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Em construção Um estado da arte portuguesa em 2014 Lynch, Warhol, Burroughs com a fotogra fia colada à pele Sexta-feira | 14 Fevereiro 2013 | ipsilon.publico.pt FERNANDO VELUDO/NFACTOS ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 8708 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Em construçãoUm estado da arte portuguesa em 2014

Lynch, Warhol, Burroughs com a fotografia colada à pele

Sexta-feira | 14 Fevereiro 2013 | ipsilon.publico.ptFERNANDO VELUDO/NFACTOS ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 8708 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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rachmaninovsibelius

20 + 21 Fevereiroquinta, 21:00h — Grande Auditóriosexta, 19:00h — Grande Auditório

Orquestra GulbenkianJukka-Pekka Saraste maestro

Jorge Luis Prats piano

17 Fevereirosegunda, 19:00h — Grande Auditório

mozartjanácekdvorák

Quarteto TakácsMarc Ramirez contrabaixo

21 + 22 Fevereirosexta / sábado 21:30h — Teatro Maria Matos

Asko|Schönberg Ensemble Etienne Siebens maestro

Katie Mitchell encenação

The House Taken Overópera de vasco mendonça

música sacra e tradicional de autores catalães

fauréRequiem op. 48 (versão com órgão)

16 Fevereirodomingo, 19:00h — Grande Auditório

Orfeó Català e Cor De CambraPalau de la Música CatalanaJosep Vila i Casañas maestro

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 3

Sumário6: 12 ContemporâneosPortugal, 2014: um estado da arte em Serralves

12: Andy Warhol, William Burroughs, David LynchProfi ssão: fotógrafos

16: Mler Ife DadaTrinta anos depois, a aventura continua

18: Sensible SoccersPenetrando no mainstream

20: Jefta van DintherO rapaz-maravilha dança em Guimarães

22: Estrada da RevoluçãoEra uma vez a Primavera Árabe em português

Flas

hFicha TécnicaDirectora Bárbara Reis

Editores Vasco Câmara,

Inês Nadais

Design Mark Porter,

Simon Esterson

Directora de arte Sónia Matos

Designers Ana Carvalho,

Carla Noronha, Mariana Soares

E-mail: [email protected]

prisão), entrou na clandestinidade

e começou a escrever a sua ode de

231 poemas à América Latina,

Canto Geral. Ou seja, afinal, saindo

ou não da trilogia, esta é uma

outra forma de Larraín continuar

a História do Chile na sua

filmografia. O realizador escreve

neste momento o argumento com

o dramaturgo Guillermo Calderón,

co-autor de Violeta Went to Heaven,

de Andres Wood, o Prémio do Júri

World Cinema em Sundance 2012.

Um retrato do poeta Pablo

Neruda: é assim que o cineasta

chileno Pablo Larraín “sai” da sua

trilogia sobre o Chile — não

programada, mas que assim se foi

constituindo, à medida que Tony

Manero deu lugar a Post Mortem e

Pablo Larraín canta Pablo Neruda

a este filme se sucedeu Não, e

assim a memória, de Salvador

Allende e de Augusto Pinochet, foi

sendo exumada. Neruda, título de

trabalho, será uma aproximação

ao Prémio Nobel de 1971, um

gigante da literatura latino-

Americana, no momento em que,

entre os anos 1946 e 1948, se filiou

no Partido Comunista chileno, foi

eleito senador, falou publicamente

contra a prisão de mineiros em

greve (e por isso foi ameaçado de

HO

/AFP

O filme do cineasta chileno aproximar-se-á do poeta (aqui, com Salvador Allende) nos seus anos de maior activismo político

Uma multidão procura comprar ouro nos últimos dias do Kuomintang, em Xangai: Cartier-Bresson foi um viajante incansável

Uma “extraordinária” testemunha do século XX revisitadaHenri Cartier-Bresson morreu em

2004, aos 95 anos, e passou boa

parte da vida a fotografar, criando

um amplo e diversificado corpo de

trabalhos que nos dá uma visão

muito pessoal do que foi o século

XX em todas as suas convulsões.

Uma obra que foi já extensamente

dissecada, que deixou lastro na

actividade de muitos dos grandes

fotojornalistas que se seguiram a

este francês a quem devemos “o

instante decisivo”, e que prova

sem dificuldades que há um antes

e um depois de Cartier-Bresson.

O Centro Georges Pompidou, em

Paris, acaba justamente de

inaugurar, anteontem, uma

grande retrospectiva do fotógrafo,

a primeira na Europa desde a sua

morte. A exposição, organizada

cronologicamente, pretende

mostrar Cartier-Bresson não

esquece os ícones que deixou na

fotografia, mas mostra também

trabalhos menos conhecidos,

alguns no domínio da pintura, do

desenho e do cinema (chegou a

ser assistente de realização de

Jean Renoir). Aproveitando o

trabalho realizado nos últimos dez

anos pela sua fundação no que

toca ao arquivo pessoal (hoje estão

acessíveis aos investigadores

cartas, cadernos de notas e

publicações que lhe pertenciam),

o Pompidou procura dar uma

perspectiva mais abrangente da

obra do artista, explorando a sua

relação com a imagem como um

todo, o que leva,

irremediavelmente, a uma

reflexão sobre o que procurava na

fotografia.

O primeiro núcleo desta mostra

que leva apenas o nome do

fotógrafo vai de 1926 a 1935 e

destaca a sua ligação ao grupo dos

surrealistas e as viagens pela

Europa, pelo México e pelos

Estados Unidos. No segundo

(1936-1946), privilegia-se o lado

político — a luta contra o fascismo,

a participação na imprensa

comunista, a cobertura da

Segunda Guerra Mundial. 1947

marca o arranque do último

módulo — com a criação da

agência de fotojornalismo

Magnum, ainda hoje uma das mais

respeitadas do mundo (Bresson

fez parte do grupo fundador com

três outros grandes fotógrafos:

Robert Capa, George Rodger e

David “Chim” Seymour) —, que

termina no começo da década de

1970, quando abandona a

reportagem.

Quem atravessar todas as galerias

atravessará o século XX, do

movimento surrealista à Guerra

Civil de Espanha, dos dois

conflitos mundiais ao Maio de 68,

passando pela ex-URSS, pelo

funeral de Gandhi, pela morte de

Estaline ou pelo doloroso

processo de descolonização.

“Cartier-Bresson é o único dos

grandes fotógrafos de cuja obra se

pode dizer que é uma história

pessoal do século XX”, disse Peter

Galassi, comissário da

retrospectiva que o Museu de Arte

Moderna de Nova Iorque lhe

dedicou em 1987, lembrado pelo

diário espanhol ABC.

O responsável pela exposição do

Pompidou, Clément Chéroux,

explica que tem três grandes

objectivos: mostrar, rejeitando

mitos e lugares-comuns, como

Cartier-Bresson se formou no

contacto com a geometria e a

pintura, essenciais ao seu sentido

de composição;

“recontextualizar” os vários

períodos da sua obra; e

demonstrar como ela constitui um

“testemunho extraordinário” do

século XX. “Estas três perspectivas

permitem compreendê-lo em toda

a sua complexidade, iluminando a

diversidade da sua obra.” Depois

de Paris, onde pode ser vista até 9

de Junho, a exposição segue para

a Fundación Mapfre, em Madrid.

Lucinda Canelas

GEORGE HOYNINGEN-HUENE/HORST/CORTESIA STALEY-WISE GALLERY

HENRI CARTIER BRESSON/MAGNUM PHOTOS/CORTESIA FONDATION HENRI CARTIER-BRESSON

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4 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Souto de Moura e Herberto Helder,

Álvaro Siza e Eugénio de Andrade:

“Sou um admirador fanático da

grande poesia, do modelo de rigor

de Eugénio, da precisão da sua

O processo criativo levou meses e

houve percalços pelo caminho —

mudança de ferramentas,

encruzilhadas técnicas,

inexperiência... Dores de parto

que não impediram o nascimento,

há um mês, da revista Mente,

talvez um dos primeiros projectos

editoriais portugueses de fôlego

pensados exclusivamente para o

suporte iPad. Um das motivações

da dupla de designers Vasco

Colombo e Raquel Porto, os

principais mentores, foi

experimentar um projecto que

lhes desse total liberdade criativa,

sem as condicionantes “de clientes

pouco dispostos a esperar ou a

pagar por eventuais erros”. Mas

foi também a vontade de

“contribuir com novas linguagens

editoriais e gráficas, coisas que

ainda não estão criadas”, que

moveu os criativos do estúdio +2

designers. “Por cá, o que tem sido

feito até agora é a tentativa de pôr

PDFs a mexer com um vídeo ou

outro, um link… são páginas

estruturadas para o papel e não é

assim que se deve pensar o iPad”,

afirma Vasco Colombo, que

procura agora sustentar a

continuidade da revista seduzindo

A Mente, projecto da dupla de designers Vasco Colombo e Raquel Porto, está disponível na loja iTunes: uma revista trimestral, em inglês, sobre tudo e sobre nada

patrocinadores.

Para o arranque da Mente, os dois

designers partiram de pelo menos

uma certeza: é preciso “redefinir

papéis” para explorar o máximo

de cada um dos suportes que hoje

coexistem. A partir daqui, o

processo de construção da revista

andou sempre colado a uma

pergunta: “Qual é a melhor forma

de contar esta estória num

suporte com as características do

iPad?” Objectivo: dar uma noção

tempo e de narrativa visual para

fazer com que apeteça passar (ou

deslizar) de ecrã para ecrã. Por

enquanto, a Mente será apenas

publicada em inglês, língua franca

para chegar à montra global que é

a loja da Apple. E o português?

“Mais depressa terá uma versão

para iPhone do que uma versão

bilingue.” A periodicidade é

trimestral, o tempo mínimo para

que se consiga publicar (e depois

ler e divulgar) uma revista com

esta ambição, que tem no vídeo,

na fotografia, no áudio e nas

fontes tipográficas as suas

principais armas criativas.

Pergunta inevitável: afinal, a

Mente é uma revista sobre quê? A

resposta do designer não veio à

primeira e foi preciso puxar de

exemplos como a Monocle (“uma

revista sobre tudo e sobre nada”)

para arrumar este novo projecto

editorial português no campo da

cultura visual e do lifestyle. Ou

seja, a Mente é uma revista sobre

tudo e sobre nada, que para dar

corpo ao seu número zero foi

buscar inspiração à moda

(storytailors, Dino Alves…), à

música ( Jerry the Cat, Afonso

Cruz…), à dança (Filipa de Castro),

à arte na pele (Inês Pais), à

ilustração ( Jorge Colombo) e aos

sons e às imagens de uma cidade

(Lisboa). Neste imenso caldo, há

até uma pequena provocação

editorial: uma entrevista com

David Carson, nome maior do

design gráfico impresso em papel.

Carson, que nunca foi grande

entusiasta do design ligado aos

pixéis, está hoje mais voltado para

a academia e para a criação de

campanhas para marcas globais.

Uma das farpas que lança na

Mente é a convicção de que já nada

pode ser inventado no design de

revistas em papel. Para este guru,

trata-se de um suporte esgotado

que será alvo de piadas do tipo

“Olha, querida, [uma revista]

impressa! Não se mexe!” Vasco

Colombo ainda acha que não será

bem assim, mas à cautela vai

experimentado outras andanças.

Quanto mais não seja para

garantir o gozo de pisar terrenos

desconhecidos, ou a sensação de

“encantamento da primeira vez”.

A Mente pode ser descarregada

gratuitamente na loja iTunes,

através da morada

mentemagazine.com

E agora para algo completamente novo: uma revista pensada para iPad

Sérgio B. Gomes

Sabendo que Alex Zhang Hungtai, o

músico que responde pelo nome de

Dirty Beaches, tinha decidido

mudar-se recentemente para

Lisboa, arriscámos que não deveria

demorar muito até ser anunciado

um concerto por cá. Ei-lo que chega

(o anúncio). O músico de Drifter /

Love is the Devil apresenta-se dia 3

de Abril no Teatro Maria Matos, em

Lisboa, numa co-produção com a

Galeria dos Zé Bois, associação

onde Hungtai cumpre actualmente

residência artística.

O concerto tem por título

Landscapes in the mist e pretende

A vida portuguesa de Dirty Beaches em concerto no Maria Matos

ser reflexo directo da sua

experiência em Portugal. Visão

muito pessoal, certamente, como

saberá quem lhe ouviu o

supracitado Drifter / Love is the

devil, disco que ouvimos, em

grande parte da sua duração,

como um diário das sensações

suscitadas por um ano de viagem

constante. Espere-se, portanto,

uma representação abstracta da

experiência portuguesa de Dirty

Beaches.

Alex Zhang Hungtai será

acompanhado em palco por Shub

Roy e por André Gonçalves. Os

bilhetes serão postos à venda a 21

de Fevereiro e custarão entre 7,5€

e 15€.

Nove mil pessoas visitaram a exposição Porto Poetic em Milão

mais jovens em busca de novas

possibilidades de trabalho”, de

Nuno Brandão Costa à dupla

Camilo Rebelo e Tiago Pimentel.

Em Milão, a exposição recebeu

cerca de nove mil visitantes em 45

dias; no Porto, onde poderá ser

vista na Galeria Municipal Almeida

Garrett de 6 de Março a 13 de Abril,

funcionará como ponto de partida

para um ciclo internacional de

conferências semanais, as Porto

Poetic Talks, que decorrerão todas

as quintas-feiras.

Uma volta à arquitectura do Porto em 30 e tal dias

RITA BURMESTER

Dirty Beaches, que cumpre residência artística na Zé dos Bois, vai apresentar-se em palco com Shub Roy e André Gonçalves

VERA MARMELO

escolha das

palavras”, disse o

primeiro Prémio

Pritzker português

em Julho passado,

apresentando a

exposição Porto

Poetic, que então

estava de partida

para Itália, onde

se apresentou

entre Setembro

e Outubro no

Museu de

Arquitectura e Design La Trienalle

di Milano. Meio ano depois, eis que

Porto Poetic chega à cidade cuja

muito singular arquitectura

documenta e celebra, por

encomenda da Ordem dos

Arquitectos/Secção Regional do

Norte (OA/SRN) ao curador

Roberto Cremascoli.

Subdividida em três núcleos —

Porto Community, Porto Design e

Porto Poetic —, a exposição dá a ver

41 projectos de arquitectura, 215

peças de design, 540 fotografias de

autor e 28 vídeos, visitando não só

a incontornável obra dos dois

prémios Pritzker no Porto e fora do

país, mas também as “boas

práticas de reabilitação da cidade”

e os trabalhos dos “arquitectos

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AGENDA CULTURALFNAC EVENTOS DIÁRIOS de ENTRADA LIVRE

LANÇAMENTOS EXPOSIÇÕES

APRESENTAÇÕES MÚSICA AO VIVO

Consulte os eventos FNAC em culturafnac.pt

apoio:

NOVOS TALENTOS FNAC

14/02 SEX 18H30 FNAC COLOMBO

20/02 QUI 18H30 FNAC GAIASHOPPING

14/02 > 14/04/2014 FNAC CHIADO

20/02 QUI 19H00 FNAC CHIADO

Livro de Lady Mustache com ilustrações de Sara-a-diasEm pleno Dia dos Namorados, o radialista Fernando Alvim, na companhia de Lady Mustache e de Sara-a-dias, conversa com o público sobre esta obra e sobre temas essenciais como o Amor, o anti-Amor e o Dia de São Valentim.

Moderado por Tito CoutoA FNAC promove um encontro entre o público e Camané, no âmbito do concerto agendado para o Auditório de Espinho. Uma conversa com os fãs, moderada pelo jornalista Tito Couto, que revelará um pouco da história de vida de uma das vozes mais representativas do fado.

APRESENTAÇÃO

PUTA QUE PARIU O AMOR

Moderado por Nuno Costa SantosNão perca a oportunidade de conhecer Bruno Vieira Amaral, crítico, tradutor e bloguista que teve a sua estreia literária com o Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa e que surpreendeu tudo e todos com o seu primeiro romance As Primeiras Coisas, distinguido como livro do ano pela revista Time Out.

APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

ENCONTRO COM CAMANÉ

The Misadventures Of Anthony KnivetO disco de estreia do grupo leiriense já recebeu boas críticas em publicações nacionais e internacionais, tendo figurado inclusivamente nas listas dos melhores álbuns de 2013. Os First Breath After Coma integram a compilação Novos Talentos FNAC 2013.

Fotografias de Bob Willoughby A FNAC, em parceria com a TASCHEN, presta homenagem à atriz que aliava a graciosidade de uma bailarina clássica com a magnificência de uma estrela de cinema, duas décadas depois do seu desaparecimento.

15/02 SÁB 17H00 FNAC LEIRIA15/02 SÁB 22H00 FNAC COIMBRA

MÚSICA AO VIVO

FIRST BREATH AFTER COMA

EXPOSIÇÃO

AUDREY HEPBURN, 20 ANOS DEPOIS

ENCONTRO COM BRUNO VIEIRA AMARAL

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carla filipeNasceu em Vila Nova da Barquinha em 1973, formou-se na FBAUP. Desde cedo a sua obra procurou sair das vias mais dogmáticas das artes visuais para se concentrar em publicações, na performance e na instalação — e a reflectir sobre o sistema de circulação das obras de arte. Dirigiu o Salão Olímpico (espaço alternativo do Porto) entre 2003 e 2005, e o seu trabalho plástico tem-se revelado em inúmeras exposições desde 2001. Participou em Mom, am I barbarian?, na Bienal de Istambul em 2013, e tem a decorrer Da Cauda à Cabeça, uma individual no Museu Berardo. L.S.O.

gabriel abrantesNasceu nos EUA, em Chapel Hill, Carolina do Norte, em 1984. Formou-se em artes plásticas em Nova Iorque, começou a expor em Lisboa a partir de 1982. As primeiras exposições, Buttocalipse e Visionary Iraq, incluíam vídeo, técnica que privilegiava. A sua obra é das que colocam questões mais interessantes ao nível da hibridação entre artes visuais e cinema de autor. Em 2010 ganhou o Leão de Ouro para a melhor curta do Festival de Locarno, com A History of Mutual Respect. Há dias, em Berlim, apresentou Taprobana. Luísa Soares de Oliveira

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Portugal,

A cada nova exposição geracional reajustamos o foco do retrato que nos tiramos. Portugal, 2014: 22 anos volvidos sobre 10 Contemporâneos, Serralves volta a tomar o pulso ao momento. O que se passa aqui? 12 Contemporâneos– Estados Presentes inaugura hoje.

Vanessa Rato

mise au point2014:

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8 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Passam-se anos. E então, pon-

tualmente, reemerge esta necessi-

dade de tomar o pulso ao momento,

saber de que matéria é feito. O resto

é inevitável: sempre que olhamos

para o presente levantamos o pas-

sado e deixamos que uma parte do

futuro se insinue.

Foi assim em 1992, quando Ale-

xandre Melo comissariou para Ser-

ralves a exposição 10 Contemporâ-

neos. Repete-se agora que a mesma

instituição se prepara para inaugu-

rar 12 Contemporâneos– Estados Pre-

sentes, desta vez com comissariado

de Suzanne Cotter, a nova directora

do museu, e Bruno Marchand, re-

cente responsável pela programação

da Chiado 8, em Lisboa.

“A mesma instituição”, dizíamos

– força de expressão; 22 anos volvi-

dos, Serralves é e não é o mesmo

lugar, tal como Portugal é e não é o

mesmo país.

O que se passou e o que se passa aquiPor então, faltavam quatro anos pa-

ra Serralves lançar a primeira pedra

do seu museu e sete para o inaugu-

rar; Portugal entrara para a CEE

praticamente na véspera e lançava-

se no seu devir auto-estrada antes

mesmo de passar pela casa da par-

tida de um teatro ou galeria de ar-

te.

Julião Sarmento, Pedro Cabrita

Reis, Pedro Calapez, José Pedro

Croft, Rui Sanches, Pedro Portugal,

Pedro Proença, Gerardo Burmester,

Pedro Casqueiro e Rui Chafes: nessa

altura, foram os protagonistas esco-

lhidos.

10 Contemporâneos tanto fechava

a década de 1980 como abria a de

90 assumindo os seus eleitos como

agentes operativos da transição en-

tre um tempo e outro.

“Para mim, essa exposição surgiu

na sequência de praticamente uma

década a escrever quase diariamen-

te sobre e com artista plásticos que

faziam parte integrante da minha

vida quotidiana”, recorda Alexandre

Melo. “Era um ponto de chegada do

meu trabalho e da minha visão sobre

nuno da luzO percurso de Nuno da Luz (Lisboa, 1984) começou por volta de 2006, associado ao projecto ATLAS e numa cumplicidade com Ana Manso, André Romão, Joana Escoval ou Pedro Neves Marques. A sua obra sublinha uma dimensão nem sempre acarinhada na arte portuguesa: a relação do som com o ambiente, com o silêncio, com os sentidos e com o real. A partir de discretas instalações, a sound-art de Nuno da Luz não se restringe aos limites do cubo branco. J.M.

O que se passa em Portugal não guarda surpresas – uma profunda malaise: “Uma ansiedade das pessoas, em geral, e dos artistas, que também são pessoas” Suzanne Cotter, directora do museu de Serralves

mauro cerqueiraÉ de Guimarães, onde nasceu em 1982 e onde estudou Artes Plásticas e Pintura. E, contudo, a sua obra procede a partir de revisitações de outras disciplinas: desenho, escultura, edição de livros de artista. É também músico. Com André Sousa fundou em 2008 Uma Certa Falta de Coerência, espaço artístico na zona histórica do Porto. O título enunciava o programa que ambos queriam seguir: proporcionar aos interessados um lugar de apresentação de projectos que aliassem o trabalho plástico ao elemento político. L.S.O.

ana santosObjectos, superfícies, luz. Estes são elementos que emergem da prática de Ana Santos (Espinho, 1982), distinguida no início desta semana com o Prémio EDP Novos Artistas. O seu percurso foi o de uma nómada: formou-se em Escultura no Porto, estudou em Lisboa e na Alemanha, realizou uma residência em Nova Iorque. E a sua escultura espelha essa condição, pois surge sem hierarquias, animada por um pensamento pragmático e pelo humor, a uma escala humana. Coisas tão banais como rolos de papel, sacos, objectos danificados são enigmas que traduz em entidades abstractas. Esculturas. José Marmeleira

priscila fernandesVencedora do Prémio EDP Novos Artistas 2011, Priscila Fernandes (Coimbra, 1981) trabalha com vídeo, desenho e instalação, explorando questões como a transmissão de conhecimento, a pedagogia ou a evolução do comportamento humano. Em Serralves apresenta dois vídeos que exemplificam esta descrição: Product of Play (2011) e That Which Is Above That Which Is (2010). O primeiro, em torno da ideia de jogo e das emoções que provoca nos indivíduos, o segundo reivindicando a presença do modernismo nas convenções do quotidiano. J.M.

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quais seriam os pontos chave dessa

enorme transição que se deu na dé-

cada de 1980 nas artes plásticas.”

Que transição? Afinal de que fala-

mos hoje quando nos referimos a

um mundo de há já três décadas?

Existiu uma “arte dos anos 1980”

em Portugal? Não, diz Melo: “Quan-

do se diz ‘a arte dos anos 1980’ não

se está a dizer absolutamente nada,

a não ser do ponto de vista socioló-

gico.”

A prova está na diversidade de

modos discursivos dos artistas in-

cluídos em 10 Contemporâneos – e

precisamente por isso a abordagem

de Melo para a leitura do momento

é a sociológica: “10 Contemporâneos

articulava-se com o que se esperava

que fosse uma dinâmica de emer-

gência para um mercado da arte em

Portugal”, diz.

No Portugal do PREC e da Refor-

ma Agrária da década de 1970 e prin-

cípio da década de 1980 esse mer-

cado tinha deixado de existir. De-

pois, a cortar com uma época em

que os artistas eram considerados

jovens pelo menos até aos 40 ou 45

anos, deu-se um fenómeno “curio-

so”: “Num período de tempo muito

curto, apareceu um conjunto de no-

vos nomes que passaram de desco-

nhecidos a figuras centrais.”

Julião Sarmento e Pedro Cabrita

Reis lançaram então as duas mais

bem sucedidas carreiras internacio-

nais da segunda metade do século

XX português – as duas primeiras

grandes carreiras internacionais de

artistas portugueses a viver em Por-

tugal. Isto, recorda Melo, quando

nos anos 1980 ainda era muito co-

mum aparecerem biografias de ar-

tistas importantes com listas das

viagens internacionais – não das ex-

posições, das viagens...

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 9

De então para agora, a grande

transformação foi precisamente es-

sa, sublinha este crítico e comissá-

rio: a transformação decorrente da

transição de um mundo em que “as

idas a Espanha tinham uma dimen-

são épica” para um mundo em que

a formação e muitas das primeiras

exposições individuais se fazem no

estrangeiro.

E é esta última realidade que Su-

zanne Cotter primeiro sublinha.

“Ouvir os artistas e as suas dúvi-

das é interessante: o que mais têm

questionado é porque estão a expor

aqui só entre portugueses, porque

não entre internacionais?”

Quando recebe o Ípsilon, a quase

duas semanas da inauguração de 12

Contemporâneos– Estados Presentes

e com a montagem da exposição

ainda em fase inicial, a nova direc-

tora do Museu de Serralves, chega-

da há um ano a Portugal, explica

porque surge agora, neste momen-

to, este gesto: “Como tentativa de

resposta à minha pergunta funda-

mental: o que se passa aqui [em Por-

tugal]?”

E o que se passa não guarda sur-

presas – uma profunda malaise:

“Uma ansiedade das pessoas, em

geral, e dos artistas, que também

são pessoas.”

Energia e precaridadeAndré Sousa, Ana Santos, Carla Fi-

lipe, Gabriel Abrantes, Mauro

Mauro Cerqueira e os despojos de uma antiga tipografia, Ana Santos e a poética dos materiais pobres, a mística existencia-lista da terra de Sérgio Carronha, as viagens de pendor antropológico de Gabriel Abrantes, memória das formas de vida pós-industriais de Carla Filipe... é uma voragem “própria da vida no capitalismo tardio”, diz Bruno Marchand

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“Um pouco por toda a exposição se pressente uma energia que tem a ver com a ideia de precariedade, de recuperar realidades que se tornaram obsoletas”Bruno Marchand, programador da Chiado 8

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10 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Cerqueira, Nuno da Luz, Pedro

Barateiro, Pedro Lagoa, Priscila Fer-

nandes, Sérgio Carronha, Sónia Al-

meida, !Von Calhau! (Marta Ângela

e João Alves): depois de ver o traba-

lho de 50 artistas, fizeram-se esco-

lhas – foram os que ficaram. Foi atra-

vés deles que Cotter e Bruno Mar-

chand decidiram “medir a

temperatura do momento”.

Têm percursos e obras diversas,

uns expuseram antes em Serralves,

outros não [ver biografias], mas “to-

dos estão a falar deste tempo”.

“Um pouco por toda a exposição

se pressente uma energia que tem

a ver com a ideia de precariedade,

de recuperar realidades que se tor-

naram obsoletas”, diz Bruno Mar-

chand.

Mauro Cerqueira com os despojos

de uma antiga tipografia, Ana Santos

e a poética dos seus materiais po-

bres, a mística existencialista da

terra de Sérgio Carronha, as viagens

de pendor antropológico de Gabriel

Abrantes, as pesquisas sobre as

identidades comunitárias e a memó-

ria das formas de vida pós-indus-

triais de Carla Filipe: é uma voragem

“própria da vida no capitalismo tar-

dio”, diz Bruno Marchand.

“Um dos temas da exposição atra-

vés das obras acabará por ser a des-

locação. Coisas que nos tiram do

nosso lugar e nos levam para outro”,

sónia almeidaA pintura é o meio e a linguagem da sua arte. A esta artista (Lisboa, 1978) interessa explorar e pensar o modo como os elementos pictóricos são recebidos quer pelo espectador numa exposição, quer pelo processo de reprodução noutros suportes. Quase sempre a partir de imagens e objectos do quotidiano (que desenha num caderno) e numa tensão que se projecta nas telas, entre a representação e a abstracção. Para que o espectador reconstitua a realidade e, pelo caminho, interrogue os seus próprios sentidos e sensibilidade. J.M.

andré sousaNão é possível dissociar André Sousa (Porto, 1982) da energia que há dez anos tomou conta da cena portuense. Fundador do espaço Mad Woman In The Attic e co-gerente do Pêssegos Prá Semana, foi figura pivô das experiências que marcaram o contexto artístico da cidade. A sua obra sinaliza traços que a distinguem: a referência oblíqua a universos extra-artísticos, a atenção aos contextos expositivos e, recentemente, uma abordagem às pinturas enquanto arquitecturas, paisagens e personagens. Ou atlas visuais. J.M.

pedro lagoaSerá o nome menos conhecido deste conjunto, o que se compreende se tivermos em conta que a formação e a actividade de Pedro Lagoa (Leiria, 1975) se têm repartido entre Portugal e outros países europeus. Dito isto, o seu trabalho, materializado em instalações, pinturas e textos, lida com questões transversais à prática artística contemporânea: os arquivos da alta e da baixa cultura, a imagem em movimento, a memória, as possibilidades abertas pela arte dos últimos 40 anos. J.M.

sérgio carronhaNatural de Cascais (1984), é o autor de um trabalho guiado por experiências sensoriais e por uma relação intensa com a natureza, em particular a Serra de Sintra, o seu grande reservatório material (é aí que encontra a barro que usa nas peças). Em Serralves apresenta pequenas esculturas, simbolizações abstractas de coisas vistas, dos encontros com a vida da serra. A sua arte, resultado de uma prática multidimensional, não faz mais do que reivindicar a beleza da simplicidade e da humanidade. J.M.

pedro barateiroNasceu em Almada em 1979. Licenciou-se em Artes Visuais em 2002, tendo frequentado uma pós-graduação na Maumaus e concluído mestrado na Malmö Art Academy, Suécia, em 2006. Com obra centrada na prática crítica da fotografia, do vídeo, da performance ou da instalação, participou em várias bienais — Busan, S. Paulo, Berlin, Sidney e PhotoEspaña. Tem exposto no estrangeiro e em Portugal: Reakt — Views and Processes (Guimarães, 2012), Theatre of Hunters (Basel, Suíça, 2011) e Theatre of Speech (Casa de Serralves — Museu de Serralves, Porto, 2009). L.S.O.

diz por outro lado Suzanne Cotter.

“As coisas estão em transformação,

em movimento.”

Depois, refere ainda Cotter, há

que ter em consideração “uma di-

nâmica [contextual] que é muito

multíplice”.

O tipo de propagação ou disper-

são antecipado pelo título de outra

das grande exposições geracionais

feitas nas últimas décadas em Por-

tugal: Disseminações, que Pedro La-

pa comissariou para a Culturgest em

2001.

Rui Toscano, João Onofre, Leonor

Antunes, Francisco Queirós, Filipa

César, Nuno Sacramento, Ana Pinto,

Inês Pais e Ana Pérez-Quiroga: qua-

se todos estes artistas – menos Rui

Toscano, que vinha da década ante-

rior – tinham então muito pouco

tempo de trabalho, recorda Lapa.

Em certos pontos, davam conti-

nuidade a problemáticas que tinham

começado a enunciar-se pela gera-

ção reunida na mostra Imagens para

os anos 1990, comissariada por Fer-

nando Pernes e Miguel von Hafe

Pérez [ver texto nestas páginas]. Era

assim em termos da proliferação de

sentidos que atribuíam ao objecto

artístico. No entanto, diz Pedro La-

pa, “as redes de entendimento que

esse objecto convocava eram com-

pletamente diferentes”.

Diferentes também, por exemplo,

do chamado regresso à pintura que

os anos 1980 tentaram reabilitar.

Pedro Lapa lembra-se, por exem-

plo, de durante a montagem da ex-

posição, de repente, quase todos

quererem apresentar vídeo, espe-

lhando um momento marcado por

uma interrogação do papel da ima-

gem e da imagem-tempo deleuzia-

na.

“As transformações que a imagem

estava a sofrer tinha que ser inter-

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 11

rogada”, conta Lapa. “Hoje, essas

questões não se colocam.”

Para Pedro Lapa, nos 13 anos que

decorreram entre Disseminações e

12 Contemporâneos, houve, de novo,

grandes mutações. “A partir de final

de 2000 até 2008 muitas coisas se

alteraram. O processo de que eu es-

tava a dar conta em 2001 cresceu

exponencialmente. A disseminação

foi ainda maior”, diz.

É por isso, também, que faz sen-

tido nova mise au point – momento

de reajustar a definição da imagem

que temos de nós.

“Quando se pensa num

projecto destes, ou se

aposta em mostrar a

realidade, ou se faz um

projecto para o futuro.

Eu escolhi a primeira

destas hipóteses”, diz Alexandre

Melo, referindo-se a Dez

Contemporâneos, inaugurada na

Casa de Serralves em 1992. A

exposição, que incluiu obras de

Gerardo Burmester, José Pedro

Croft, Pedro Portugal, Pedro Cabrita

Reis, Pedro Calapez, Pedro Proença,

Casqueiro, Rui Chafes e Julião

Sarmento, apresentava aquele que o

comissário identificava como o

“grupo da década de 80”: um

conjunto com grandes diferenças

projectuais e estilísticas entre si,

mas que dava já garantias de um

trabalho consistente e duradouro.

Vinte anos mais tarde, todos

continuam a desenvolver obra

significativa.

A exposição que se inaugura em

Serralves, contudo, não invoca

apenas Dez Contemporâneos. Invoca

também outro projecto de grandes

ambições, Imagens para os anos 90,

que abriu em 1993, tendo circulado

também por Chaves e Lisboa

(Culturgest). Com curadoria de

Fernando Pernes e Miguel Von Hafe

Perez, à data, respectivamente,

director e sub-director daquela

instituição, mostrava o outro lado da

moeda dos anos 90, com uma

selecção de artistas que possuíam

uma visão crítica e uma consciência

politizada do meio português.

Carlos Vidal, João Louro, Rui Serra,

Paulo Mendes, João Tabarra, Miguel

Palma, Fernando Brito e João Paulo

Feliciano, quase todos bem mais

jovens do que o grupo anterior,

desconcertavam pela leitura mordaz

e violenta da sociedade na qual

iriam desenvolver o seu trabalho.

Unia-os o entusiasmo de mostrar o

trabalho em Serralves, para além da

consciência de que a exposição

corria o risco de ser ignorada pela

crítica. Não foi isso que aconteceu.

Os críticos que se interessaram por

Imagens para os anos 90, quase

todos a trabalhar desde a década

anterior, não gostaram do que

viram. Na época, alguns dos artistas,

liderados por António Cerveira

Pinto (artista, crítico, curador),

reagiram. Choveram insultos. Houve

manifestos, ofensas de parte a parte,

zangas para a vida. Nunca mais o

meio artístico português foi o

mesmo. Mas esta jovem geração,

que assim entrava para o circuito

das grandes instituições

museológicas portuguesas, tinha

vindo para ficar. Hoje, quando

recorda essa época, João Louro diz:

“Foi tudo um jogo. Ficámos

encantados de expor em Serralves!

Mas fomos usados em polémicas

que não eram nossas. Sofremos

imenso com isso.”

Nem todos continuam a ser

artistas. Carlos Vidal enveredou pela

carreira académica e é hoje

professor na FBAUL. Paulo Mendes

tornou-se conhecido como curador.

Fernando Brito, que tal como

Proença e Portugal integrou o grupo

homeostético, continua a pintar. E

os demais são artistas, produzindo

regularmente exposições e

internacionalizando cada vez mais a

sua obra.

Mas como eram esses anos 80 e

90, que precederam a abertura do

Museu de Serralves, e que

acompanharam os primeiros anos

do CAM da Gulbenkian? Era uma

época em que a obra artística tinha

Vidas de artistasA arte contemporânea na moda, clima

de euforia económica, governos a apoiar

a internacionalização dos artistas...

isso foi nos anos 90, a década de

Dez Contemporâneos, memória sobre a

qual se constrói e opõe 12 Contemporâneos.

Por Luísa Soares de Oliveira

Dez Contemporâneos, inaugurada na Casa de Serralves em 1992, identificava o “grupo da década de 80”; todos continuam a desenvolver obra significativa

!von calhau!Música, performance, artes visuais, texto: são as bases de trabalho da dupla Marta Ângela/João Alves, que compõe, trata dos cenários, da caracterização, da actuação e da direcção das performances que tem realizado. Inserem-se na melhor descendência das performances dadaístas dos começos do século XX, partilhando com estas a vontade experimental e uma reflexão sobre a identidade da arte. Efectuaram residências, participaram em festivais, editaram um LP, Quadrologia Pentacónica, bem como um livro, Abismo Abutre. L.S.O.

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FOTO ALVÃO © FUNDAÇÃO SERRALVES

tanta ou mais importância do que o

meio. No Frágil, em Lisboa, no Arco,

a que ninguém faltava (e há quem se

lembre de Pedro Cabrita Reis a

dominar o Bar Chicote em Madrid,

ponto obrigatório da movida

portuguesa durante a feira), em

jantares e saídas, em exposições

fora de portas onde artistas, críticos

e amigos se deslocavam em massa,

esta foi uma época de grandes

amizades. Rui Sanches, que

participou em Dez Contemporâneos,

salienta que, embora houvesse

diferenças entre os artistas, havia

também cumplicidades duráveis

que se construíam. “Havia

diferenças geracionais, mas

dávamo-nos todos bem. Tínhamos

uma vivência em comum.” Entre as

galerias, destacava-se os Cómicos,

de Luís Serpa. Aqui, na Alda Cortez,

que ficava em Santos, ou na Graça

Fonseca, na Rua da Emenda, ou

ainda na Pedro Oliveira, do Porto, os

artistas representados nas duas

exposições mostravam

regularmente o seu trabalho. E a

crítica acompanhava-os. Alexandre

Melo e João Pinharanda, que tinham

começado a escrever no JL,

dividiram-se depois pelo Expresso e

pelo PÚBLICO, fundado em 1990.

Melo recorda o tempo em que era

possível escrever quatro e cinco

páginas de crítica de arte numa

edição de jornal, coisa que hoje já

raramente acontece. No

Independente, António Cerveira

Pinto ganhara uma tribuna em tudo

oposta às duas precedentes. A arte

contemporânea estava na moda.

Para este estado de coisas, não era

indiferente um clima de euforia

económica que se vivia, governos

que apoiavam a internacionalização

dos artistas, feita sobretudo a partir

de apoios a participações nas

bienais de Veneza e S. Paulo, e uma

Fundação Gulbenkian ainda pródiga

nas suas bolsas para o estrangeiro.

Tudo se vendia com facilidade. Mas

era preciso integrar o beautiful

people do art set para que a vida de

artista fosse um mar de rosas. E era

esta constatação que os jovens de

Imagens para os anos 90

contestavam. Um status quo que é

também político. Carlos Vidal não

esconde algum desencanto. Olha

hoje para o que foi essa época e diz-

nos que “à distância, penso que foi

uma exposição utópica, por várias

razões: mostrou-se uma geração

emergente no momento da sua

revelação, o que é raro; por outro

lado, na sua diferença, lá se revelou

um núcleo de autores que

acreditavam numa arte política.

Acho-a mais importante para a

história do que para cada um dos

participantes. Mas essa politização

era também uma política da

imagem, que eu creio que deixou

marcas nas gerações seguintes.” O

que é certo é que o tempo muda

muita coisa. Louro e Feliciano fazem

hoje parte da mesma galeria que

Julião Sarmento. Rui Chafes e João

Tabarra partilham neste mesmo

momento importantes

retrospectivas no CAM. Para todos

eles, depois do pousar das armas,

este é o tempo da maturidade.

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12 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Três americanos em Londres com a fotografia

colada à peleNenhum deles se apresentou verdadeiramente como fotógrafo, foram outras as suas artes a chegar mais alto. Mas a fotografi a colou-se à obra e à vida deles, de maneira obsessiva, carnal e permanente, como uma tatuagem que se grava na pele: Andy Warhol, William Burroughs, David Lynch.

E no entanto ela andou (qua-

se) sempre com eles. Entre

os talentos de William S.

Burroughs, Andy Warhol e

David Lynch constam mui-

tas artes, várias artes em

cada um deles até. A fotografia

nunca andou no topo desses talen-

tos, até porque nenhum deles se

apresentou verdadeiramente como

fotógrafo, e foram outras as suas

artes a chegar mais alto. O certo é

que mais cedo com uns (Burrou-

ghs, Warhol) e mais tarde com ou-

tro (Lynch), ela andou sempre lá,

com eles, colou-se à obra e à vida

de todos, de maneira obsessiva,

carnal e permanente, como uma

tatuagem que se grava na pele. Três

dos maiores agitadores visuais e

culturais da segunda metade do

s é c u l o X X m o s t r a m n a

Photographer’s Gallery de Londres

esse lado da fotografia como me-

canismo criador independente e

capaz de dar imagem a pensamen-

tos, ideias e pulsões.

Para além das listas vermelhas e

azuis dos cartazes da galeria que

dão a origem americana comum

destes três criadores, o que liga ca-

da um dos andares que divide as

exposições é a sensação de que es-

tas obras fotográficas foram deter-

Andy WarholO fascínio Warhol pela fotografia começou cedo. Aos nove anos recebeu uma câmara de presente e começou a revelar fotografias na cave. Nunca abandou o suporte fotográfico, mas foi apenas a partir de 1976 que começou a dar-lhe mais atenção. Com as séries Stitched Works deu um dos empurrões finais à circulação da fotografia enquanto arte

Sérgio B. Gomes, em Londres

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 13

sica é outro dos talentos do realiza-

dor), os comissários das três expo-

sições deixaram de lado a tentação

de pôr em confronto directo a fo-

tografia com o cinema, a pintura e

a literatura, artes em que são mes-

tres Lynch, Warhol e Burroughs.

Uma decisão que se revela acerta-

da, porque aumenta o poder de

sugestão pelo universo visual e cria-

tivo de cada um, e descobre-se com

outro interesse como a fotografia

foi tantas vezes o melhor caminho

para chegarem onde chegaram. En-

tre este grupo, talvez o exemplo

mais evidente desta influência (ao

mesmo tempo subtil e declarada)

é o de Warhol, onde o fascínio pela

serialidade e pela multiplicidade

(fundamentais na sua pintura) se

revelam de maneira flagrante nos

Stitched Works, obras com fotogra-

fias montadas lado a lado que po-

dem ser exactamente iguais, se-

quenciais ou com revelações feitas

com diferentes contrastes e densi-

dades.

Utopia fotográfi caPhotographs 1976 – 1987 mostra a

produção fotográfica da última dé-

cada de vida do artista pop, aquela

em foi mais activo neste suporte

depois de ter abandonado outras

formas de registo do quotidiano,

como o gravador áudio. A partir de

76, no pico da fama como artista,

Warhol começa a usar uma Minox

compacta com filmes de 35mm.

Gastava em média um rolo por dia

e estipulou que exporia pelo me-

nos cinco fotografias de cada um

na Factory, viveiro nova-iorquino

de arte, lugar de experimentações.

Desde então raramente se separou

da sua câmara registando todo o

burburinho do dia-a-dia que o ro-

deava. Abraçando o princípio “dis-

para agora, vê depois”, começa a

registar pessoas na rua, festas, pai-

David Lynch“Gosto da indústria. E de canos. Gosto de fluídos e fumo. Gosto de coisas feitas pelo homem. E gosto de ver pessoas a trabalhar no duro.” Tudo coisas relacionadas com paisagens industriais, lugares que começou a fotografar nos 80s enquanto filmava O Homem Elefante

minantes na construção de outras

obras, noutros suportes e com ou-

tras ambições. Mas agora têm a

oportunidade de brilharem sozi-

nhas. Olhadas hoje, com um hiato

de décadas, percebe-se como ga-

nharam autonomia e se afirmam

como corpos de expressão criativa

autónomos fazendo esquecer o que

os seus autores fizeram com elas

ou o que fizeram à sua volta. E isto

talvez queira dizer que está total-

mente de lado o estigma da foto-

grafia como penetra no Olimpo das

artes eleitas.

Com a excepção de uma instala-

ção sonora original de Lynch (a mú-

sagem urbana, publicidade, pro-

dutos de consumos e todo o tipo

de objectos. Esta aparente utopia

fotográfica respeitava aspectos for-

mais e cumpria padrões de registo,

exercício que colocou a acto foto-

gráfico no centro de toda a criação

artística de Warhol. A criação dos

Stitched Works, que agrupava várias

imagens (muitas vezes a mesma),

foi uma das respostas ao enorme

volume de material recolhido. A

importância que Warhol deu à ima-

gem fotográfica e a concretização

de séries como esta nos anos 1980

ajudou a cimentar o caminho da

fotografia como arte, suporte com

potencial criativo pleno.

Extensão do corpoJá nas imagens de Burroughs (cujo

centenário do nascimento se assi-

nala este ano) esta ligação entre a

ferramenta, linguagem e prática

fotográficas com outras artes pode

não ser tão evidente. Aqui a foto-

grafia é encarada como uma exten-

são do corpo, utensílio natural pa-

ra garantir a captura do imediato,

o registo da (des)ordem de ideias,

ou para dar uma ajuda na constru-

ção de pensamentos, cenários e

personagens. O resultado é uma

obra fragmentada e caótica (o es-

critor não titulava nem datava as

impressões). Apesar de a atirar

constantemente para dentro de um

turbilhão criativo, Burroughs era

fascinado pela capacidade da foto-

grafia em quebrar a continuidade

do espaço-tempo e de “expandir a

percepção física do mundo por par-

te de quem vê”. Por outro lado, via

nelas extraordinários recursos pa-

ra começar a construir personagens

novos ou então para complicar e

acrescentar camadas narrativas a

outros já existentes.

Mas uma das principais virtudes

dos mais de 100 trabalhos escolhi-

dos para dar forma a Taking Shots

(que se apresenta como a primeira

grande exposição a dar relevo à

obra fotográfica de Burroughs) nem

passa tanto pelos pontos de contac-

to com o legado artístico de um dos

gurus da beat. O que vem à super-

fície é mais a forma de estar e de

ser de um homem que vivia em

ebulição permanente. A diversida-

de de usos que deu à fotografia, que

tanto utilizava para registar uma

sequência de acontecimentos pro-

vocada por um acidente de viação,

como para fazer fotomontagens em

registo diarístico, retratos ou cola-

gens revelam um estado de espírito

irrequieto, um explorador e um

nómada. O título, Taking Shots, que

abarca imagens captadas entre o

início dos anos 1950 e os anos 1970,

não é, aliás, apenas uma referência

ao léxico da fotografia – indica tam-

bém a dependência do escritor pe-

la heroína e a sua obsessão pelas

armas.

Perante a dificuldade de estabe-

lecer uma cronologia ou uma orga-

nização por grandes áreas temáti-

cas, os comissários Patricia Allmer

e John Sears optaram por pequenos

segmentos de imagens divididos em

auto-retratos, cenas de rua, interio-

res domésticos e íntimos, assem-

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14 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

William S. BurroughsA obra fotográfica de um dos ícones de beat é pouco conhecida e não se encaixa em quase nada do que se conhece em termos de estilo e género. Ou seja, para Burroughs na fotografia valia tudo. Os exercícios de corta e cola, cut-up, eram dos seus preferidos. Com eles criava fotomontagens às quais chamava “viagens no tempo”

blages, lugares em construção e

retratos, entre os quais muitos dos

seus amigos beat, Jack Kerouac in-

cluído, claro.

Muito por causa de um lado pu-

ramente utilitário com que muitas

vezes encarou a fotografia, Burrou-

ghs acabou por deixar uma obra

que foge ao cânone e que dificil-

mente se encaixa em géneros. Foi

uma ferramenta de pesquisa, mas

também foi um meio de experimen-

tação estética. Tudo sem presun-

ção, não fossem muitos os rolos

revelados em laboratórios de rua

ou onde calhasse, o que fez com

que boa parte do seu trabalho se

tenha perdido.

DKQuem parece muito mais compro-

metido com a ideia de construir

uma obra fotográfica é David Lyn-

ch. E há quem faça apostas sobre

se o realizador americano alguma

vez voltará a filmar. Parece que nin-

guém sabe bem, mas, para já, nes-

te início de 2014, tem-se dedicado

a mostrar fotografia. Antes da ex-

posição na Photographer’s Gallery,

inaugurou Small Stories, na Maison

Européenne de la Photographie,

em Paris. E ainda há criatividade

para outras artes: para o dia 15 de

Julho está agendado o lançamento

de um disco, The Big Dream. Foi

precisamente o universo das me-

mórias e dos sonhos – que tanto

povoaram a sua cinematografia –

que foi convocado para The Factory

Photographs, uma exposição que

começou em Janeiro em Londres

uma itinerância pela Europa. No

último piso da recém-inaugurada

galeria londrina, onde uma imensa

janela nos atira o olhar para uma

paisagem urbana feita de tijolos tos-

cos e linhas de arquitectura con-

temporânea, alinha-se o negrume

das mais de 80 fotografias que Lyn-

ch captou entre 1980 e 2000.

Sobre os caminhos que o realiza-

dor gosta de trilhar não há segre-

dos. Aos mundos cinemáticos sur-

reais e bizarros juntam-se agora as

paisagens fotográficas industriais

em decadência, paisagens melan-

cólicas de “catedrais assombradas

de uma era industrial extinta”. Em

imensos complexos fabris espalha-

dos por países como Alemanha,

Polónia, Nova Iorque e Inglaterra,

o olhar de Lynch concentrou-se nos

labirintos de corredores, nos ema-

ranhados dos cabos eléctricos ou

nos contra-luzes das vidraças par-

tidas. A ambição por uma unidade

temática em todo o conjunto é evi-

dente. E apesar de estas imagens

terem sido tiradas fora de qualquer

contexto de filmagens ou scouting,

o certo é que o nosso olhar já entra

nas imagens contaminado pelo uni-

verso visual fílmico lynchiano. O

que equivale a dizer que em muitas

das fotografias tendemos a ver ce-

nas relacionadas com os filmes. As

cenas de crime, violência e surrea-

lismo, tudo num tempo indefinido.

É um fenómeno que tende a des-

materializar as fotografias do reali-

zador, tornando-as menos reais do

que são. Para quem já viu algum

filme de Lynch é difícil ficar em

frente a uma fotografia desta série

e não pensar num local de filma-

gem. E isto talvez seja injusto para

o Lynch-fotógrafo e justo para o

Lynch-realizador. Em todo o caso,

é de certeza uma vitória para David

Lynch.

As fotografias de paisagem mais

abertas, as mais contemplativas e

românticas, são talvez as que mais

se distanciam de todo o universo

de Lynch para existirem apenas co-

mo fotografias. Mas até aqui uma

certa decadência dos lugares de

que o realizador gosta de fazer gala

entra em cena. “Sempre estive in-

teressado na decadência. As minhas

iniciais são DKL [David Keith Lynch]

e os meus pais chamaram-me DK

até perceberem o que estavam a

chamar-me”, contou ao jornal The

Independent no meio de uma gar-

galhada.

Em contraste profundo com as

cores berrantes dos últimos filmes,

estas fotografias a preto e branco

não conseguem fugir de uma cer-

ta banalidade dos lugares abando-

nados, onde é fácil criar sensações

e atmosferas de mistério. Mas não

deixa de ser um exercício interes-

sante começar num andar inferior

com as fotografias furtuitas, de

reacção imediata à vida quotidiana

de Warhol e acabar num dos pisos

de topo com os monstros fabris

megalómanos de Lynch. Pelo

meio, fica o frenesim criador de

Burroughs que, na fotografia, tan-

to podia ir da grandeza das cida-

des ao mais pequeno detalhe do

ser humano.

Não é (nada) seguro que alguma

destas obras fotográficas venha al-

gum dia sobrepor-se às obras irmãs

noutros suportes, filhas dos mes-

mos criadores. Certo é que, depois

destas exposições na Photographer’s

Gallery (até 30 de Março), de cada

vez que virmos ou revirmos a mes-

tria de Burroughs, Warhol e Lynch

noutras artes saberemos reconhe-

cer o léxico visual que as ajudou a

ganhar forma e fama.

Não deixa de ser um exercício interessante começar num andar inferior com as fotografias furtuitas, de reacção imediata à vida quotidiana de Warhol e acabar num dos pisos de topo com os monstros fabris megalómanos de Lynch. Pelo meio, fica o frenesim criador de Burroughs

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MUSICA.GULBENKIAN.PT

17 Fevereirosegunda 19:00h — Grande Auditório

Quarteto TakácsMarc Ramirez contrabaixo

mozartQuarteto nº 16

janácekSonata a Kreutzer

dvorákQuinteto, op. 77

quar

teto

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21 + 22 Fevereiro

MUSICA.GULBENKIAN.PT

21:30h — Teatro Maria Matos

The House Taken OverAsko|Schönberg Ensemble Etienne Siebens maestro

Katie Mitchell encenação

ópera de vasco mendonça

“Uma pequena obra-prima”jorge caladoexpresso

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hou

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aken

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fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºA/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt

Parque de estacionamento mais próximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31

Exposição: de 6 de Fevereiro até 22 de Março de 2014Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados)

DENTRODO DESENHORui SanchesComissário: João Pinharanda

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16 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Mler Ife Dada, um dos mais criativos projectos da cultura pop portuguesa, regressa hoje aos palcos, 30 anos depois do início. A vitalidade da música caleidoscópica de Nuno Rebelo e Anabela Duarte continua intacta. Há coisas

que continuam

É esta sexta-feira que os Mler

Ife Dada, um dos projectos

mais aventureiros da histó-

ria da cultura pop portugue-

sa, regressa aos palcos, trin-

ta anos depois da estreia.

Tiveram uma curta existência de

seis anos, entre 1984 e 1990, mas o

seu lastro mantém-se. No palco do

Centro Cultural de Belém, em Lis-

boa, iremos encontrar onze músicos

liderados pelo guitarrista Nuno Re-

belo e pela cantora Anabela Duarte,

obreiros de um retorno que deseja

ir muito para além de qualquer cir-

cunstância nostálgica.

“A banda nuclear manterá a es-

sência daquilo que eram os Mler Ife

Dada, respeitando as músicas, mas

introduzindo novos detalhes”, ga-

rante Nuno Rebelo. A essência das

canções será respeitada, mas “exis-

te um expandir da paleta de timbres

e dos arranjos, com a introdução de

um trio de metais e um trio de cor-

das”, afirma.

Parte do incessante trabalho dos

últimos meses tem sido voltado pa-

ra a reescrita dos arranjos e para a

preparação de partituras. A satisfa-

ção do confronto com velhas can-

ções é que não se perdeu. “Tem sido

um prazer voltar a estar com estas

canções”, reflecte Anabela Duarte,

“renovando-as também de alguma

forma, porque os próprios músicos

nos vão transmitindo novos estímu-

los.”

“Tem sido uma alegria em cres-

cendo”, reforça Nuno, “porque ti-

vemos três fases intensivas de en-

saios. Na primeira e na segunda,

com a banda nuclear – baixo, bate-

ria, guitarra, voz e teclas – a traba-

lhar um naipe diferente de canções

de cada vez. E na terceira a trabalhar

todos os temas, com cordas e so-

pros.”

Mas não se espere, apesar do nú-

mero de músicos em palco, qual-

quer tipo de grandiosidade orques-

tral. Os arranjos “vão para muitos

lados”, tenta explicitar Nuno Rebe-

lo, “abrindo para caminhos estra-

nhos que não estavam lá, embora

existam outros numa onda meio

americana, tipo Burt Bacharach”,

exemplifica.

O retorno do projecto está a gerar

interesse, não só “junto das pessoas

que agora nos podem voltar a ver”,

conta Anabela Duarte, como junto

de pessoas mais novas “que nunca

nos viram ao vivo e que têm muita

curiosidade, ou porque ouviram os

discos, ou porque ouviram falar do

que fizemos e de como isso ainda se

conserva.”

O cinzento e o FMIOs Mler Ife Dada formaram-se a

meio dos anos 1980, vencendo o 1º

concurso do Rock Rendez-Vous, a

sala lisboeta de concertos mais em-

blemática da época. Depois de te-

rem gravado o EP de estreia (Zim-

pó) deu-se a dissolução da forma-

ção inicial, onde pontificava Nuno

Rebelo (ex-Street Kids) e na voz Pe-

dro D’Orey, que mais tarde, já nos

anos 2000, integrou os Word-

song.

Vítor Belanciano

LUÍS

A F

ERRE

IRA

a fascinar

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 17

Às tantas o vocalista partiu para

o Brasil e o projecto ficou sem voz.

O encontro entre Nuno e Anabela

viria a dar-se no contexto de um

concerto dos GNR, na qual ela tinha

uma participação vocal. O convite

para integrar o grupo deu-se e ela,

que já havia pertencido a forma-

ções como Ocaso Épico ou Bye Bye

Lolita Girl, acabou por aceitar o de-

safio, contribuindo para identidade

definitiva pela qual o grupo viria a

ficar conhecido.

Nuno Rebelo tinha estudado na

escola de Belas Artes. As suas cum-

plicidades vinham daí. Anabela Du-

arte captava uma costela artística

da cultura universitária, aplicando

teorias, formulações e delírios de

movimentos como o dadaísmo ou

o surrealismo à pop.

Dos GNR aos Pop Dell’Arte, havia

também quem fugisse aos tons cin-

zentos predominantes de então,

alicerçados nas influências de gru-

pos ingleses como Joy Division,

Echo & The Bunnymen ou The

Cure, mas eles foram provavelmen-

te os que levaram mais longe esse

lado teatralizado, delirante e colo-

rido, que contrastava com a reali-

dade política e social da época.

Hoje Portugal volta a estar embre-

nhado no negrume e Nuno Rebelo

não o esquece. “É verdade, quando

aparecemos e hoje... a situação so-

cial não é assim tão diferente. Bas-

ta pensar que estava cá o FMI.”

Em 1987 lançaram Coisas que Fas-

cinam, ainda hoje um dos melhores

álbuns portugueses, obra ecléctica,

versátil, marcada por grande liber-

dade de formas, com canções feitas

a partir de influências da pop, do

jazz, do minimalismo, do fado, do

rock ou de África, numa mistura

vertiginosa de rua e erudição.

Depois do lançamento do tam-

bém magnífico segundo álbum,

Espírito Invisível (1989), o ambiente

no projecto esmorece e Anabela

acaba por abdicar. Apesar das edi-

ções posteriores – os EPs Dance Mu-

sic e Mler Ife Dada – o grupo nunca

mais foi o mesmo e acaba por ter-

minar a actividade em 1990.

Depois do fim do grupo, Nuno

Rebelo voltou a formar outros pro-

jectos, como os Plopoplot Pot, mas

essencialmente dedicou-se à músi-

ca improvisada e experimental ou

à composição para dança ou teatro,

encetando colaborações com cria-

dores de diversas disciplinas artís-

ticas. O seu último álbum a solo,

lançado a partir de Barcelona, onde

vive desde há quatro anos, é do ano

passado e intitula-se Remove From

The Flow Of Time.

Por sua vez, Anabela Duarte teve

experiências com fado (álbum Lis-

bunah), canto lírico ou música elec-

trónica, sempre numa linha muito

personalizada. Uma das suas últi-

mas aventuras é o projecto Machine

Lyrique, espécie de teatro musical

à volta da obra de Kurt Weill e de

Boris Vian. Ou seja, depois de mui-

tos anos afastados dos universos da

pop, acabam por regressar a ela.

“Logo a seguir ao afastamento

dos Mler Ife Dada tive uma relação

de rejeição com a pop, mas na ver-

dade nunca a deixei por completo”,

emenda Nuno. “Mesmo quando

componho para teatro ou dança,

existe sempre um ou outro momen-

to nesses espectáculos que reme-

tem para esse universo. Se os Mler

Ife Dada sempre foram uma forma

de expandir o conceito da pop, a

minha vida tem sido expandir a mi-

nha experiência na música em ge-

ral.”

Já Anabela enfatiza que saiu mes-

mo da esfera da pop, mas esse fac-

to apenas contribuiu para que

“alargasse os horizontes musicais”,

aplicando-os agora neste regresso.

E não são apenas eles os dois. “Os

próprios músicos com quem esta-

mos a tocar têm proveniências mui-

to diversas - do jazz à clássica.”

Nesta fase o grupo irá contar com

Filipe Valentim (Radio Macau, Wor-

dsong) nos teclados, Samuel Palitos

(A Naifa, Radio Macau) na bateria

e Tiago Maia no baixo, em substi-

tuição de Francisco Rebelo (Orelha

Negra, Cool Hipnoise), que foi obri-

gado a deixar os ensaios. Isto, claro,

para além da inclusão do trio de

cordas e do trio de sopros. Uma no-

vidade que Nuno Rebelo remete

para a disponibilidade que o grupo

sempre demonstrou para encetar

novas experiências. “Há trinta anos

também tínhamos essa abertura a

outros recursos, como a flauta de

bisel ou o vibrafone, visível no Coi-

sas que Fascinam’.

“Nessa altura se tivéssemos aces-

so a um trio de cordas e se eu sou-

besse escrever para esses instru-

mentos provavelmente tê-lo-íamos

utilizado. Não o fizemos. Mas para

mim o estimulo para este concerto

era poder avançar para um territó-

rio destes.”

Sobre o concerto de hoje existe

uma certeza. Vai ter início com a

canção Nu ar, que esteve esquecida

praticamente desde o início da vida

do grupo, apesar de ter sido o pri-

meiro tema gravado em maqueta,

o primeiro a passar na rádio e o pri-

meiro que tocaram ao vivo. “Faz

todo o sentido apresentá-lo neste

contexto de comemoração dos 30

anos”, reflecte Nuno. “É um tema

que surgiu na primeira improvisa-

ção que fizemos, eu, o Pedro D’

Orey e o Nuno Canavarro. E a pri-

meira palavra do tema é, nem mais

nem menos, que Mler Ife Dada. A

origem do nome é essa. Depois

nunca mais o tocámos por uma

questão técnica: tinha uma sequên-

cia gravada e não tínhamos sequen-

ciador.”

Para além da interpretação de

canções como Zuvi zeva novi,

L’amour va bien, merci, Alfama, Er-

ro de cálculo, Valete (de copas) ou À

sombra da pirâmide, haverá tam-

bém uma cenografia visual, para a

qual contribuíram o arquitecto Sér-

gio Rebelo ou a designer Rita Filipe.

Será uma ocasião única, que espe-

ram repetir nos próximos tempos,

“mas não muitas vezes”, diz Nuno

Rebelo. Pelo menos é esse o dese-

jo.

“A nossa vontade é fazer alguns

bons concertos, em boas condi-

ções, com todos estes músicos”,

afirma, até porque ambos estão

convencidos que esta sexta-feira vai

ser em grande. “Estou com muita

expectativa. Deixei a minha vida

extramusical para me concentrar

nisto e acho que vai ser fantástico”,

diz Anabela Duarte. Nuno Rebelo

é mais taxativo: “Vai ser o melhor

concerto de sempre dos Mler Ife

Dada!”

“É verdade, quando aparecemos e hoje... a situação social não é assim tão diferente. Basta pensar que estava cá o FMI” Nuno Rebelo

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Page 18: Ipsilon-20140214

18 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Um pequeno furacão chegou

esta semana às lojas. Não

atirou prateleiras ao chão

nem escaqueirou montras,

mas desarrumou a cabeça

de muita gente — visto ser

um objecto tão inesperado e tão in-

classificável que nem sabemos bem

o que fazer com ele. O epicentro

deste fenómeno — 8, o primeiro

longa-duração de um quarteto cha-

mado Sensible Soccers — não é Nova

Iorque, nem Tóquio, nem Berlim

nem Paris, antes Fornelo, a aldeia

nas imediações de Vila do Conde

onde a banda ensaia. E nem sequer

se pode dizer que isto seja comple-

tamente inesperado: há cerca de

ano e meio que, faixa aqui, faixa ali,

eles vinham deixando água na boca

dos mais diferentes melómanos: ge-

eks informáticos de Ponte de Lima,

professores de Tomar, ex-namora-

das de jornalistas admiráveis.

Há coisa de seis meses, veio o ca-

so que os transformou de nanoculto

cultivado nos entrefolhos da Inter-

net em miniculto cultivado em zo-

nas menos obscuras da fibra óptica:

uma simples canção, minimal e re-

petitiva, de seu nome Sofrendo por

você (um achado), com um vídeo

inesperado em que uma data de ho-

mens estranhos começam, um a

um, a dançar da forma mais esqui-

sita imaginável. Fosse do vídeo, fos-

se do tema, de repente aquela sim-

pática rede de amigos do Facebook

que nunca vimos à nossa frente não

falava de outra coisa. “Acho que nin-

guém esperava por um vídeo como

o Sofrendo por você”, reflecte Edu-

ardo, baixo e guitarra do quarteto.

“Um plano fixo feito com câmaras

dos anos 1990 e aquelas persona-

gens incomuns em frente a uma fá-

Em menos de um ano, os Sensible Soccers geraram seguidores indefectíveis e um universo em que dança, rock, funk e música atmosférica batem certo. Mas bonito, bonito era penetratrem no mainstream.

João Bonifácio

Penetrando por você

RIC

ARD

O A

LMEI

DA

brica abandonada na estrada nacio-

nal para a Trofa.” Escrito e realizado

por Hugo (teclados e programa-

ções), feito com material gentilmen-

te cedido, com amigos a dançar e a

banda a ajudar nas gravações, o ví-

deo de Sofrendo por você repete uma

constante do percurso dos Sensible

Soccers: eles fazem tudo, mas sem-

pre com tudo emprestado.

Quatro amigos de infância que

sempre sonharam em conjunto atin-

gir o estrelato pop, portanto? Nem

por isso: Eduardo, com quem falá-

mos ao telefone, e Filipe (guitarra)

são de São João da Madeira, Hugo e

Né (vozes, instrumentação vária)

são de Vila de Conde. Cada um mo-

ra numa terra diferente, daí Forne-

lo como quartel-general: fica a meio

do caminho. Eduardo e Filipe são

“amigos de adolescência”, Hugo e

Né também; entretanto, Eduardo

foi para Coimbra e aí conheceu Hu-

go, com quem começou a passar

música na RUC, uma entidade de

serviço público que merecia um par

de comendas. Por fim, os dois pares

de amigos tornaram-se os Sensible

Soccers: “Nós existimos como ban-

da mais ou menos a sério desde

2010 — mas a ideia vinha de 2008 e

o nome já estava escolhido. O Hugo

tinha começado a brincar com o

computador, fez umas demos e pe-

diu para eu acrescentar baixos e

guitarras. Como o Filipe tinha um

estúdio no Centro Comercial Stop

[no Porto], começámos a ensaiar lá

e acabámos em quarteto.”

Mas estas amizades não são fun-

dadas nas oh tão lindas memórias de

juventude. O que une os Sensible

Soccers é a paixão irreprimível pela

música: “Quando conheci o Hugo ele

estava a passar o Blue monday. Fui

logo falar com ele”, explica Eduardo.

É mesmo isso: estes moços são “to-

linhos da música”, aquele tipo de

rapazes com quem se pode discutir

um tema de blues de 1945 ou aquele

single disco obscuro da década de

1970. “Gosto de coisas muito diver-

sas, sim: gosto dos Konk, adoro a

cena noise de Nova Iorque. Gostamos

de hip-hop, de William Basinski, dos

Stereolab — muita coisa.”

Vontade de fazerEssa muita coisa nota-se na salga-

lhada que é 8, um disco que, para-

doxalmente, consegue manter coe-

rência apesar de disparar em várias

direcções: há órgãos planantes que

lembram os Tangerine Dream, funk

branco, e, acima de tudo, canções

que ecoam a célebre exigência de

Martin Hannett, produtor dos Joy

Division, ao baterista da banda:

“Play faster, but slower”. Tudo nos

Sensible Soccers parece ser tocado

devagar, por entre névoas de mari-

juana; quando se dá por ela, há MD-

MA na língua e o corpo mexe e re-

mexe.

“Confesso que não sei bem que

[tipo de música] temos vontade de

fazer. Sei que é um cliché, mas aci-

ma de tudo temos vontade de fazer

música. É claro, por exemplo, que

todos temos uma ligação à canção

tradicional, mas até ao momento

não é algo que tenhamos feito. Fo-

mos mesmo experimentando de

forma inconsciente e isso leva-nos

a fazer coisas muito diferentes”, di-

zem. Essa diferença nota-se, por

exemplo, do disco para os concer-

tos. “Ao vivo somos uma banda mais

directa e mais intensa. No disco tam-

bém há vontade de fazer dançar,

mas ao vivo gostamos mesmo de ver

pessoas a mexerem-se à nossa fren-

te — as pessoas trazem um apelo

mais físico à música.”

E se ao vivo as pessoas podem ex-

perimentar os inimitáveis passos de

dança das personagens do vídeo de

Sofrendo por você, em disco não — a

canção, que é, até ao momento, o

maior êxito dos Sensible Soccers fi-

cou de fora, o que deixou abismados

os, vá, 500 fãs da banda (ou mais:

eles têm culto na Galiza e este Verão

darão concertos fora da península

Ibérica). “Algumas pessoas pensam

que não pusemos o tema no disco

por birra em reacção ao reconheci-

mento que teve, e sei que é estranho

ter ficado de fora, mas nunca esteve

previsto que entrasse no álbum. Ali-

ás, o simples facto de existir é quase

um milagre: começámo-la há dois

anos e meio, demos-lhe muitas vol-

tas e quando finalmente encontrá-

mos um registo de que gostámos

pusemo-la cá fora. Mas nessa altura

o disco já estava gravado”, justifi-

cam. E não vale a pena sofrer por

uma canção ficar de fora quando há

outras melhores lá dentro: seja a

dança sintética de Sob Evariste Dibo,

o proto-funk de Manuel, a melodia

de Ulrike, house e shoegazing, tudo

na Moulinex até ficar um todo uni-

forme.

“Não somos uma banda para pe-

netrar no mainstream”, reflecte

Eduardo, “mas rapidamente tive-

mos seguidores. Éramos muito frá-

geis ao vivo, mas sentimo-nos muito

acarinhados e fomos avançando e

experimentando”. E é isso que a

melhor coisa que aconteceu na mú-

sica portuguesa desde a reforma de

B Fachada vai continuar a fazer: ex-

perimentar por você, penetrar por

você.

Page 19: Ipsilon-20140214

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 19

Há um efeito de suspensão

na música de Agnes Obel.

Fechada num pequeno es-

túdio em Berlim, a cantora

dinamarquesa passa dias

a tentar cortar toda a co-

municação com o mundo para po-

der dedicar-se a obsessivamente a

cada canção. Lá fora, as ruas en-

chem-se, os bares deitam gente pe-

las costuras, copos e garrafas esti-

lhaçam-se no passeio e manda a

socialização. Mas o motivo de Obel

é exactamente contrário. É o do re-

colhimento, o de soltar todas as

amarras para poder regressar ao

espaço da infância. Cada canção,

admite, é uma recriação possível,

uma tentativa de acesso a essas me-

mórias longínquas. Como se tentas-

se desenhar num papel a mobília da

sala de então, como se fizesse um

esforço por recuperar diálogos com-

pletos ouvidos em família, como se

agarrar esse tempo já desaparecido

fosse uma maneira de não ser arras-

tada pela marcha terrível do presen-

te. As memórias, claro, primam por

falsear os factos. Mas para que inte-

ressam os factos se o que há são,

precisamente, as memórias?

“Muitas melodias que me atraem

e de que tenho tendência para gos-

tar vêm da minha infância, ligam-se

àquilo que ouvi em criança”, conta

a cantora. “É como se fosse uma

mistura crua de tudo quanto ouvi

nessa altura, da música clássica fran-

cesa ao jazz sueco e a velhas canções

tradicionais. E está tudo tão lá atrás

que nem consigo distinguir clara-

mente na minha cabeça o que é es-

sa música.” As certezas resumem-se

a um par de recordações soltas:

lembra-se de tocar em casa algumas

peças de Debussy e canções tradi-

cionais de origem dúbia; e de a sua

mãe interpretar Ravel quando se

sentava ao teclado. Tudo isto apon-

ta no mesmo caminho: as canções

de Agnes Obel constroem-se em tor-

no de um método regressivo que

bem podia chamar-se psicanálise.

Mas esses ecos, clínicos, com dema-

siadas implicações, já não interes-

sam ao desprendimento que preten-

de imprimir à sua música.

Este método — do qual confessa

que “seria muito difícil sair, mesmo

que o quisesse fazer” — vem acom-

panhado de uma necessidade de li-

bertação e de não querer dar um

nome às coisas. Daí a ideia de que a

procura teria de fazer-se não numa

contemporaneidade excessivamen-

te compartimentada em milhentos

minúsculos subgéneros, mas em al-

go que estivesse incrustado bem

mais fundo. “Antes de trabalhar nas

minhas coisas a solo tocava em ban-

das e aí era tudo muito focado no

estilo e no tipo de som”, diz, identi-

ficando aquilo de que queria afastar-

se com quantas forças tivesse. “Por

isso, quando comecei a trabalhar

fervorosamente nas minhas compo-

sições, quando percebi que queria

fazer um disco que fosse meu, deixei

de pensar nesses termos, deixei-me

de géneros.” Escolheu então privi-

legiar uma relação intuitiva com as

melodias, criando um contexto men-

tal eventualmente falacioso mas que,

ainda assim, indicasse um cami-

nho.

A inscrição consciente num géne-

ro, no entanto, teria a vantagem de

balizar a criação de Agnes Obel, ga-

rantindo uma segurança natural.

“Só que não estou a mimetizar como

na música pop, sou mais livre neste

projecto, que é conceptual por ter

a ver comigo, com as minhas ori-

gens, com o sítio de onde vim, e tor-

na tudo mais pessoal.” A sua recusa

implicou ter de assumir que, para

todos os efeitos, a matéria-prima a

esculpir seria ela própria.

Berlim ajudou-a igualmente a

sentir-se livre para levar até ao fim

a transformação que resultou pri-

meiro na música de Philharmonics

e agora no mais assertivo Aventine.

Na Dinamarca “há menos espaço e

é tudo muito perfeito e imutável”,

afirma em tom de queixa. “Em Ber-

lim há muito espaço, não me sinto

confinada nem cercada. E há muitos

sítios em transformação, é fácil sen-

tirmos que podemos chegar e per-

tencer, há espaço para mudança.”

Bailarinos no céuO fascínio de Agnes Obel pelo pas-

sado não se limita às suas próprias

e falíveis memórias. Por vezes, é

mesmo olhando para obras passa-

das que consegue ficar em paz com

as canções em que trabalha. Exem-

plo perfeito disso mesmo é Dorian,

tema incluído em Aventine — e total-

mente desligado de qualquer asso-

ciação à personagem de Oscar Wil-

de. Obel andava pouco satisfeita

com o tema, mas era incapaz de

identificar a origem do desconforto.

Até que o namorado, o fotógrafo e

realizador de cinema de animação

Alex Brüel Flagstad, decidiu, ao pes-

quisar imagens para o vídeo de The

curse, preparar uma brincadeira

com Dorian, justapondo a canção

às imagens de The Very Eye of Night,

o filme da cineasta experimental

russo-americana Maya Deren, de

1958, em que bailarinos da Metro-

politan Opera dançam sobre um

tapete que é, na verdade, um céu

estrelado. Ao trocar a composição

original de Teiji Ito pela canção de

Agnes, as imagens abandonaram a

estranheza e o mistério, e carrega-

ram-se de um onirismo que parece

feito à medida.

“Foi realizado nos anos 50 mas pa-

rece muito moderno e muito antigo,

ao mesmo tempo”, conta em claro

modo de elogio. “Tem um tempo pró-

prio”, reforça. As imagens mostra-

ram-lhe, na altura, que a canção de-

via, afinal, permanecer intocada. O

desconforto passou assim que perce-

beu a beleza potencial daquilo que

tinha registado na pré-produção. Até

porque a cantora/pianista dinamar-

quesa gosta de alçapões secretos,

sentidos ocultos, ligeiras insinuações

de que sob o rio da normalidade cor-

re algo de mais inquietante. Daí que

se refira às canções de amor dos anos

50 e 60 como “uma porta de acesso

ao surreal”. “Nalgumas dessas can-

ções vejo um elemento sombrio mis-

turado com toda a toada fantasista

— porque as fantasias são um escapis-

mo e uma atracção pelo desconheci-

do, pelo mistério”, justifica.

Isso diz-nos o porquê de Agnes

Obel gostar de espreitar para trás da

cortina ou por baixo do tapete, ten-

tando encontrar o que há de pertur-

bador disfarçado na sombra do be-

lo. “Nem tudo está bem, habitual-

mente”, conclui. “E é essa aparência

de que sim que torna tudo quase

assustador.” E isso é válido também

para as suas canções? “Espero que

sim”, responde. E, em seguida, con-

ta-nos uma história. A história de

como os instrumentos podem pro-

duzir sons diferentes daqueles para

os quais foram criados, de como um

violoncelo pode muito bem levar

pancada para marcar o andamento

das suas delicadas autorias e de co-

mo, acima de tudo, estas lhe são

preciosas. Agnes, autora de canções

quase virginais, era capaz de coisas

feias se alguém lhes fizesse mal.

Ver crítica de discos pág. 26 e segs.

Agnes Obel, cantora dinamarquesa a viver em Berlim, faz no encantador Aventine uma viagem à infância que só por acaso não toma acidentalmente a saída da psicanálise. Olhando com atenção, podemos avistar uma inquietação a pulsar sob a superfície deste disco.

Gonçalo Frota

Não queiram fazer mal a estas canções

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20 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Deixemos de dizer “nós” pa-

ra falar daquele que vemos

em palco. Acabemos com

a ideia de que esse corpo

pode ser o nosso, de que

aquela música pode ser o

compasso da nossa respiração e de

que aquela luz é a fronteira que os

nossos sentidos delimitam. O que

tem feito as delícias do discurso so-

bre a dança contemporânea e os

truques que se têm usado para, em

vez do corpo se falar em espaço, em

vez de movimento se falar em tempo

e em vez de coreografia se falar em

naratividade, caem por terra em

Grind. Mea culpa. Seria mais fácil

voltar a repetir esse jargão tornado

científico do que olhar de frente pa-

ra o que o palco negoceia em dar a

ver, do que aceitar que, em Grind,

tudo isto podia ser verdade se não

fosse uma ilusão e um truque. Mais:

um dispositivo e um mecanismo fic-

tício criado pelas brilhantes mentes

de Jefta van Dinther (coreografia),

Minna Tiikkainen (desenho de luz)

e David Kiers (paisagem sonora).

Apresentação única hoje, no Centro

Cultural Vila Flor, Guimarães, no 6º

Festival Internacional de Dança Con-

temporânea, que assistirá à estreia

em Portugal do trabalho no novo boy

wonder da dança contemporâna eu-

ropeia.

“Se olhar à volta e começar a ten-

tar perceber o que me associa a ou-

tros criadores, o que percebo é que

é a falha, o vazio, o que falta, que

me move.” “Nós, consumidores da

criação contemporânea”, começa

por dizer, mas rapidamente corrige

reconhecendo que a inventividade

que lhe é apontada decorre de uma

saturação do discurso sobre um mo-

vimento potencialmente conceptu-

al e de uma ideia de presença em

palco que quase tende a esquecer o

que se está a ver. Assim, Grind, que

se pode traduzir por “esmagar”. é

um exercício de tal modo violento

que, no seu aparente minimalismo

estético, dir-se-ia até, por força da

sua expressividade falsamente mo-

nótona, destrói, como uma implo-

são, a consciência dos que nela qui-

serem tomar parte.

É uma experiência. Uma experi-

ência sensitiva, física, violenta, que

força o que é inorgânico a experi-

mentar uma estrutura, que coloca

o corpo em estado de alerta e que o

abandona à sua sorte. “É tudo isso”,

diz Van Dinther, “e é também um

desdobramento contínuo que pro-

duz uma reflexão sobre a falha e a

perda e assume, sem pudor, a ence-

nação da sua própria finitude”. É um

auto-retrato em composição, diz,

“excitado” com a própria ideia de

destruição.

Trabalho de exclusãoHabita Grind - mas na verdade todo

o trabalho de Van Dinther (seis co-

reografias em menos de dez anos)–

uma exploração daquilo que é da

ordem do sensível e sensorial. Como

se o movimento não existisse senão

como construção emocional. Ele

chama-lhe “o diálogo entre a matéria

e o material” e, no vai-e-vem de pos-

sibilidades de leitura que um discur-

so coreográfico assente na interpe-

lação ao real possa ter, o que vai

sedimentando esse discurso é um

exercício de exclusão não apenas do

que é acessório mas também do que

parecia ser evidente e funcional. “O

meu trabalho é, absolutamente, um

trabalho de exclusão”, assume. “É

mais até, é um trabalho que se recu-

sa a ceder ao próprio processo e ao

entusiasmo primário que a experi-

ência possa provocar. Mas não é por

isso que não é um trabalho intuiti-

vo”. Escreveu Anna Ångström no

jornal Svenska Dagbladet, na estreia:

“Mesmo que seja abstracto, Grind

potencia fortes reacções físicas, as-

sociações de imagens e, muitas ve-

zes, desconforto. Por um lado pare-

ce sugerir uma violência distópica

relacionada com uma contempora-

neidade em estado bruto. Por outro,

parece uma tentativa para, ‘espec-

tacularmente’, alterar a nossa forma

de sentir e perceber [o que nos en-

volve]”.

Thiago Granato, que co-assinou

com Van Dinther a peça que se se-

guiu a Grind, This is concrete, fala de

um “equilíbrio desconcertado” para

descrever o modo de construção de

um movimento absolutamente auto-

fágico. “A tentativa de sincronização

dissonante [promovida] pelos três

elementos – movimento, música e

luz – estimula um determinado tipo

de percepção no espectador. Esta

Tiago Bartolomeu Costa

Auto-retrato em

composiçãoFulgurante estreia do sueco Jefta van Dinther, boy wonder da dança contemporânea europeia que assina, com Grind, um dos melhores espectáculos dos últimos anos. Hoje, em Guimarães.

VIK

TOR

GA

RDSA

TER

VIK

TOR

GA

RDSA

TER

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 21

sincronia entre os diferentes ele-

mentos no palco também existe en-

tre a cena e o espectador”, diz o

coreógrafo falando de uma vibração

que obriga a uma reacção, a uma

resistência que o (nos) levará a tor-

nar-se cúmplice da própria peça.

É através da duração e da exten-

são do movimento que o corpo vai

permitindo a repetição em loop de

certas frases. E, num acumular de

justaposições, o movimento começa

a surgir já não como material inor-

gânico mas como um fluxo contínuo

que transfere do movimento para a

música, da luz para a definição do

corpo, uma coreografia que anula

qualquer fuga.

A ilusão de tudo poderHá uma angst, um mal-estar, uma

insatisfação em Jefta van Dinther

que o faz recusar a formatação de

um discurso que espera por uma

dança que satisfaça a ambição da

transcendência. A sua é, ao contrá-

rio, uma dança que se quer enraizar,

o mais fundo possível, num mapa-

corpo emocional e investigar modos

de protecção de um contexto – po-

lítico, social, analítico – que pede ao

corpo que seja mais do que apenas

receptáculo. E não há nada que Jef-

tha van Dinther goste mais do que

explorar o corpo a partir do que lhe

é intrinsecamente frágil: a ilusão de

tudo poder.

“De forma engenhosa, van Din-

ther transforma a sua coreografia

minimalista e repetitiva de modo a

que a mais discreta mudança ganhe

importância. Por vezes o movimen-

to atinge uma carga que lhe é fatídi-

ca, como se o que acontecesse em

palco fosse uma alegoria da luta do

homem moderno no interior de

uma realidade altamente comple-

xa”, escreveu o jornal online sueco

Nummer, em 2011. A esta possibili-

dade de leitura no palco de reflexos

directos da vida quotidiana van Din-

ther reage com sentimentos contra-

ditórios. Primeiro a surpresa e, de-

pois, a credulidade. “Não quero

forçar uma leitura do meu trabalho

que sujeite o espectador a compor-

tar-se, ou a reagir a ele, do mesmo

modo que eu porque, de facto, es-

tamos em campos diferentes. Mas

se a percepção que eu imagino que

se possa ter vai ao encontro de uma

que eu poderia ter como especta-

dor, por outro lado imagino que

isso diga muito mais respeito à pes-

soa em causa do que ao que o es-

pectáculo possa surgir”. Mas as re-

acções têm sido assim, viagens men-

tais que levantam questões

pertinentes – ou tão pertinentes co-

mo as que em comum possam ser

levantadas por um espectáculo que

é uma viagem individual. “Fico mui-

to entusiasmado quando escolho

uma direcção que não sabia mas,

no fim, sou só humano, e acabo por

ir ao encontro de coisas que já re-

conhecia. A explicitação de uma

ideia não deveria ser, em si mesma,

suficiente para me fazer acreditar

que esse é o caminho. Gosto do que

tudo o que possa ajudar a construir

uma ideia de conjunto mas não gos-

to de uma ideia de conjunto que

seja harmónica”.

A duração de Grind – 45 minutos

– permite admitir que Jefta van Din-

ther reconhece que o tempo solici-

tado para uma presença deve ser

menor do que o tempo imaginado.

“O corpo experimenta sensações

diferentes conforme é, ou não, su-

jeito a situações de confronto. Em

Grind o meu próprio corpo reage a

estímulos que não posso prever, que

surgem do que possa estar a pensar

naquele momento e que são, na ver-

dade, reacções a relações que esta-

beleço com o próprio tempo que

passei a viver esta peça”. E é então

que se revela: Jefta van Dinther está

apaixonado. Tem poucos dias mas

já faz de tal modo parte da sua per-

formance que esta noite, em Guima-

rães, se olharmos atentamente para

o momento em que ele leva as mãos

ao rosto vamos poder sentir o que

ele sente: o cheiro do sexo que teve

há dias e que, sem pudor, nos conta

em pormenor, como se quisesse par-

tilhar a sensação de redescoberta

do seu trabalho nesse detalhe da sua

vida íntima. O exemplo que nos dá

para nos aproximar da descarga de

adrenalina que é Grind, deixa-o tam-

bém a ele mais próximo não tanto

da estreia, em 2011, mas do proces-

so de descoberta de uma coreogra-

fia que se revela como um território

exclusivo e onde o corpo é só um

ponto de questionamento.

Há uma angst em Jefta van Dinther que o faz recusar a formatação de um discurso que espera por uma dança que satisfaça a ambição da transcendência

Jefta van Dinther está apaixonado. Esta noite se olharmos para o momento em que ele leva as mãos ao rosto vamos poder sentir o que ele sente: o cheiro do sexo que teve há dias

Informações 21 790 51 55 · [email protected] · www.culturgest.ptTicketline Reservas e informações: 1820 (24 horas)��·��Pontos de venda: Agências Abreu, Galeria Comercial Campo Pequeno, Casino Lisboa, C.C. Dolce Vita, El Corte Inglés, Fnac, Megarede, Worten e www.ticketline.sapo.pt

Sobre o trabalho da montagem em artistas que usam o filmeEncontros com os filmes de James Benning, Peter Hutton, Larry Gotheim, Arthur Cantrill, Corinne Cantrill e vídeos de Sérgio TabordaCINEMA QUA 12, QUI 13, SEX 14 DE FEVEREIRO · 3,50€ (PREÇO ÚNICO)

Qua 12, 21h30 James Benning: One Way Boogie Woogie�/�27 years later, 1977-2004 Qui 13, 21h30 James Benning: Ten Skies, 2004 Sex 14, 18h30 Sérgio Taborda: Sequência 7 – Sequência 8, 2002-2013 Sex 14, 21h30 Peter Hutton: New York near sleep for Saskia, 1972; Images of Asian Music: A Diary from Life, 1973-1974 · Larry Gotheim: Burn Rushes, 1971 · Arthur Cantrill, Corinne Cantrill: Heat Schimmer, 1978

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Economia: uma ciência que transforma o mundo?por José Castro CaldasCONFERÊNCIAS TERÇAS 4, 11, 18, 25 DE FEVEREIRO · 18H30 · ENTRADA GRATUITA

18 de fevereiro A Economia e a Grande Recessão 25 de fevereiro Outras Economias

Festival RESCALDOTEATRO DE QUI 20 FEVEREIRO A SÁB 1 MARÇO · 21H30 · 6€ (PREÇO ÚNICO DIÁRIO) · M3

Produção Culturgest�/�Trem Azul Comissário Travassos Qui 20 fevereiro 10 000 Russos; The Jack Shits Sex 21 fevereiro Nuno Rebelo; Rodrigo Pinheiro�/�Thomas Lehn Sáb 22 fevereiro Tiago Sousa�/�Maria Leite; Eduardo Raon�/�Tomaž Grom Qui 27 fevereiro Simão Costa; Sturquen; Fat Freddy Sex 28 fevereiro Nuno Aroso; Peixe Sáb 1 março Kilimanjaro; Vitor Rua Dj Set De 20 fevereiro a 1 março Exposição de Ilustração de Amanda Baeza

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22 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Sofia Lorena

do futuro A caminho

Morte, perda, determinação e esperança. Foi isso que três jovens jornalistas portugueses encontraram na Estrada da Revolução, conjunto de reportagens, livro e um documentário que estreia esta semana.

A mãe de dois líbios assassinados na pior das prisões de Muammar Khadafi fotografada no memorial aos mártires. João Fontes (em primeiro plano) e Tiago Carrasco, os autores do filme que acaba de estrear, durante a viagem

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 23

Mohammed Ali encontrou

aconchego longe de casa

e fez das fotografias dos

mártires e dos familiares

que os choram a sua nova

família. A morada é um

antigo tribunal de Bengazi, capital

da revolta líbia, tornado memorial

das vítimas, Prédio da Liberdade.

Hamza Zinoubi continua a não ter

dinheiro nem expectativas de uma

vida diferente. Foi na sua cidade que

tudo começou e é mesmo ali que me-

nos parece ter acontecido. Moham-

med Draz não tem casa e escolheu

viver na Tahrir do Cairo. Enquanto

ali estiver, a revolução continua e

tudo faz mais sentido.

Há mortos aqui, mesmo se nunca

vemos os seus corpos, tantos, tantos

mortos. Há desesperança. Mas há

mais vida e futuro, mesmo se esta

gente parece presa ao presente. Cada

um à sua maneira, estes jovens são

guardiões da revolução e do que há-

de vir.

A Síria também cá está e na Síria

é tudo diferente. Homens e mulhe-

res decidiram resistir porque não

lhes resta outro caminho e a vida

agora é defender a revolta com a

vida ou morrer a tentar.

Tiago Carrasco, João Fontes e João

Henriques quiseram perceber como

é que começa uma revolução. Parti-

ram de Lisboa um ano depois das

primeiras manifestações em Sidi Bou-

zid, cidade perdida do Centro da Tu-

nísia, a mesma onde Hamza Zinoubi

compra T-shirts largas no mercado

para depois as apertar e revender a

jovens como ele, que querem sentir-

se na moda, como quase todos os

jovens em todas as cidades do mun-

do. É o mesmo mercado onde Moha-

med Bouazizi vendia legumes até ao

dia em que se imolou pelo fogo. Os

três portugueses, todos então com

menos de 30 anos, voaram até à Tur-

quia e daí seguiram, sempre de trans-

portes públicos. Passaram por países

onde caíram ditadores, como a Tu-

nísia e o Egipto, foram à tragédia da

Síria, ao vizinho e protectorado his-

tórico Líbano, visitaram monarquias

do Golfo onde os regimes tremeram

e ficaram, como a Jordânia. Pelo ca-

minho, perceberam que as revolu-

ções começaram mas estão por ter-

minar, todas. E ninguém melhor do

que os dois Mohammed, o líbio e o

egípcio, para nos dizer isso mesmo.

“Junto das populações, apesar de

se sentir alguma decepção com a

realidade, com o que não aconteceu

como se queria, ficou a impressão

de que é possível fazer cair um dita-

dor”, diz o repórter de imagem João

Fontes. “Isso acaba por dar àquelas

pessoas um poder de que nós esta-

mos arredados”, completa o repór-

ter Tiago Carrasco.

Poder e esperança. “Fazia-me fal-

ta sentir essa esperança, essa deter-

minação, essa capacidade das pes-

soas de se juntarem e de levarem

essa determinação até ao fim, até

que ela tenha consequências”, diz

o escriba do grupo. “Deixar de ouvir

a frase ‘Não me vou manifestar por-

que isso não vai mudar nada’ e subs-

titui-la por ‘Vou-me manifestar e vou

mudar tudo’.”

De novo em viagemA conversa acontece por Skype. Lis-

boa, do lado de cá; do lado de lá, o

hall não muito iluminado de um ho-

tel perto de Lucknow, capital do

Uttar Pradesh, um dos mais pobres

e conservadores estados da imensa

Índia. É lá que Tiago Carrasco e João

Fontes acordam por estes dias. Com

o fotógrafo João Henriques já foram

“até lá abaixo”, de carro por África

até ao mundial de futebol da África

do Sul, em 2010, e lançaram-se na

estrada das revoluções. Agora, Tia-

go Carrasco e João Fontes, os auto-

res do documentário que esta sema-

na estreou, puseram-se de novo a

caminho para filmar a vida das ado-

lescentes que integram as Red Bri-

gades, milícias populares que patru-

lham as ruas e protegem as indianas

de potenciais violadores.

Tal como aconteceu nos projectos

anteriores, este pode ir sendo acom-

panhado no Facebook (The Red Bri-

gade Project), ao mesmo tempo que

ainda decorre uma campanha para

financiar a edição do documentário

Até Lá Abaixo (ifundnews.com/pt/

atelaabaixo). Estas viagens fazem-se

mas fazem-se com os tostões conta-

dos. No caso da Estrada da Revolu-

ção, somando o dinheiro do sema-

nário Sol, onde foram publicando

reportagens, ao adiantamento do

livro (Oficina do Livro) e ao investi-

mento da BeActive (a produtora que

assina a edição do documentário),

os três jornalistas partiram com 33

euros por dia cada. A aventura fez-se

– e ganhou o Prémio Gazeta de Mul-

timédia – mas só graças ao engenho

e à hospitalidade árabe.

“Nós já viajámos muito, atraves-

sámos África. Somos abertos e esta-

mos habituados a outras culturas”,

diz João Fontes. Mas isso não impe-

diu o embate com o mundo árabe e

muçulmano, que quase desconhe-

ciam. “A maioria dos meus amigos

não são religiosos e o islão é uma

religião muito diferente da que nos

rodeia”, continua. É, em vários des-

tes países a religião está por todo o

lado, entra-nos pelos ouvidos – “so-

mos constantemente absorvidos

pelos sons das mesquitas” – e inva-

de-nos a vista. Vemos o que estamos

à espera de encontrar e depois so-

mos obrigados a olhar outra vez. “Os

salafistas, os homens barburdos, a

televisão mostra sempre os terroris-

tas com estas barbas grandes... De-

pois, conversamos com eles e as

impressões vão mudando. Eu até

deixei crescer a barba.”

Estas revoluções foram feitas por

homens e por mulheres, mas há mais

homens neste documentário, muito

mais homens do que mulheres. Faz

sentido. Em poucos dos sítios por

onde passaram teria sido possível a

três jovens portugueses chegarem à

proximidade que alcançaram com

os protagonistas desde filme se eles

fossem mulheres. “Combinámos vá-

rias entrevistas com mulheres, na

Síria, na Jordânia, mas elas vieram

acompanhadas por homens, não es-

tavam à vontade, não seria a mesma

coisa”, diz João Fontes.

São poucas as mulheres com direi-

to a papel próprio aqui, mas não nos

esquecemos delas. Saímos da sala e

continuamos a ver a silhueta da mãe

dos dois presos de Abu Salim, centro

de detenção sinónimo de tortura e

de morte na Líbia de Muammar Kha-

dafi. Imaginamo-la velha e cansada,

atrás da túnica branca que segura

para tapar o rosto enquanto sustém

a fotografia dos filhos perdidos. Saí-

mos da sala e continuamos a ver o

rosto de quem aceitou a realidade

impossível de ver morrer um filho

porque “ele percebeu melhor do que

eu e eu percebi que eu estava erra-

da”. Najwa Karam disse ao filho que

não lhe perdoava se morresse. “Não

estou zangada contigo”, sussurou-

lhe, já na morgue.

As duas mães são visitas do tribu-

nal onde Mohammed Ali dorme, que

mantém limpo com um cuidado ex-

tremo e onde faz sites com listas dos

desaparecidos do regime derrubado

e da luta que acabou com a sua mor-

te. “Quando alguém sente saudades

de uma pessoa vem cá falar com ela”,

diz, rodeado de fotos de mártires. O

guardião dos mortos fala na “vergo-

nha em expressar sentimentos” como

a saudade na cultura líbia e nós pen-

samos que é tão bom que ele exista

e esteja ali, para aquelas famílias. “Es-

te lugar tornou-se na minha casa.

Sentes mesmo que há vida, é sim-

ples.”

Um amigoJoão Fontes e Tiago Carrasco estão

muito longe de Bengazi e do Cairo,

mas não esqueceram os protagonis-

tas das revoluções que tanto quise-

rem testemunhar. Os desertores e

civis tornados rebeldes na província

síria de Idlib, por exemplo. “’Quando

Bashar cair quero regressar a Binnish

para festejar com vocês’, disse o Fon-

tes. ‘Depois, vocês visitam-nos em

Lisboa e vamos divertir-nos à gran-

de’”, lê-se no livro de Tiago Carrasco.

“‘E íamos beber cerveja, dançar e

beijar mulheres em Portugal?!’, ex-

clamou Wassim. ‘Gostava muito. Mas

sabes, tenho a certeza que vou mor-

rer nesta revolução. Todos temos

essa certeza.’” A Síria, diz o jornalis-

ta, “vai continuar a piorar”. Sim, to-

dos temos essa certeza.

Os dois portugueses não esquecem

ninguém, mas têm preferidos e eles

estão no filme. “O Hamza, tunisino,

pela proximidade de idades. Mas

principalmente o Mohammed Draz”,

diz João Fontes. “Sim, o Draz”, inter-

rompe Tiago Carrasco. Na Tahrir a

fervilhar de protestos permanentes,

a certa altura os radicais salafistas

invadiram um palco de manifestan-

tes liberais e o jovem egípcio acabou

acusado de ter roubado a câmara dos

portugueses. “Quando chegámos à

esquadra ele estava quase a ser pre-

so. Tivemos de explicar que ele não

nos tinha roubado a câmara, que era

nosso amigo”, conta o jornalista. E

era. “No domingo de Páscoa, ficamos

sem dinheiro. E foi o Draz, que era

um sem-abrigo, que nos emprestou

dinheiro para comer.”

Tiago Carrasco e João Fontes que-

riam muito saber de Mohammed

Draz mas nunca mais conseguiram

contactá-lo. Já do tunisino continuam

a receber notícias. No filme, são dele

as frases mais desesperançadas. É

ele que sente que afinal nada mudou,

veio “a liberdade” mas ficaram por

vir “as oportunidades” e ele, que tem

sonhos de uma vida bem diferente,

não sabe se vai aguentar. Já passaram

uns anos. No fim do filme, ficamos a

saber tudo o que os autores sabem

sobre o que aconteceu a estas pesso-

as. Hamza Zinoubi está feliz e encon-

trou mesmo outro caminho.

Ver crítica de filme págs 24 e 25

“Fazia-me falta sentir essa esperança, essa determinação, essa capacidade das pessoas de se juntarem e de levarem essa determinação até ao fim, até que ela tenha consequências”, diz Tiago Carrasco

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24 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

claro, perder-se-iam, ou não se

revelariam da mesma maneira, as

alusões ao magno tema do filme,

“o papel da tecnologia na vida

contemporânea”. Não que Jonze

tenha algo de muito inovador a

dizer ou a mostrar: apenas que a

ilusão do contacto tomou o lugar

do verdadeiro contacto (os planos

das ruas, toda a gente sozinha,

sem ver ninguém, concentrada

nos auscultadores ou nos ecrans

dos telefones), e que tudo

funciona em falsidade e

substituição, entre os jogos de

realidade virtual e as cartas

fictícias que são o ganha-pão do

protagonista. O fundo “poético”

do filme não é mais do que isto,

um lamento pesaroso, sonâmbulo

e sentimental pelo avanço da

solidão na Humanidade. Já os

vimos mais poderosos, mais

ferozes, com menos ganga.

Dizer isto – que o filme é

decepcionante,

independentemente das suas

premissas ou conclusões – não é

dizer que seja para deitar fora.

Joaquin Phoenix, por exemplo, é

impecável, aguentando o filme,

sempre em modo deprimido e

reprimido, a falar com ecrãs e em

diálogos “imateriais”. Há alguns

flashes da imaginação delirante

de Spike Jonze, e sobretudo do

seu sentido de humor. Mas

apenas uma única cena capaz de

condensar e materializar os

fantasmas que o filme

timidamente convoca: aquela em

que o “sistema operativo”

encontra um corpo humano para

o substituir, para uma espécie de

bailado de acasalamento

estranho, assombrado e

“diferido”, onde o movimento e a

coreografia lembram algumas

coisas dos melhores telediscos de

Spike Jonze.

Tropa de lata

Robocop

De José PadilhaCom Joel Kinnaman, Gary Oldman,

Michael Keaton, Abbie Cornish

mmmmm

O cinema americano continua a

sua grande aventura na auto-

reciclagem: agora é a vez de

Robocop, decalcado do original

assinado por Paul Verhoeven no

final dos anos 80, entretanto

tornado “objecto de culto”. Para

este reboot de Robocop (agora diz-

se assim, talvez porque soe mais

moderno do que remake) os

produtores decidiram-se pela

contratação do brasileiro José

Padilha, autor do polémico Tropa

de Elite e respectiva sequela, que

assim passa, portanto, do “Bope”

(o corpo especial da polícia

brasileira retratado nesses

filmes) ao “robocópe”.

Alguma ironia haveria na

escolha, ou então total ausência

dela, porque Tropa de Elite, no

fundo, era a declinação realista

do mesmo tipo de fantasia

securitária desenhado em

Robocop, embora Verhoeven

fosse, obviamente, muito mais

sofisticado e mordaz a lidar com

as ambiguidades políticas

inerentes.

Com as ambiguidades politicas

inerentes e com o resto: o

Robocop de Padilha é um remake

escanzeladíssimo do original,

absolutamente “normalizado”,

“standardizado” mesmo, para se

confundir com a cartilha do filme

de super-heróis que parece ser

neste caso o único horizonte.

Uma das coisas mais fortes da

recordação do filme de

Verhoeven era a maneira como

criava uma sensação de caos,

de caos social e de caos

politico, que inquietava e

desarmava e dava um sentido

ao seu lado revanchista. Aqui, se

se mantém Detroit como cenário,

aquela Detroit falida que

entretanto se tornou símbolo

maior da “decadência industrial”

dos EUA, Padilha desperdiça ou

ignora liminarmente qualquer

espécie de reverberação que daí

pudesse vir: é puro “cenário”,

tratado com indiferença e

submetido aos rodriguinhos da

história. A sátira politica também

está ausente da narrativa, e para

compensar Padilha e os seus

argumentistas bordejaram o

filme com a personagem de

Samuel L. Jackson, um

“pregador” ao modo Fox

News, que vem exortar ao

securitarismo na América e

no mundo (mas é tão

Cine

ma Estreiam

Fala com elaA sinopse dava para imaginar um exercício de fetichismo maníaco, gelado, e pensar em gente como Buñuel ou Ferreri. Mas não foi esse o filme que Spike Jonze fez. Luís Miguel Oliveira

Uma História de Amor

HerDe Spike JonzeCom Joaquin Phoenix, Scarlett

Johansson, Amy Adams, Rooney

Mara

mmmmm

A sinopse era boa, muito

boa: um homem

apaixonado pela voz do

sistema operativo do seu

computador. Dava para

imaginar um exercício de

fetichismo maníaco, gelado, e

pensar em gente como Buñuel,

Ferreri e outros autores de

tratados sobre uma

masculinidade entrada em perda

puramente onanista. A sinopse, e

a ideia original de Spike Jonze,

continua a ser boa, mas não foi

esse o filme que ele fez, e Uma

História de Amor (título português

que involuntariamente ou não vai

directo ao ponto do filme, muito

mais do que o Her original) é

como se, a partir do momento

inicial promissor, Jonze tivesse

tomado as piores opções e

seguido pelos caminhos

menos interessantes. Para

começar, o sistema operativo

não é bem um sistema

operativo como os que

conhecemos, não se limita a um

repertório de meia-dúzia de

frases maquinais ou às indicações

das meninas do GPS. É um

sistema operativo muito mais

sofisticado (Uma História de Amor

é um filme no “futuro”, um filme

de “ficção científica”), com

ilimitadas capacidades de

aprendizagem e interacção.

Tem uma espécie de alma, e

descobre depois que

também tem uma espécie de

sentimentos. Uma personagem,

portanto, uma personagem de

“corpo inteiro” a que só falta o

corpo – mas como tem a voz de

Scarlett Johansson, que é,

digamos assim, um “corpo” que

toda a gente conhece, identifica e

imagina, a “batota” de Jonze é

dupla.

E é “batota” porque, na

verdade, exactamente o mesmo

filme podia ter sido feito com o

pressuposto de uma história de

amor “à distância”, ele (que é

Joaquin Phoenix) num canto do

mundo e ela noutro, em contacto

através do Skype ou doutra

geringonça qualquer. Mas aí,

O Robocop de Padilha: truculência zero, substituída por uma sinceridade ingénua e desajeitada que não aspira a mais do que ser o nascimento de um novo-velho franchise

Joaquin Phoenix é impecável, aguentando o filme, sempre em modo deprimido e reprimido

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 25

e lugares-comuns mais ou

menos abstractos

(“liberdade”, “democracia”,

etc), trata-se aqui de furar essa

cortina, esse “ecrã”, e ir aos

sítios, ver as pessoas, ouvi-las,

observar a “Primavera Árabe”

nos seus movimentos

contraditórios e frequentemente

trágicos. Sem ser um objecto

extraordinariamente

conseguido, Estrada da

Revolução tem uma razão de

ser que não se perde: a

“urgência”, o olhar a quente, e

nisso não dá mau nome a uma

hipótese de “cinema jornalístico”

que até é uma tradição

praticamente inexistente em

Portugal. Não evita uma

contiguidade, eventualmente

excessiva, com o território da

reportagem televisiva, mas tem a

noção sóbria do valor e da força

de um documento, mesmo se o

documento for apenas um rosto,

um testemunho, um silêncio.

Qualidades que, quanto mais

não seja, justificam a sua

vontade de “ser um filme”, que

fará sentido ver numa sala de

cinema. L.M.O.

Continuam

Filomena

PhilomenaDe Stephen FrearsCom Judi Dench, Steve Coogan e

Sophie Kennedy Clark

mmmmm

Judi Dench como mãe-coragem

irlandesa que, 50 anos depois,

ganha finalmente coragem para ir

à procura do filho que foi

obrigada a dar para adopção?

Queremos, claro – até porque se

há coisa que Stephen Frears

sempre soube fazer foi dirigir

actrizes (e podemos lembrar

mais do que apenas o Óscar

para Helen Mirren por A

Rainha). Mas a história verídica

de Philomena Lee, uma das

vítimas dos conventos irlandeses

de Maria Madalena usadas quase

como trabalho escravo para

expiar o pecado da concepção

fora do matrimónio, queda-se por

uma modorra mais convencional

do que é habitual no autor de

Anatomia do Golpe ou Chéri.

Demasiado gentil para ser

inteiramente convincente

como denúncia dos males da

religião, demasiado

sarcástico para ser reconfortante

como lição de vida de alguém que

soube perdoar, Filomena tem

uma dimensão “televisiva”,

caseirinha, que nem a eficácia da

dupla formada por uma Dench

imperial e um Steve Coogan

verrinoso (no papel do repórter

caído em desgraça que procura a

redenção investigando o caso)

consegue salvar. J.M.

patética a personagem, e tão

patética aquela introdução com

os robots em Teerão, que nem

como paródia se aguenta).

Resta o “frankensteinianismo”

da intriga, a fusão “homem/

máquina”, a questão da “alma”

a prevalecer sobre os “chips”,

mas tudo isto é resolvido com

uma vulgaridade simplória,

agravada pela falta de carisma de

todas as personagens, dos heróis

aos anti-heróis. Truculência zero,

substituída por uma sinceridade

ingénua e desajeitada que não

aspira a mais do que ser o

nascimento de um novo-velho

franchise. L.M.O.

Estrada da Revolução

De Dânia Lucas

mmmmm

O rasto, convulso e com sabor

a sangue, da “Primavera

Árabe”, tal como seguido por

um grupo de jornalistas

portugueses através de vários

países do Norte de África e do

Médio Oriente. A perspectiva é

pertinente: se, como tantas

coisas hoje, a história desta

“Primavera” foi sobretudo

contada pelos “media”

ocidentais, e tanto teve de uma

“construção” assente em slogans

Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets

AS ESTRELAS DO PÚBLICO

JorgeMourinha

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

A Estrada da Revolução – mmmmm – O Clube de Dallas mmmmm mmmmm mmmmm

Filomena mmmmm – mmmmm

Golpada Americana mmmmm mmmmm mmmmm

O Lobo de Wall Street mmmmm mmmmm mmmmm

Ninfomaníaca - parte 1 mmmmm mmmmm mmmmm

Ninfomaníaca - parte 2 mmmmm mmmmm mmmmm

Quando Tudo Está Perdido mmmmm – mmmmm

Robocop – mmmmm –Uma História de Amor mmmmm mmmmm mmmmm

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

Estrada da Revolução não dá mau nome a uma hipótese de “cinema jornalístico”

Filomena tem uma dimensão “televisiva” que nem a eficácia da dupla Judy Dench/Steve Coogan consegue salvar

Page 26: Ipsilon-20140214

26 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Disc

osClássica

Cantar o desassossegoInquietante e surpreendente: um universo coeso à volta da arte perturbadora de Adolf Wölfli, construído por um dos grandes compositores da actualidade. Rui Pereira

Georges Aperghis

Wölfli-Kantata

Neue Vocalsolisten Stuttgart

SWR Vokalensemble Stuttgart

Marcus Creed, direcção musicalCypres CYP 5626

MMMMM

A música de

Georges

Aperghis

(Atenas, 1945),

compositor

grego radicado

em Paris desde 1963, vai ficar na

História. A sua audição inquieta-

nos de uma boa maneira. Parece

que nos interpela. Damos

connosco a procurar todas as

referências que temos de música

escrita desde tempos imemoriais,

e somos constantemente

desafiados pela originalidade. No

domínio da música vocal, o seu

legado tem mais de 30 anos e é

um caso muito sério de

diversidade de géneros e de

consistência de escrita. O mais

recente CD a aparecer no mercado

com a sua música reúne dois

grandes agrupamentos vocais, o

Neue Vocalsolisten Stuttgart e o

SWR Vokalensemble Stuttgart,

para a interpretação da

monumental Wölfli-Kantata, com

base em desenhos e textos de

Adolf Wölfli (1865-1930), artista

suíço que viveu a maior parte da

vida internado num hospital

psiquiátrico. Entramos, assim,

num domínio perturbador, em

que se misturam sentimentos de

profunda vergonha, medo,

alucinações, cálculos visionários,

desenhos abstractos, e que

incluem notação musical.

A transposição destes elementos

para música já inspirou diversos

compositores contemporâneos.

No caso de Aperghis, e mais

concretamente no caso desta

cantata para coro a cappella que

ganhou o prémio Prince Pierre de

Monaco em 2007, o trabalho de

composição teve início em 2001

com a primeira parte, uma peça

para seis solistas, e terminou

cinco peças depois, em 2006. Na

base de tudo estão jogos de

palavras que criam texturas e

ritmos, densidades que desafiam

constantemente a nossa

percepção de espaço e de tempo e

por onde se vislumbram fugazes

harmonias, por vezes

extremamente belas e

pacificadoras.

Pop

Dança modernaUm género documentado: quatro anos e pico na vida do punk americano, e da revolução que ele engendrou. Mário Lopes

Vários

Punk 45 — Kill Hippies! Kill

Yourself!Soul Jazz; distri. Megamúsica

mmmmm

O punk além do

punk? Ou o punk

tal como é,

manifestação

contracultural

genuinamente

underground, divorciada das

regras da indústria? Punk 45 — Kill

Hippies! Kill Yourself!, compilação

organizada pela sempre fiável Soul

Jazz para acompanhar em paralelo

o livro que, coordenado por Jon

Savage e Stuart Baker, documenta

a estética e a atitude do punk

através das capas dos singles que

fizeram a sua história, mostra o

outro lado que ficou escondido

quando todos os olhares se

centraram na Bowery e no CBGB

de Ramones, Television, Talking

Heads, Patti Smith ou Blondie.

Primeiro de dois volumes (a

este, agora distribuído em

Portugal, sucedeu em Janeiro a

versão britânica da história), Punk

45 funciona como uma espécie de

Nuggets, a famosa compilação do

garage-rock americano da década

de 1960, dedicado à geração

seguinte. Em 21 canções e outras

tantas bandas, redescobrem-se a

fúria adolescente niilista, o

aborrecimento que fermenta o

desejo de agitação, a provocação

como método e a procura do novo

como consequência — nos

melhores casos. Como explica o

texto que acompanha a edição,

encontramos aqui aqueles que,

fora do grande centro nova-

iorquino e sem acesso a uma

indústria discográfica e mediática

completamente desligada do

punk, criavam em Akron, Nova

Orleães, Cleveland ou Los Angeles

as suas microcomunidades.

Várias das bandas que aqui

ouvimos, com os The Normals,

têm como discografia um único

single; outras, como os influentes

electric eels (assim mesmo, em

minúsculas, em homenagem ao

poeta ee cumings), atravessaram o

tempo sem discos no currículo.

Num lapso de quatro anos (1976-

1980, com os Flaming Groovies,

saídos de 1973, como excepção),

capta-se um momento criativo

particular. Apesar de os Randoms

gritarem Let’s get rid of New York,

carta de amor e ódio à cidade,

nem eles escondem aqueles que

são os modelos principais para

este movimento de refundação

rock’n’roll: os Ramones, os

Stooges e o sotaque de Mick

Jagger. Assim é na tão agressiva

quanto cartoonesca I’m a bug, dos

The Urinals, no hino aos excessos

juvenis de Wild weekend, dos The

Zeros, ou no Your full of shit, dos X

Blank X, que acelera o ritmo até às

proximidades do hard-core por

vir. Os títulos das canções

mostram a raiva que se liberta, o

terrível mal-estar que o tédio

provoca, a violência do gesto: Kill

yourself, gritam os The Lewd, e

esse grito é mais importante do

que a chapa quatro Stooges em

que a canção é composta.

Entre esta massa de bílis bolsada

(de que o humor não está ausente),

sobressaem precisamente aqueles

que escapam ao modelo: eles sim,

eram o futuro, tudo o resto era um

presente incerto e excitante, uma

vaga de músicos que, espalhada

pelos EUA, acabava por definir

inadvertidamente uma linguagem

comum. Eis então a Modern dance

dos Pere Ubu de David Thomas:

aquela voz que quebra em vibrato

demente no final dos versos e

aqueles rhythm’n’blues e

rockn’roll geneticamente

adulterados (de onde vem o slide

demoníaco, bizarro, que dá à

canção um peso atormentado?).

Ou esses The Bizarros, magnífica

banda de Akron, Ohio, criadora de

Ice age: duas guitarras que, ao

contrário das dos bailados dos

Television, chocam, repelem-se e

atraem-se novamente, sujas de

distorção, qual rock’n’roll em

versão pesadelo (mas dançamos,

não pararemos de dançar

enquanto o mundo ameaça

desabar). E que dizer de Crash

Course In Science, electrónica

experimental vagamente

aparentada a canção pop que

utiliza sintetizadores, caixas de

ritmo e electrodomésticos para

criar uma Cakes in the home que

soa hoje tão contemporânea

quanto, por exemplo, Micachu &

The Shapes?

É por bandas como os

Tuxedomoon de Joeboy the electric

ghost (a canção enquanto

happening), pelos grandes

Theoretical Girls de US Millie ou

pelos The Deadbeats de Kill the

Georges Aperghis é um caso muito sério de diversidade de géneros e de consistência de escrita: parece que nos interpela

Page 27: Ipsilon-20140214

ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 27

Incubação silenciosa

Agnes Obel

AventinePIAS; distri. Edel

mmmmm

Agnes Obel tem

um respeito

quase doentio

pelo silêncio.

Cada uma das

canções de

Aventine — como já acontecia, de

resto, no anterior Philharmonics —

parece esculpida com o cuidado

permanente de que nenhuma nota

possa ofender ou perturbar o

sossego de quem quer que seja.

Chegam de mansinho, tomam o seu

lugar em arpejos minimais ao piano

(que fazem vénias largas a Erik

Satie, Claude Debussy ou mesmo

Philip Glass), e depois ali ficam,

todas juntas, num movimento

quase inaudível para que a voz

soprada da cantora dinamarquesa

feche um círculo de encanto

precário, de uma fragilidade que

nos poria em sobressalto não fosse

a certeza de que toda esta leveza

está, afinal, presa por cabos de aço.

Num balanço algures entre uma

Tori Amos sem a carga libidinosa

que atravessa muitas das suas

canções e uma PJ Harvey a quem

fosse subtraída toda e qualquer

ponta de qualidade raivosa, Agnes

Obel poderia não passar de uma

fazedora de canções assépticas, de

emoções temperadas e demasiado

domadas para, na verdade,

provocar uma resposta detectável

pelo mais sensível dos

sismógrafos. Mas aquilo que é

controlo em Aventine não verga a

beleza, o espaço perfeitamente

delimitado das suas canções não

faz da música um objecto

desalmado. Tome-se por exemplo

o tema-título, Aventine, em que

Obel cede algum do seu precioso

silêncio a um arranjo de cordas

que, sendo rígido, arrisca um

balanço minimal.

Por outro lado, Agnes Obel vai

soltando entre os fios de voz

temas instrumentais ao piano que

preenchem os espaços com uma

melancolia suburbana próxima

daquela que costuma infectar as

bandas sonoras do compositor

por Ornette Coleman, Carter e

Bradford eram dois texanos a viver

em Los Angeles, tendo-se tornado

pioneiros do free jazz na Costa

Oeste. Depois de recrutarem o

contrabaixista Tom Williamson e o

baterista Bruz Freeman, irmão do

saxofonista Von Freeman,

iniciaram uma colaboração que

viria a revelar-se das mais

duradoras no jazz de vanguarda.

Originalmente editado na Flying

Dutchman, a label criada por Bob

Thiele depois de abandonar a

Impulse, Flight for Four é uma

bomba e antecipa, em mais de três

décadas, algum do melhor jazz

moderno que se produz

actualmente. É absolutamente

incrível pensar que esta música,

vibrante como poucas, num

turbilhão de permanente

criatividade que a torna totalmente

relevante para os dias de hoje,

tenha sido gravada no mesmo ano

que Abbey Road ou From Elvis in

Memphis. Numa reedição

absolutamente imaculada que

reproduz o LP original, aquilo que

mais nos chama a atenção é a

qualidade do som — na mistura e

captação brilhantes de Thiele (é

urgente reavaliar as técnicas de

estúdio de gigantes como Thiele ou

Rudy Van Gelder) e no trabalho

notável de digital transfer de

Jonathan Horwich, patrão da

International Phonograph. E aqui a

importância da qualidade do som é

directamente proporcional àquilo

que nos deixa ouvir — uma música

plena de detalhes em que as vozes

de cada um dos músicos surgem

com uma clareza pouco habitual.

Tanto Carter como Bradford

procuravam desenvolver os

conceitos harmolódicos de

Ornette, cruzando-os com as

referências escaldantes do hard-

bop, e criando uma música

exploratória em que cada nota tem

um peso e um lugar bem definido.

Nada é leviano ou supérfluo. A

tonalidade bluesy que atravessa

todo o álbum é suportada de forma

notável pela secção rítmica,

particularmente por Williamson,

cujas frases circulares antecipavam

já muito do trabalho desenvolvido

por nomes como William Parker

mais de uma década depois.

ribombante particularmente

fascinante), estão lá as harmonias

vocais que engrandecem a

melodia (majestosidade é a

palavra) e os órgãos,

mellotrons e sintetizadores

que dão colorido psicadélico,

divagante, a toda a música.

Não será desajustado dizer que

os Temples são, de certa forma, a

versão britânica dos Tame

Impala. Acrescentando-se de

imediato que tal condição não

os menoriza em nada. Mesmerise

soa realmente a homenagem ao

que Kevin Parker nos

ofereceu em Innerspeaker e

Lonerism, mas é caso único.

No restante, a britishness dos

Temples diferencia-os claramente.

Há um certo ar trovadoresco em

canções como The golden throne,

arrancado às raízes da folk

britânica e transformado pela alta-

voltagem eléctrica. E há o brilho

que Marc Bolan trouxe ao

rock’n’roll, ou à ideia de

rock’n’roll enquanto algo maior

do que a vida, nessa trepidante

Keep in the dark que cresce da

simplicidade de uma guitarra

acústica e de um ritmo bem

marcado até rodopiar em

carrossel psicadélico de

luzes faiscantes e coros

inebriados.

Os Temples, descendentes dos

Zombies e dos primeiros Primal

Scream; descendentes dos Byrds e

dos Moody Blues; devotos de Joe

Meek, o visionário produtor

britânico do final da década de

1950 e início da seguinte, e

familiares do neo-psicadelismo

dos MGMT, entendem o rock

como espaço ainda em aberto,

como local onde se concretiza a

fantasia de escapar ao mundo

para atingir um mundo melhor.

Têm os discos certos e as ideias

certas. O lugar que descobriram

em Sun Structures é um regalo

para a vista (perdão, para os

ouvidos).

“Take me away to the twilight

zone”? Rapidamente e em força.

Sem quaisquer receios. Os

Temples acabaram de chegar, mas

sabem muito bem o que andam

aqui a fazer. M.L.

hippies (manifesto geracional

que, curiosamente, soa a

actualização de Kill for peace,

dos Fugs, banda charneira da

contracultura nova-iorquina da

década de 1960) que a descarga de

energia e o frémito que percorrem

Punk 45 se tornam algo

verdadeiramente sério.

Da destruição regeneradora

nascia o novo. A três décadas de

distância, vemo-lo distintamente

entre a pequena multidão de

bandas muito zangadas e muito

entediadas a procurar a salvação

em discos dos Stooges.

Twilight zone

Temples

Sun StructuresHeavenly; distri. Edel

mmmmm

Não há tempo a

perder: “Take me

away to the

twilight zone”,

cantam os

Temples logo em

Shelter song, a canção que abre o

álbum de estreia da banda de

Kettering, Sun Structures.

Primeiro som: a guitarra de 12

cordas confirmando que Roger

McGuinn, nos Byrds, ofereceu

novos mundos ao mundo. Mas a

guitarra, aquele som de guitarra,

é apenas a introdução, a

primeira das várias camadas com

que, passe a redundância foleira,

se constrói o templo dos Temples.

No coração destas canções

estão quase sempre aqueles

acordes simples que fariam delas

peças muito trauteáveis mesmo se

nada existisse em volta. Mas nesse

caso não faria sentido o pedido

inicial. Para isso estão lá os bons

truques de produção que

mantêm a banda a levitar

numa dimensão em que todo

o eco é melodia agradável aos

ouvidos (a bateria e o baixo

ganham uma propriedade

norte-americano Thomas

Newman (Beleza Americana,

Revolutionary Road). E é mesmo

de infecção que se trata. Porque os

discos de Obel são mais sonsos do

que parecem. Dir-se-ia que estas

canções passam sem deixar

quaisquer marcas, mas ficam a

incubar em silêncio, instalando-se

e reclamando cada vez mais

atenção. Gonçalo Frota

Jazz

O futuro, 35 anos atrásReedição de um clássico freebop gravado no final dos anos 60 por dois dos grandes visionários do jazz. Rodrigo Amado

John Carter & Bobby Bradford

Quartet

Flight for FourInternational Phonograph

mmmmm

Gravado em 1969,

no mesmo ano

do celebrado

Seeking, álbum

que assinala a

estreia em disco

do genial John Carter e do quarteto

que manteve durante longo tempo

com o não menos brilhante Bobby

Bradford, este Flight for Four

manteve-se na sombra por

demasiado tempo. Apresentados

Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets

Os magníficos The Bizarros: rock’n’roll em versão pesadelo, mas como não dançar?

Os Temples são, de certa forma, a versão britânica dos Tame Impala — mas não só

As canções de Agnes Obel começam por parecer desalmadas e acabam por tornar-se infecciosas

Genial, John Carter antecipou em mais de três décadas algum do melhor jazz moderno

FRANK EIDEL

Page 28: Ipsilon-20140214

28 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

Livr

os

Ficção

A sombra é também fi lha da luzDuas novas edições confirmam o regresso de um autor muito cá de casa: Stefan Zweig. Hugo Pinto Santos

Novela

de Xadrez

Stefan Zweig

(Trad. Álvaro

Gonçalves)Assírio & Alvim

mmmmm

Amok

Stefan Zweig

(Trad. Alice

Ogando)Relógio D’Água

mmmmm

Durante longos anos, Stefan Zweig

gozou em Portugal de uma

invulgar reputação. Tanto assim

que quase não havia casa com

biblioteca, ou mesmo o proverbial

punhado de livros, que não

dispusesse de uns quantos

volumes do autor de obras como

Caleidoscópio, Lendas, Coração

Impaciente ou até Triunfo e

Infortúnio de Erasmo de Roterdão

(“Meu venerado mestre”, chamou-

lhe Zweig, que o considerava a

“apresentação encapotada” de si

próprio) e Maria Antonieta (“O

destino favorece as analogias”).

Contudo, e apesar dessa fortuna

editorial, a atenção dispensada ao

autor austríaco por parte das

editoras nacionais não foi, de

modo nenhum, regular, tal como

não foi sistemática ou depurada a

sua edição. Na verdade, houve que

esperar pela década passada para

surgirem edições dignas dos novos

tempos, que contemplassem

títulos inéditos, ou que pudessem

substituir com proveito as

traduções antigas. Foi o que

aconteceu com os títulos então

lançados pela Antígona —

Confusão de Sentimentos (2004) e

O Combate com o Demónio —

Hölderlin, Kleist, Nietzsche (2004)

— e pela Assírio & Alvim — O

Mundo de Ontem: Recordações de

Um Europeu (2005) e Magalhães: o

Homem e o Seu Feito (2005). E

volta a ser o caso da tradução de

Novela de Xadrez — acompanhada

de um breve estudo — que Álvaro

Gonçalves fez para a Assírio &

Alvim. Por seu turno, a Relógio

D’Água reedita, numa série

uniforme (Obras de Stefan Zweig) e

em cuidada revisão, a tradicional

tradução de Alice Ogando para

Amok.

As duas novelas activam o

dispositivo da deslocação e da

distância para gerar os seus efeitos.

Se, em Amok, Zweig recua às suas

viagens orientais para compor uma

narrativa de arrepiante revelação

dos mais obscuros panoramas

interiores da alma humana, em

Novela de Xadrez o enquadramento

ficcional da viagem por navio —

presente em ambas — condu-lo ao

horror nazi. (Trata-se, como é

sabido, do único ponto da obra de

Zweig em que essa referência é

abertamente produzida.) Nos dois

casos, a evasão no espaço permite

uma invasão da psique das suas

personagens. No entanto, e como

diz aquele que é, decerto, o

biógrafo de referência de Zweig,

Alberto Dines: “Ao contrário de

outros que buscaram a

espiritualidade nos antípodas,

Zweig trouxe na bagagem oriental

a paixão doente, o sofrimento

delirante, a corrida desvairada,

tudo embutido numa exótica

palavra malaia — amoq”. Nesse

sentido, em Amok o exotismo é

anulado em detrimento de uma

constatação quase etnográfica. O

termo que dá título à obra que viria

a tornar-se uma das mais

renomadas (se não mesmo a mais

famosa) do autor é descrito como

“a loucura, uma espécie de raiva

humana, literalmente falando”: “A

causa é, sem dúvida, o clima, esta

atmosfera densa e asfixiante que

oprime os nervos, como uma

trovoada” (p. 37). O médico que

começa por recusar-se a fazer um

aborto e que, tarde de mais, tenta

substituir o sinal desse primeiro

impulso por um furor com tanto de

amoroso como de patológico, é o

sujeito ideal para esta prospecção

impenitente, uma auto-análise até

às últimas consequências: “Ponho-

me a nu e digo: eu” (p. 19). A sua

própria incumbência, enquanto

narrador substituto, reflecte esta

condição, que chega a explicitar-se

— “Os enigmas psicológicos têm

sobre mim uma espécie de poder

inquietante” (p. 14). Com uma

frieza que oculta o “império da

febre” (p. 48), a narração do clínico

revela uma obsessão imparável,

que se desgoverna em torno

daquela mulher que o leva a trair a

dignidade profissional e a exigir

como pagamento a pessoa da

própria paciente, e que o

conduzirá, no termo da sua

narrativa, ao suicídio. Uma solução

ficcional que, de resto, a novela

introduz de forma subliminar mas

irreprimível: menos como pista do

que enquanto técnica da

composição — “Quisera dormir…

sonhar… e, no entanto, não me

apartava desta magia, não voltava

para baixo, para o meu esquife” (p.

11); “Eu não posso ficar no

camarote, nesse túmulo…” (p. 15).

A própria embarcação em que

decorre a narração é já um

simulacro da morte, cuja pulsão

habita o médico e permite formar

os vínculos subreptícios da novela.

De resto, o suicídio — de que o

próprio autor viria a sucumbir — é

um aspecto patente em diversos

pontos da mundividência e da

própria produção escrita de Zweig.

Quando, por exemplo, se referiu

aos últimos momentos de Freud,

usou os seguintes termos: “Deu

autorização ao médico para pôr

fim à sua dor, como um herói

romano”. E não são poucos os

casos em que o suicídio surge

como solução trágica das suas

obras ficcionais. Pense-se, entre

outras, em Coração Destroçado,

Vinte e Quatro Horas da Vida de

Uma Mulher, ou neste Amok. E

atente-se também no modo como

descreveu a queda do autor de O

Príncipe de Homburgo — “Kleist só

conseguia suportar a vida na

exacta medida em que a todo o

momento estava preparado para

dela se desfazer”. Isaac Babel foi

intermediário do encontro

soviético entre Stefan Zweig e

Sergei Eisenstein. Antes do

atabalhoado conciliábulo, Babel

brindara o realizador com um

relato empolgado de Amok. De tal

forma que, quando ele, por fim,

leu o livro, o considerou muito

inferior à versão do amigo: “Pálido

reflexo do verdadeiro Amok”, diria.

O jogo que, em Vinte e Quatro

Horas da Vida de Uma Mulher, é

compulsão, fuga para a frente,

desejo de morte nas mesas de jogo,

torna-se, em Novela de Xadrez, uma

sombria parábola sobre a opressão

nazi. No tabuleiro, define-se a

tensão de um passado de terror, já

que é o jogo que compele a

personagem à rememoração. O

xadrez, “uma ciência, uma arte,

oscilando entre estas categorias,

como a urna de Maomé entre o

Céu e a Terra” (p. 33), é a centelha

que pôde salvar do mais fundo

negrume a vítima do regime

hediondo. O Dr. B., protagonista e

segundo narrador da novela (a

abdicação do narrador era um

processo comum na ficção de

Zweig), é uma declinação já

distante do anti-herói — “Eu, um

homem infeliz como sou, para

quem a curiosidade pelas coisas

relacionadas com a mente

degenera numa espécie de paixão”

(p. 35). A partir do momento em

que o narrador passa a ser ele, a

narração torna-se mais elástica,

Stefan Zweig usa a deslocação e a distância como dispositivos de exploração dos mais obscuros panoramas interiores da alma humana — o que, no caso absolutamente sem exemplo de Novela de Xadrez, lhe permite abeirar-se abertamente do horror nazi

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 29

com saltos e abalos nos nexos

lógicos e temporais — “Só muito

depois, quando estava preso há já

bastante tempo, me lembrei de que

o seu comportamento de desleixo

inicial no trabalho se transformara

nos últimos meses num súbito afã”

(p. 54). À tortura infligida pela

Gestapo opusera o narrador,

conforme revela na sua

retrospectiva, uma espécie de

erotismo da leitura e dos volumes

impressos — “Há quatro meses que

não sabia o que era ter um livro nas

mãos e a simples ideia de um livro

onde se podiam ver palavras

enfileiradas, linhas, páginas e

folhas, de um livro no qual se

podiam ler, seguir, absorver no

cérebro pensamentos distintos,

novos, diferentes, desviantes, tinha

qualquer coisa de embriagante e

em simultâneo de anestesiante” (p.

64) —, vertido num ritmo

composicional febril mas

milimetricamente preciso; Romain

Rolland, leitor atento da obra do

seu amigo, sublinhou,

precisamente, a importância da

composição. Com impecável

gestão verbal — do advérbio, por

exemplo: “Este sistema do quarto

de hotel estava concebido de forma

diabolicamente útil e

psicologicamente assassina” (p.

60) —, Zweig recria a inusitada

tortura nazi aplicada à

personagem. É em resultado desse

mecanismo do horror que a

personagem se depara com um

manual de xadrez que, além de

tábua de salvação perante a

iminência de loucura, funciona

como trave-mestra da narrativa e

articula os seus ângulos só

aparentemente desencontrados. A

especialização xadrezista da

personagem constituiu o antídoto

para a tortura, a solução para o

vazio — “Não há nada no mundo

que produza uma semelhante

pressão sobre a psique humana

como o próprio nada” (p. 56) — de

quem viveu “como um

mergulhador numa redoma” (p.

57).

Viver com a morteA propósito da morte de um filho, um hino ao indizível e ao incompreensível: como é possível “viver com isto”? José Riço Direitinho

O Filho

Michel Rostain

(Trad. Luísa Feijó)Sextante

mmmmm

Em finais de

2003, o

encenador

francês Michel

Rostain (n. 1942)

viu-se

mergulhado na

mais temível e

incompreensível

de todas as dores, a da morte do

seu filho único, Lion, de 21 anos,

que em poucas horas foi vitimado

por uma “meningite fulminante”.

Anos passados, e numa aparente

tentativa de continuar a processar

a tristeza e o luto, Rostain

escreveu O Filho — Prémio

Goncourt Primeiro Romance

2011. O livro é um testemunho do

que significa perder um filho, um

acontecimento contranatura para

que ninguém está preparado;

uma história sobre a busca de um

qualquer sentido onde sabemos

que não existe sentido algum; um

ainda assim esperançoso andar às

voltas num lugar que sabemos

vazio, pois, como escreveu a

poeta russa Marina Tsvetáeva,

“não se teve um filho, tem-se

sempre”.

Desde as primeiras horas da

sua tragédia pessoal, Rostain

percebeu que a morte tem de ser

vivida como uma parte da vida, e

O Filho é o sublinhar desse

sentimento, com a repetição ao

longo da narrativa de um “Viva a

vida, viva o Sol, viva a vida!”,

mesmo nos lugares mais

inesperados, como a morgue ou

as cerimónias fúnebres, “já não

por acreditar mas porque é

preciso, dê por onde der”.

Apesar do carácter

aparentemente autobiográfico,

Michel Rostain escreveu algo na

fronteira entre a biografia e a

ficção, ao escolher para narrar a

sua história a voz do filho morto

— um narrador-fantasma (capaz

de ironia e de uma alegria por

vezes absurda, ou de inesperado

humor negro) que sublinha o

lado ficcional da narrativa. Vinda

de um lugar que preenche toda a

cartografia afectiva do pai, a voz

de Lion, paródica e

estranhamente cheia de vida, vai

descrevendo o que aconteceu no

caos daqueles dias: as primeiras

febres confundidas com um

sintoma gripal, a primeira recusa

da ambulância, a descoberta de

manchas púrpura um pouco por

todo o corpo, o transporte para o

hospital, a sala de reanimação, a

morte, as cerimónias fúnebres,

as cinzas espalhadas nas

encostas de um vulcão na

Islândia (naquele “silêncio das

paisagens infinitas”), o agora

famoso Eyjafjallajökull — cujas

cinzas paralisaram, em 2010, o

tráfego aéreo sobre a Europa

(como se as cinzas de Lion

estivessem de volta a França

sopradas por aquele vulcão

escolhido ao acaso seis anos

antes).

O filho parece dialogar com o

pai — fazendo reparos, lendo-lhe

os pensamentos soturnos, os

muitos arrependimentos pelo

ipsilon.publico.pt

Michel Rostain encontrou neste romance pós-traumático a via para retomar o diálogo perdido com o seu único filho

TEATRO DO BAIRRO ALTO De 3ª a Sábado às 21.00h Domingo às 16.00hR. Tenente Raul Cascais 1A. 1250-268 Lisboa Tel: 213961515http://www.teatro-cornucopia.pt email: [email protected] também à venda: FNAC, Worten, El Corte Inglês, Abreu, www.ticketline.pt

ESTREIA 20 DE FEVEREIRO

20 FEVEREIRO A 9 DE MARÇO

Tradução e colagem de textos Luis Miguel Cintra; Encenação Luis Miguel Cintra; Cenário e ������� Cristina Reis; Desenho de luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra e Rui Seabra

M/6 �������������� ����� Apoio

15 FEVORQUESTRA SINFÓNICA DO PORTO CASA DA MÚSICA

TIMOTHY BROCKdirecção musical

A Nova Babilóniafi lme de Grigori Kozintsev + Leonid Traubergmúsica de Dmitri Chostakovitch

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Page 30: Ipsilon-20140214

30 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014

facto de não ter estado mais

presente nas horas anteriores à

morte, passadas no supermercado

ou a desarrumar a casa para que a

maca pudesse passar (“A morte é

uma máquina de

arrependimentos”). O mesmo pai

que nos dias e nas semanas que se

seguem, quando a morte

verdadeiramente começa, escava

o passado do filho em busca de

sinais (não sabe que sinais), lendo

mensagens de telemóvel,

folheando cadernos e agendas,

revendo antigos álbuns de

fotografias (ou organizando novos,

como o das fotografias que tirou

na sala de reanimação ou na

morgue), ouvindo histórias de

pessoas que com ele privaram

quando estudou noutra cidade,

autênticos exercícios de desespero

de quem quer manter a memória

acordada, como se com isso

pudesse impedir a partida do

filho. É de um desses exercícios de

tristeza uma das mais pungentes

descrições, quando 11 dias depois

da morte o pai leva a roupa da

cama do filho à lavandaria:

“Subsiste ainda alguma coisa de

mim nas dobras brancas que leva

para a lavandaria como quem leva

os santos sacramentos. O meu pai

chora, de nariz enfiado no

algodão. Evita os olhares, faz

muitos mais desvios do que o

necessário (…), vai aproveitando.

Dá mais uma snifadela ao edredão

e finalmente empurra a porta da

loja.”

Michel Rostain não escreveu

um salmódico canto de lamento,

mas uma espécie de hino ao

“indizível”, ao

“incompreensível”, à morte como

uma parte da vida, e sobretudo à

possibilidade de se poder “viver

com isto”.

Poesia

A distensãoA poesia aqui é um jogo — mas sem vencedores nem derrotados. Gustavo Rubim

E se por hipótese esta máquina

começasse a funcionar e se

desse início ao longo processo

tentativa-erro

Marta NavarroA Tua Mãe

mmmmm

O pequeno livro

de estreia de

Marta Navarro, E

se por hipótese

esta máquina

começasse a

funcionar e se

desse início ao

longo processo

tentativa-erro, faz lembrar outro

famoso livro de estreia, no caso de

Manuel António Pina: Não é o fim

nem o princípio do mundo, calma é

apenas um pouco tarde, publicado

em 1974. Não é sinal de influência

nem exercício de imitação, mas

não deixa de haver certa afinidade

de humor. Títulos demasiado

longos para livros razoavelmente

curtos: um desequilíbrio que,

brincando com a extensão, produz

um efeito de distensão, mais

declarado no apelo à “calma”, de

Pina, mais enigmático na

“hipótese” maquinal de Marta

Navarro.

Essa semelhança não é

superficial. Em ambos os casos é

uma inflexão da língua poética que

ocorre e, tal como Manuel António

Pina não correspondia a nenhuma

linha identificável das que se

cruzavam no espaço poético da

língua portuguesa, Marta Navarro

aparece agora sem família visível.

Por outro lado, a inflexão tem um

ponto comum: o sentido do jogo. O

primeiro poema é uma breve peça

beckettiana em que cinco

personagens (Z, X, Y, W e O)

trocam entre si a função de

baralhar e dar cartas. Para cumprir

a função, vão mudando de lugar

numa certa ordem. Nunca

ninguém, no entanto, parece

satisfeito com o jogo que lhe

calhou. Voltam a dar e nunca chega

o momento de alguém jogar uma

cartada efectiva. Mas alguma coisa

muda sempre e, no fim, cada um

se levanta, já não para ir “ocupar”

o lugar que antes era de outro, mas

para “deixar vago” para outro o

lugar que anteriormente era seu.

Num dos seus níveis de leitura, a

alegoria das cartas está muito apta

para representar a relação entre

poetas. E, lida assim, ela insiste na

distensão: quem tem

(temporariamente) o poder de dar

cartas concorda, sem conflito, em

ceder o lugar a outro, num

ambiente em que ninguém

acredita no jogo que lhe foi

distribuído. Neste mecanismo

deixa de haver guerra entre

poéticas — recorde-se a frase de

Ossip Mandelstam: “Em poesia, é

sempre a guerra” — e deixa

portanto de haver vencedores e

derrotados, apostas ganhas e

apostas perdidas. Ao mesmo

tempo, ninguém na realidade vai a

jogo: instala-se o inquietante

consenso de que nem vale a pena

jogar, qualquer pretexto bastando

para baralhar e voltar a dar.

Engana-se quem vir nesta cena

um programa ou uma declaração

resignada. O poder da pequena

comédia é o de manter o

distanciamento, como se Marta

Navarro traçasse o quadro para,

traçando-o, poder ficar fora dele.

Não num exterior sobranceiro, mas

na relativa exterioridade de quem

evita confusões para não ser

neutralizado. E assim se percebe

que a sua escrita dê todas as

impressões menos a de quem não

arrisca tudo o que tem para dar. O

título das duas partes do livrinho

di-lo com clareza: Do Excesso e Da

Destruição. Combinadas, justificam

a epígrafe de Alberto Giacometti,

porque também a poeta parece

impressionada pela “fragilidade

dos seres vivos” e pela “energia

incrível” de que parecem precisar

“para se manterem de pé”.

Entre excesso e destruição, a

atenção à experiência vital e à

possibilidade de lhe dar (ou

encontrar) sentido é o motor dessa

máquina cujo êxito não é qualquer

produto mas, apenas, conseguir

que ele funcione. Cada poema

parece, assim, escrito de maneira a

nunca perder contacto com o

ponto em que poderia não haver

poema nenhum. De que serviria,

então, quando se trata de fazer

tudo para tentar “habitar um

corredor sem fim à vista” e de

produzir “um pequeno milagre”

que “é o que esse corredor/ de

facto me é”, de que serviria perder

tempo em guerras com o passado

ou o presente da poesia? O poema

citado tem por título LET’S PLAY A

GAME e em poucos se vê tão bem

como o poema é para Marta

Navarro um assunto sério. Quer

dizer, pessoal e defendido com

uma ênfase rara em tempo de

poetas sem convicção: “ESTA

ARMA ESTÁ CARREGADA ou/ EM

DEFESA DA POESIA PESSOAL”,

lê-se com maiúsculas no meio do

mesmo poema que, se convida a

jogar, é de certeza um jogo

perigoso. A distensão parece então

desaparecer e dar lugar a outro

género de combate, um combate

pela afirmação simultânea da

“mão” pessoal (“Porque na minha

mão caibo eu e o resto, mas a mão

é/ minha”) e da imensidão do

poema “que cresce sempre que

uns olhos se deixam tocar por/

outros”. Pensa-se numa

restauração do lirismo, numa velha

identificação entre poesia e amor,

mas o próprio poema o desmente:

“É aqui neste pequeno eixo (…)/

que ela gira/ não a poesia do amor/

mas a poesia do tacto”.

O desejo de tocar o sentido do

mundo, de fazer passar entre os

dedos as mais pequenas diferenças

de sentido, pode ser a ficção que

orienta esta escrita. Por isso, não

está longe de uma espécie de prosa

selvagem, como a que se intitula

DE LÚCIDO A LOUCO, ao mesmo

tempo monólogo e carta de uma

actriz fechada dentro de si mesma,

de uma mulher para o seu filho. Se

nem tudo nesse fluxo resiste bem à

leitura, a travessia do vazio e do

tédio (“Uma pausa com vista para

nada”) que nele se narra, como

uma espécie de de profundis, tem

uma força de verdade que justifica

o próprio desequilíbrio que

produz. O seu tema é a busca da

seriedade. No final, a narradora

ouve, alucinada, um coro de búzios

a incitá-la: “Vai para casa, minha

pequena, para a tua casa de

bonecas. Vai brincar com os

outros”.

Se, por hipótese, o resultado da

brincadeira tiver sido este livrinho,

nós, os outros, bem podemos

saudar a tentativa de Marta

Navarro, que é daquelas que

atestam como o erro está, de facto,

no coração do acerto.

Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets

Na fastidiosa discussão sobre a venda em

leilão dos quadros de Miró, omitiu-se

geralmente esta pergunta incómoda, mas

indispensável para percebermos o que está

em jogo: porque é que aqueles banqueiros

do BPN, cúpidos e filisteus de nome próprio

— até muito para além do que a lei permite —

adquiriram um acervo artístico que agora muitos

querem preservar em território nacional,

concedendo-lhe uma sublimidade que não aceitam

ver trocada por um valor redutível a capital real? A

resposta é óbvia e toda a gente a conhece. Porque os

banqueiros, na medida em que sabem muito de

dinheiro, têm também da arte este saber importante

e necessário: as obras de arte circulam como o

dinheiro. E se a arte se comporta como o dinheiro é

porque o dinheiro se comporta como a arte. Mas esta

última formulação já escapa certamente ao saber dos

indivíduos da economia e das finanças que, dessa

arte, são praticantes sem conceitos (e, como é sabido,

intuições sem conceitos são cegas). É preciso ter lido

Georg Simmel e a sua Filosofia do Dinheiro para

compreender que o dinheiro pertence de facto e de

direito ao “mundo espiritual”; ou ter sido alguma vez

confrontado com esta afirmação do poeta Wallace

Stevens”: “Money is a kind of poetry”. Nada exprime

melhor a natureza mercantil do nosso mundo do que

a arte. Os museus especulam hoje sobre as suas

colecções exactamente da mesma maneira que os

bancos: pondo o seu capital (a colecção), ou o capital

de outrem, em circulação (através de exposições).

Quanto mais ele circula, mais se acumula. A arte é

puro valor de troca (de um ponto de vista marxista,

representa a mercadoria por excelência) e tem um

valor de uso nulo. Segundo o sociólogo francês Pierre

Bourdieu, o valor simbólico da obra de arte, o

“interesse pelo desinteresse”, é a imagem especular

do seu valor de uso. O objectivo principal dos museus

de arte contemporânea é obter a confiança do

público na arte e no capital, segundo o princípio de

que as duas coisas são inseparáveis. Veja-se, por

exemplo, a estratégia do Guggenheim, ao

transformar os produtos da arte contemporânea

numa ideia de poder económico, mais do que

cultural, como fez em Bilbau, que é também um caso

ideal de fabricação da aura artística, de

transformação do contemporâneo numa classicidade

monumental e num efeito de sacralidade.

Percebendo esta lógica, facilmente se percebe

também a razão pela qual acabam por ter pouca

força, para se imporem contra a lógica puramente

económica do raciocínio filisteu, os argumentos da

“inteligência”, da “sensibilidade” e da “educação

artística”: os quadros de Miró não nos chegaram

senão por via do investimento baseado na

rentabilidade e não circularão senão impulsionados

pelo movimento que os fez chegar até nós. Mas há

um argumento de que nos podemos servir sem nos

tornarmos o servus servorum do Estado, da Beleza e

da Arte, que a própria condição epocal, e não apenas

a conjuntura nacional, tornou risível. Não é preciso

ser um encartado especulador da mercadoria

artística para saber que, se for posta à venda uma

grande quantidade de Mirós, o seu valor de mercado

desce. E se 99 por cento dos Matisses de todo o

mundo fossem reservados em fundos, a procura por

esse escasso um por cento em circulação seria

enorme e o preço seria muito mais elevado. A um

Governo como o que temos não queiram os cidadãos

ministrar educação artística: é uma tarefa impossível,

ociosa, cujo resultado trará sempre pouca arte e

muita ideologia. O que é imperdoável é que quem

sabe tão bem que arte é dinheiro pareça não estar à

altura da regra de que dinheiro é arte.

Estação Meteorológica

Dinheiro é arteAntónio Guerreiro

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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 31

Expo

siçõ

esComunidades sentimentaisUma exposição que arrisca novos modos de sentir o trabalho artístico. Nuno Crespo

Bells are still ringing

De De Almeida e Silva, Efrain

Almeida, Flávio Gonçalves,

Gabriel Abrantes, Vasco Araújo,

entre outros.

Lisboa. Galeria Graça Brandão. R. Caetanos,

26A. Tel.: 213469183. 3ª a Sáb., das 12h às 20h.

Até 8/03.

Pintura, Escultura, Vídeo, Outros.

mmmmm

Bells are still ringing é um

exposição celebratória. E celebra

a arte, os artistas, uma certa ideia

de comunidade que ainda

sobrevive e, sobretudo, o facto de

apesar de tudo a energia criativa

persistir enquanto elemento

fundamental do tecido das nossas

sociedades. É uma exposição

arriscada, primeiro porque os

argumentos que permitem juntar

estes artistas dizem sobretudo

respeito a afectos e a sentimentos

e, portanto, não há uma tese

curatorial desenvolvida à maneira

de um argumento lógico-estético,

uma disciplina; e, depois, porque

a heterogeneidade das propostas é

tão intensa que facilmente a

exposição poderia cair numa

dispersão.

O pretexto da reunião foi o Natal

e a ideia de comunidade afectiva

que esta festa cristã invoca, mas

esta não é uma exposição sobre o

Cristianismo ou, a sê-lo, é-o no

sentido mais profundo de uma

religião de abertura a todos, sem

excepções. Por isso, escultura,

vídeos, pintura e cinema

convivem sem tentar anular-se

uns aos outros. Aqui, o apelo mais

forte é o da felicitação, de que a

peça de Vasco Araújo, Estrelinha

que te guie, é a expressão directa:

um conjunto de postais fixados na

parede que, ao modo típico da

quadra, desejam felicidades a

quem os lê (Auguri! Auguri!). Se a

celebração é um dos temas fortes,

outro é o da reunião. E a casa de

tecido que ocupa o centro da

galeria, contribuição de João

Pedro Vale e Nuno Alexandre

Ferreira (The story teller,

2008/2013) é a sua boa síntese.

Uma escultura que não só permite

uma muito boa marcação e

organização espaciais, mas

simultaneamente invoca a

metáfora da interioridade e da

domesticidade tão importante

neste discurso expositivo.

Mas esta não é uma exposição

apenas com artistas reconhecidos

(aos já mencionados dever-se-ia

acrescentar Gabriel Abrantes); o

curador junta-lhes novos nomes,

alguns deles acabados de sair das

escolas de belas artes ou de

cinema e todos relativamente

desconhecidos do público. Este

gesto de Alexandre Melo não é

uma novidade: já no início dos

anos 2000, num célebre texto no

jornal Expresso, o crítico e

curador falou numa “Geração

de Ouro” à qual associava os

cinco novos artistas (Filipa

César, João Pedro Vale, João

Onofre, João Vilhena e Vasco

Araújo) mais promissores. Uma

aposta pessoal bem sucedida e

que, uma década depois, tenta

renovar. E esse é um outro

contexto em que se deve integrar

esta exposição, que tem a

fertilidade de não fazer recurso

exclusivo de artistas obscuros,

mostrando igualmente como, em

alguns casos, passada uma

década há artistas que se mantêm

novos. Não se trata de explorar

sistemas de confirmação, mas sim

de energia sentimental — é como

Melo tivesse a propor como tese

(e é um ponto pertinente de

debate) que a “nova arte” não é

uma questão de cronologia, antes

diz respeito ao fôlego, à

capacidade de renovação e de

diálogo.

Os artistas mais novos desta

exposição não são claramente

apostas, como acontecia no texto

mencionado, mas representam

temas importantes do modo como

o discurso das artes

contemporâneas se compõe.

Primeiro a persistência do cinema

na galeria/museu (Flávio

Gonçalves); depois, a escultura

caracterizada por elementos

banais como sapatos, ténis e papel

mas possuindo um conhecimento

muito pertinente do modo como a

colocação de um objecto pode

alterar a totalidade da

configuração espacial (Igor Jesus);

e a pintura que critica e se

apropria de momentos

importantes da história da

disciplina (De Almeida e Silva);

até à utilização do vídeo como

forma de lidar com os fantasmas

internos do sujeito, acedendo a

uma espécie de acesso à

biografia inconsciente do

artista, tão ao tom de Louise

Bourgeois, e como convocação do

jogo de expectativas frustradas e

que o trabalho artístico

protagoniza (Igor Jesus). Entre

outros exemplos possíveis.

A excelência de Bells are still

ringing está no modo arriscado

como, sem medo do erro, procura

novos modos de sentir o trabalho

artístico — um trabalho em que o

essencial, como escreve o curador,

“é a partilha de sentimentos” que

“define o trabalho de

cooperação.” Um risco do qual,

independentemente do juízo

definitivo sobre a singularidade de

cada uma das obras apresentadas,

vale a pena ser cúmplice.

Escultura de Efrain Almeida, um dos artistas que Alexandre Melo incluiu nesta comunidade unida por uma certa energia sentimental

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MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICA APOIO INSTITUCIONALMECENAS CICLO PIANO

Page 32: Ipsilon-20140214

14:00h —

ElektraRichard Strauss Orchestre de Paris Coro Gulbenkian Esa-Pekka SalonenPatrice ChéreauColaboração do festivald’Aix-en-Provence e Institut Français du Portugalfilme/ópera, 2013

17:00h —

Orquestra XXIDinis Sousa Gustav Mahler Sinfonia nº1 (versão de câmara)

19:00h —

Vem cantar Gershwin com o Coro GulbenkianJorge Matta Marta Hugon Patrycja Gabrel

21:00h —

Orquestra Gulbenkian e elementos do Estágio Gulbenkian para Orquestra (EGO)Joana CarneiroRichard Strauss Assim falou ZaratustraHector Berlioz Sinfonia Fantástica

23:30h —

2001 Odisseia no Espaço Stanley KubrickFilme, 1968 Grande Auditório – Memorial de uma obraDocumentário de João Mário Grilo — Auditório 3 a partir das 14h00 e em sessões contínuas Acesso InterditoExposição de fotografia de Ana Gaiaz e Márcia Lessagaleria de exposições temporárias

* Requer levantamento prévio de bilhete Bilhetes disponíveis no próprio dia a partir das 10:00hLimitado a 2 bilhetes por pessoa

GRANDE AUDITORIO

GULBENKIAN FESTA REABERTURA 15 FEVEREIRO ENTRADA LIVRE*

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