influenciar eficientemente na vida, e reter absolutamente até
a morte.
Eu tremia enquanto ele falava; sentia sua influência em minha medula — seu
domínio em meus membros.
— Busque outra, St. John, busque uma que lhe sirva.
— Uma que sirva ao meu fim, você quer dizer... que sirva à minha vocação.
Torno a dizer-lhe que não é o insignificante indivíduo privado... o mero homem,
com os sentidos egoístas do homem... que quero casar; é o missionário.
— E eu darei ao missionário minhas energias... é só o que ele quer... mas não
a mim mesma; isso seria apenas juntar a casca à polpa. Ele não precisa dela; eu a
retenho.
— Você não pode... não deve. Acha que Deus se satisfará com uma doação
pela metade? Que Ele aceitará um sacrifício mutilado? Ê a causa de Deus que eu
defendo; é sob o estandarte d'Ele que a alisto. Não posso aceitar em nome d'Ele
uma aliança dividida; tem de ser inteira.
— Oh, eu darei meu coração a Deus — eu disse. — Você não precisa dele.
Não vou jurar, leitor, que não houvesse algo de reprimido sarcasmo no tom
em que eu disse essa sentença, e na sensação que a acompanhou. Eu tinha temido
silenciosamente St. John até então, porque não o havia compreendido. Ele me
mantinha apavorada, porque me mantinha na dúvida. Quanto dele era santo,
quanto mortal, eu não poderia até hoje dizer: mas faziam-se revelações naquela
conferência, a análise de sua natureza se processava diante de meus olhos. Eu via
suas fraquezas; compreendia-as. Entendia que, sentada ali onde me sentei, na
touceira de urzes, e com aquele homem bonito à minha frente, sentava-me aos pés
de um homem, falível como eu. Caiu o véu que ocultava a dureza e o despotismo
dele. Tendo sentido nele a presença desses defeitos, senti sua imperfeição, e
ganhei coragem. Eu estava com um igual — alguém com quem podia discutir —
alguém a quem, se me aprouvesse, eu poderia resistir. Ele ficou calado depois de
eu dizer a última frase, e acabei arriscando um olhar ao seu rosto. Seus olhos,
voltados para mim, manifestavam ao mesmo tempo severa surpresa e aguda
interrogação. "Estará ela sendo sarcástica, e sarcástica comigo!", pareciam dizer.
"Que significa isso?"
— Não nos esqueçamos de que este é um assunto solene — ele disse em
breve — um assunto sobre o qual não podemos pensar nem falar levianamente
sem cair em pecado. Espero, Jane, que você fale sério quando diz que dará seu
coração a Deus; é só o que Ele quer. Uma vez arrancado seu coração do homem, e
tendo-o fixado em seu Criador, o avanço do reino espiritual desse Criador na terra
será seu principal prazer e esforço; você estará disposta a fazer sem demora o que
quer que favoreça essa meta. Verá que impulso será dado aos seus esforços e aos
meus com sua união física e mental no casamento... a única união que dá um
caráter de permanente conformidade aos destinos e desígnios dos seres humanos...
e, passando por cima de todos os caprichos mesquinhos... todas as dificuldades e
delicadezas triviais dos sentimentos, todos os escrúpulos sobre o grau, o tipo, a
força ou ternura da simples inclinação pessoal... você correrá a lançar-se de vez
nessa união.
— Correrei? — eu disse simplesmente; e olhei as feições dele, belas em sua
harmonia, mas estranhamente formidável em sua imóvel severidade; a testa,
imperiosa, mas não aberta; os olhos, brilhantes, profundos e penetrantes, mas
nunca suaves; a alta e imponente figura; e imaginei-me na idéia de sua esposa.
Oh, jamais ia dar certo! Como sua coadjutora, sua camarada, tudo estaria certo; eu
cruzaria os oceanos com ele nessa condição; mourejaria sob o sol oriental, em
desertos asiáticos com ele, nesse ofício; admiraria e emularia sua coragem,
dedicação e vigor; me acomodaria calmamente ao seu domínio; sorriria
imperturbável à sua inerradicável ambição; distinguiria o cristão do homem;
estimaria profundamente um e perdoaria de boa vontade o outro. Sofreria
freqüentemente, sem dúvida, ligada a ele apenas nessa condição; teria o corpo sob
uma canga um tanto severa, mas o coração e a mente estariam livres. Ainda teria
meu eu intato a que recorrer; e meus sentimentos naturais não escravizados com
que me comunicar em momentos de solidão. Haveria recessos de minha mente
que seriam só meus, e aos quais ele jamais chegaria; e os sentimentos que ali
nascessem, novos e protegidos, que a austeridade dele nunca poderia ferir, nem
sua compassada marcha de guerreiro pisotear. Mas como sua esposa — sempre a
seu lado, e sempre reprimida, sempre contida — obrigada a manter a chama de
minha natureza continuamente baixa, forçá-la a arder intimamente, e nunca
externar um grito, mesmo que a chama aprisionada consumisse uma entranha
após outra — isso seria insuportável.
— St. John! — exclamei, ao chegar a esse ponto em minha meditação.
— Bem? — ele respondeu.
— Repito que consinto livremente em ir com você como companheira
missionária, mas não em ser sua esposa; não posso casar-me com você, e tornar-
me parte de você.
— Tem de se tornar parte de mim — ele respondeu com firmeza. — De outro
modo, toda a transação é vazia. Como posso eu, um homem que não fez ainda
trinta anos, levar comigo para a índia uma moça de dezenove, a menos que esteja
casada comigo? Como poderemos estar para sempre juntos... às vezes em solidão,
outras entre tribos selvagens... não sendo casados?
— Muito bem — eu disse curtamente — nestas circunstâncias, tão bem
quanto se fosse realmente sua irmã, ou homem e clérigo como você.
— Sabe-se que você não é minha irmã; não posso apresentá-la como tal:
tentar isso seria lançar ofensivas suspeitas sobre nós dois. E quanto ao resto,
embora você tenha um vigoroso cérebro de homem, tem um coração de mulher
e... e não daria certo.
— Daria — afirmei com algum desdém — perfeitamente bem. Eu tenho um
coração de mulher, mas não no que se refere a você; por você, sinto apenas uma
constância de camarada: uma franqueza, uma fidelidade, uma fraternidade de
companheiro de armas, se quiser; o respeito e a submissão do neófito para com
seu hierofanta; nada mais... não receie.
— É o que eu preciso — ele disse, falando consigo mesmo. — É exatamente
o que eu preciso. E há obstáculos no caminho; eles devem ser demolidos. Jane,
você não se arrependeria casando-se comigo; esteja certa disso. Nós temos de nos
casar... repito-o: não há outro meio; e sem dúvida surgiria bastante amor, após o
casamento, para tornar a união correta mesmo a seus olhos.
— Eu desprezo sua idéia de amor — não pude deixar de dizer, levantando-me
e postando-me à sua frente, e apoiando as costas na rocha. — Desprezo o
sentimento falsificado que você oferece, sim, St. John, e o desprezo quando o
oferece.
Ele me olhou fixamente, comprimindo os lábios bem desenhados ao fazê-lo.
Se estava ofendido ou surpreso, não era fácil de dizer: tinha absoluto controle de
seu rosto.
— Eu dificilmente esperaria ouvir essa expressão de você — ele disse. —
Creio que não fiz nem disse nada para merecer desprezo.
Fiquei comovida com o seu tom delicado, e amedrontada pela sua expressão
elevada, calma.
— Perdoe minhas palavras, St. John; mas é sua própria culpa que eu tenha
sido levada a falar tão sem reservas. Você abordou um tema em que nossas
naturezas discordam... um assunto que nunca deveríamos discutir: até o nome do
amor é um pomo de discórdia entre nós. Se a realidade tivesse exigido, que
faríamos? Como nos sentiríamos? Meu caro primo, abandone seu plano de
casamento... esqueça-o.
— Não — ele disse — é um plano há muito alimentado, e o único que pode
assegurar minha grande meta; mas não insistirei mais por enquanto. Amanhã,
parto para Cambridge: tenho muitos amigos lá a quem gostaria de dizer adeus.
Ficarei fora uma quinzena... use esse tempo para pensar em minha oferta; e não se
esqueça de que, se rejeitá-la, não será a mim que negará, mas a Deus. Através de
mim, Ele lhe abre uma nobre carreira; só como minha esposa você pode entrar
nela. Recuse-se a ser minha esposa, e se limitará para sempre a uma trilha de
conforto egoísta e estéril obscuridade. Trema para que, neste caso, não seja
incluída entre aqueles que negaram a fé, e são piores que os infiéis!
Tinha acabado. Dando-me as costas, ele mais uma vez
"Olhou o rio, olhou a montanha."
Mas desta vez tinha todos os sentimentos represados no coração; eu não era
digna de ouvi-los expressos. Enquanto caminhava a seu lado de volta à casa, eu
lia bem em seu silêncio de ferro tudo que sentia em relação a mim: a decepção de
uma natureza austera e despótica, que encontrara resistência quando esperava
submissão — a desaprovação de um frio e inflexível julgamento, que detectara
em outrem sentimentos e opiniões com as quais não podia simpatizar: em suma,
como homem, ele teria gostado de coagir-me à obediência, e apenas como um
sincero cristão era que suportava tão pacientemente minha perversidade, e dava
um espaço tão longo para a reflexão e o arrependimento.
Naquela noite, após ter beijado suas irmãs, ele julgou conveniente esquecer-se
até de apertar-me a mão, e deixou a sala em silêncio. Eu — que, embora não
sentisse amor, tinha muita amizade para com ele — fiquei magoada com essa
ostensiva omissão; tão magoada, que as lágrimas me brotaram dos olhos.
— Vejo que você e St. John estiveram brigando, Jane — disse Diana —
durante seu passeio pela charneca. Mas vá atrás dele; ele está agora retardando-se
no corredor, à sua espera... fará as pazes.
Não tenho muito orgulho nesses casos; sempre preferiria ser feliz a ser digna;
e corri atrás dele, que estava ao pé da escada.
— Boa-noite, St. John — eu disse.
— Boa-noite, Jane — ele respondeu calmamente.
— Então apertemo-nos as mãos — acrescentei.
Que toque frio, frouxo, ele deixou em meus dedos! Estava profundamente
contrariado com o que ocorrera naquele dia; a cordialidade não o degelaria, nem
as lágrimas o comoveriam. Não haveria feliz reconciliação com ele — não
haveria sorrisos animados ou palavras generosas; mas mesmo assim o cristão era
paciente e plácido; e quando lhe perguntei se me perdoava, respondeu que não
tinha o hábito de alimentar a lembrança de contrariedades; que nada tinha a
perdoar, pois não fora ofendido.
E com essa resposta me deixou. Eu teria preferido muito mais que me
houvesse derrubado.
CAPÍTULO 35
ELE NÃO partiu para Cambridge no dia seguinte, como disse que faria.
Adiou sua partida por toda uma semana, e durante esse tempo me fez sentir que
severo castigo um homem bom, mas duro, consciente, mas implacável, podia
infligir a alguém que o tivesse ofendido. Sem um ato de aberta hostilidade, sem
uma palavra de censura, conseguia num instante convencer-me de que eu fora
privada de seu favor.
Não que abrigasse um espírito de vingança não cristã — não que houvesse
maltratado um só fio de minha cabeça, mesmo que estivesse inteiramente em seu
poder fazê-lo. Por natureza e por princípio, estava acima da mesquinha satisfação
da vingança; perdoara-me por dizer que o desprezava a ele e ao seu amor, mas
não esquecera as palavras; e, enquanto vivesse, não as esqueceria. Eu via por sua
aparência, quando se voltava para mim, que elas estavam sempre escritas no ar
entre mim e ele; sempre que eu falava, elas soavam em minha voz aos seus
ouvidos, e o seu eco dava o tom de todas as respostas dele.
Ele não evitava conversar comigo; até me chamava como sempre toda manhã
para sentar-me consigo à sua mesa; e receio que o homem corrupto dentro dele
sentia um prazer não comunicado e não partilhado com o puro cristão, ao
demonstrar com que habilidade ele podia, agindo e falando aparentemente como
sempre, extrair de cada ato e cada frase o espírito de interesse e aprovação que
antes comunicava um certo encanto austero à sua linguagem e maneiras. Para
mim, ele na verdade se tornara não mais carne, mas mármore; os olhos eram
gemas frias, brilhantes, azuis; a língua um instrumento para falar — nada mais.
Tudo isso era uma tortura para mim — uma tortura refinada, prolongada.
Mantinha aceso um lento fogo de indignação e um trêmulo sofrimento que me
incomodavam e esmagavam completamente. Eu sentia como, se fosse sua esposa,
aquele homem bom, puro como a profunda fonte sem sol, poderia logo me matar,
sem tirar de minhas veias uma só gota de sangue, ou receber em sua consciência
cristalinamente clara a menor nódoa de crime. Sentia especialmente isso quando
fazia alguma tentativa para agradá-lo. Nenhuma simpatia correspondia à minha.
Ele não sentia nenhum sofrimento com o afastamento — nenhum anseio de
reconciliação; e embora mais de uma vez minhas lágrimas manchassem a página
sobre a qual nos curvávamos, não produziam mais efeito nele do que se seu
coração fosse na verdade feito de pedra ou metal. Para as irmãs, enquanto isso, ele
era de algum modo mais bondoso que de hábito; como se temesse que a simples
frieza não me convencesse o bastante de como estava completamente banida e
interditada, acrescentava a força do contraste; e tenho certeza de que não fazia
isso por malícia, mas por princípio.
Na noite anterior à sua partida, vendo-o por acaso a passear pelo jardim ao
crepúsculo, e lembrando-me, enquanto o olhava, de que aquele homem, distante
como agora estava, me havia salvo a vida, e de que éramos parentes próximos, fui
levada a fazer uma última tentativa de reconquistar sua amizade. Saí e aproximei-
me dele, que estava parado, apoiado no portãozinho; fui direto à questão.
— St. John, estou triste porque você ainda está zangado comigo. Sejamos
amigos.
— Espero que já sejamos amigos — foi a indiferente resposta, e ele continuou
olhando o nascer da lua. que estivera contemplando quando eu me aproximara.
— Não, St. John, não somos amigos como éramos. Você sabe disso.
— Não somos? Isso é um engano. De minha parte, não lhe desejo mal algum,
mas todo o bem.
— Acredito em você, St. John; pois estou certa de que é incapaz de desejar
mal a alguém; mas, como sou sua parenta, desejaria um pouco mais de afeto do
que essa espécie de filantropia geral que você concede aos simples estranhos.
— Claro — ele disse. — Seu desejo é razoável, e estou longe de encará-la
como uma estranha.
Isso, dito num tom frio, tranqüilo, era mortificante, e muito frustrante. Se eu
fosse atender às sugestões de orgulho e ira, tê-lo-ia deixado imediatamente; mas
dentro de mim agia alguma coisa mais forte do que esses sentimentos. Eu
venerava profundamente o talento e os princípios de meu primo. Sua amizade era
valiosa para mim; perdê-la era algo que me desgastava severamente. Eu não
abriria mão tão cedo da tentativa de reconquistá-la.
— Devemos nos separar desta forma, St. John? E quando for para a índia, vai
me deixar assim, sem uma palavra mais bondosa que as que já falou?
Ele deu as costas à lua e me encarou.
— Quando eu for para a Índia, Jane, a deixarei! Quê! Você não vai para a
índia?
— Você disse que eu não podia ir, a não ser que me casasse com você.
— E você não se casará comigo! Mantém essa decisão? Leitor, você sabe,
como eu, o terror que essas pessoas frias podem pôr no gelo de suas perguntas?
Quanto existe da queda da avalanche na raiva delas? Do quebrar do mar gelado
em seu desagrado?
— Não, St. John, não me casarei com você. Mantenho minha decisão.
A avalanche estremecera e deslizara um pouco para a frente, mas não
despencou ainda desta vez.
— Mais uma vez, por que esta recusa? — ele perguntou.
— Antes — eu respondi — era porque você não me amava; agora, respondo
que é porque você quase me odeia. Se me casasse com você, você me mataria.
Está me matando agora.
Seus lábios e faces ficaram brancos — bastante brancos.
— Eu a mataria... eu a estou matando? Suas palavras são daquelas que não se
deve empregar; violentas, não femininas e não verdadeiras. Revelam um infeliz
estado de espírito; merecem severa reprovação; pareceriam indesculpáveis, não
fosse pelo fato de que é dever do homem perdoar o seu próximo até setenta e sete
vezes.
Eu concluíra o assunto agora. Desejando apagar de sua mente os vestígios de
minha ofensa anterior, gravara naquela tenaz superfície outra impressão, muito
mais profunda; gravara-a a fogo.
— Agora você realmente me odiará — eu disse. — É inútil tentar reconciliá-
lo; vejo que fiz de você um eterno inimigo.
Essas palavras infligiram uma nova ofensa: e pior, porque tocavam a verdade.
Seus lábios exangues tremeram com um espasmo temporário. Eu sabia da ira de
aço que afiara. Tinha o coração dorido.
— Você interpreta extremamente mal minhas palavras — eu disse, pegando
de repente a sua mão. — Não tenho nenhuma intenção de magoá-lo ou feri-lo...
não tenho mesmo.
Ele sorriu da maneira mais amarga — e com a máxima decisão recolheu a
mão da minha.
— E agora retira sua promessa, e não irá de modo algum para a fndia,
presumo? — disse, após uma considerável pausa.
— Sim, irei, como sua auxiliar — respondi.
Seguiu-se um silêncio muito longo. Que luta se travava dentro dele, entre a
Natureza e a Graça, nesse intervalo, não sei dizer; apenas brilhos singulares
cintilavam em seus olhos, e estranhas sombras lhe passavam pelo rosto.
Finalmente, ele falou.
— Já lhe provei antes o absurdo de uma mulher solteira de sua idade propor-
se a acompanhar um homem solteiro da minha. Provei-o a você em termos tais
que, pensaria, a teriam impedido de algum dia voltar a se referir a esse plano. Que
o tenha feito, eu lamento... por você.
Interrompi-o. Algo como uma censura tangível me deu coragem na hora.
— Mantenha seu bom senso, St. John; está beirando a insensatez. Pretende
estar chocado com o que eu disse. Não está realmente chocado; pois, com sua
mente superior, não pode ser tão obtuso ou presunçoso a ponto de não entender o
que quero dizer. Digo de novo; serei sua coadjutora, se quiser, mas nunca sua
esposa.
Ele voltou a ficar lividamente pálido; mas, como antes, controlou de maneira
perfeita sua fúria. Respondeu enfática mas calmamente:
— Uma coadjutora, que não seja minha esposa, jamais me serviria. Assim,
comigo você não pode ir; mas se é sincera em sua oferta, falarei, quando estiver
na cidade, com um missionário casado, cuja esposa precise de uma coadjutora.
Sua fortuna a fará independente da ajuda da Sociedade; e assim você ainda pode
ser poupada da desonra de quebrar sua promessa e desertar do grupo que se
comprometeu a integrar.
Ora, eu em momento algum, como sabe o leitor, fizera qualquer promessa
formal nem assumira qualquer compromisso; e aquela linguagem era demasiado
dura e demasiado despótica para a ocasião. Respondi:
— Não há desonra, quebra de promessa ou deserção, no caso. Não tenho a
menor obrigação de ir para a índia, especialmente com estranhos. Com você eu
me teria aventurado, porque admiro, confio, e, como uma irmã, amo você; mas
estou convencida de que, indo quando e com quem fosse, não viveria muito
naquele clima.
— Ah! Teme por si mesma! — ele disse, torcendo os lábios.
— Temo. Deus não me deu minha vida para que eu a jogue fora; e fazer como
você deseja seria, começo a pensar, quase como se cometesse suicídio. Além
disso, antes de eu decidir definitivamente deixar a Inglaterra, vou me certificar
com certeza de que não posso ser de maior utilidade ficando aqui do que partindo.
— Que quer dizer?
— Seria inútil tentar explicar; mas há um ponto sobre o qual há muito venho
padecendo uma dolorosa dúvida, e não posso ir a parte alguma enquanto não
afastar por algum meio essa dúvida.
— Eu sei para onde seu coração se volta e a que se apega. O interesse que
você alimenta é ilegal e profano. Há muito devia tê-lo esmagado; agora, devia
corar ao se referir a ele. Você pensa no Sr. Rochester?
Era verdade. Confessei-o com o silêncio.
— Vai procurar o Sr. Rochester?
— Tenho de descobrir o que foi feito dele.
— Resta-me então — ele disse — lembrá-la em minhas preces, e pedir a Deus
por você, com todo empenho, para que não se torne na verdade uma réproba. Eu
pensava ter reconhecido em você um dos escolhidos. Mas Deus não vê como o
homem; será feita a Sua vontade.
Abriu o portão, passou por ele, e desceu pelo vale abaixo. Logo desaparecia.
Ao voltar à sala de visita, encontrei Diana parada diante da janela, parecendo
muito pensativa. Ela era bem mais alta que eu; pôs a mão em meu ombro, e,
curvando-se, examinou meu rosto.
— Jane — disse — você anda sempre agitada e pálida atualmente. Estou certa
de que há algum problema. Diga-me com que assunto St. John e você estão às
voltas. Eu os observei durante essa meia hora, da janela; deve perdoar-me por ser
tão espiã, mas há muito tempo tenho imaginado nem sei o quê. St. John é um ser
estranho...
Fez uma pausa — eu não falei: em breve, ela recomeçou.
— Esse meu irmão alimenta algum tipo de opinião peculiar a seu respeito,
estou certa: há muito ele a distingue com uma atenção e um interesse que nunca
demonstrou para com ninguém mais... por quê? Eu desejava que ele a amasse...
ama, Jane?
Pus a fria mão dela em minha testa.
— Não, Di, nem um pouco.
— Então por que a segue assim com os olhos, e fica tão freqüentemente a sós
com você, e a mantém continuamente a seu lado? Mary e eu concluímos que ele
desejava que você se casasse com ele.
— Deseja... pediu-me que fosse sua esposa. Diana bateu palmas.
— Isso é exatamente o que esperávamos e pensávamos! E você se casará com
ele, Jane, não é? E aí ele ficará na Inglaterra.
— Longe disso, Diana; a única idéia dele, ao me propor casamento, é arranjar
uma companheira de trabalho adequada para seus esforços na índia.
— Quê? Ele quer que você vá para a índia?
— Sim.
— Loucura! — ela exclamou. — Você não viveria três meses lá, tenho
certeza. Você nunca irá; não consentiu em ir, consentiu, Jane?
— Recusei-me a casar com ele...
— E com isso o aborreceu? — ela sugeriu.
— Profundamente; ele jamais me perdoará, receio; e no entanto, ofereci-me
para acompanhá-lo como irmã.
— Foi rematada loucura fazer isso, Jane. Pense na tarefa que assumiu... uma
tarefa de incessante fadiga, num lugar onde a fadiga mata até os fortes, e você é
fraca. St. John... você o conhece... a estimularia a fazer coisas impossíveis; com
ele, não haveria folga para repousar nas horas mais quentes; e infelizmente, já
observei, o que quer que ele exija, você se obriga a fazer. Estou espantada por
você ter recusado a mão dele. Não o ama então, Jane?
— Não como marido.
— Mas ele é um homem bonito.
— E eu sou tão sem atrativos, você vê, Diana. Jamais combinaríamos.
— Sem atrativos, você? De modo nenhum. Você é bonita demais, além de boa
demais, para ser torrada viva em Calcutá. — E outra vez me exortou a desistir de
qualquer idéia de partir com seu irmão.
— Na verdade, devo desistir — eu disse — pois quando, ainda há pouco,
repeti a oferta de servi-lo como diácona, ele se mostrou chocado com minha falta
de decência. Parecia pensar que eu tinha cometido uma impropriedade ao propor
acompanhá-lo solteira, como se eu não tivesse desde o princípio esperado
encontrar nele um irmão, encarando-o sempre como tal.
— Que a faz dizer que ele não a ama, Jane?
— Você devia ouvi-lo falar no assunto. Já explicou repetidas vezes que não é
a si mesmo, mas ao seu ofício, que deseja casar. Disse-me que fui feita para o
trabalho... não para o amor; o que é verdade, sem dúvida. Mas, em minha opinião,
se não fui feita para o amor, segue-se que não fui feita para o casamento. Não
seria estranho, Di, ficar amarrada a vida toda a um homem que me encara apenas
como um instrumento útil?
— Insuportável... antinatural... fora de questão — disse Diana.
— E depois — continuei — embora eu sinta apenas um afeto fraternal por ele
agora, se obrigada a tornar-me sua esposa, imagino a possibilidade de conceber
uma espécie de amor inevitável, estranho, torturante, por ele, porque é tão
talentoso, e há freqüentemente uma certa grandeza heróica em sua aparência, suas
maneiras, sua conversa. Neste caso, minha sorte se tornaria indizivelmente
desgraçada. Ele não quereria que eu o amasse; e se eu demonstrasse esse
sentimento, me faria sentir que isso era uma coisa supérflua, que não pedia, e que
não me ficava bem. Sei que faria isso.
— E no entanto St. John é um homem bom — disse Diana.
— Ele é um bom e um grande homem; mas esquece cruelmente os
sentimentos e necessidades das pessoas menores, ao perseguir suas grandes metas.
É melhor assim: que os insignificantes sigam seu próprio caminho, para que ele
não os atropele em seu avanço. Aí vem ele! Vou deixá-la, Diana. — E corri para
cima ao vê-lo entrar no jardim.
Mas fui obrigada a encontrá-lo de novo na ceia. Durante essa refeição, ele
pareceu tão calmo como sempre. Eu pensava que mal falaria comigo, e estava
certa de que abandonara seus planos de casamento: o desenrolar dos fatos mostrou
que estava enganada em ambos os pontos. Ele falou comigo exatamente em sua
maneira habitual, ou no que se tornara ultimamente sua maneira habitual —
escrupulosamente polida. Sem dúvida invocara o auxílio do Espírito Santo para
abafar a ira que eu lhe causara, e agora acreditava que me perdoara mais uma vez.
Para a leitura noturna, antes das preces, escolheu o capítulo vinte e cinco das
Revelações. Era sempre agradável ouvir as palavras da Bíblia brotarem de seus
lábios; como nunca sua bela voz pareceu ao mesmo tempo tão doce e cheia —
nunca seus modos se tornavam tão impressionantes em simplicidade, como
quando ele lia os oráculos de Deus; e naquela noite sua voz assumiu um tom mais
solene — as maneiras um significado mais emocionante — ali sentado em meio
ao seu círculo familiar (a lua de maio entrando pela janela sem cortina, e tornando
quase desnecessária a luz da vela na mesa); sentado ali, curvado sobre a grande e
velha Bíblia, descrevendo a partir da página a visão do novo céu e da nova terra
— dizendo como Deus viria habitar entre os homens, como enxugaria todas as
lágrimas dos olhos deles, e prometendo que não mais haveria a morte, nem a dor,
nem o choro, não haveria mais sofrimento, porque as coisas passadas teriam
passado.
As palavras seguintes emocionaram-me de um modo estranho, quando ele as
pronunciou; especialmente porque senti, pela leve e indescritível alteração no
som, que ao dizê-las seus olhos se voltavam para mim.
— "Aquele que vencer herdará todas as coisas; e Eu serei seu Deus, e ele será
Meu filho. Mas" — leu lenta e distintamente — "os que temem, os que não
crêem, terão sua parte no lago que arde com fogo e enxofre, que é a segunda
morte".
Daí em diante, eu soube a sorte que St. John temia para mim.
Um triunfo tranqüilo, misturado com uma ansiosa seriedade, marcava sua
enunciação dos últimos e gloriosos versículos desse capítulo. O leitor acreditava
que seu nome já estava escrito no Livro da Vida do Cordeiro, e ansiava pela hora
que o admitiria na cidade à qual os reis da terra levam sua glória e honra; que não
tem necessidade de sol ou lua, porque a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a
sua luz.
Na prece que se seguiu ao capítulo, concentrou-se toda a sua energia —
despertou todo o seu severo zelo; estava profundamente sério, lutando com Deus
e decidido a vencer. Suplicava força para os fracos de coração; orientação para os
errantes que se haviam extraviado do rebanho; a volta, mesmo na undécima hora,
para aqueles a quem as tentações do mundo e da carne atraíam para fora do
sendeiro estreito. Pedia, exortava, exigia a dádiva de um tição arrancado do fogo.
A ansiedade é sempre profundamente solene; primeiro, ouvindo a prece, admirei-
a; depois, quando continuou e se elevou, fiquei comovida por ela, e por fim
amedrontada. Ele sentia a grandeza e bondade de sua meta tão sinceramente; os
outros, que o ouviam pedir por ela, não podiam deixar de senti-la também.
Finda a prece, despedimo-nos dele; ia partir bem cedo pela manhã. Diana e
Mary, tendo-o beijado, deixaram a sala — obedecendo, penso, a uma sussurrada
sugestão dele; estendi a mão e desejei-lhe uma viagem agradável.
— Obrigado, Jane. Como eu disse, voltarei de Cambridge dentro de uma
quinzena; ainda lhe resta, portanto, esse tempo para a reflexão. Se eu desse
ouvidos ao orgulho humano, não deveria dizer mais nada a você sobre o
casamento comigo; mas ouço o meu dever, e mantenho firmemente em vista meu
primeiro objetivo... fazer tudo para a glória de Deus. Meu Senhor foi resignado; e
assim serei eu. Não posso entregá-la à perdição como um vaso de ira; arrependa-
se... decida-se, enquanto ainda é tempo. Lembre-se, temos de trabalhar enquanto
ainda é dia... avisados de que "virá a noite em que homem nenhum trabalhará".
Lembre-se do destino de Dives, que teve suas boas coisas nesta vida. Deus lhe dá
forças para escolher aquela melhor parte, que não lhe será tirada.
Pôs a mão em minha cabeça ao dizer estas últimas palavras. Tinha falado
séria, brandamente: sua aparência não era, de fato, a de um amante contemplando
a amada, mas a de um pastor chamando de volta a ovelha desgarrada — ou
melhor, a de um anjo da guarda vigiando a alma pela qual é responsável. Todo
homem de talento, seja também homem de sentimento ou não, seja fanático,
aspirante ou déspota — contanto apenas que seja sincero — tem seus momentos
sublimes, em que dominam e mandam. Eu sentia veneração por St. John — uma
veneração tão forte, que seu impulso me lançou de repente no ponto que havia
tanto eu evitava. Fui tentada a deixar de lutar contra ele — a precipitar-me pela
torrente de sua vontade no golfo de sua existência, e ali perder a minha própria.
Era quase tão assediada por ele agora como fora outrora, de modo diferente, por
um outro. Fui uma idiota em ambas as vezes. Ceder na primeira vez seria um erro
de princípio; ceder agora seria um erro de julgamento. Assim penso agora, ao
rever a crise através da tranqüila cortina do tempo: naquele momento, porém, não
tinha consciência dessa loucura.
Fiquei imóvel sob o toque de meu hierofanta. Minhas recusas foram
esquecidas — meus temores vencidos — minhas resistências paralisadas. O
Impossível — isto é, meu casamento com St. John — tornava-se rapidamente o
Possível. Tudo mudava extremamente com uma súbita onda. A Religião chamava
— os Anjos acenavam — Deus ordenava — a vida enrolava-se como um
manuscrito — os portões da morte se abriam mostrando a eternidade além:
parecia que, em troca da segurança e felicidade ali, tudo aqui poderia ser
sacrificado num segundo. A sala em penumbra estava cheia de visões.
— Você podia decidir agora? — perguntou o missionário. A pergunta foi feita
num tom delicado: ele me puxou para si com a mesma delicadeza. Oh, aquela
delicadeza! Como era mais poderosa que a sua força! Eu podia resistir à ira de St.
John, mas me tornava flexível como um caniço sob sua bondade. Mas sabia o
tempo todo que, se cedesse agora, nem por isso me arrependeria menos, algum
dia, de minha rebelião anterior. Sua natureza não mudara com uma hora de prece
solene; apenas se elevara.
— Eu podia decidir, se ao menos tivesse certeza — respondi — se ao menos
estivesse convencida de que é vontade de Deus que me case com você, eu juraria
fazê-lo aqui e agora... acontecesse o que acontecesse!
— Minhas preces foram ouvidas! — exclamou St. John. Comprimiu mais a
mão em minha cabeça, como se me reclamasse; envolveu-me com o braço, quase
como se me amasse (digo quase — conheço a diferença — porque já sentira o que
era ser amada; mas, como ele, pusera agora o amor de lado, e pensava apenas no
dever). Eu lutava com a pouca nitidez íntima de minha visão, diante da qual ainda
rolavam nuvens. Ansiava profundamente, ardentemente, para fazer o que era
correto; e apenas isso. "Mostra-me, mostra-me o caminho!" implorava ao céu.
Estava mais excitada do que jamais estivera antes; e o leitor julgará se o que
se seguiu foi resultado dessa excitação.
Toda a casa estava em silêncio; pois creio que todos, com exceção de St. John
e eu, se haviam recolhido. A única vela morria; a sala estava enluarada. Meu
coração batia rápido e forte; eu ouvia o seu pulsar. De repente, parou, com uma
inexprimível sensação que o varou, e logo passou à minha cabeça e extremidades.
A sensação não era como a de um choque elétrico, mas igualmente aguda,
estranha, espantosa; agiu sobre meus sentidos como se a atividade máxima deles
até então tivesse sido apenas o torpor, do qual eram agora chamados e obrigados a
despertar. Levantaram-se, expectantes; olhos e ouvidos esperavam, enquanto a
carne me tremia nos ossos.
— Que foi que você ouviu? Que está vendo? — perguntou St. John. Eu não
via nada, mas ouvia uma voz em alguma parte gritar: "Jane! Jane! Jane!"
— Oh, Deus! Que é? — arquejei.
Poderia ter dito: "Onde é?" pois não parecia ser na sala, nem na casa, nem no
jardim; não vinha do ar, nem de baixo da terra, nem de cima. Eu ouvira — onde,
ou de onde, impossível para sempre saber! E era a voz de um ser humano — uma
voz conhecida, amada, bem lembrada — a de Edward Fairfax Rochester; e falava
com dor e miséria, loucamente, lugubremente, urgentemente.
— Estou indo! — gritei. — Espere por mim! Oh, eu irei! — Voei para a porta
e olhei o corredor; estava escuro. Saí para o jardim; vazio.
— Onde está você? — exclamei.
Os morros além de March Glen devolveram fracamente a pergunta: "Onde
está você!" ouvi. O vento suspirou baixinho nos pinheiros; tudo era solidão das
charnecas e silêncio da meia-noite.
— Abaixo a superstição! — comentei, quando aquele espectro se ergueu
negro ao lado do negro teixo junto ao portão. — Isto não é ilusão, não é bruxaria;
é obra da natureza. Ela foi despertada e fez... não um milagre... mas o melhor que
podia.
Desprendi-me de St. John, que me seguira e queria deter-me. Era a minha vez
de assumir a ascendência. Meus poderes estavam em funcionamento, e com força.
Disse-lhe que deixasse de perguntas e observações; desejava que me deixasse; eu
tinha de ficar sozinha e ficaria. Ele me obedeceu logo. Onde há energia para
ordenar, a obediência nunca falha. Subi para meu quarto; tranquei-me; caí de
joelhos; e orei à minha maneira — uma maneira diferente da de St. John, mas
efetiva a seu modo. Pareceu-me que chegava muito perto do Poderoso Espírito; e
minha alma precipitava-se com gratidão a Seus pés. Ergui-me da ação de graças
— tomei uma decisão — e deitei-me, sem medo, iluminada — ávida apenas pela
luz do dia.
CAPITULO 36
A LUZ DO DIA chegou. Levantei-me com a aurora. Ocupei-me por uma ou
duas horas arrumando minhas coisas no quarto, gavetas, armários, na ordem em
que desejava deixá-las durante uma breve ausência. Enquanto isso, ouvi St. John
deixar seu quarto. Parou à minha porta. Temi que batesse — não, mas uma tira de
papel foi enfiada debaixo da porta. Trazia as seguintes palavras:
"Você me deixou muito repentinamente a noite passada. Se tivesse ficado
apenas um pouco mais, teria posto a mão na cruz cristã e na coroa do anjo.
Esperarei sua clara decisão quando voltar daqui a quinze dias. Enquanto isso,
vigie e reze para não cair em tentação; o espírito, confio, está disposto, mas a
carne, vejo, é fraca. Orarei por você todas as horas. — Seu, ST. JOHN".
"Meu espírito", respondi mentalmente, "está disposto a fazer o que é certo; e
minha carne, espero, é bastante forte para cumprir a vontade do Céu, assim que
essa vontade me seja distintamente conhecida. De qualquer modo, será bastante
forte para buscar — inquirir — tatear em busca de uma saída para esta nuvem de
dúvida, e achar o dia aberto da certeza".
Era 1° de junho; mas a manhã estava sombria e fria; a chuva batia forte em
minha janela. Ouvi a porta da frente abrir-se, e St. John sair. Olhando pela janela,
vi-o atravessar o jardim. Tomou o caminho, entre as enevoadas charnecas, em
direção a Whitcross; pegaria ali a diligência.
"Em mais algumas horas eu o seguirei nessa trilha, primo", pensei; "também
eu tenho um encontro com a diligência em Whitcross. Também eu tenho alguém
para ver e buscar na Inglaterra, antes de partir para sempre".
Faltavam ainda duas horas para o desjejum. Preenchi esse intervalo andando
de mansinho pelo meu quarto, e pensando na visita que dera a meus planos aquela
virada abrupta. Lembrava-me da sensação íntima que experimentara, pois podia
lembrá-la, com toda a sua inexprimível estranheza. Lembrava a voz que ouvira; e
tornava a perguntar de onde viera, tão inutilmente quanto antes: parecia-me que
fora de dentro de mim — não do mundo externo. Perguntava se fora uma simples
impressão nervosa — uma ilusão. Não podia conceber ou acreditar, era mais
como uma inspiração. O extraordinário choque viera como o terremoto que
abalou as fundações da prisão de Paulo e Silas; abrira as portas da cela da alma e
soltara suas cadeias — despertara-a de seu sono, de onde ela saltara tremendo,
ouvindo, estupefata, depois vibrara três vezes um grito em meus pasmados
ouvidos, em meu trêmulo coração e em todo o meu espírito, que nem tremeu nem
se abalou, mas exultou, como de alegria pelo êxito do único esforço que tivera o
privilégio de fazer, independente do embaraçoso corpo.
"Em breve", eu disse, ao concluir meus pensamentos, "saberei alguma coisa
daquele cuja voz pareceu me chamar na noite passada. As cartas revelaram-se
inúteis — a investigação pessoal as substituirá".
Ao desjejum, anunciei a Diana e Mary que ia fazer uma viagem, e ficaria
ausente pelo menos quatro dias.
— Sozinha, Jane? — elas perguntaram.
— Sim; era para ver ou ter notícias de um amigo com o qual me inquietava
havia algum tempo.
Elas poderiam ter dito, como não tenho dúvida de que pensaram, que me
julgavam sem amigos, a não ser elas, pois de fato eu lhes dissera isso muitas
vezes; mas, com sua delicadeza natural, abstiveram-se de comentar, a não ser que
Diana me perguntou se tinha certeza de que estava em condições de viajar. Eu
parecia muito pálida, observou. Respondi que nada me afetava, a não ser a
ansiedade mental, que esperava aliviar em breve.
Foi fácil fazer os preparativos posteriores; pois não me perturbaram com
nenhuma pergunta — nenhuma suposição. Tendo-lhes explicado que não podia
no momento ser explícita sobre meus planos, elas bondosa e sensatamente
concordaram em calar-se, concedendo-me o privilégio da liberdade de ação que
eu lhes teria concedido em circunstâncias semelhantes.
Deixei Moor House às três horas da tarde, e pouco depois das quatro achava-
me junto ao poste de sinalização de Whitcross, esperando a chegada da diligência
que me levaria à distante Thornfield. Em meio ao silêncio daquelas estradas
solitárias e montanhas desertas, ouvi-a aproximar-se a grande distância. Era o
mesmo veículo do qual, um ano atrás, eu saltara numa noite de verão naquele
mesmo ponto, tão desolada, sem esperanças e sem destino! A diligência parou ao
meu sinal. Entrei — não obrigada agora a entregar toda a minha fortuna como
preço de sua acomodação. Mais uma vez a caminho de Thornfield, sentia-me
como um pombo-correio voando de volta para casa.
Era uma viagem de trinta e seis horas. Parti de Whitcross numa terça-feira à
tarde, e na manhãzinha da quinta-feira seguinte a diligência parou para dar água
aos cavalos numa estalagem de beira de estrada, situada em meio a um cenário
cujas sebes verdes, amplos campos e baixos montes pastorais (que aspecto suave
e que cores verdejantes, comparados com as severas charnecas de Morton, nas
Midlands do norte!) acolheram meu olhar como as feições de um rosto conhecido.
Sim, eu conhecia o aspecto daquela paisagem; tinha certeza de que estávamos
perto de meu destino.
— A que distância fica Thornfield Hall daqui? — perguntei ao estalajadeiro.
— Só duas milhas, madame, atravessando os campos. "Minha viagem
acabou", pensei comigo mesma. Saltei da diligência, entreguei uma caixa que
trazia aos cuidados do estalajadeiro, para que a guardasse até que eu viesse buscá-
la; paguei minha passagem; satisfiz o cocheiro e parti; o dia cada vez mais claro
iluminava a tabuleta da estalagem, e li em letras douradas; "The Rochester Arms".
Meu coração deu um pulo; já estava nas terras de meu amo. Mas tornou a abater-
se; ocorreu-lhe a idéia:
"Seu amo pode estar além do Canal Inglês, pelo que lhe consta; e depois, se
estiver em Thornfield Hall, para onde você corre, quem estará lá além dele? Sua
esposa louca; e você nada tem a ver com ele; não ousa falar com ele nem buscar a
sua presença. Você perdeu seu trabalho — é melhor não ir mais adiante", exortava
o monitor. "Peça informação às pessoas da estalagem; eles podem dar-lhe todas
que precise; podem solucionar suas dúvidas de uma vez. Vá àquele homem e
pergunte se o Sr. Rochester está em casa."
A sugestão era sensata, mas eu não podia obrigar-me a agir com base nela.
Temia tanto uma resposta que me arrasasse de desespero. Prolongar a dúvida era
prolongar a esperança. Eu podia ainda uma vez ver a mansão sob os raios de seu
astro. Lá estava o pontilhão à minha frente — os mesmos campos pelos quais eu
correra, cega, surda, desvairada, com uma fúria vingativa perseguindo-me e
açoitando-me, na manhã em que fugira de Thornfield Hall; antes que soubesse
bem que curso decidira tomar, estava no meio deles. Como andava rápido! Como
corria às vezes! Como ansiava por ter a primeira visão dos conhecidos bosques!
Com que sentimentos acolhia árvores que conhecia e visões familiares dos prados
e montes entre elas!
Afinal surgiram os bosques; o ninho de corvos, negro; um estridente crocitar
quebrou o silêncio matinal. Um estranho prazer inspirou-me; apressei-me. Outro
campo atravessado, uma alameda trilhada, e lá estavam os muros do pátio, os
escritórios de trás; a própria casa, o ninho de corvos ainda escondido. "Minha
primeira visão dela será de frente", decidi, "onde suas ousadas ameias logo
impressionarão nobremente os olhos, e onde posso distinguir a própria janela de
meu amo; talvez ele esteja parado diante dela — levanta-se cedo; talvez esteja
agora passeando pelo pomar, ou no calçamento da frente. Poderia pelo menos vê-
lo! Certamente, neste caso, não seria louca a ponto de correr para ele? Não sei
dizer — não tenho certeza. E se corresse — e daí? Deus o abençoe! E daí? Quem
se prejudicaria por eu provar mais uma vez o gosto da vida que seu olhar me pode
dar? Deliro; talvez neste momento ele esteja olhando o sol nascer sobre os
Pireneus, ou no mar sem ondas do sul".
Eu contornara o baixo muro lateral do pomar — virará sua quina; havia um
portão mesmo ali, abrindo para o prado, entre duas colunas de pedra coroadas
com bolas de pedra. De trás de uma coluna, eu poderia espiar discretamente toda a
frente da mansão. Avancei a cabeça com precaução, desejosa de assegurar-me se
alguma cortina de janela já estava suspensa; ameias, janelas, a longa frente —
tudo estaria à minha vista daquela posição abrigada.
Os corvos que voavam acima talvez me observassem enquanto eu fazia esse
exame. Imagino o que pensavam. Devem ter achado que eu era muito cuidadosa e
tímida a princípio, e que me tornei aos poucos muito ousada e temerária. Uma
espiada, e depois uma olhada demorada; e em seguida o abandono de meu nicho e
o desvio para o prado; uma súbita parada bem em frente da grande mansão, e um
prolongado e firme olhar a ela. "Que encenação de desconfiança foi aquela a
princípio?" eles poderiam ter perguntado; "e que estúpida indiferença agora?"
Ouça uma ilustração, leitor.
Um amante encontra sua amada adormecida numa margem relvada; deseja ter
uma visão do belo rosto dela sem despertá-la. Esgueira-se de mansinho sobre a
relva, com cuidado para não fazer o menor ruído; pára — imaginando que ela se
mexeu; recua; por nada neste mundo gostaria de ser visto. Tudo está em silêncio;
ele avança de novo; curva-se acima dela; um leve véu cobre as feições da amada;
ele o ergue, curva-se mais; agora seus olhos antegozam a visão da beleza —
cálida, desabrochante, adorável, em repouso. Como foi apressado seu primeiro
olhar! Mas agora ele se fixa! Como se assusta! Como agarra de repente e
veementemente em ambos os braços a forma que não ousava, um momento antes,
tocar sequer com um dedo! Como grita o nome dela, e deixa cair o seu fardo, e
olha-o loucamente! Agarra assim, grita e olha fixo porque não teme mais
despertá-la com qualquer som que faça. Achava que seu amor dormia docemente;
descobre que está morta.
Eu olhara com tímida alegria para uma imponente mansão; via uma ruína
enegrecida.
Não havia necessidade de esconder-me atrás da coluna de um portão,
realmente! Espiar cortinas de janelas, temendo que a vida se agitasse por trás
delas! Não havia necessidade de ficar à escuta de portas que se abrissem —
imaginar passos no calçamento ou no cascalho da entrada! A grama, os jardins
estavam pisoteados e mortos; o portal escancarava-se vazio. A frente era apenas,
como eu vira num sonho, apenas um muro que parecia uma casca vazia, muito
alto e de aparência muito frágil, vazado por janelas sem vidraças; sem telhado,
sem ameias, sem chaminés — tudo desabara.
E havia o silêncio da morte em volta, a solidão de um deserto morto. Não era
de admirar que as cartas endereçadas às pessoas ali jamais houvessem tido uma
resposta; era o mesmo que mandar epístolas para uma cripta numa ala de igreja. A
sombria negridão das pedras dizia por qual destino a mansão caíra — por
incêndio. Mas como fora ateado? Qual era a história da tragédia? Que perdas,
além de argamassa, mármore e madeira, se seguira àquilo? Teriam perecido vidas,
além de bens? Se assim era, de quem? Terrível pergunta; não havia ninguém ali
para respondê-la — nem mesmo um sinal mudo, um sinal morto.
Vagueando em torno das despedaçadas paredes e pelo devastado interior,
recolhi sinais de que a calamidade não era recente. Neves invernais, pensei,
haviam passado por aquele arco vazio, chuvas de inverno haviam açoitado e
entrado por aqueles caixilhos vazios; pois, em meio aos encharcados montes de
detritos, a primavera tinha feito brotar o mato; a grama e o mato bravo cresciam
aqui e ali entre as pedras e ripas caídas. E, oh!, onde estava, enquanto isso, o
infeliz dono daqueles destroços? Em que terra? Sob quais auspícios? Meus olhos
vaguearam involuntariamente até a cinzenta torre da igreja perto dos portões, e
perguntei: "Estará ele com Damer de Rochester, partilhando o abrigo de sua
estreita casa de mármore?"
Precisava ter alguma resposta para aquelas perguntas. Não podia achá-la em
parte alguma a não ser na estalagem, e para lá em breve retornei. O próprio
estalajadeiro me trouxe o desjejum na sala de visitas. Pedi-lhe que fechasse a
porta e se sentasse: tinha algumas perguntas a fazer-lhe. Mas, quando ele
concordou, eu mal sabia como começar; tal era o horror que tinha das possíveis
respostas. E no entanto, o espetáculo de desolação que acabara de deixar me
preparara de certa forma para uma história de desgraça. O estalajadeiro era um
homem de aparência respeitável, de meia-idade.
— O senhor conhece Thornfield Hall, sem dúvida? — consegui dizer
finalmente.
— Sim, madame; vivi lá outrora.
— Viveu? — Não em meu tempo, pensei; o senhor me é estranho.
— Fui mordomo do falecido Sr. Rochester — ele acrescentou.
Falecido! Foi como se eu recebesse, com toda força, o golpe a que tentara
escapar.
— Falecido! — arquejei. — Ele morreu?
— Estou falando do pai do atual cavalheiro Sr. Rochester — ele explicou.
Tornei a respirar; meu sangue recomeçou a circular. Plenamente ciente por essas
palavras de que o Sr. Edward... meu Rochester (que Deus o abençoasse, onde quer
que estivesse!)... estava ao menos vivo; era, em suma, "o atual cavalheiro".
Prazerosas palavras! Parecia-me que poderia ouvir o que viria a seguir —
quaisquer que fossem as revelações — com relativa tranqüilidade. Desde que ele
não estava na cova, eu achava que podia suportar saber que se achava nos
Antípodas.
— O Sr. Rochester está morando em Thornfield Hall agora? — perguntei,
sabendo, é claro, qual seria a resposta, mas desejando adiar a pergunta direta
sobre onde ele realmente estava.
— Não, madame... oh, não! Ninguém mora lá. Suponho que a senhora seja
estranha por estas bandas, senão teria sabido do que aconteceu no outono...
Thornfield Hall está inteiramente em ruínas; incendiou-se mais ou menos na
época da colheita. Uma terrível calamidade! Uma imensa quantidade de bens
valiosos destruídos; dificilmente se pôde salvar qualquer dos móveis. O fogo
irrompeu no meio da noite, e antes de chegarem as máquinas de Millcote, o prédio
já era uma bola de chamas. Foi um espetáculo terrível; eu mesmo assisti.
— No meio da noite! — murmurei. Sim, aquela era sempre a hora da
fatalidade em Thornfield Hall. — Alguém soube como começou? — perguntei.
— Imaginaram, madame; imaginaram. Na verdade, eu diria que foi
estabelecido além de qualquer dúvida. Talvez a senhora não saiba — ele
continuou, aproximando mais a cadeira da mesa, e falando baixo — que se
mantinha uma dama... uma... uma doida, trancada na casa?
— Ouvi falar de alguma coisa assim.
— Ela era mantida em muito estrito confinamento, madame; as pessoas
durante muitos anos nem chegaram a ter absoluta certeza de sua existência.
Ninguém a via; sabiam apenas por boatos que havia uma pessoa assim na mansão;
e era difícil conjeturar quem ou o que era ela. Diziam que o Sr. Edward a trouxera
do exterior, e alguns acreditavam que ela tinha sido amante dele. Mas aconteceu
uma coisa esquisita há um ano... uma coisa muito esquisita.
Eu temia agora ouvir a minha própria história. Tentei trazê-lo de volta ao fato
principal.
— E essa dama?
— Essa dama, madame — ele respondeu — revelou-se ser a esposa do Sr.
Rochester. A descoberta foi feita de uma forma estranha. Havia uma jovem, uma
governanta, na mansão, pela qual o Sr. Rochester se...
— Mas o incêndio — sugeri.
— Já chego lá, madame... pela qual o Sr. Rochester se apaixonou. Os criados
dizem que jamais viram alguém tão apaixonado quanto ele; andava continuamente
atrás dela. Eles o observavam ... os criados fazem isso, a senhora sabe, madame...
e ele a punha acima de tudo; pois ninguém a não ser ele a achava muito bonita.
Era uma coisinha pequena, insignificante, dizem, quase como uma criança. Eu
mesmo nunca a vi; mas ouvi Leah, a criada, falar dela. Leah gostava muito dela.
O Sr. Rochester tinha cerca de quarenta anos, e essa governanta nem vinte; e, a
senhora sabe, quando cavalheiros dessa idade se apaixonam por mocinhas, ficam
muitas vezes como se estivessem enfeitiçados. Bem, ele queria se casar com ela.
— O senhor me contará essa parte da história outra hora — eu disse — mas
agora tenho uma razão especial para querer saber tudo a respeito do incêndio.
Suspeitou-se de que essa louca, a Sra. Rochester, teve algo a ver com ele?
— Acertou em cheio, madame; está inteiramente estabelecido que foi ela, e
ninguém mais fora ela, quem o ateou. Ela tinha uma mulher que cuidava dela,
chamada Sra. Poole... uma mulher capaz no seu ramo, e muito digna de confiança,
a não ser por um defeito... um defeito comum a muitas dessas enfermeiras e
matronas... andava sempre com uma garrafa de gim, e de vez em quando tomava
uma gotinha a mais. É desculpável, porque levava uma vida dura ali; mas mesmo
assim, era perigoso; pois quando a Sra. Poole estava ferrada no sono, após o seu
gim com água, a dama louca, que era astuciosa como uma bruxa, tirava as chaves
de seu bolso, saía de seu quarto e vagava pela casa, fazendo tudo quanto eram
desatinos que lhe vinham à cabeça. Dizem que quase tocou fogo no marido, no
marido, uma vez; mas disso eu não sei. Contudo, nessa noite, tocou fogo nos
cortinados do quarto pegado ao seu, e depois desceu para um andar mais baixo e
foi para o quarto que fora da governanta (era como se soubesse o que havia
ocorrido, de algum modo, e tivesse despeito dela) e incendiou a cama ali;
felizmente, não havia ninguém dormindo nela. A governanta tinha fugido dois
meses antes; e embora o Sr. Rochester a procurasse como se ela fosse a coisa mais
preciosa do mundo, não conseguiu saber nada sobre ela; e tornou-se bravo...
muito bravo mesmo em seu desapontamento; nunca foi um homem manso, mas
ficou perigoso depois de perdê-la. E quis ficar sozinho. Mandou a Sra. Fairfax, a
governanta da mansão, para junto de uns amigos, longe; mas fez isso
generosamente, pois estabeleceu-lhe uma anuidade para toda a vida; e ela a
merecia... era uma mulher muito boa. A Srta. Adèle, uma pupila que ele tinha, foi
posta na escola. Ele cortou relações com toda a sua classe e trancou-se como um
ermitão na mansão.
— Quê! Não deixou a Inglaterra?
— Deixar a Inglaterra? Deus do céu, não! Ele não cruzava nem a soleira da
porta, a não ser de noite, quando passeava como um fantasma pelos jardins e o
pomar, como se houvesse perdido a razão... o que, em minha opinião, perdeu
mesmo; pois nunca se viu um cavalheiro mais animado, ousado, atinado que ele,
antes de aparecer aquela anã daquela governanta, madame. Não era homem dado
a bebida, baralho ou corridas, como alguns, e não era tão bonito assim; mas tinha
uma coragem e uma força de vontade próprias, se é que algum homem algum dia
teve. Eu o conhecia desde que era menino, sabe; e de minha parte, sempre desejei
que essa Srta. Eyre tivesse afundado no mar, antes de vir para Thornfield Hall.
— Então o Sr. Rochester estava em casa quando o incêndio irrompeu?
— Sim, de fato estava; e subiu para o sótão quando tudo ardia de cima abaixo,
e tirou os criados das camas e os ajudou a descer pessoalmente; e depois voltou
para buscar a esposa doida em sua cela. Gritaram-lhe que ela estava no telhado, de
pé, acenando com os braços acima das ameias e gritando de um modo que a
ouviam a uma milha de distância; eu a vi e ouvi com meus próprios olhos. Era
uma mulherona, de longos cabelos negros; nós os víamos flutuar contra as
chamas, com ela ali de pé. Eu vi, e muitos viram, o Sr. Rochester subir pela
clarabóia no telhado: ouvimos que gritava "Bertha!" Vimos que se aproximava
dela; e então, madame, ela berrou e deu um salto, e no instante seguinte estava
estatelada no calçamento.
— Morta?
— Morta! Sim, morta como as pedras sobre as quais se espalhavam seus
miolos e seu sangue.
— Bom Deus!
— Tem razão, madame; foi apavorante! Ele estremeceu.
— E depois? — insisti.
— Bem, madame, depois a casa ardeu até o chão; só restam alguns pedaços de
parede de pé agora.
— Alguém mais morreu?
— Não... mas talvez fosse melhor que tivesse morrido.
— Que quer dizer?
— O pobre Sr. Edward! — ele exclamou. — Nunca pensei em ver aquilo um
dia! Alguns dizem que foi um justo castigo, por manter seu primeiro casamento
em segredo, e querer tomar outra esposa com a primeira ainda viva; mas eu, de
minha parte, tenho pena dele.
— O senhor disse que ele estava vivo! — exclamei.
— Sim, sim; está vivo; mas muita gente acha que era melhor que estivesse
morto.
— Por quê? Como? — Meu sangue esfriava de novo. — Onde está ele? —
perguntei. — Está na Inglaterra?
— Sim... sim... ele está na Inglaterra; não pode deixar a Inglaterra, imagino...
é um objeto agora.
Que agonia era aquilo! E o homem parecia disposto a prolongá-la.
— Está totalmente cego — ele disse afinal. — Sim, totalmente cego, o Sr.
Edward.
Eu temia coisa pior. Temia que estivesse louco. Reuni forças para perguntar o
que tinha causado essa calamidade.
— Foi a coragem dele, e pode-se dizer também que sua bondade, de certa
forma, madame; não quis deixar a casa enquanto todos não tivessem saído.
Quando descia a grande escada afinal, depois de a Sra. Rochester ter-se atirado
das ameias, houve um grande estrondo... tudo desabou. Ele foi retirado de debaixo
das ruínas, vivo, mas lamentavelmente ferido; um caibro caíra de modo a protegê-
lo parcialmente; mas um olho fora arrancado, e uma mão tão esmagada, que o Sr.
Carter, o médico, teve de amputá-la imediatamente. O outro olho inflamou; ele
perdeu essa vista também. Está agora desamparado, de fato... cego e aleijado.
— Onde ele está agora? Onde mora agora?
— Em Ferndean, uma mansão numa fazenda que ele tem a cerca de trinta
milhas daqui; um local bastante desolado.
— Quem está com ele?
— O velho John e sua mulher; ele não quis mais ninguém. Está muito
alquebrado, dizem.
— O senhor tem alguma espécie de veículo?
— Temos uma charrete, madame, uma charrete muito bonita.
— Apronte-a imediatamente; e se seu criado de posta puder me levar a
Ferndean antes do anoitecer, hoje, pagarei ao senhor e a ele duas vezes o que
costuma cobrar pelo aluguel.
CAPITULO 37
A MANSÃO de Ferndean era um prédio de considerável antigüidade,
dimensões moderadas e nenhuma pretensão arquitetônica, no fundo de um
bosque. Eu soubera dela antes. O Sr. Rochester freqüentemente se referia a ela, e
às vezes ia lá. Seu pai comprara a propriedade por causa da caça. Teria alugado a
casa, mas não encontrara inquilino, devido ao local isolado e insalubre. Ferndean,
assim, permanecera desabitada e sem móveis, com exceção de uns dois ou três
quartos preparados para acomodação do senhor, quando ele ia para lá na
temporada de caça.
Foi a essa casa que cheguei pouco antes do anoitecer, numa tarde marcada
pelas características de um céu triste, um vento frio e uma chuvinha constante e
penetrante. Fiz a última milha a pé, após dispensar a charrete e o condutor com o
dobro da remuneração que prometera. Mesmo a uma distância muito curta da
mansão, nada se via dela, tão densos e escuros eram os troncos das árvores em
torno. Portões de ferro, entre pilares de gra-nito, indicaram-me por onde entrar, e
passando por eles me vi de repente numa penumbra de muitas árvores
estreitamente cerradas. Havia uma trilha, invadida pelo mato, que descia a ala da
floresta entre velhos e nodosos troncos, e sob um túnel de galhos. Segui-a,
esperando alcançar logo a morada, mas ela se estendia sempre e sempre, cada vez
mais longe; nenhum sinal de habitação ou jardins à vista.
Pensei que tinha tomado a direção errada e perdido o caminho. A escuridão do
crepúsculo natural e da selva fechava-se à minha volta. Olhei em torno, em busca
de outro caminho. Não havia nenhum; só via troncos entrelaçados, colunares,
densa folhagem estivai — nenhuma abertura em parte alguma.
Segui em frente; afinal meu caminho se abriu, as árvores se espaçaram um
pouco; acabei diante de uma cerca, além da qual se erguia a casa — mal
distinguível das árvores àquela pouca luz; tão úmidas e escuras eram suas paredes
decadentes. Entrando por um portal, preso apenas por uma tranca, parei em meio
a um espaço de terreno cercado, do qual o bosque se afastava em semicírculo.
Não havia flores nem canteiros; só o amplo caminho de cascalho bordejando um
trecho gramado, e isto emoldurado pelo pesado quadro da floresta. A casa
apresentava duas torres pontudas na frente; as janelas tinham gelosias e eram
estreitas; a porta da frente, também estreita, tinha um degrau. O todo parecia,
como o estalajadeiro do Rochester Arms dissera, "um local bastante desolado".
Estava silencioso como uma igreja em dia de semana; a chuva, matraqueando nas
folhas da floresta, era o único som que se ouvia em suas vizinhanças.
"Será que alguém vive aqui?" perguntei.
Sim, havia algum tipo de vida ali; pois ouvi um movimento — a estreita porta
da frente se abria, e um vulto preparava-se para deixar a granja.
A porta abriu-se lentamente, uma figura saiu para a penumbra e ficou parada
no degrau — um homem sem chapéu. Estendeu a mão para a frente, como para
sentir se chovia. Apesar da escuridão, eu o reconhecera; era meu amo, Edward
Fairfax Rochester, e ninguém mais.
Detive meus passos, e quase minha respiração, e fiquei a observá-lo — a
examiná-lo, sem ser vista, e, ai!, invisível para ele. Era um encontro súbito, um
encontro em que o arrebata-mento era contido pela dor. Não tive dificuldade para
reprimir a exclamação em minha voz, nem o avanço de meus passos.
Aquela forma tinha os mesmos contornos fortes e vigorosos de sempre; o
porte ainda era ereto, o cabelo ainda muito negro; tampouco haviam seus traços
mudado ou cedido; não seria em um ano, por qualquer sofrimento, que sua força
atlética seria esmagada ou sua forma vigorosa comprometida. Mas no rosto vi
uma mudança; parecia tão desesperado e meditativo, que me lembrava de um
animal selvagem enganado e acorrentado, perigoso de se chegar perto em sua
infelicidade. Uma águia engaiolada, cujos olhos dourados a crueldade houvesse
extinguido, teria a aparência daquele cego Sansão.
E, leitor, pensa que o temi em sua cega ferocidade? Se pensa, conhece-me
pouco. Ao meu sofrimento misturou-se uma suave esperança de que em breve eu
ousaria dar um beijo naquela fronte de pedra, e naqueles lábios tão severamente
selados abaixo; mas não ainda. Não o abordaria ainda.
Ele desceu o único degrau, e avançou lentamente, tateando, em direção ao
gramado. Aonde ousaria ir agora? Parou, como se não soubesse para que lado se
virar. Ergueu as mãos e abriu as pálpebras; olhou vaziamente, e com esforço, o
céu e o anfiteatro de árvores: via-se que tudo para ele era vazia escuridão.
Estendeu a mão direita (mantinha o braço esquerdo, o mutilado, oculto no peito);
parecia querer adquirir, pelo toque, uma idéia do que o rodeava, mas continuava a
encontrar apenas o vazio; pois as árvores estavam a algumas milhas. Desistiu do
esforço, cruzou os braços e ficou imóvel e mudo na chuva, que agora caía forte
sobre sua cabeça descoberta. Neste momento, John se aproximou dele, vindo de
algum lugar.
— Quer tomar o meu braço, senhor? — ele disse. — Vem aí um pesado pé-
d'água: não é melhor entrar?
— Deixe-me só — foi a resposta.
John retirou-se, sem ter-me visto. O Sr. Rochester tentou então passear por
ali; inutilmente — tudo era demasiado incerto. Ele tateou o caminho de volta à
casa, e, reentrando, fechou a porta.
Então eu me aproximei e bati; a esposa de John abriu.
— Mary — eu disse — como vai?
Ela estremeceu, como se tivesse visto um fantasma; acalmei-a. Ao seu
apressado "É a senhorita mesmo, que vem a esta hora tardia a este local
solitário?", respondi tomando-lhe a mão; e depois a segui até a cozinha, onde John
se sentava agora diante de um bom fogo. Expliquei-lhes em poucas palavras que
soubera de tudo que acontecera desde que eu partira de Thornfield, e que viera ver
o Sr. Rochester. Pedi a John que descesse até a casa de pedagem, onde eu saltara
da charrete, e trouxesse meu baú, que deixara lá; e depois, enquanto tirava a touca
e o xale, perguntei a Mary se podia ser acomodada na mansão por aquela noite; e
descobrindo que os arranjos para isso, embora difíceis, não seriam impossíveis,
informei-lhe de que ficaria. Exatamente nesse instante a sineta da sala de visitas
tocou.
— Quando entrar lá — eu disse — diga a seu amo que uma pessoa deseja
falar com ele, mas não quis dar o nome.
— Não creio que ele a receba — ela respondeu. — Recusa-se a ver todos.
Quando ela voltou, perguntei o que ele dissera.
— A senhorita tem de mandar seu nome e dizer o que deseja — ela
respondeu. Depois, passou a encher um copo com água e colocá-lo numa bandeja,
juntamente com velas.
— Foi por isso que ele tocou? — perguntei.
— Sim; sempre quer que se tragam velas, à noite, embora esteja cego.
— Dê-me a bandeja; eu a levarei.
Tomei-a das mãos dela, que me indicou a porta da sala de visitas. A bandeja
balançou quando a segurei; a água caiu do copo; meu coração martelava as
costelas rápida e ruidosamente. Mary abriu-me a porta, e fechou-a atrás de mim.
Aquela sala parecia sombria: um fogo não cuidado ardia baixo na grade; e,
curvado sobre ele, a cabeça apoiada no batente alto e antigo da lareira, surgiu o
cego habitante do aposento. Seu velho cão, Pilot, deitava-se a um lado, afastado
do caminho, e encolhido como se temesse ser inadvertidamente pisado. Pilot
levantou as orelhas quando entrei, depois saltou com um latido e um ganido, em
minha direção; quase me derrubou a bandeja das mãos. Eu a pus sobre a mesa;
depois dei-lhe tapinhas e disse baixinho: "Deite-se!" O Sr. Rochester voltou-se
mecanicamente, para ver o que era aquela agitação; mas como não viu nada,
voltou-se e suspirou.
— Dê-me a água, Mary — disse.
Aproximei-me dele com o copo agora cheio apenas pela metade; Pilot seguiu-
me, ainda excitado.
— Que é que há? — ele perguntou.
— Deite-se, Pilot! — tornei a dizer. Ele conteve a água a caminho dos lábios,
e pareceu quedar-se à escuta; bebeu e depôs o copo.
— É você, Mary, não é?
— Mary está na cozinha — respondi.
Ele estendeu a mão com um gesto rápido, mas, não vendo onde eu estava, não
me tocou.
— Quem é? Quem é? — perguntou, tentando, ao que parecia, ver com aqueles
olhos sem vida: uma tentativa vã e angustiante. — Responda-me... fale de novo!
— Quer mais um pouco d'água, senhor? Derramei metade da que havia no
copo — eu disse.
— Quem é? Quem é? Quem fala?
— Pilot me conhece, e John e Mary sabem que estou aqui. Cheguei ainda
agora — respondi.
— Grande Deus! Que ilusão me atacou agora? Que doce loucura tomou conta
de mim?
— Nenhuma ilusão... nenhuma loucura; sua mente, senhor, é forte demais
para ilusões, e sua saúde sadia demais para frenesis.
— E onde está quem fala? É só uma voz? Oh, não posso ver, mas preciso
sentir, senão meu coração vai parar e meu cérebro explodir. O que quer, quem
quer que você seja, torne-se perceptível ao toque, senão não poderei viver!
Tateava; detive sua mão errante e tomei-a nas minhas.
— Os dedos dela! — ele gritou. — Os dedos pequenos e finos dela! Se é
assim, deve haver mais dela.
A musculosa mão se livrou de meu domínio; tomou-me o braço, o ombro, o
pescoço, a cintura — fui envolvida e unida a ele.
— É Jane? Que é? É a forma dela... o seu tamanho...
— E a voz dela — acrescentei. — Ela está toda aqui; o coração também. Deus
o abençoe, senhor! Estou feliz por me achar novamente tão perto do senhor.
— Jane Eyre! Jane Eyre! — foi tudo que ele disse.
— Meu querido amo — respondi — eu sou Jane Eyre; encontrei-o... voltei
para o senhor.
— É verdade? Em carne e osso? Minha Jane viva?
— O senhor está me tocando... está me segurando, e bastante apertado; não
estou fria como um cadáver, nem impalpável como ar, estou?
— Minha querida, viva! Estes são certamente os seus membros, e estas as
suas feições; mas não posso ser tão abençoado, após toda a minha infelicidade. É
um sonho; como os sonhos que tenho à noite, quando a aperto uma vez mais
contra o coração, como faço agora; e a beijo, assim... e sinto que ela me ama, e
confio em que não me deixará.
— O que nunca farei, senhor, a partir deste dia.
— Nunca fará, diz a visão? Mas eu sempre despertei e descobri ser uma vazia
zombaria; e ficava desolado e abandonado... minha vida escura, solitária, sem
esperança... minha alma sedenta e proibida de beber... meu coração faminto e
nunca alimentado. Sonho gentil, suave, repousando em meus braços agora, você
voará, também, como suas irmãs voaram antes; mas beije-me antes de ir... abrace-
me, Jane.
— Pronto, senhor... e aí!
Comprimi meus lábios contra seus olhos outrora brilhantes e agora baços —
puxei o cabelo da sua testa, e beijei-a também. Ele pareceu despertar de repente;
foi tomado pela convicção de que tudo aquilo era real.
— É você... não é, Jane? Voltou para mim então?
— Voltei.
— E não está morta em alguma vala, debaixo de algum riacho? E não é uma
suspirante exilada entre estranhos?
— Não, senhor! Agora sou uma mulher independente.
— Independente! Que quer dizer, Jane?
— Meu tio na ilha da Madeira morreu, e deixou-me cinco mil libras.
— Ah, isso é prático! Isso é real! — ele exclamou. — Eu jamais sonharia com
isso. Além do mais, há essa voz peculiar dela, tão animadora e provocante, e
suave; anima meu murcho coração; põe vida nele. Que, Janet! É uma mulher
independente? Uma mulher rica?
— Muito rica, senhor. Se não quiser me deixar morar com o senhor, posso
construir uma casa minha perto da sua, e o senhor poderá vir sentar-se em minha
sala de visitas, quando precisar de companhia, à noite.
— Mas já que você está rica, tem agora sem dúvida amigos que cuidem de
você, e que não tolerarão que se dedique a um maneta cego como eu?
— Eu lhe disse que sou independente, senhor, além de rica; sou dona de mim
mesma.
— E ficará comigo?
— Certamente... a não ser que o senhor se oponha. Serei sua vizinha, sua
enfermeira, sua governanta. Encontro-o solitário; serei sua companhia... para ler
para o senhor, passear com o senhor, sentar-me com o senhor, assisti-lo, ser seus
olhos e mãos. Deixe de parecer tão melancólico, meu querido amo; não ficará
abandonado, enquanto eu viver.
Ele não respondeu; parecia sério — absorto; suspirou; entreabriu os lábios,
como se fosse falar; mas tornou a fechá-los. Senti-me um pouco embaraçada.
Talvez houvesse passado por cima demasiado rápido das formalidades; e ele,
como St. John, talvez visse impropriedade em minha espontaneidade. De fato, eu
fizera minha proposta com base na idéia de que ele desejava e ia me pedir que me
tornasse sua esposa; animara-me uma expectativa, não menos certa porque não
expressa, de que ele podia me reclamar de repente como sua. Mas, como nenhuma
insinuação a esse respeito lhe escapava, e seu rosto se tornava mais sombrio,
ocorreu-me de súbito que podia estar inteiramente enganada, e talvez bancando a
idiota sem saber; e comecei a afastar-me delicadamente de seus braços — mas ele
me agarrou avidamente, puxando-me para mais perto.
— Não... não... Jane; não deve ir. Não... eu a toquei, a ouvi, senti o conforto
de sua presença... a doçura de seu consolo; não posso abrir mão desses deleites.
Resta-me pouca coisa... tenho de ter você. O mundo pode rir... pode me chamar
de absurdo, egoísta... mas isso não significa nada. Minha própria alma exige você;
e ou será satisfeita, ou tirará uma vingança mortal em seu próprio corpo.
— Bem, senhor, ficarei com o senhor; já o disse.
— Sim; mas você entende uma coisa por ficar comigo; e eu entendo outra.
Você talvez pudesse se decidir a ficar perto de mim... assistir-me como uma
bondosa enfermeirinha (pois tem um coração afetuoso e um espírito generoso, que
a levam a fazer sacrifícios por aqueles de quem sente pena), e isso devia me
bastar, sem dúvida. Suponho que não devo alimentar senão sentimentos paternais
por você; é o que você acha? Vamos, diga-me.
— Pensarei o que o senhor quiser; estou contente em ser apenas sua
enfermeira, se o senhor assim achar melhor.
— Mas você não pode ser sempre minha enfermeira, Janet; você é jovem...
deve casar-se um dia.
— Não me preocupo com casamento.
— Devia se preocupar, Janet; se eu fosse o que era outrora, tentaria fazê-la
preocupar-se... mas... um tronco cego!
Recaiu em sua tristeza. Eu, ao contrário, me tornei mais animada, e tomei
nova coragem; aquelas últimas palavras me deram uma visão de onde estava a
dificuldade; e como não era dificuldade alguma para mim, senti-me bastante
aliviada de meu embaraço anterior. Retomei uma veia mais animada de
conversação.
— É tempo de que alguém cuide de sua reumanização — eu disse, repartindo
seus grossos e compridos cachos — pois vejo que o senhor está sendo
metamorfoseado num leão, ou em alguma coisa dessa espécie. Tem um faux air
de Nabucodonosor nos campos à sua volta, isto é certo; seus cabelos lembram-me
penas de águia; se suas unhas cresceram como garras de pássaros, não notei ainda.
— Neste braço, eu não tenho nem mão nem unhas — ele disse, tirando o
braço mutilado do peito, e mostrando-o. — É um mero toco... uma visão sinistra!
Não acha, Jane?
— Dá pena vê-lo; e ver seus olhos... e a cicatriz da queimadura em sua testa; e
o pior é que a gente corre o risco de amá-lo demais por isso tudo; e engrandecê-lo
muito.
— Eu achava que você ia ficar repugnada, Jane, quando visse meu braço e
meu rosto com cicatrizes.
— Achava? Não me diga... para que eu não diga alguma coisa desdenhosa
sobre sua capacidade de julgamento. Agora, deixe-me afastar-me um instante para
fazer um fogo melhor, e mandar varrer a lareira. Pode ver quando há um bom
fogo?
— Sim; com o olho direito eu vejo um fulgor... uma névoa rubra.
— E pode ver as velas?
— Muito pouco... cada uma é uma nuvem luminosa.
— Pode me ver?
— Não, minha fada; mas já sou muito grato por ouvi-la e senti-la.
— A que horas ceia?
— Eu nunca ceio.
— Mas ceará esta noite. Estou faminta; e o senhor também, aposto; apenas
esquece.
Chamando Mary, logo pus a sala na mais animadora ordem; preparei-lhe
também um confortável repasto. Tinha o espírito excitado, e com prazer e
facilidade conversei com ele durante a ceia, e por um longo tempo depois. Não
havia nenhuma incômoda contenção, nenhuma repressão à alegria e à vivacidade
com ele; pois com ele me sentia perfeitamente à vontade, porque sabia que lhe
servia; tudo que eu dizia ou fazia parecia consolá-lo ou revivê-lo. Deliciosa
consciência! Trazia à vida e à luz toda a minha natureza; em sua presença, eu
vivia integralmente; e ele vivia na minha. Apesar de cego, sorrisos brincavam-lhe
no rosto, a alegria raiava-lhe na testa, suas feições se suavizavam e aqueciam.
Após a ceia, ele começou a fazer-me muitas perguntas, sobre onde estivera, o
que fizera, como o encontrara; mas dei-lhe apenas respostas pela metade; era
muito tarde para entrar em detalhes naquela noite. Além disso, eu não desejava
tocar nenhuma corda emocional profunda — abrir nenhuma nova fonte de
emoção em seu coração; meu único objetivo então era animá-lo. E animado ele
estava, como já disse; mas apenas por acessos. Se um momento de silêncio
interrompia a conversa, ficava inquieto, tocava-me, e depois dizia: "Jane".
— Você é inteiramente um ser humano, Jane? Tem certeza disso?
— Creio nisso com toda consciência, Sr. Rochester.
— Mas como, nesta noite escura e triste, pôde você tão de repente surgir junto
à minha solitária lareira? Estendi a mão para pegar um copo d'água de uma
empregada, e ele me foi dado por você; fiz uma pergunta, esperando que a esposa
de John me respondesse, e sua voz falou em meu ouvido.
— Porque fui eu que vim, no lugar de Mary, com a bandeja.
— E o encanto aí está, nesta mesma hora que passo agora com você. Quem
pode saber da vida sombria, triste e sem esperança em que tenho me arrastado
nestes últimos meses? Sem fazer nada, sem esperar nada; fundindo noite e dia;
sentindo apenas a sensação de frio quando deixava o fogo se apagar, de fome
quando esquecia de comer; e depois um sofrimento interminável, e, às vezes, um
verdadeiro delírio de desejo de tornar a ver minha Jane. Sim; ansiava pela volta
dela, muito mais do que por minha visão perdida. Como pode Jane estar comigo,
e dizer que me ama? Não partirá tão de repente quanto chegou? Amanhã, temo
não encontrá-la mais.
Senti que uma resposta comum, prática, tirada do trem de suas próprias idéias,
era a melhor e mais tranqüilizante para ele, em seu atual estado de espírito. Passei
o dedo por suas sobrancelhas e observei que estavam queimadas, e que eu devia
aplicar alguma coisa para fazê-las nascer tão amplas e negras quanto antes.
— Que adianta me fazer algum bem, espírito benéfico, se a qualquer fatal
momento você tornará a me desertar... passando como uma sombra, mais branca e
quão desconhecida para mim, e tornando-se para sempre indescobrível?
— Tem um pente de bolso aí, senhor?
— Para que, Jane?
— Apenas para pentear essa juba negra eriçada. Acho-o um tanto assustador,
quando o examino de perto; fala que eu sou uma fada, mas estou certa de que
parece mais um duende.
— Estou horroroso, Jane?
— Muito, senhor; sempre foi, o senhor sabe.
— Hum! Você não perdeu a maldade, onde quer que tenha estado.
— E no entanto, estive com boas pessoas; muito melhores que o senhor;
pessoas cem vezes melhores; com idéias e opiniões que o senhor jamais teve em
sua vida; muito mais refinadas e nobres.
— Com quem diabos você esteve?
— Se o senhor se torcer para esse lado, me fará arrancar os cabelos; e aí creio
que deixará de ter dúvidas de que sou concreta.
— Com quem você esteve, Jane?
— Não saberá isso de mim esta noite, senhor; tem de esperar até amanhã;
deixar minha história pela metade será, o senhor sabe, uma espécie de garantia de
que lhe aparecerei à mesa do desjejum para concluí-la. A propósito, devo tomar o
cuidado de não surgir em sua lareira com apenas um copo d'água então; devo
trazer-lhe pelo menos um ovo, para não falar do presunto frito.
— Sua enjeitada zombeteira... nascida de uma fada e criada por humanos!
Você me faz sentir como não me tenho sentido nestes doze meses. Se Saul
pudesse tê-la como seu David, o mau espírito teria sido exorcizado sem o auxílio
da harpa.
— Pronto, senhor, está penteado e decente. Agora vou deixá-lo; estive
viajando nestes últimos três dias, e creio que estou cansada. Boa-noite!
— Só uma palavra, Jane; havia apenas damas na casa onde você esteve?
Eu ri e escapuli, ainda a rir quando subia a escada. "Uma boa idéia!" pensei
com alegria. "Vejo que tenho o meio de apoquentá-lo e tirá-lo de sua melancolia
por algum tempo."
Muito cedo na manhã seguinte ouvi-o de pé e se movimentando, indo de
quarto em quarto. Assim que Mary desceu, ouvi a pergunta:
— A Srta. Eyre está aqui? — E depois. — Em que quarto você a pôs? É um
quarto seco? Ela já acordou? Vá perguntar se ela quer alguma coisa; e quando vai
descer?
Desci assim que achei que havia uma perspectiva de desjejum. Entrando na
sala bem de mansinho, tive uma visão dele antes que descobrisse minha presença.
Era de fato triste, assistir à subjugação daquele espírito vigoroso a uma
enfermidade física. Ele se sentava em sua cadeira — quieto, mas não em repouso;
evidentemente à espera; as linhas da tristeza agora habitual marcando-lhe as
vigorosas feições. Sua expressão parecia a de uma lâmpada apagada, que espera
ser reacesa; e, ai!, não era ele próprio que podia agora acender o lustro da
expressão animada; dependia de outrem para esse ofício! Eu pretendera ser alegre
e descuidada, mas a impotência daquele homem forte comoveu-me até o fundo do
coração; contudo, abordei-o com a animação que consegui.
— Está uma bela e ensolarada manhã, senhor — disse. — A chuva passou e
se foi, e há uma terna luminosidade depois dela; deve dar um passeio daqui a
pouco.
Despertara o fulgor; suas feições estavam radiantes.
— Oh, você está realmente aí, minha cotovia! Venha aqui. Não se foi, não
sumiu? Ouvi uma irmã sua há uma hora, cantando alto no bosque; mas seu canto
não tinha música para mim, não mais do que o sol nascente tinha raios. Toda
melodia da terra se concentra na língua de minha Jane para meus ouvidos (e fico
feliz por não ser uma língua naturalmente silenciosa); todo o sol que posso sentir
é na presença dela.
As lágrimas brotaram em meus olhos ao ouvir essa admissão de sua
dependência; exatamente como uma águia real, acorrentada a um poleiro, se veria
obrigada a suplicar a um pardal que se tornasse seu aprovisionador. Mas eu não
seria lacrimosa; enxuguei as gotas salgadas e ocupei-me em preparar o desjejum.
Passamos a maior parte da manhã ao ar livre. Levei-o do úmido e inculto
bosque para uns campos cheios de vida; descrevi-lhe como eram de um verde
brilhante; como as flores e folhas pareciam renovadas; como o céu era de um azul
cintilante. Procurei um assento para ele num local escondido e adorável, um toco
de árvore seco; e não me recusei a deixar que, depois de sentado, me tomasse nos
joelhos. Por que deveria recusar, se ambos nos sentíamos mais felizes juntos que
separados? Pilot deitava-se a nosso lado; tudo estava quieto. Ele irrompeu de
repente, tendo-me em seus braços:
— Cruel, cruel desertora! Oh, Jane, o que passei quando descobri que você
tinha fugido de Thornfield Hall, e quando não consegui encontrá-la em parte
alguma; e, após examinar seu quarto, constatei que não levara dinheiro nem
qualquer coisa que pudesse servir como equivalente! Um colar de pérola que eu
lhe dera lá estava, intocado, em seu pequeno estojo; seus baús tinham sido
deixados amarrados e fechados como se estivessem preparados para a viagem
nupcial. Que podia minha querida fazer, eu perguntava, assim pobre e sem
vintém? E que foi que fez? Conte-me agora.
Assim exortada, comecei a narrativa daquele último ano. Suavizei
consideravelmente o que se referia aos três dias que passara vagando faminta,
porque contar-lhe tudo teria sido infligir-lhe um sofrimento desnecessário; o
pouco que contei lhe dilacerou mais profundamente o fiel coração do que eu
gostaria.
Disse-me que eu não devia tê-lo deixado assim, sem nenhum meio de abrir
meu caminho; devia ter-lhe comunicado minha intenção. Devia ter confiado nele;
jamais me teria forçado a ser sua amante. Apesar de parecer violento em seu
desespero, na verdade me amava demasiado e demasiado ternamente para tornar-
se meu tirano; ter-me-ia dado metade de sua fortuna, sem exigir nem um beijo em
troca, em vez de eu me jogar assim sem amigos no vasto mundo. Tinha certeza de
que eu suportara mais do que lhe confessava.
— Bem, quaisquer que tenham sido meus sofrimentos, foram muito breves —
respondi; e depois passei a contar-lhe como fora recebida em Moor House; como
conseguira o cargo de professora etc. O acesso à fortuna, a descoberta de meus
parentes, tudo na devida ordem. Evidentemente, o nome de St. John Rivers vinha
freqüentemente à baila no desenrolar da história. Quando acabei, esse nome foi
imediatamente tomado.
— Esse St. John é então seu primo?
— Sim.
— Você falou dele muitas vezes; gosta dele?
— Foi um homem muito bom, senhor; eu não podia deixar de gostar dele.
— Um homem bom. Isso quer dizer um homem respeitável, bem comportado,
de cinqüenta anos? Ou que quer dizer?
— St. John tinha apenas vinte e nove anos, senhor.
— Jeune encore*, como dizem os franceses. É uma pessoa de baixa estatura,
fleumática e sem atrativos? Uma pessoa cuja bondade consiste mais na ausência
de vício do que em suas proezas na virtude? * Ainda jovem. (N. do T.)
— Ele é incansavelmente ativo. Vive para realizar grandes e nobres ações.
— Mas o cérebro dele? É provavelmente um tanto mole? Tem boas intenções;
mas a gente dá de ombros ao ouvi-lo?
— Ele fala pouco, senhor; e o que diz é sempre objetivo. Seu cérebro é de
primeira: eu o julgaria não impressionante, mas vigoroso.
— É um homem capaz, então?
— Realmente capaz.
— Um homem inteiramente educado?
— St. John é um erudito completo e profundo.
— Suas maneiras, creio que você disse, não lhe agradam... pedante e
doutorais?
— Eu nunca me referi às suas maneiras; mas, a menos que eu tenha um muito
mau gosto, elas devem agradar-me; são polidas, calmas e cavalheirescas.
— A aparência dele... esqueci a descrição que você fez da aparência; um cura
grosso, meio estrangulado com seu colarinho branco e empertigado em sapatos de
solas grossas e saltos baixos, não?
— St. John veste-se bem. É um homem bonito; alto, louro, com olhos azuis e
um perfil grego.
(À parte). — Diabos o levem! (Para mim). — Você gostou dele, Jane?
— Sim, Sr. Rochester, gostei dele; mas já me perguntou isso antes.
Percebi, evidentemente, a mudança em meu interlocutor. Os ciúmes haviam-
se apoderado dele; espetavam-no; mas o ferrão era salutar; dava-lhe alívio das
dilacerantes presas da melancolia. Por conseguinte, eu não iria logo adormecer a
serpente.
— Talvez a senhorita prefira não se sentar mais em meus joelhos, Srta. Eyre
— foi a próxima observação, um tanto inesperada.
— Por que não, Sr. Rochester?
— O retrato que acaba de pintar sugere um contraste um tanto arrasador
demais. Suas palavras delinearam muito lindamente um gracioso Apoio; ele está
presente em sua imaginação... alto, louro, olhos azuis e com um perfil grego. Seus
olhos estão agora num Vulcano... um verdadeiro ferreiro, moreno, atarracado, e
cego e aleijado ainda por cima.
— Nunca pensei nisso; mas o senhor sem dúvida se parece com Vulcano,
senhor.
— Bem, pode deixar-me, madame; mas antes de se ir (e ele me reteve mais
fortemente que nunca), pode me fazer o favor de responder uma ou duas
perguntas. — Fez uma pausa.
— Que perguntas, senhor? Então veio o seu interrogatório.
— St. John a fez professora de Morton antes de saber que você era sua prima?
— Sim.
— Você o via com freqüência? Ele visitava a escola às vezes?
— Todo dia.
— Ele aprovava seus planos, Jane? Sei que seriam planos inteligentes, pois
você é uma criatura de talento.
— Ele os aprovava... sim.
— Ele descobria muitas coisas em você que não esperava encontrar? Alguns
de seus dotes não são comuns.
— Disso eu não sei.
— Você disse que tinha uma cabana junto à escola; ele ia lá vê-la?
— De vez em quando.
— À noite?
— Uma ou duas vezes. Uma pausa.
— Quanto tempo você morou com ele e as irmãs, depois que se descobriu o
parentesco?
— Cinco meses.
— Rivers passava muito tempo com as damas da família?
— Sim; a sala de estar de trás era ao mesmo tempo seu estúdio e o nosso; ele
se sentava perto da janela, e nós à mesa.
— Ele estudava muito?
— Um bocado.
— O quê?
— Hindustânico.
— E que fazia você enquanto isso?
— A princípio estudei alemão.
— Ele lhe ensinou?
— Não sabia alemão.
— Não lhe ensinou nada?
— Um pouco de hindustânico.
— Rivers lhe ensinou hindustânico?
— Sim, senhor.
— E às irmãs também?
— Não.
— Só a você?
— Só a mim.
— Você pediu para aprender?
— Não.
— Ele quis ensinar-lhe?
— Sim.
Uma segunda pausa.
— Por que quis? Para que lhe serviria o hindustânico?
— Ele queria que eu fosse com ele para a índia.
— Ah! Chego agora à raiz da questão. Ele queria que você se casasse com
ele?
— Pediu-me que me casasse com ele.
— Isso é uma ficção... uma impudente invenção para me atormentar.
— Perdão, é a verdade literal; ele me pediu mais de uma vez, e foi tão
insistente em bater nesse ponto quanto o senhor algum dia poderia ser.
— Srta. Eyre, repito que pode me deixar. Quantas vezes tenho de dizer a
mesma coisa? Por que continua insistentemente empoleirada em meus joelhos,
quando eu já lhe disse que saísse?
— Porque me sinto bem aqui.
— Não, Jane, você não se sente bem aqui, porque seu coração não está
comigo; está com seu primo... esse St. John. Oh, até este momento eu pensava
que minha pequena Jane era inteiramente minha! Acreditava que ela me amava
mesmo quando me deixou; isso era um átomo de doçura em todo aquele amargor.
Apesar da longa separação, das lágrimas escaldantes que verti por causa de nossa
separação, nunca pensei que, enquanto sofria por ela, ela estava amando outro!
Mas é inútil lamentar. Jane, deixe-me; vá casar-se com Rivers.
— Afaste-me então, senhor... empurre-me daqui, pois não o deixarei por
minha própria vontade.
— Jane, sempre gosto de seu tom de voz; renova a esperança, soa tão sincero.
Quando o ouço, ele me leva de volta a um ano atrás... Esqueço que você formou
uma nova ligação. Mas não sou tolo... vá...
— Para onde devo ir, senhor?
— Siga seu próprio caminho... com o marido que escolheu.
— E quem é?
— Você sabe... esse St. John Rivers.
— Ele não é meu marido, e nunca será. Ele não me ama; eu não o amo. Ele
ama (como pode amar, e não é como o senhor ama) uma linda jovem dama
chamada Rosamond. Queria casar-se comigo apenas porque achava que eu daria
uma esposa adequada para um missionário, o que ela não poderia ter feito. Ele é
bom e grande, mas severo; e, para mim, frio como um iceberg. Ele não é como o
senhor. Não me sinto feliz ao lado dele, nem perto dele, nem com ele. Ele não tem
tolerância para mim... nenhuma amizade. Não vê nada atraente em mim... só
alguns pontos mentais úteis... Então devo deixá-lo, senhor, e ir para ele?
Estremeci involuntariamente, e apeguei-me com mais força ao meu cego mas
amado amo. Ele sorriu.
— Que, Jane! Isso é verdade? É essa realmente a situação entre você e
Rivers?
— Sim, absolutamente, senhor! Oh, não precisa ter ciúmes! Eu queria
provocá-lo um pouco, para deixá-lo menos triste; achei que a raiva seria melhor
que o sofrimento. Mas se quer que eu o ame, se pudesse ver quanto eu o amo,
ficaria orgulhoso e contente. Todo o meu coração lhe pertence, senhor; e com o
senhor ficaria, mesmo que o destino exilasse o resto de mim de sua presença para
sempre.
Mais uma vez, enquanto ele me beijava, pensamentos dolorosos
obscureceram-lhe o rosto.
— Minha visão perdida! Minha força aleijada! — murmurou lamentosamente.
Acariciei-o, para consolá-lo. Sabia em que ele pensava, e queria falar por ele,
mas não ousava. Quando voltou o rosto um minuto, vi uma lágrima escorrer
debaixo da pálpebra selada e deslizar pela face viril. Senti o coração inchar.
— Não sou melhor que o velho castanheiro atingido pelo raio no pomar de
Thornfield — ele observou daí a pouco. — E que direito teria aquela ruína a que
uma madressilva em flor cobrisse de frescor sua decomposição?
— O senhor não é nenhuma ruína... nenhuma árvore atingida por um raio; está
verde e vigoroso. Crescerão plantas em torno de suas raízes, quer lhes peça ou
não, porque elas gostam de sua sombra farta; e quando crescerem, tenderão para o
senhor, e se enroscarão à sua volta, porque sua força lhes oferece um apoio tão
seguro.
Ele voltou a sorrir; eu lhe dava conforto.
— Você fala de amigos, Jane? — perguntou.
— Sim, de amigos — respondi um tanto hesitantemente: pois sabia que me
referia a mais que amigos, mas não sabia que outra palavra usar. Ele me ajudou.
— Ah, Jane! Mas eu quero uma esposa.
— Quer, senhor?
— Sim; isso é novidade para você?
— Evidentemente; o senhor não disse nada sobre isso antes.
— É uma notícia importuna?
— Isso depende das circunstâncias, senhor... de sua escolha.
— Que você fará por mim, Jane. Respeitarei sua decisão.
— Escolha então, senhor... aquela que mais o ama.
— Escolherei ao menos... aquela a quem mais amo. Jane, quer casar-se
comigo?
— Sim, senhor.
— Um pobre cego, a quem terá de conduzir por aí pela mão?
— Sim, senhor.
— Um aleijado, vinte anos mais velho que você, a quem terá de assistir?
— Sim, senhor.
— É verdade, Jane?
— A máxima verdade, senhor.
— Oh, minha querida! Deus a abençoe e recompense!
— Sr. Rochester, se algum dia fiz uma boa ação em minha vida... se algum
tive um bom pensamento... se algum dia fiz uma prece sincera e sem culpa... se
algum dia tive um desejo virtuoso... estou recompensada agora. Ser sua esposa é,
para mim, ser tão feliz quanto posso ser na terra.
— Por que sente prazer no sacrifício?
— Sacrifício? Que é que sacrifico? A fome pelo alimento, a expectativa pela
satisfação. Ter o privilégio de pôr os braços em volta do que valorizo... apertar
meus lábios no que amo... repousar no que confio; isso é fazer sacrifício? Se é,
sem dúvida eu tenho prazer com o sacrifício.
— E suportar minhas enfermidades, Jane; passar por cima de minhas
deficiências.
— Que não existem, senhor, para mim. Amo-o mais agora, quando posso
realmente ser-lhe útil, do que quando o senhor tinha sua orgulhosa independência,
quando desdenhava todo papel que não o de doador e protetor.
— Até agora eu odiava ser ajudado... ser conduzido; daqui para a frente, sinto
que não mais odiarei. Não gostava de pôr a mão na de um criado, mas é agradável
senti-la envolvida pelos dedinhos de Jane. Eu preferia a mais absoluta solidão à
constante assistência dos criados; mas a doce ajuda de Jane será uma perpétua
alegria. Jane me serve; sirvo eu a ela?
— Até a mais tênue fibra de minha natureza, senhor.
— Sendo assim, não temos nada no mundo por que esperar; devemos nos
casar já.
Falava e parecia ávido; sua antiga impetuosidade ressurgia.
— Devemos nos tornar a mesma carne sem demora, Jane; falta apenas tirar a
licença... e depois nos casaremos.
— Sr. Rochester, acabo de descobrir que o sol há muito passou de seu
meridiano e Pilot na verdade já foi para casa comer. Deixe-me ver seu relógio.
— Ponha-o em sua cinta, Jane, e mantenha-o aí de agora em diante; não
preciso dele.
— São quase quatro da tarde, senhor. Não está com fome?
— Daqui a três dias será o nosso casamento, Jane. Deixe para lá as belas
roupas e jóias, agora; nada disso vale nada.
— O sol secou todas as gotas de chuva, senhor. O vento está parado; está
muito quente.
— Sabe, Jane, que tenho o seu pequeno colar de pérolas, neste momento,
preso em volta do pescoço, debaixo da gravata? Estou usando-o desde o dia em
que perdi meu tesouro, como uma lembrança dela.
— Voltaremos para casa pelo bosque; será o caminho mais à sombra.
Ele seguiu com seus próprios pensamentos, sem me dar atenção.
— Jane! Aposto que você me julga um cão sem religião; meu coração
transborda de gratidão ao benigno Deus desta terra neste momento. Ele não vê
como um homem, mas com muito mais clareza; não julga como o homem, mas
com muito mais sabedoria. Eu errei; teria maculado minha flor inocente... lançado
a culpa sobre sua pureza; a Onipotência arrancou-a de mim. Eu, em minha
obstinada rebelião, quase maldisse a medida: em vez de curvar-me ao decreto,
desafiei-o. A justiça divina seguiu o seu curso, e a tragédia se abateu sobre mim;
fui forçado a atravessar o vale das sombras da morte. Os castigos d'Ele são
poderosos; e sobre mim caiu um que me deixou humilde para sempre. Você sabe
que eu era orgulhoso de minha força; mas que é ela agora, quando devo entregá-la
à orientação alheia, como uma criança em sua fraqueza? Ultimamente, Jane...
apenas... apenas ultimamente... comecei a ver e a reconhecer a mão de Deus em
minha condenação. Comecei a sentir remorso, arrependimento, o desejo de
reconciliar-me com meu Criador. Comecei às vezes a rezar; preces muito breves,
mas muito sinceras.
"Há alguns dias; não, posso contar três... quatro; foi na última segunda-feira à
noite, um estado de espírito singular se apoderou de mim; um estado em que a dor
substituiu o frenesi ... mágoa, abatimento. Eu tinha, havia muito, a impressão de
que, já que não podia encontrá-la em parte alguma, você devia estar morta. Tarde
daquela noite, talvez fosse entre as onze e as doze horas, antes de retirar-me para
meu árido descanso, supliquei a Deus que, se lhe aprouvesse, eu poderia em breve
ser chamado desta vida e admitido naquele mundo a vir, onde havia ainda alguma
esperança de juntar-me a Jane. "Estava em meu quarto, sentado diante da janela,
que estava aberta; aliviava-me sentir o fragrante ar da noite; embora não pudesse
ver as estrelas, e só por uma vaga névoa luminosa reconhecesse a presença da lua.
Ansiava por você, Jane! Oh, como ansiava por você com corpo e alma! Perguntei
a Deus, com angústia e humildade, se já não estava desolado, aflito, atormentado
há tempo suficiente; e se não podia logo provar a felicidade e a paz mais uma vez.
Reconhecia que merecia tudo por que passava... mas dizia que dificilmente
poderia suportar mais; e todos os desejos de meu coração irromperam-me
involuntariamente dos lábios nas palavras: 'Jane! Jane! Jane!' "
— Falou essas palavras em voz alta?
— Falei, Jane. Se alguém me tivesse ouvido, julgaria que eu estava louco,
pois as pronunciei com tal energia frenética.
— E isso foi na última segunda-feira à noite, mais ou menos perto da meia-
noite?
— Sim, mas o momento não tem importância; o que veio a seguir é que é o
mais estranho. Você me julgará supersticioso... tenho um pouco de superstição no
sangue, sempre tive; contudo, isto é verdade... pelo menos é verdade que ouvi o
que vou contar agora.
"Quando exclamei 'Jane! Jane! Jane!', uma voz — não posso dizer de onde
veio, mas sei de quem era — respondeu: 'Estou indo; espere por mim.' E um
momento depois, continuou sussurrando no vento as palavras: 'Onde está você?'
"Eu lhe direi, se puder, a idéia, o quadro que essas palavras abriram à minha
mente; mas é difícil expressar o que desejo expressar. Ferndean está enterrada,
como você vê, numa mata fechada, onde o som não se propaga muito, e morre
sem eco. Aquele 'Onde está você' parecia ter sido falado entre montanhas; pois
ouvi um eco de montanhas repetir as palavras. Mais frio e fresco no momento, o
vento pareceu bater-me na testa; eu podia ter julgado que em algum cenário
selvagem e solitário, eu e Jane nos encontrávamos. Em espírito, creio, podemos
ter-nos encontrado. Você sem dúvida estava, naquela hora, mergulhada na
inconsciência do sono; talvez sua alma se desligasse de sua cela para confortar a
minha; pois aquela era a sua voz... tão certo como estou vivo... era!"
Leitor, fora na segunda-feira à noite — perto da meia-noite
— que eu também recebera o misterioso apelo; aquelas eram as mesmas
palavras com que eu o tinha respondido. Ouvi a história do Sr. Rochester, mas
não fiz nenhuma revelação em troca. A coincidência me pareceu demasiado
terrível e inexplicável para ser comunicada ou discutida. Se eu dissesse alguma
coisa, minha história seria tal, que necessariamente causaria uma profunda
impressão na mente dele; e aquela mente, ainda muito inclinada à tristeza por seus
sofrimentos, não precisava da sombra mais negra do sobrenatural. Silenciei sobre
essas coisas, assim, e fiquei a ponderá-las em meu íntimo.
— Você não pode se admirar agora — continuou meu amo
— pelo fato de que, quando me surgiu tão inesperadamente ontem à noite,
tive dificuldade de acreditar que era mais que uma simples voz e visão, algo que
se desfaria em silêncio e aniquilação, como o sussurro e o eco das montanhas se
desfizera antes. Agora, dou graças a Deus! Sei que não é assim. Sim, dou graças a
Deus!
Tirou-me dos joelhos, levantou-se e, reverentemente erguendo o chapéu da
testa, e baixando os olhos cegos para a terra, assim ficou em muda devoção.
Somente as últimas palavras de sua prece me chegaram:
— Dou graças ao meu Criador, porque, em meio ao julgamento, Ele se
lembrou da piedade. Peço humildemente ao meu Redentor que me dê forças para,
de agora em diante, levar uma vida mais pura que a que tenho levado até agora!
Depois, estendeu a mão, para ser conduzido. Tomei aquela mão querida,
levei-a por um momento aos meus lábios, e depois deixei-a passar pelos meus
ombros; sendo tão mais baixa que ele, servia-lhe ao mesmo tempo de apoio e
guia. Entramos na mata e voltamos para casa.
CAPÍTULO 38
LEITOR, casei-me com ele. Foi um casamento discreto; só ele e eu, o pároco
e o sacristão estávamos presentes. Quando voltamos da igreja, entrei na cozinha
da mansão, onde Mary preparava o jantar e John limpava as facas, e disse:
— Mary, casei-me com o Sr. Rochester hoje de manhã. — A governanta e o
marido eram ambos desse tipo de pessoa decente, fleumática, a quem se pode a
qualquer momento comunicar uma notícia extraordinária sem correr o risco de
ter-se os tímpanos estourados por alguma aguda exclamação, e depois inundados
por uma torrente de palavroso espanto. Mary ergueu o olhar e me fixou; a concha
com que untava dois frangos que assavam no fogo ficou suspensa no ar por uns
três minutos, e durante esse mesmo espaço de tempo as facas de John também
tiveram um descanso do processo de polimento; mas Mary, tornando a curvar-se
sobre o assado, disse apenas:
— Foi, senhorita? Bem, claro! Pouco tempo depois, acrescentou:
— Vi a senhorita sair com o patrão, mas não sabia que iam à igreja casar-se.
— E continuou a untar. John, quando me voltei para ele, estava sorrindo de uma
orelha a outra.
— Eu disse a Mary que seria assim — ele disse. — Eu sabia o que o Sr.
Edward (John era um velho criado, e conhecera seu patrão quando ele era o
caçula da casa, e por isso sempre o chamava pelo primeiro nome)... Eu sabia o
que o Sr. Edward ia fazer; e tinha certeza de que não ia esperar muito tempo
também; e ele fez bem, pelo que me consta. Desejo-lhe felicidade, senhorita! — e
polidamente afastou o cabelo da testa.
— Obrigada, John. O Sr. Rochester me pediu que desse a você e a Mary isto.
Pus na mão dele uma nota de cinco libras. Sem esperar para ouvir mais nada,
deixei a cozinha. Ao passar pela porta daquele santuário algum tempo depois,
entreouvi as palavras:
— Ela será melhor para ele que uma daquelas grandes damas. — E depois: —
Embora não seja das mais bonitas, não é feia, e tem uma natureza muito boa; e
para ele é muito bonita, qualquer um pode ver isso.
Escrevi para Moor House e para Cambridge imediatamente, para dizer o que
tinha feito; explicando inteiramente, também, porque agira dessa forma. Diana e
Mary aprovaram o passo sem reservas. Diana anunciou que me daria apenas o
tempo para passar a lua-de-mel, e depois viria ver-me.
— Era melhor ela não esperar até então, Jane — disse o Sr. Rochester, quando
li a carta para ele. — Se esperar, chegará tarde demais, pois nossa lua-de-mel
brilhará por toda a nossa vida; sua luz só se apagará sobre a sua cova ou a minha.
Como St. John recebeu a notícia, não sei; nunca respondeu à carta em que a
comuniquei; mas seis meses depois ele me escreveu, sem no entanto mencionar o
Sr. Rochester ou se referir ao meu casamento. Sua carta era muito calma, e apesar
de muito séria, bondosa. Tem mantido uma correspondência regular, embora não
freqüente, desde então; espera que eu esteja feliz, e confia em que eu não seja
daqueles que vivem sem Deus no mundo, importando-se apenas com coisas
terrestres.
Você não esqueceu inteiramente a pequena Adèle, esqueceu, leitor? Eu não
esqueci; logo pedi e obtive permissão do Sr. Rochester para ir vê-la na escola
onde a pusera. Sua frenética alegria ao tornar a ver-me comoveu-me muito. Ela
parecia pálida e magra; disse que não era feliz. Descobri que as regras do
estabelecimento eram muito severas, os estudos muito estritos, para uma criança
da idade dela; trouxe-a para casa comigo. Pretendia tornar-me mais uma vez sua
governanta, mas logo descobri que isso era impraticável; minhas horas e atenções
eram agora exigidas por outro — meu marido precisava de todas elas. Assim,
procurei uma escola baseada num sistema mais indulgente, e próxima o bastante
para permitir-me visitá-la com freqüência, e trazê-la para casa às vezes. Cuidei
para que nunca lhe faltasse nada que pudesse contribuir para o seu conforto; ela
logo se instalou na nova morada, tornou-se muito feliz ali e fez bons progressos
nos estudos. À medida que crescia, uma sadia educação inglesa corrigia em
grande parte seus defeitos franceses; e quando deixou a escola, encontrei nela
uma companhia agradável e prestativa — dócil, de boa natureza e bons princípios.
Com sua grata atenção a mim e aos meus, há muito recompensou bem qualquer
pequena bondade que algum dia pude oferecer-lhe.
Minha história chega ao fim; mais uma palavra a respeito de minha
experiência de vida matrimonial, e um breve relance àqueles cujos nomes mais
freqüentemente figuraram nesta narrativa, e terei acabado.
Estou casada há dez anos. Sei o que é viver inteiramente para e com aquilo
que mais amo na terra. Considero-me supremamente abençoada — abençoada
além do que as palavras podem dizer; porque sou a vida dele, assim como ele é a
minha. Nenhuma mulher jamais foi tão ligada ao seu marido quanto eu; cada vez
mais absolutamente sangue de seu sangue e carne de sua carne. Não conheço
cansaço da companhia de meu Edward; ele não conhece nenhum da minha, não
mais do que cada um de nós sente da pulsação que bate em nossos peitos
distintos; conseqüentemente, estamos sempre juntos. Estarmos juntos é, para nós,
sermos ao mesmo tempo tão livres como na solidão, e tão alegres como em
companhia. Conversamos, creio, o dia todo; falar um ao outro é apenas uma
forma de pensar mais animada e audível. Dou toda a minha confiança a ele, e
todas as dele me são dedicadas; combinamos perfeitamente em caráter — e a
perfeita concórdia é o resultado.
O Sr. Rochester continuou cego durante os dois primeiros anos de nossa
união; talvez tenha sido essa circunstância que nos aproximou tanto; que nos uniu
tão intimamente; pois eu era então a sua vista, como ainda sou sua mão direita.
Literalmente, eu era (o que ele me chamava freqüentemente) a menina de seus
olhos. Ele via a natureza, via os livros, através de mim; e eu nunca me cansava de
olhar por ele, de pôr em palavras o efeito dos campos, árvores, cidades, rios,
nuvens, i raios de sol — da paisagem diante de nós; do tempo à nossa volta — e
transmitir pelo som aos seus ouvidos o que a luz não mais podia gravar em seus
olhos. Jamais me cansei de ler para ele; jamais me cansei de conduzi-lo aonde ele
queria ir; de fazer para ele o que ele queria que se fizesse. E havia em meus
serviços um prazer mais pleno, mais perfeito, mesmo que triste — porque ele
reclamava esses serviços sem penosa vergonha ou triste humilhação. Ele me
amava tão sinceramente que não conhecia relutância em valer-se de minha
assistência; sentia que eu o amava com tanto carinho, que entregar-se a essa
assistência era satisfazer meus mais doces desejos.
Certa manhã, ao fim dos dois anos, quando eu escrevia uma carta ditada por
ele, ele veio e se curvou sobre mim, e disse:
— Jane, você tem um adorno brilhante em torno do pescoço? Eu tinha uma
corrente de relógio, de ouro; respondi; — Sim.
— E está com um vestido azul-claro?
Eu estava. Ele me informou então que havia algum tempo imaginava que a
obscuridade que enevoava um de seus olhos se tornava menos densa; e que agora
tinha certeza disso.
Fomos a Londres. Ele consultou um eminente oculista; e acabou recuperando
a visão de um olho. Não pode ver agora muito claramente; não pode ler ou
escrever muito; mas pode encontrar seu caminho sem ser conduzido pela mão: o
céu não é mais um vazio para ele — a terra não mais um vácuo. Quando seu
primogênito lhe foi posto nos braços, ele pôde ver que o menino herdara seus
olhos, como eram antigamente — grandes, brilhantes e negros. Nessa ocasião,
tornou a reconhecer, com o coração transbordante, que Deus temperara o
julgamento com a piedade.
Meu Edward e eu, assim, somos felizes; e tanto mais porque aqueles a quem
amamos são igualmente felizes. Diana e Mary casaram-se; e todo ano,
alternadamente, elas vêm ver-nos, e, nós vamos vê-las. O marido de Diana é
capitão da Marinha, um galante oficial, e um bom homem. O de Mary é um
clérigo, colega de colégio de seu irmão, e, por seus feitos e princípios, digno dessa
ligação. Tanto o Capitão Fitzjames quanto o Sr. Wharton amam suas esposas, e
são amados por elas.
Quanto a St. John, deixou a Inglaterra; foi para a índia. Enveredou pelo
caminho que traçara para si; e ainda continua nele. Nunca pioneiro mais decidido
e incansável labutou entre rochedos e perigos. Firme, fiel e dedicado, cheio de
energia e zelo, e sinceridade, trabalha pela sua raça; abre o penoso caminho dela
para o aperfeiçoamento; destroça como um gigante os preconceitos de credo e
casta que a estorvam. Pode ser severo; pode ser exigente; pode ser ambicioso
ainda; mas a sua severidade é do guerreiro Grande Coração, que guarda seu
comboio de peregrinos do ataque de Apollyon. A sua exigência é a do apóstolo,
que fala apenas por Cristo, quando diz: "Quem quer que venha atrás de mim, que
se negue a si mesmo, tome sua cruz e Me siga." Sua ambição é a do elevado
espírito-mestre, que busca preencher um lugar na primeira fila daqueles que são
redimidos da terra — que se erguem impecáveis diante do trono de Deus, que
partilham das últimas e poderosas vitórias do Cordeiro, que são chamados, e
escolhidos, e fiéis.
St. John é solteiro; nunca mais se casará agora. Até agora, tem-se bastado para
o trabalho, e o trabalho chega ao fim; seu glorioso sol apressa-se a pôr-se. A
última carta que recebi dele extraiu lágrimas de meus olhos humanos, mas encheu
meu coração de divina alegria; ele previa sua certa recompensa, sua incorruptível
coroa. Sei que uma mão estranha será a próxima a me escrever, para dizer que o
bom e fiel servo foi afinal chamado ao júbilo de seu Senhor. E por que chorar por
isso? A última hora de St. John não será obscurecida por nenhum temor da morte;
sua mente estará desanuviada, seu coração impávido, sua esperança certa, sua fé
firme. Suas próprias palavras são uma promessa disso:
"Meu Senhor", ele diz, "me avisou com antecedência. Todo dia, Ele anuncia
mais claramente: 'Sem dúvida estou indo rápido!', e a cada hora eu respondo com
mais avidez: 'Amém; mesmo assim, venha, Senhor Jesus!'"
FIM