ipsilon-20140214
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Em construçãoUm estado da arte portuguesa em 2014
Lynch, Warhol, Burroughs com a fotografia colada à pele
Sexta-feira | 14 Fevereiro 2013 | ipsilon.publico.ptFERNANDO VELUDO/NFACTOS ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 8708 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
rachmaninovsibelius
20 + 21 Fevereiroquinta, 21:00h — Grande Auditóriosexta, 19:00h — Grande Auditório
Orquestra GulbenkianJukka-Pekka Saraste maestro
Jorge Luis Prats piano
17 Fevereirosegunda, 19:00h — Grande Auditório
mozartjanácekdvorák
Quarteto TakácsMarc Ramirez contrabaixo
21 + 22 Fevereirosexta / sábado 21:30h — Teatro Maria Matos
Asko|Schönberg Ensemble Etienne Siebens maestro
Katie Mitchell encenação
The House Taken Overópera de vasco mendonça
música sacra e tradicional de autores catalães
fauréRequiem op. 48 (versão com órgão)
16 Fevereirodomingo, 19:00h — Grande Auditório
Orfeó Català e Cor De CambraPalau de la Música CatalanaJosep Vila i Casañas maestro
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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 3
Sumário6: 12 ContemporâneosPortugal, 2014: um estado da arte em Serralves
12: Andy Warhol, William Burroughs, David LynchProfi ssão: fotógrafos
16: Mler Ife DadaTrinta anos depois, a aventura continua
18: Sensible SoccersPenetrando no mainstream
20: Jefta van DintherO rapaz-maravilha dança em Guimarães
22: Estrada da RevoluçãoEra uma vez a Primavera Árabe em português
Flas
hFicha TécnicaDirectora Bárbara Reis
Editores Vasco Câmara,
Inês Nadais
Design Mark Porter,
Simon Esterson
Directora de arte Sónia Matos
Designers Ana Carvalho,
Carla Noronha, Mariana Soares
E-mail: [email protected]
prisão), entrou na clandestinidade
e começou a escrever a sua ode de
231 poemas à América Latina,
Canto Geral. Ou seja, afinal, saindo
ou não da trilogia, esta é uma
outra forma de Larraín continuar
a História do Chile na sua
filmografia. O realizador escreve
neste momento o argumento com
o dramaturgo Guillermo Calderón,
co-autor de Violeta Went to Heaven,
de Andres Wood, o Prémio do Júri
World Cinema em Sundance 2012.
Um retrato do poeta Pablo
Neruda: é assim que o cineasta
chileno Pablo Larraín “sai” da sua
trilogia sobre o Chile — não
programada, mas que assim se foi
constituindo, à medida que Tony
Manero deu lugar a Post Mortem e
Pablo Larraín canta Pablo Neruda
a este filme se sucedeu Não, e
assim a memória, de Salvador
Allende e de Augusto Pinochet, foi
sendo exumada. Neruda, título de
trabalho, será uma aproximação
ao Prémio Nobel de 1971, um
gigante da literatura latino-
Americana, no momento em que,
entre os anos 1946 e 1948, se filiou
no Partido Comunista chileno, foi
eleito senador, falou publicamente
contra a prisão de mineiros em
greve (e por isso foi ameaçado de
HO
/AFP
O filme do cineasta chileno aproximar-se-á do poeta (aqui, com Salvador Allende) nos seus anos de maior activismo político
Uma multidão procura comprar ouro nos últimos dias do Kuomintang, em Xangai: Cartier-Bresson foi um viajante incansável
Uma “extraordinária” testemunha do século XX revisitadaHenri Cartier-Bresson morreu em
2004, aos 95 anos, e passou boa
parte da vida a fotografar, criando
um amplo e diversificado corpo de
trabalhos que nos dá uma visão
muito pessoal do que foi o século
XX em todas as suas convulsões.
Uma obra que foi já extensamente
dissecada, que deixou lastro na
actividade de muitos dos grandes
fotojornalistas que se seguiram a
este francês a quem devemos “o
instante decisivo”, e que prova
sem dificuldades que há um antes
e um depois de Cartier-Bresson.
O Centro Georges Pompidou, em
Paris, acaba justamente de
inaugurar, anteontem, uma
grande retrospectiva do fotógrafo,
a primeira na Europa desde a sua
morte. A exposição, organizada
cronologicamente, pretende
mostrar Cartier-Bresson não
esquece os ícones que deixou na
fotografia, mas mostra também
trabalhos menos conhecidos,
alguns no domínio da pintura, do
desenho e do cinema (chegou a
ser assistente de realização de
Jean Renoir). Aproveitando o
trabalho realizado nos últimos dez
anos pela sua fundação no que
toca ao arquivo pessoal (hoje estão
acessíveis aos investigadores
cartas, cadernos de notas e
publicações que lhe pertenciam),
o Pompidou procura dar uma
perspectiva mais abrangente da
obra do artista, explorando a sua
relação com a imagem como um
todo, o que leva,
irremediavelmente, a uma
reflexão sobre o que procurava na
fotografia.
O primeiro núcleo desta mostra
que leva apenas o nome do
fotógrafo vai de 1926 a 1935 e
destaca a sua ligação ao grupo dos
surrealistas e as viagens pela
Europa, pelo México e pelos
Estados Unidos. No segundo
(1936-1946), privilegia-se o lado
político — a luta contra o fascismo,
a participação na imprensa
comunista, a cobertura da
Segunda Guerra Mundial. 1947
marca o arranque do último
módulo — com a criação da
agência de fotojornalismo
Magnum, ainda hoje uma das mais
respeitadas do mundo (Bresson
fez parte do grupo fundador com
três outros grandes fotógrafos:
Robert Capa, George Rodger e
David “Chim” Seymour) —, que
termina no começo da década de
1970, quando abandona a
reportagem.
Quem atravessar todas as galerias
atravessará o século XX, do
movimento surrealista à Guerra
Civil de Espanha, dos dois
conflitos mundiais ao Maio de 68,
passando pela ex-URSS, pelo
funeral de Gandhi, pela morte de
Estaline ou pelo doloroso
processo de descolonização.
“Cartier-Bresson é o único dos
grandes fotógrafos de cuja obra se
pode dizer que é uma história
pessoal do século XX”, disse Peter
Galassi, comissário da
retrospectiva que o Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque lhe
dedicou em 1987, lembrado pelo
diário espanhol ABC.
O responsável pela exposição do
Pompidou, Clément Chéroux,
explica que tem três grandes
objectivos: mostrar, rejeitando
mitos e lugares-comuns, como
Cartier-Bresson se formou no
contacto com a geometria e a
pintura, essenciais ao seu sentido
de composição;
“recontextualizar” os vários
períodos da sua obra; e
demonstrar como ela constitui um
“testemunho extraordinário” do
século XX. “Estas três perspectivas
permitem compreendê-lo em toda
a sua complexidade, iluminando a
diversidade da sua obra.” Depois
de Paris, onde pode ser vista até 9
de Junho, a exposição segue para
a Fundación Mapfre, em Madrid.
Lucinda Canelas
GEORGE HOYNINGEN-HUENE/HORST/CORTESIA STALEY-WISE GALLERY
HENRI CARTIER BRESSON/MAGNUM PHOTOS/CORTESIA FONDATION HENRI CARTIER-BRESSON
4 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Souto de Moura e Herberto Helder,
Álvaro Siza e Eugénio de Andrade:
“Sou um admirador fanático da
grande poesia, do modelo de rigor
de Eugénio, da precisão da sua
O processo criativo levou meses e
houve percalços pelo caminho —
mudança de ferramentas,
encruzilhadas técnicas,
inexperiência... Dores de parto
que não impediram o nascimento,
há um mês, da revista Mente,
talvez um dos primeiros projectos
editoriais portugueses de fôlego
pensados exclusivamente para o
suporte iPad. Um das motivações
da dupla de designers Vasco
Colombo e Raquel Porto, os
principais mentores, foi
experimentar um projecto que
lhes desse total liberdade criativa,
sem as condicionantes “de clientes
pouco dispostos a esperar ou a
pagar por eventuais erros”. Mas
foi também a vontade de
“contribuir com novas linguagens
editoriais e gráficas, coisas que
ainda não estão criadas”, que
moveu os criativos do estúdio +2
designers. “Por cá, o que tem sido
feito até agora é a tentativa de pôr
PDFs a mexer com um vídeo ou
outro, um link… são páginas
estruturadas para o papel e não é
assim que se deve pensar o iPad”,
afirma Vasco Colombo, que
procura agora sustentar a
continuidade da revista seduzindo
A Mente, projecto da dupla de designers Vasco Colombo e Raquel Porto, está disponível na loja iTunes: uma revista trimestral, em inglês, sobre tudo e sobre nada
patrocinadores.
Para o arranque da Mente, os dois
designers partiram de pelo menos
uma certeza: é preciso “redefinir
papéis” para explorar o máximo
de cada um dos suportes que hoje
coexistem. A partir daqui, o
processo de construção da revista
andou sempre colado a uma
pergunta: “Qual é a melhor forma
de contar esta estória num
suporte com as características do
iPad?” Objectivo: dar uma noção
tempo e de narrativa visual para
fazer com que apeteça passar (ou
deslizar) de ecrã para ecrã. Por
enquanto, a Mente será apenas
publicada em inglês, língua franca
para chegar à montra global que é
a loja da Apple. E o português?
“Mais depressa terá uma versão
para iPhone do que uma versão
bilingue.” A periodicidade é
trimestral, o tempo mínimo para
que se consiga publicar (e depois
ler e divulgar) uma revista com
esta ambição, que tem no vídeo,
na fotografia, no áudio e nas
fontes tipográficas as suas
principais armas criativas.
Pergunta inevitável: afinal, a
Mente é uma revista sobre quê? A
resposta do designer não veio à
primeira e foi preciso puxar de
exemplos como a Monocle (“uma
revista sobre tudo e sobre nada”)
para arrumar este novo projecto
editorial português no campo da
cultura visual e do lifestyle. Ou
seja, a Mente é uma revista sobre
tudo e sobre nada, que para dar
corpo ao seu número zero foi
buscar inspiração à moda
(storytailors, Dino Alves…), à
música ( Jerry the Cat, Afonso
Cruz…), à dança (Filipa de Castro),
à arte na pele (Inês Pais), à
ilustração ( Jorge Colombo) e aos
sons e às imagens de uma cidade
(Lisboa). Neste imenso caldo, há
até uma pequena provocação
editorial: uma entrevista com
David Carson, nome maior do
design gráfico impresso em papel.
Carson, que nunca foi grande
entusiasta do design ligado aos
pixéis, está hoje mais voltado para
a academia e para a criação de
campanhas para marcas globais.
Uma das farpas que lança na
Mente é a convicção de que já nada
pode ser inventado no design de
revistas em papel. Para este guru,
trata-se de um suporte esgotado
que será alvo de piadas do tipo
“Olha, querida, [uma revista]
impressa! Não se mexe!” Vasco
Colombo ainda acha que não será
bem assim, mas à cautela vai
experimentado outras andanças.
Quanto mais não seja para
garantir o gozo de pisar terrenos
desconhecidos, ou a sensação de
“encantamento da primeira vez”.
A Mente pode ser descarregada
gratuitamente na loja iTunes,
através da morada
mentemagazine.com
E agora para algo completamente novo: uma revista pensada para iPad
Sérgio B. Gomes
Sabendo que Alex Zhang Hungtai, o
músico que responde pelo nome de
Dirty Beaches, tinha decidido
mudar-se recentemente para
Lisboa, arriscámos que não deveria
demorar muito até ser anunciado
um concerto por cá. Ei-lo que chega
(o anúncio). O músico de Drifter /
Love is the Devil apresenta-se dia 3
de Abril no Teatro Maria Matos, em
Lisboa, numa co-produção com a
Galeria dos Zé Bois, associação
onde Hungtai cumpre actualmente
residência artística.
O concerto tem por título
Landscapes in the mist e pretende
A vida portuguesa de Dirty Beaches em concerto no Maria Matos
ser reflexo directo da sua
experiência em Portugal. Visão
muito pessoal, certamente, como
saberá quem lhe ouviu o
supracitado Drifter / Love is the
devil, disco que ouvimos, em
grande parte da sua duração,
como um diário das sensações
suscitadas por um ano de viagem
constante. Espere-se, portanto,
uma representação abstracta da
experiência portuguesa de Dirty
Beaches.
Alex Zhang Hungtai será
acompanhado em palco por Shub
Roy e por André Gonçalves. Os
bilhetes serão postos à venda a 21
de Fevereiro e custarão entre 7,5€
e 15€.
Nove mil pessoas visitaram a exposição Porto Poetic em Milão
mais jovens em busca de novas
possibilidades de trabalho”, de
Nuno Brandão Costa à dupla
Camilo Rebelo e Tiago Pimentel.
Em Milão, a exposição recebeu
cerca de nove mil visitantes em 45
dias; no Porto, onde poderá ser
vista na Galeria Municipal Almeida
Garrett de 6 de Março a 13 de Abril,
funcionará como ponto de partida
para um ciclo internacional de
conferências semanais, as Porto
Poetic Talks, que decorrerão todas
as quintas-feiras.
Uma volta à arquitectura do Porto em 30 e tal dias
RITA BURMESTER
Dirty Beaches, que cumpre residência artística na Zé dos Bois, vai apresentar-se em palco com Shub Roy e André Gonçalves
VERA MARMELO
escolha das
palavras”, disse o
primeiro Prémio
Pritzker português
em Julho passado,
apresentando a
exposição Porto
Poetic, que então
estava de partida
para Itália, onde
se apresentou
entre Setembro
e Outubro no
Museu de
Arquitectura e Design La Trienalle
di Milano. Meio ano depois, eis que
Porto Poetic chega à cidade cuja
muito singular arquitectura
documenta e celebra, por
encomenda da Ordem dos
Arquitectos/Secção Regional do
Norte (OA/SRN) ao curador
Roberto Cremascoli.
Subdividida em três núcleos —
Porto Community, Porto Design e
Porto Poetic —, a exposição dá a ver
41 projectos de arquitectura, 215
peças de design, 540 fotografias de
autor e 28 vídeos, visitando não só
a incontornável obra dos dois
prémios Pritzker no Porto e fora do
país, mas também as “boas
práticas de reabilitação da cidade”
e os trabalhos dos “arquitectos
AGENDA CULTURALFNAC EVENTOS DIÁRIOS de ENTRADA LIVRE
LANÇAMENTOS EXPOSIÇÕES
APRESENTAÇÕES MÚSICA AO VIVO
Consulte os eventos FNAC em culturafnac.pt
apoio:
NOVOS TALENTOS FNAC
14/02 SEX 18H30 FNAC COLOMBO
20/02 QUI 18H30 FNAC GAIASHOPPING
14/02 > 14/04/2014 FNAC CHIADO
20/02 QUI 19H00 FNAC CHIADO
Livro de Lady Mustache com ilustrações de Sara-a-diasEm pleno Dia dos Namorados, o radialista Fernando Alvim, na companhia de Lady Mustache e de Sara-a-dias, conversa com o público sobre esta obra e sobre temas essenciais como o Amor, o anti-Amor e o Dia de São Valentim.
Moderado por Tito CoutoA FNAC promove um encontro entre o público e Camané, no âmbito do concerto agendado para o Auditório de Espinho. Uma conversa com os fãs, moderada pelo jornalista Tito Couto, que revelará um pouco da história de vida de uma das vozes mais representativas do fado.
APRESENTAÇÃO
PUTA QUE PARIU O AMOR
Moderado por Nuno Costa SantosNão perca a oportunidade de conhecer Bruno Vieira Amaral, crítico, tradutor e bloguista que teve a sua estreia literária com o Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa e que surpreendeu tudo e todos com o seu primeiro romance As Primeiras Coisas, distinguido como livro do ano pela revista Time Out.
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
ENCONTRO COM CAMANÉ
The Misadventures Of Anthony KnivetO disco de estreia do grupo leiriense já recebeu boas críticas em publicações nacionais e internacionais, tendo figurado inclusivamente nas listas dos melhores álbuns de 2013. Os First Breath After Coma integram a compilação Novos Talentos FNAC 2013.
Fotografias de Bob Willoughby A FNAC, em parceria com a TASCHEN, presta homenagem à atriz que aliava a graciosidade de uma bailarina clássica com a magnificência de uma estrela de cinema, duas décadas depois do seu desaparecimento.
15/02 SÁB 17H00 FNAC LEIRIA15/02 SÁB 22H00 FNAC COIMBRA
MÚSICA AO VIVO
FIRST BREATH AFTER COMA
EXPOSIÇÃO
AUDREY HEPBURN, 20 ANOS DEPOIS
ENCONTRO COM BRUNO VIEIRA AMARAL
6 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
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ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 7
carla filipeNasceu em Vila Nova da Barquinha em 1973, formou-se na FBAUP. Desde cedo a sua obra procurou sair das vias mais dogmáticas das artes visuais para se concentrar em publicações, na performance e na instalação — e a reflectir sobre o sistema de circulação das obras de arte. Dirigiu o Salão Olímpico (espaço alternativo do Porto) entre 2003 e 2005, e o seu trabalho plástico tem-se revelado em inúmeras exposições desde 2001. Participou em Mom, am I barbarian?, na Bienal de Istambul em 2013, e tem a decorrer Da Cauda à Cabeça, uma individual no Museu Berardo. L.S.O.
gabriel abrantesNasceu nos EUA, em Chapel Hill, Carolina do Norte, em 1984. Formou-se em artes plásticas em Nova Iorque, começou a expor em Lisboa a partir de 1982. As primeiras exposições, Buttocalipse e Visionary Iraq, incluíam vídeo, técnica que privilegiava. A sua obra é das que colocam questões mais interessantes ao nível da hibridação entre artes visuais e cinema de autor. Em 2010 ganhou o Leão de Ouro para a melhor curta do Festival de Locarno, com A History of Mutual Respect. Há dias, em Berlim, apresentou Taprobana. Luísa Soares de Oliveira
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Portugal,
A cada nova exposição geracional reajustamos o foco do retrato que nos tiramos. Portugal, 2014: 22 anos volvidos sobre 10 Contemporâneos, Serralves volta a tomar o pulso ao momento. O que se passa aqui? 12 Contemporâneos– Estados Presentes inaugura hoje.
Vanessa Rato
mise au point2014:
8 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Passam-se anos. E então, pon-
tualmente, reemerge esta necessi-
dade de tomar o pulso ao momento,
saber de que matéria é feito. O resto
é inevitável: sempre que olhamos
para o presente levantamos o pas-
sado e deixamos que uma parte do
futuro se insinue.
Foi assim em 1992, quando Ale-
xandre Melo comissariou para Ser-
ralves a exposição 10 Contemporâ-
neos. Repete-se agora que a mesma
instituição se prepara para inaugu-
rar 12 Contemporâneos– Estados Pre-
sentes, desta vez com comissariado
de Suzanne Cotter, a nova directora
do museu, e Bruno Marchand, re-
cente responsável pela programação
da Chiado 8, em Lisboa.
“A mesma instituição”, dizíamos
– força de expressão; 22 anos volvi-
dos, Serralves é e não é o mesmo
lugar, tal como Portugal é e não é o
mesmo país.
O que se passou e o que se passa aquiPor então, faltavam quatro anos pa-
ra Serralves lançar a primeira pedra
do seu museu e sete para o inaugu-
rar; Portugal entrara para a CEE
praticamente na véspera e lançava-
se no seu devir auto-estrada antes
mesmo de passar pela casa da par-
tida de um teatro ou galeria de ar-
te.
Julião Sarmento, Pedro Cabrita
Reis, Pedro Calapez, José Pedro
Croft, Rui Sanches, Pedro Portugal,
Pedro Proença, Gerardo Burmester,
Pedro Casqueiro e Rui Chafes: nessa
altura, foram os protagonistas esco-
lhidos.
10 Contemporâneos tanto fechava
a década de 1980 como abria a de
90 assumindo os seus eleitos como
agentes operativos da transição en-
tre um tempo e outro.
“Para mim, essa exposição surgiu
na sequência de praticamente uma
década a escrever quase diariamen-
te sobre e com artista plásticos que
faziam parte integrante da minha
vida quotidiana”, recorda Alexandre
Melo. “Era um ponto de chegada do
meu trabalho e da minha visão sobre
nuno da luzO percurso de Nuno da Luz (Lisboa, 1984) começou por volta de 2006, associado ao projecto ATLAS e numa cumplicidade com Ana Manso, André Romão, Joana Escoval ou Pedro Neves Marques. A sua obra sublinha uma dimensão nem sempre acarinhada na arte portuguesa: a relação do som com o ambiente, com o silêncio, com os sentidos e com o real. A partir de discretas instalações, a sound-art de Nuno da Luz não se restringe aos limites do cubo branco. J.M.
O que se passa em Portugal não guarda surpresas – uma profunda malaise: “Uma ansiedade das pessoas, em geral, e dos artistas, que também são pessoas” Suzanne Cotter, directora do museu de Serralves
mauro cerqueiraÉ de Guimarães, onde nasceu em 1982 e onde estudou Artes Plásticas e Pintura. E, contudo, a sua obra procede a partir de revisitações de outras disciplinas: desenho, escultura, edição de livros de artista. É também músico. Com André Sousa fundou em 2008 Uma Certa Falta de Coerência, espaço artístico na zona histórica do Porto. O título enunciava o programa que ambos queriam seguir: proporcionar aos interessados um lugar de apresentação de projectos que aliassem o trabalho plástico ao elemento político. L.S.O.
ana santosObjectos, superfícies, luz. Estes são elementos que emergem da prática de Ana Santos (Espinho, 1982), distinguida no início desta semana com o Prémio EDP Novos Artistas. O seu percurso foi o de uma nómada: formou-se em Escultura no Porto, estudou em Lisboa e na Alemanha, realizou uma residência em Nova Iorque. E a sua escultura espelha essa condição, pois surge sem hierarquias, animada por um pensamento pragmático e pelo humor, a uma escala humana. Coisas tão banais como rolos de papel, sacos, objectos danificados são enigmas que traduz em entidades abstractas. Esculturas. José Marmeleira
priscila fernandesVencedora do Prémio EDP Novos Artistas 2011, Priscila Fernandes (Coimbra, 1981) trabalha com vídeo, desenho e instalação, explorando questões como a transmissão de conhecimento, a pedagogia ou a evolução do comportamento humano. Em Serralves apresenta dois vídeos que exemplificam esta descrição: Product of Play (2011) e That Which Is Above That Which Is (2010). O primeiro, em torno da ideia de jogo e das emoções que provoca nos indivíduos, o segundo reivindicando a presença do modernismo nas convenções do quotidiano. J.M.
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quais seriam os pontos chave dessa
enorme transição que se deu na dé-
cada de 1980 nas artes plásticas.”
Que transição? Afinal de que fala-
mos hoje quando nos referimos a
um mundo de há já três décadas?
Existiu uma “arte dos anos 1980”
em Portugal? Não, diz Melo: “Quan-
do se diz ‘a arte dos anos 1980’ não
se está a dizer absolutamente nada,
a não ser do ponto de vista socioló-
gico.”
A prova está na diversidade de
modos discursivos dos artistas in-
cluídos em 10 Contemporâneos – e
precisamente por isso a abordagem
de Melo para a leitura do momento
é a sociológica: “10 Contemporâneos
articulava-se com o que se esperava
que fosse uma dinâmica de emer-
gência para um mercado da arte em
Portugal”, diz.
No Portugal do PREC e da Refor-
ma Agrária da década de 1970 e prin-
cípio da década de 1980 esse mer-
cado tinha deixado de existir. De-
pois, a cortar com uma época em
que os artistas eram considerados
jovens pelo menos até aos 40 ou 45
anos, deu-se um fenómeno “curio-
so”: “Num período de tempo muito
curto, apareceu um conjunto de no-
vos nomes que passaram de desco-
nhecidos a figuras centrais.”
Julião Sarmento e Pedro Cabrita
Reis lançaram então as duas mais
bem sucedidas carreiras internacio-
nais da segunda metade do século
XX português – as duas primeiras
grandes carreiras internacionais de
artistas portugueses a viver em Por-
tugal. Isto, recorda Melo, quando
nos anos 1980 ainda era muito co-
mum aparecerem biografias de ar-
tistas importantes com listas das
viagens internacionais – não das ex-
posições, das viagens...
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 9
De então para agora, a grande
transformação foi precisamente es-
sa, sublinha este crítico e comissá-
rio: a transformação decorrente da
transição de um mundo em que “as
idas a Espanha tinham uma dimen-
são épica” para um mundo em que
a formação e muitas das primeiras
exposições individuais se fazem no
estrangeiro.
E é esta última realidade que Su-
zanne Cotter primeiro sublinha.
“Ouvir os artistas e as suas dúvi-
das é interessante: o que mais têm
questionado é porque estão a expor
aqui só entre portugueses, porque
não entre internacionais?”
Quando recebe o Ípsilon, a quase
duas semanas da inauguração de 12
Contemporâneos– Estados Presentes
e com a montagem da exposição
ainda em fase inicial, a nova direc-
tora do Museu de Serralves, chega-
da há um ano a Portugal, explica
porque surge agora, neste momen-
to, este gesto: “Como tentativa de
resposta à minha pergunta funda-
mental: o que se passa aqui [em Por-
tugal]?”
E o que se passa não guarda sur-
presas – uma profunda malaise:
“Uma ansiedade das pessoas, em
geral, e dos artistas, que também
são pessoas.”
Energia e precaridadeAndré Sousa, Ana Santos, Carla Fi-
lipe, Gabriel Abrantes, Mauro
Mauro Cerqueira e os despojos de uma antiga tipografia, Ana Santos e a poética dos materiais pobres, a mística existencia-lista da terra de Sérgio Carronha, as viagens de pendor antropológico de Gabriel Abrantes, memória das formas de vida pós-industriais de Carla Filipe... é uma voragem “própria da vida no capitalismo tardio”, diz Bruno Marchand
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“Um pouco por toda a exposição se pressente uma energia que tem a ver com a ideia de precariedade, de recuperar realidades que se tornaram obsoletas”Bruno Marchand, programador da Chiado 8
10 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Cerqueira, Nuno da Luz, Pedro
Barateiro, Pedro Lagoa, Priscila Fer-
nandes, Sérgio Carronha, Sónia Al-
meida, !Von Calhau! (Marta Ângela
e João Alves): depois de ver o traba-
lho de 50 artistas, fizeram-se esco-
lhas – foram os que ficaram. Foi atra-
vés deles que Cotter e Bruno Mar-
chand decidiram “medir a
temperatura do momento”.
Têm percursos e obras diversas,
uns expuseram antes em Serralves,
outros não [ver biografias], mas “to-
dos estão a falar deste tempo”.
“Um pouco por toda a exposição
se pressente uma energia que tem
a ver com a ideia de precariedade,
de recuperar realidades que se tor-
naram obsoletas”, diz Bruno Mar-
chand.
Mauro Cerqueira com os despojos
de uma antiga tipografia, Ana Santos
e a poética dos seus materiais po-
bres, a mística existencialista da
terra de Sérgio Carronha, as viagens
de pendor antropológico de Gabriel
Abrantes, as pesquisas sobre as
identidades comunitárias e a memó-
ria das formas de vida pós-indus-
triais de Carla Filipe: é uma voragem
“própria da vida no capitalismo tar-
dio”, diz Bruno Marchand.
“Um dos temas da exposição atra-
vés das obras acabará por ser a des-
locação. Coisas que nos tiram do
nosso lugar e nos levam para outro”,
sónia almeidaA pintura é o meio e a linguagem da sua arte. A esta artista (Lisboa, 1978) interessa explorar e pensar o modo como os elementos pictóricos são recebidos quer pelo espectador numa exposição, quer pelo processo de reprodução noutros suportes. Quase sempre a partir de imagens e objectos do quotidiano (que desenha num caderno) e numa tensão que se projecta nas telas, entre a representação e a abstracção. Para que o espectador reconstitua a realidade e, pelo caminho, interrogue os seus próprios sentidos e sensibilidade. J.M.
andré sousaNão é possível dissociar André Sousa (Porto, 1982) da energia que há dez anos tomou conta da cena portuense. Fundador do espaço Mad Woman In The Attic e co-gerente do Pêssegos Prá Semana, foi figura pivô das experiências que marcaram o contexto artístico da cidade. A sua obra sinaliza traços que a distinguem: a referência oblíqua a universos extra-artísticos, a atenção aos contextos expositivos e, recentemente, uma abordagem às pinturas enquanto arquitecturas, paisagens e personagens. Ou atlas visuais. J.M.
pedro lagoaSerá o nome menos conhecido deste conjunto, o que se compreende se tivermos em conta que a formação e a actividade de Pedro Lagoa (Leiria, 1975) se têm repartido entre Portugal e outros países europeus. Dito isto, o seu trabalho, materializado em instalações, pinturas e textos, lida com questões transversais à prática artística contemporânea: os arquivos da alta e da baixa cultura, a imagem em movimento, a memória, as possibilidades abertas pela arte dos últimos 40 anos. J.M.
sérgio carronhaNatural de Cascais (1984), é o autor de um trabalho guiado por experiências sensoriais e por uma relação intensa com a natureza, em particular a Serra de Sintra, o seu grande reservatório material (é aí que encontra a barro que usa nas peças). Em Serralves apresenta pequenas esculturas, simbolizações abstractas de coisas vistas, dos encontros com a vida da serra. A sua arte, resultado de uma prática multidimensional, não faz mais do que reivindicar a beleza da simplicidade e da humanidade. J.M.
pedro barateiroNasceu em Almada em 1979. Licenciou-se em Artes Visuais em 2002, tendo frequentado uma pós-graduação na Maumaus e concluído mestrado na Malmö Art Academy, Suécia, em 2006. Com obra centrada na prática crítica da fotografia, do vídeo, da performance ou da instalação, participou em várias bienais — Busan, S. Paulo, Berlin, Sidney e PhotoEspaña. Tem exposto no estrangeiro e em Portugal: Reakt — Views and Processes (Guimarães, 2012), Theatre of Hunters (Basel, Suíça, 2011) e Theatre of Speech (Casa de Serralves — Museu de Serralves, Porto, 2009). L.S.O.
diz por outro lado Suzanne Cotter.
“As coisas estão em transformação,
em movimento.”
Depois, refere ainda Cotter, há
que ter em consideração “uma di-
nâmica [contextual] que é muito
multíplice”.
O tipo de propagação ou disper-
são antecipado pelo título de outra
das grande exposições geracionais
feitas nas últimas décadas em Por-
tugal: Disseminações, que Pedro La-
pa comissariou para a Culturgest em
2001.
Rui Toscano, João Onofre, Leonor
Antunes, Francisco Queirós, Filipa
César, Nuno Sacramento, Ana Pinto,
Inês Pais e Ana Pérez-Quiroga: qua-
se todos estes artistas – menos Rui
Toscano, que vinha da década ante-
rior – tinham então muito pouco
tempo de trabalho, recorda Lapa.
Em certos pontos, davam conti-
nuidade a problemáticas que tinham
começado a enunciar-se pela gera-
ção reunida na mostra Imagens para
os anos 1990, comissariada por Fer-
nando Pernes e Miguel von Hafe
Pérez [ver texto nestas páginas]. Era
assim em termos da proliferação de
sentidos que atribuíam ao objecto
artístico. No entanto, diz Pedro La-
pa, “as redes de entendimento que
esse objecto convocava eram com-
pletamente diferentes”.
Diferentes também, por exemplo,
do chamado regresso à pintura que
os anos 1980 tentaram reabilitar.
Pedro Lapa lembra-se, por exem-
plo, de durante a montagem da ex-
posição, de repente, quase todos
quererem apresentar vídeo, espe-
lhando um momento marcado por
uma interrogação do papel da ima-
gem e da imagem-tempo deleuzia-
na.
“As transformações que a imagem
estava a sofrer tinha que ser inter-
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rogada”, conta Lapa. “Hoje, essas
questões não se colocam.”
Para Pedro Lapa, nos 13 anos que
decorreram entre Disseminações e
12 Contemporâneos, houve, de novo,
grandes mutações. “A partir de final
de 2000 até 2008 muitas coisas se
alteraram. O processo de que eu es-
tava a dar conta em 2001 cresceu
exponencialmente. A disseminação
foi ainda maior”, diz.
É por isso, também, que faz sen-
tido nova mise au point – momento
de reajustar a definição da imagem
que temos de nós.
“Quando se pensa num
projecto destes, ou se
aposta em mostrar a
realidade, ou se faz um
projecto para o futuro.
Eu escolhi a primeira
destas hipóteses”, diz Alexandre
Melo, referindo-se a Dez
Contemporâneos, inaugurada na
Casa de Serralves em 1992. A
exposição, que incluiu obras de
Gerardo Burmester, José Pedro
Croft, Pedro Portugal, Pedro Cabrita
Reis, Pedro Calapez, Pedro Proença,
Casqueiro, Rui Chafes e Julião
Sarmento, apresentava aquele que o
comissário identificava como o
“grupo da década de 80”: um
conjunto com grandes diferenças
projectuais e estilísticas entre si,
mas que dava já garantias de um
trabalho consistente e duradouro.
Vinte anos mais tarde, todos
continuam a desenvolver obra
significativa.
A exposição que se inaugura em
Serralves, contudo, não invoca
apenas Dez Contemporâneos. Invoca
também outro projecto de grandes
ambições, Imagens para os anos 90,
que abriu em 1993, tendo circulado
também por Chaves e Lisboa
(Culturgest). Com curadoria de
Fernando Pernes e Miguel Von Hafe
Perez, à data, respectivamente,
director e sub-director daquela
instituição, mostrava o outro lado da
moeda dos anos 90, com uma
selecção de artistas que possuíam
uma visão crítica e uma consciência
politizada do meio português.
Carlos Vidal, João Louro, Rui Serra,
Paulo Mendes, João Tabarra, Miguel
Palma, Fernando Brito e João Paulo
Feliciano, quase todos bem mais
jovens do que o grupo anterior,
desconcertavam pela leitura mordaz
e violenta da sociedade na qual
iriam desenvolver o seu trabalho.
Unia-os o entusiasmo de mostrar o
trabalho em Serralves, para além da
consciência de que a exposição
corria o risco de ser ignorada pela
crítica. Não foi isso que aconteceu.
Os críticos que se interessaram por
Imagens para os anos 90, quase
todos a trabalhar desde a década
anterior, não gostaram do que
viram. Na época, alguns dos artistas,
liderados por António Cerveira
Pinto (artista, crítico, curador),
reagiram. Choveram insultos. Houve
manifestos, ofensas de parte a parte,
zangas para a vida. Nunca mais o
meio artístico português foi o
mesmo. Mas esta jovem geração,
que assim entrava para o circuito
das grandes instituições
museológicas portuguesas, tinha
vindo para ficar. Hoje, quando
recorda essa época, João Louro diz:
“Foi tudo um jogo. Ficámos
encantados de expor em Serralves!
Mas fomos usados em polémicas
que não eram nossas. Sofremos
imenso com isso.”
Nem todos continuam a ser
artistas. Carlos Vidal enveredou pela
carreira académica e é hoje
professor na FBAUL. Paulo Mendes
tornou-se conhecido como curador.
Fernando Brito, que tal como
Proença e Portugal integrou o grupo
homeostético, continua a pintar. E
os demais são artistas, produzindo
regularmente exposições e
internacionalizando cada vez mais a
sua obra.
Mas como eram esses anos 80 e
90, que precederam a abertura do
Museu de Serralves, e que
acompanharam os primeiros anos
do CAM da Gulbenkian? Era uma
época em que a obra artística tinha
Vidas de artistasA arte contemporânea na moda, clima
de euforia económica, governos a apoiar
a internacionalização dos artistas...
isso foi nos anos 90, a década de
Dez Contemporâneos, memória sobre a
qual se constrói e opõe 12 Contemporâneos.
Por Luísa Soares de Oliveira
Dez Contemporâneos, inaugurada na Casa de Serralves em 1992, identificava o “grupo da década de 80”; todos continuam a desenvolver obra significativa
!von calhau!Música, performance, artes visuais, texto: são as bases de trabalho da dupla Marta Ângela/João Alves, que compõe, trata dos cenários, da caracterização, da actuação e da direcção das performances que tem realizado. Inserem-se na melhor descendência das performances dadaístas dos começos do século XX, partilhando com estas a vontade experimental e uma reflexão sobre a identidade da arte. Efectuaram residências, participaram em festivais, editaram um LP, Quadrologia Pentacónica, bem como um livro, Abismo Abutre. L.S.O.
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tanta ou mais importância do que o
meio. No Frágil, em Lisboa, no Arco,
a que ninguém faltava (e há quem se
lembre de Pedro Cabrita Reis a
dominar o Bar Chicote em Madrid,
ponto obrigatório da movida
portuguesa durante a feira), em
jantares e saídas, em exposições
fora de portas onde artistas, críticos
e amigos se deslocavam em massa,
esta foi uma época de grandes
amizades. Rui Sanches, que
participou em Dez Contemporâneos,
salienta que, embora houvesse
diferenças entre os artistas, havia
também cumplicidades duráveis
que se construíam. “Havia
diferenças geracionais, mas
dávamo-nos todos bem. Tínhamos
uma vivência em comum.” Entre as
galerias, destacava-se os Cómicos,
de Luís Serpa. Aqui, na Alda Cortez,
que ficava em Santos, ou na Graça
Fonseca, na Rua da Emenda, ou
ainda na Pedro Oliveira, do Porto, os
artistas representados nas duas
exposições mostravam
regularmente o seu trabalho. E a
crítica acompanhava-os. Alexandre
Melo e João Pinharanda, que tinham
começado a escrever no JL,
dividiram-se depois pelo Expresso e
pelo PÚBLICO, fundado em 1990.
Melo recorda o tempo em que era
possível escrever quatro e cinco
páginas de crítica de arte numa
edição de jornal, coisa que hoje já
raramente acontece. No
Independente, António Cerveira
Pinto ganhara uma tribuna em tudo
oposta às duas precedentes. A arte
contemporânea estava na moda.
Para este estado de coisas, não era
indiferente um clima de euforia
económica que se vivia, governos
que apoiavam a internacionalização
dos artistas, feita sobretudo a partir
de apoios a participações nas
bienais de Veneza e S. Paulo, e uma
Fundação Gulbenkian ainda pródiga
nas suas bolsas para o estrangeiro.
Tudo se vendia com facilidade. Mas
era preciso integrar o beautiful
people do art set para que a vida de
artista fosse um mar de rosas. E era
esta constatação que os jovens de
Imagens para os anos 90
contestavam. Um status quo que é
também político. Carlos Vidal não
esconde algum desencanto. Olha
hoje para o que foi essa época e diz-
nos que “à distância, penso que foi
uma exposição utópica, por várias
razões: mostrou-se uma geração
emergente no momento da sua
revelação, o que é raro; por outro
lado, na sua diferença, lá se revelou
um núcleo de autores que
acreditavam numa arte política.
Acho-a mais importante para a
história do que para cada um dos
participantes. Mas essa politização
era também uma política da
imagem, que eu creio que deixou
marcas nas gerações seguintes.” O
que é certo é que o tempo muda
muita coisa. Louro e Feliciano fazem
hoje parte da mesma galeria que
Julião Sarmento. Rui Chafes e João
Tabarra partilham neste mesmo
momento importantes
retrospectivas no CAM. Para todos
eles, depois do pousar das armas,
este é o tempo da maturidade.
12 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Três americanos em Londres com a fotografia
colada à peleNenhum deles se apresentou verdadeiramente como fotógrafo, foram outras as suas artes a chegar mais alto. Mas a fotografi a colou-se à obra e à vida deles, de maneira obsessiva, carnal e permanente, como uma tatuagem que se grava na pele: Andy Warhol, William Burroughs, David Lynch.
E no entanto ela andou (qua-
se) sempre com eles. Entre
os talentos de William S.
Burroughs, Andy Warhol e
David Lynch constam mui-
tas artes, várias artes em
cada um deles até. A fotografia
nunca andou no topo desses talen-
tos, até porque nenhum deles se
apresentou verdadeiramente como
fotógrafo, e foram outras as suas
artes a chegar mais alto. O certo é
que mais cedo com uns (Burrou-
ghs, Warhol) e mais tarde com ou-
tro (Lynch), ela andou sempre lá,
com eles, colou-se à obra e à vida
de todos, de maneira obsessiva,
carnal e permanente, como uma
tatuagem que se grava na pele. Três
dos maiores agitadores visuais e
culturais da segunda metade do
s é c u l o X X m o s t r a m n a
Photographer’s Gallery de Londres
esse lado da fotografia como me-
canismo criador independente e
capaz de dar imagem a pensamen-
tos, ideias e pulsões.
Para além das listas vermelhas e
azuis dos cartazes da galeria que
dão a origem americana comum
destes três criadores, o que liga ca-
da um dos andares que divide as
exposições é a sensação de que es-
tas obras fotográficas foram deter-
Andy WarholO fascínio Warhol pela fotografia começou cedo. Aos nove anos recebeu uma câmara de presente e começou a revelar fotografias na cave. Nunca abandou o suporte fotográfico, mas foi apenas a partir de 1976 que começou a dar-lhe mais atenção. Com as séries Stitched Works deu um dos empurrões finais à circulação da fotografia enquanto arte
Sérgio B. Gomes, em Londres
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sica é outro dos talentos do realiza-
dor), os comissários das três expo-
sições deixaram de lado a tentação
de pôr em confronto directo a fo-
tografia com o cinema, a pintura e
a literatura, artes em que são mes-
tres Lynch, Warhol e Burroughs.
Uma decisão que se revela acerta-
da, porque aumenta o poder de
sugestão pelo universo visual e cria-
tivo de cada um, e descobre-se com
outro interesse como a fotografia
foi tantas vezes o melhor caminho
para chegarem onde chegaram. En-
tre este grupo, talvez o exemplo
mais evidente desta influência (ao
mesmo tempo subtil e declarada)
é o de Warhol, onde o fascínio pela
serialidade e pela multiplicidade
(fundamentais na sua pintura) se
revelam de maneira flagrante nos
Stitched Works, obras com fotogra-
fias montadas lado a lado que po-
dem ser exactamente iguais, se-
quenciais ou com revelações feitas
com diferentes contrastes e densi-
dades.
Utopia fotográfi caPhotographs 1976 – 1987 mostra a
produção fotográfica da última dé-
cada de vida do artista pop, aquela
em foi mais activo neste suporte
depois de ter abandonado outras
formas de registo do quotidiano,
como o gravador áudio. A partir de
76, no pico da fama como artista,
Warhol começa a usar uma Minox
compacta com filmes de 35mm.
Gastava em média um rolo por dia
e estipulou que exporia pelo me-
nos cinco fotografias de cada um
na Factory, viveiro nova-iorquino
de arte, lugar de experimentações.
Desde então raramente se separou
da sua câmara registando todo o
burburinho do dia-a-dia que o ro-
deava. Abraçando o princípio “dis-
para agora, vê depois”, começa a
registar pessoas na rua, festas, pai-
David Lynch“Gosto da indústria. E de canos. Gosto de fluídos e fumo. Gosto de coisas feitas pelo homem. E gosto de ver pessoas a trabalhar no duro.” Tudo coisas relacionadas com paisagens industriais, lugares que começou a fotografar nos 80s enquanto filmava O Homem Elefante
minantes na construção de outras
obras, noutros suportes e com ou-
tras ambições. Mas agora têm a
oportunidade de brilharem sozi-
nhas. Olhadas hoje, com um hiato
de décadas, percebe-se como ga-
nharam autonomia e se afirmam
como corpos de expressão criativa
autónomos fazendo esquecer o que
os seus autores fizeram com elas
ou o que fizeram à sua volta. E isto
talvez queira dizer que está total-
mente de lado o estigma da foto-
grafia como penetra no Olimpo das
artes eleitas.
Com a excepção de uma instala-
ção sonora original de Lynch (a mú-
sagem urbana, publicidade, pro-
dutos de consumos e todo o tipo
de objectos. Esta aparente utopia
fotográfica respeitava aspectos for-
mais e cumpria padrões de registo,
exercício que colocou a acto foto-
gráfico no centro de toda a criação
artística de Warhol. A criação dos
Stitched Works, que agrupava várias
imagens (muitas vezes a mesma),
foi uma das respostas ao enorme
volume de material recolhido. A
importância que Warhol deu à ima-
gem fotográfica e a concretização
de séries como esta nos anos 1980
ajudou a cimentar o caminho da
fotografia como arte, suporte com
potencial criativo pleno.
Extensão do corpoJá nas imagens de Burroughs (cujo
centenário do nascimento se assi-
nala este ano) esta ligação entre a
ferramenta, linguagem e prática
fotográficas com outras artes pode
não ser tão evidente. Aqui a foto-
grafia é encarada como uma exten-
são do corpo, utensílio natural pa-
ra garantir a captura do imediato,
o registo da (des)ordem de ideias,
ou para dar uma ajuda na constru-
ção de pensamentos, cenários e
personagens. O resultado é uma
obra fragmentada e caótica (o es-
critor não titulava nem datava as
impressões). Apesar de a atirar
constantemente para dentro de um
turbilhão criativo, Burroughs era
fascinado pela capacidade da foto-
grafia em quebrar a continuidade
do espaço-tempo e de “expandir a
percepção física do mundo por par-
te de quem vê”. Por outro lado, via
nelas extraordinários recursos pa-
ra começar a construir personagens
novos ou então para complicar e
acrescentar camadas narrativas a
outros já existentes.
Mas uma das principais virtudes
dos mais de 100 trabalhos escolhi-
dos para dar forma a Taking Shots
(que se apresenta como a primeira
grande exposição a dar relevo à
obra fotográfica de Burroughs) nem
passa tanto pelos pontos de contac-
to com o legado artístico de um dos
gurus da beat. O que vem à super-
fície é mais a forma de estar e de
ser de um homem que vivia em
ebulição permanente. A diversida-
de de usos que deu à fotografia, que
tanto utilizava para registar uma
sequência de acontecimentos pro-
vocada por um acidente de viação,
como para fazer fotomontagens em
registo diarístico, retratos ou cola-
gens revelam um estado de espírito
irrequieto, um explorador e um
nómada. O título, Taking Shots, que
abarca imagens captadas entre o
início dos anos 1950 e os anos 1970,
não é, aliás, apenas uma referência
ao léxico da fotografia – indica tam-
bém a dependência do escritor pe-
la heroína e a sua obsessão pelas
armas.
Perante a dificuldade de estabe-
lecer uma cronologia ou uma orga-
nização por grandes áreas temáti-
cas, os comissários Patricia Allmer
e John Sears optaram por pequenos
segmentos de imagens divididos em
auto-retratos, cenas de rua, interio-
res domésticos e íntimos, assem-
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14 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
William S. BurroughsA obra fotográfica de um dos ícones de beat é pouco conhecida e não se encaixa em quase nada do que se conhece em termos de estilo e género. Ou seja, para Burroughs na fotografia valia tudo. Os exercícios de corta e cola, cut-up, eram dos seus preferidos. Com eles criava fotomontagens às quais chamava “viagens no tempo”
blages, lugares em construção e
retratos, entre os quais muitos dos
seus amigos beat, Jack Kerouac in-
cluído, claro.
Muito por causa de um lado pu-
ramente utilitário com que muitas
vezes encarou a fotografia, Burrou-
ghs acabou por deixar uma obra
que foge ao cânone e que dificil-
mente se encaixa em géneros. Foi
uma ferramenta de pesquisa, mas
também foi um meio de experimen-
tação estética. Tudo sem presun-
ção, não fossem muitos os rolos
revelados em laboratórios de rua
ou onde calhasse, o que fez com
que boa parte do seu trabalho se
tenha perdido.
DKQuem parece muito mais compro-
metido com a ideia de construir
uma obra fotográfica é David Lyn-
ch. E há quem faça apostas sobre
se o realizador americano alguma
vez voltará a filmar. Parece que nin-
guém sabe bem, mas, para já, nes-
te início de 2014, tem-se dedicado
a mostrar fotografia. Antes da ex-
posição na Photographer’s Gallery,
inaugurou Small Stories, na Maison
Européenne de la Photographie,
em Paris. E ainda há criatividade
para outras artes: para o dia 15 de
Julho está agendado o lançamento
de um disco, The Big Dream. Foi
precisamente o universo das me-
mórias e dos sonhos – que tanto
povoaram a sua cinematografia –
que foi convocado para The Factory
Photographs, uma exposição que
começou em Janeiro em Londres
uma itinerância pela Europa. No
último piso da recém-inaugurada
galeria londrina, onde uma imensa
janela nos atira o olhar para uma
paisagem urbana feita de tijolos tos-
cos e linhas de arquitectura con-
temporânea, alinha-se o negrume
das mais de 80 fotografias que Lyn-
ch captou entre 1980 e 2000.
Sobre os caminhos que o realiza-
dor gosta de trilhar não há segre-
dos. Aos mundos cinemáticos sur-
reais e bizarros juntam-se agora as
paisagens fotográficas industriais
em decadência, paisagens melan-
cólicas de “catedrais assombradas
de uma era industrial extinta”. Em
imensos complexos fabris espalha-
dos por países como Alemanha,
Polónia, Nova Iorque e Inglaterra,
o olhar de Lynch concentrou-se nos
labirintos de corredores, nos ema-
ranhados dos cabos eléctricos ou
nos contra-luzes das vidraças par-
tidas. A ambição por uma unidade
temática em todo o conjunto é evi-
dente. E apesar de estas imagens
terem sido tiradas fora de qualquer
contexto de filmagens ou scouting,
o certo é que o nosso olhar já entra
nas imagens contaminado pelo uni-
verso visual fílmico lynchiano. O
que equivale a dizer que em muitas
das fotografias tendemos a ver ce-
nas relacionadas com os filmes. As
cenas de crime, violência e surrea-
lismo, tudo num tempo indefinido.
É um fenómeno que tende a des-
materializar as fotografias do reali-
zador, tornando-as menos reais do
que são. Para quem já viu algum
filme de Lynch é difícil ficar em
frente a uma fotografia desta série
e não pensar num local de filma-
gem. E isto talvez seja injusto para
o Lynch-fotógrafo e justo para o
Lynch-realizador. Em todo o caso,
é de certeza uma vitória para David
Lynch.
As fotografias de paisagem mais
abertas, as mais contemplativas e
românticas, são talvez as que mais
se distanciam de todo o universo
de Lynch para existirem apenas co-
mo fotografias. Mas até aqui uma
certa decadência dos lugares de
que o realizador gosta de fazer gala
entra em cena. “Sempre estive in-
teressado na decadência. As minhas
iniciais são DKL [David Keith Lynch]
e os meus pais chamaram-me DK
até perceberem o que estavam a
chamar-me”, contou ao jornal The
Independent no meio de uma gar-
galhada.
Em contraste profundo com as
cores berrantes dos últimos filmes,
estas fotografias a preto e branco
não conseguem fugir de uma cer-
ta banalidade dos lugares abando-
nados, onde é fácil criar sensações
e atmosferas de mistério. Mas não
deixa de ser um exercício interes-
sante começar num andar inferior
com as fotografias furtuitas, de
reacção imediata à vida quotidiana
de Warhol e acabar num dos pisos
de topo com os monstros fabris
megalómanos de Lynch. Pelo
meio, fica o frenesim criador de
Burroughs que, na fotografia, tan-
to podia ir da grandeza das cida-
des ao mais pequeno detalhe do
ser humano.
Não é (nada) seguro que alguma
destas obras fotográficas venha al-
gum dia sobrepor-se às obras irmãs
noutros suportes, filhas dos mes-
mos criadores. Certo é que, depois
destas exposições na Photographer’s
Gallery (até 30 de Março), de cada
vez que virmos ou revirmos a mes-
tria de Burroughs, Warhol e Lynch
noutras artes saberemos reconhe-
cer o léxico visual que as ajudou a
ganhar forma e fama.
Não deixa de ser um exercício interessante começar num andar inferior com as fotografias furtuitas, de reacção imediata à vida quotidiana de Warhol e acabar num dos pisos de topo com os monstros fabris megalómanos de Lynch. Pelo meio, fica o frenesim criador de Burroughs
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MUSICA.GULBENKIAN.PT
17 Fevereirosegunda 19:00h — Grande Auditório
Quarteto TakácsMarc Ramirez contrabaixo
mozartQuarteto nº 16
janácekSonata a Kreutzer
dvorákQuinteto, op. 77
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teto
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llen
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21 + 22 Fevereiro
MUSICA.GULBENKIAN.PT
21:30h — Teatro Maria Matos
The House Taken OverAsko|Schönberg Ensemble Etienne Siebens maestro
Katie Mitchell encenação
ópera de vasco mendonça
“Uma pequena obra-prima”jorge caladoexpresso
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fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºA/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt
Parque de estacionamento mais próximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31
Exposição: de 6 de Fevereiro até 22 de Março de 2014Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados)
DENTRODO DESENHORui SanchesComissário: João Pinharanda
16 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Mler Ife Dada, um dos mais criativos projectos da cultura pop portuguesa, regressa hoje aos palcos, 30 anos depois do início. A vitalidade da música caleidoscópica de Nuno Rebelo e Anabela Duarte continua intacta. Há coisas
que continuam
É esta sexta-feira que os Mler
Ife Dada, um dos projectos
mais aventureiros da histó-
ria da cultura pop portugue-
sa, regressa aos palcos, trin-
ta anos depois da estreia.
Tiveram uma curta existência de
seis anos, entre 1984 e 1990, mas o
seu lastro mantém-se. No palco do
Centro Cultural de Belém, em Lis-
boa, iremos encontrar onze músicos
liderados pelo guitarrista Nuno Re-
belo e pela cantora Anabela Duarte,
obreiros de um retorno que deseja
ir muito para além de qualquer cir-
cunstância nostálgica.
“A banda nuclear manterá a es-
sência daquilo que eram os Mler Ife
Dada, respeitando as músicas, mas
introduzindo novos detalhes”, ga-
rante Nuno Rebelo. A essência das
canções será respeitada, mas “exis-
te um expandir da paleta de timbres
e dos arranjos, com a introdução de
um trio de metais e um trio de cor-
das”, afirma.
Parte do incessante trabalho dos
últimos meses tem sido voltado pa-
ra a reescrita dos arranjos e para a
preparação de partituras. A satisfa-
ção do confronto com velhas can-
ções é que não se perdeu. “Tem sido
um prazer voltar a estar com estas
canções”, reflecte Anabela Duarte,
“renovando-as também de alguma
forma, porque os próprios músicos
nos vão transmitindo novos estímu-
los.”
“Tem sido uma alegria em cres-
cendo”, reforça Nuno, “porque ti-
vemos três fases intensivas de en-
saios. Na primeira e na segunda,
com a banda nuclear – baixo, bate-
ria, guitarra, voz e teclas – a traba-
lhar um naipe diferente de canções
de cada vez. E na terceira a trabalhar
todos os temas, com cordas e so-
pros.”
Mas não se espere, apesar do nú-
mero de músicos em palco, qual-
quer tipo de grandiosidade orques-
tral. Os arranjos “vão para muitos
lados”, tenta explicitar Nuno Rebe-
lo, “abrindo para caminhos estra-
nhos que não estavam lá, embora
existam outros numa onda meio
americana, tipo Burt Bacharach”,
exemplifica.
O retorno do projecto está a gerar
interesse, não só “junto das pessoas
que agora nos podem voltar a ver”,
conta Anabela Duarte, como junto
de pessoas mais novas “que nunca
nos viram ao vivo e que têm muita
curiosidade, ou porque ouviram os
discos, ou porque ouviram falar do
que fizemos e de como isso ainda se
conserva.”
O cinzento e o FMIOs Mler Ife Dada formaram-se a
meio dos anos 1980, vencendo o 1º
concurso do Rock Rendez-Vous, a
sala lisboeta de concertos mais em-
blemática da época. Depois de te-
rem gravado o EP de estreia (Zim-
pó) deu-se a dissolução da forma-
ção inicial, onde pontificava Nuno
Rebelo (ex-Street Kids) e na voz Pe-
dro D’Orey, que mais tarde, já nos
anos 2000, integrou os Word-
song.
Vítor Belanciano
LUÍS
A F
ERRE
IRA
a fascinar
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 17
Às tantas o vocalista partiu para
o Brasil e o projecto ficou sem voz.
O encontro entre Nuno e Anabela
viria a dar-se no contexto de um
concerto dos GNR, na qual ela tinha
uma participação vocal. O convite
para integrar o grupo deu-se e ela,
que já havia pertencido a forma-
ções como Ocaso Épico ou Bye Bye
Lolita Girl, acabou por aceitar o de-
safio, contribuindo para identidade
definitiva pela qual o grupo viria a
ficar conhecido.
Nuno Rebelo tinha estudado na
escola de Belas Artes. As suas cum-
plicidades vinham daí. Anabela Du-
arte captava uma costela artística
da cultura universitária, aplicando
teorias, formulações e delírios de
movimentos como o dadaísmo ou
o surrealismo à pop.
Dos GNR aos Pop Dell’Arte, havia
também quem fugisse aos tons cin-
zentos predominantes de então,
alicerçados nas influências de gru-
pos ingleses como Joy Division,
Echo & The Bunnymen ou The
Cure, mas eles foram provavelmen-
te os que levaram mais longe esse
lado teatralizado, delirante e colo-
rido, que contrastava com a reali-
dade política e social da época.
Hoje Portugal volta a estar embre-
nhado no negrume e Nuno Rebelo
não o esquece. “É verdade, quando
aparecemos e hoje... a situação so-
cial não é assim tão diferente. Bas-
ta pensar que estava cá o FMI.”
Em 1987 lançaram Coisas que Fas-
cinam, ainda hoje um dos melhores
álbuns portugueses, obra ecléctica,
versátil, marcada por grande liber-
dade de formas, com canções feitas
a partir de influências da pop, do
jazz, do minimalismo, do fado, do
rock ou de África, numa mistura
vertiginosa de rua e erudição.
Depois do lançamento do tam-
bém magnífico segundo álbum,
Espírito Invisível (1989), o ambiente
no projecto esmorece e Anabela
acaba por abdicar. Apesar das edi-
ções posteriores – os EPs Dance Mu-
sic e Mler Ife Dada – o grupo nunca
mais foi o mesmo e acaba por ter-
minar a actividade em 1990.
Depois do fim do grupo, Nuno
Rebelo voltou a formar outros pro-
jectos, como os Plopoplot Pot, mas
essencialmente dedicou-se à músi-
ca improvisada e experimental ou
à composição para dança ou teatro,
encetando colaborações com cria-
dores de diversas disciplinas artís-
ticas. O seu último álbum a solo,
lançado a partir de Barcelona, onde
vive desde há quatro anos, é do ano
passado e intitula-se Remove From
The Flow Of Time.
Por sua vez, Anabela Duarte teve
experiências com fado (álbum Lis-
bunah), canto lírico ou música elec-
trónica, sempre numa linha muito
personalizada. Uma das suas últi-
mas aventuras é o projecto Machine
Lyrique, espécie de teatro musical
à volta da obra de Kurt Weill e de
Boris Vian. Ou seja, depois de mui-
tos anos afastados dos universos da
pop, acabam por regressar a ela.
“Logo a seguir ao afastamento
dos Mler Ife Dada tive uma relação
de rejeição com a pop, mas na ver-
dade nunca a deixei por completo”,
emenda Nuno. “Mesmo quando
componho para teatro ou dança,
existe sempre um ou outro momen-
to nesses espectáculos que reme-
tem para esse universo. Se os Mler
Ife Dada sempre foram uma forma
de expandir o conceito da pop, a
minha vida tem sido expandir a mi-
nha experiência na música em ge-
ral.”
Já Anabela enfatiza que saiu mes-
mo da esfera da pop, mas esse fac-
to apenas contribuiu para que
“alargasse os horizontes musicais”,
aplicando-os agora neste regresso.
E não são apenas eles os dois. “Os
próprios músicos com quem esta-
mos a tocar têm proveniências mui-
to diversas - do jazz à clássica.”
Nesta fase o grupo irá contar com
Filipe Valentim (Radio Macau, Wor-
dsong) nos teclados, Samuel Palitos
(A Naifa, Radio Macau) na bateria
e Tiago Maia no baixo, em substi-
tuição de Francisco Rebelo (Orelha
Negra, Cool Hipnoise), que foi obri-
gado a deixar os ensaios. Isto, claro,
para além da inclusão do trio de
cordas e do trio de sopros. Uma no-
vidade que Nuno Rebelo remete
para a disponibilidade que o grupo
sempre demonstrou para encetar
novas experiências. “Há trinta anos
também tínhamos essa abertura a
outros recursos, como a flauta de
bisel ou o vibrafone, visível no Coi-
sas que Fascinam’.
“Nessa altura se tivéssemos aces-
so a um trio de cordas e se eu sou-
besse escrever para esses instru-
mentos provavelmente tê-lo-íamos
utilizado. Não o fizemos. Mas para
mim o estimulo para este concerto
era poder avançar para um territó-
rio destes.”
Sobre o concerto de hoje existe
uma certeza. Vai ter início com a
canção Nu ar, que esteve esquecida
praticamente desde o início da vida
do grupo, apesar de ter sido o pri-
meiro tema gravado em maqueta,
o primeiro a passar na rádio e o pri-
meiro que tocaram ao vivo. “Faz
todo o sentido apresentá-lo neste
contexto de comemoração dos 30
anos”, reflecte Nuno. “É um tema
que surgiu na primeira improvisa-
ção que fizemos, eu, o Pedro D’
Orey e o Nuno Canavarro. E a pri-
meira palavra do tema é, nem mais
nem menos, que Mler Ife Dada. A
origem do nome é essa. Depois
nunca mais o tocámos por uma
questão técnica: tinha uma sequên-
cia gravada e não tínhamos sequen-
ciador.”
Para além da interpretação de
canções como Zuvi zeva novi,
L’amour va bien, merci, Alfama, Er-
ro de cálculo, Valete (de copas) ou À
sombra da pirâmide, haverá tam-
bém uma cenografia visual, para a
qual contribuíram o arquitecto Sér-
gio Rebelo ou a designer Rita Filipe.
Será uma ocasião única, que espe-
ram repetir nos próximos tempos,
“mas não muitas vezes”, diz Nuno
Rebelo. Pelo menos é esse o dese-
jo.
“A nossa vontade é fazer alguns
bons concertos, em boas condi-
ções, com todos estes músicos”,
afirma, até porque ambos estão
convencidos que esta sexta-feira vai
ser em grande. “Estou com muita
expectativa. Deixei a minha vida
extramusical para me concentrar
nisto e acho que vai ser fantástico”,
diz Anabela Duarte. Nuno Rebelo
é mais taxativo: “Vai ser o melhor
concerto de sempre dos Mler Ife
Dada!”
“É verdade, quando aparecemos e hoje... a situação social não é assim tão diferente. Basta pensar que estava cá o FMI” Nuno Rebelo
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A HARMONIA DA COR NO BRANCO DA PORCELANA
18 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Um pequeno furacão chegou
esta semana às lojas. Não
atirou prateleiras ao chão
nem escaqueirou montras,
mas desarrumou a cabeça
de muita gente — visto ser
um objecto tão inesperado e tão in-
classificável que nem sabemos bem
o que fazer com ele. O epicentro
deste fenómeno — 8, o primeiro
longa-duração de um quarteto cha-
mado Sensible Soccers — não é Nova
Iorque, nem Tóquio, nem Berlim
nem Paris, antes Fornelo, a aldeia
nas imediações de Vila do Conde
onde a banda ensaia. E nem sequer
se pode dizer que isto seja comple-
tamente inesperado: há cerca de
ano e meio que, faixa aqui, faixa ali,
eles vinham deixando água na boca
dos mais diferentes melómanos: ge-
eks informáticos de Ponte de Lima,
professores de Tomar, ex-namora-
das de jornalistas admiráveis.
Há coisa de seis meses, veio o ca-
so que os transformou de nanoculto
cultivado nos entrefolhos da Inter-
net em miniculto cultivado em zo-
nas menos obscuras da fibra óptica:
uma simples canção, minimal e re-
petitiva, de seu nome Sofrendo por
você (um achado), com um vídeo
inesperado em que uma data de ho-
mens estranhos começam, um a
um, a dançar da forma mais esqui-
sita imaginável. Fosse do vídeo, fos-
se do tema, de repente aquela sim-
pática rede de amigos do Facebook
que nunca vimos à nossa frente não
falava de outra coisa. “Acho que nin-
guém esperava por um vídeo como
o Sofrendo por você”, reflecte Edu-
ardo, baixo e guitarra do quarteto.
“Um plano fixo feito com câmaras
dos anos 1990 e aquelas persona-
gens incomuns em frente a uma fá-
Em menos de um ano, os Sensible Soccers geraram seguidores indefectíveis e um universo em que dança, rock, funk e música atmosférica batem certo. Mas bonito, bonito era penetratrem no mainstream.
João Bonifácio
Penetrando por você
RIC
ARD
O A
LMEI
DA
brica abandonada na estrada nacio-
nal para a Trofa.” Escrito e realizado
por Hugo (teclados e programa-
ções), feito com material gentilmen-
te cedido, com amigos a dançar e a
banda a ajudar nas gravações, o ví-
deo de Sofrendo por você repete uma
constante do percurso dos Sensible
Soccers: eles fazem tudo, mas sem-
pre com tudo emprestado.
Quatro amigos de infância que
sempre sonharam em conjunto atin-
gir o estrelato pop, portanto? Nem
por isso: Eduardo, com quem falá-
mos ao telefone, e Filipe (guitarra)
são de São João da Madeira, Hugo e
Né (vozes, instrumentação vária)
são de Vila de Conde. Cada um mo-
ra numa terra diferente, daí Forne-
lo como quartel-general: fica a meio
do caminho. Eduardo e Filipe são
“amigos de adolescência”, Hugo e
Né também; entretanto, Eduardo
foi para Coimbra e aí conheceu Hu-
go, com quem começou a passar
música na RUC, uma entidade de
serviço público que merecia um par
de comendas. Por fim, os dois pares
de amigos tornaram-se os Sensible
Soccers: “Nós existimos como ban-
da mais ou menos a sério desde
2010 — mas a ideia vinha de 2008 e
o nome já estava escolhido. O Hugo
tinha começado a brincar com o
computador, fez umas demos e pe-
diu para eu acrescentar baixos e
guitarras. Como o Filipe tinha um
estúdio no Centro Comercial Stop
[no Porto], começámos a ensaiar lá
e acabámos em quarteto.”
Mas estas amizades não são fun-
dadas nas oh tão lindas memórias de
juventude. O que une os Sensible
Soccers é a paixão irreprimível pela
música: “Quando conheci o Hugo ele
estava a passar o Blue monday. Fui
logo falar com ele”, explica Eduardo.
É mesmo isso: estes moços são “to-
linhos da música”, aquele tipo de
rapazes com quem se pode discutir
um tema de blues de 1945 ou aquele
single disco obscuro da década de
1970. “Gosto de coisas muito diver-
sas, sim: gosto dos Konk, adoro a
cena noise de Nova Iorque. Gostamos
de hip-hop, de William Basinski, dos
Stereolab — muita coisa.”
Vontade de fazerEssa muita coisa nota-se na salga-
lhada que é 8, um disco que, para-
doxalmente, consegue manter coe-
rência apesar de disparar em várias
direcções: há órgãos planantes que
lembram os Tangerine Dream, funk
branco, e, acima de tudo, canções
que ecoam a célebre exigência de
Martin Hannett, produtor dos Joy
Division, ao baterista da banda:
“Play faster, but slower”. Tudo nos
Sensible Soccers parece ser tocado
devagar, por entre névoas de mari-
juana; quando se dá por ela, há MD-
MA na língua e o corpo mexe e re-
mexe.
“Confesso que não sei bem que
[tipo de música] temos vontade de
fazer. Sei que é um cliché, mas aci-
ma de tudo temos vontade de fazer
música. É claro, por exemplo, que
todos temos uma ligação à canção
tradicional, mas até ao momento
não é algo que tenhamos feito. Fo-
mos mesmo experimentando de
forma inconsciente e isso leva-nos
a fazer coisas muito diferentes”, di-
zem. Essa diferença nota-se, por
exemplo, do disco para os concer-
tos. “Ao vivo somos uma banda mais
directa e mais intensa. No disco tam-
bém há vontade de fazer dançar,
mas ao vivo gostamos mesmo de ver
pessoas a mexerem-se à nossa fren-
te — as pessoas trazem um apelo
mais físico à música.”
E se ao vivo as pessoas podem ex-
perimentar os inimitáveis passos de
dança das personagens do vídeo de
Sofrendo por você, em disco não — a
canção, que é, até ao momento, o
maior êxito dos Sensible Soccers fi-
cou de fora, o que deixou abismados
os, vá, 500 fãs da banda (ou mais:
eles têm culto na Galiza e este Verão
darão concertos fora da península
Ibérica). “Algumas pessoas pensam
que não pusemos o tema no disco
por birra em reacção ao reconheci-
mento que teve, e sei que é estranho
ter ficado de fora, mas nunca esteve
previsto que entrasse no álbum. Ali-
ás, o simples facto de existir é quase
um milagre: começámo-la há dois
anos e meio, demos-lhe muitas vol-
tas e quando finalmente encontrá-
mos um registo de que gostámos
pusemo-la cá fora. Mas nessa altura
o disco já estava gravado”, justifi-
cam. E não vale a pena sofrer por
uma canção ficar de fora quando há
outras melhores lá dentro: seja a
dança sintética de Sob Evariste Dibo,
o proto-funk de Manuel, a melodia
de Ulrike, house e shoegazing, tudo
na Moulinex até ficar um todo uni-
forme.
“Não somos uma banda para pe-
netrar no mainstream”, reflecte
Eduardo, “mas rapidamente tive-
mos seguidores. Éramos muito frá-
geis ao vivo, mas sentimo-nos muito
acarinhados e fomos avançando e
experimentando”. E é isso que a
melhor coisa que aconteceu na mú-
sica portuguesa desde a reforma de
B Fachada vai continuar a fazer: ex-
perimentar por você, penetrar por
você.
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 19
Há um efeito de suspensão
na música de Agnes Obel.
Fechada num pequeno es-
túdio em Berlim, a cantora
dinamarquesa passa dias
a tentar cortar toda a co-
municação com o mundo para po-
der dedicar-se a obsessivamente a
cada canção. Lá fora, as ruas en-
chem-se, os bares deitam gente pe-
las costuras, copos e garrafas esti-
lhaçam-se no passeio e manda a
socialização. Mas o motivo de Obel
é exactamente contrário. É o do re-
colhimento, o de soltar todas as
amarras para poder regressar ao
espaço da infância. Cada canção,
admite, é uma recriação possível,
uma tentativa de acesso a essas me-
mórias longínquas. Como se tentas-
se desenhar num papel a mobília da
sala de então, como se fizesse um
esforço por recuperar diálogos com-
pletos ouvidos em família, como se
agarrar esse tempo já desaparecido
fosse uma maneira de não ser arras-
tada pela marcha terrível do presen-
te. As memórias, claro, primam por
falsear os factos. Mas para que inte-
ressam os factos se o que há são,
precisamente, as memórias?
“Muitas melodias que me atraem
e de que tenho tendência para gos-
tar vêm da minha infância, ligam-se
àquilo que ouvi em criança”, conta
a cantora. “É como se fosse uma
mistura crua de tudo quanto ouvi
nessa altura, da música clássica fran-
cesa ao jazz sueco e a velhas canções
tradicionais. E está tudo tão lá atrás
que nem consigo distinguir clara-
mente na minha cabeça o que é es-
sa música.” As certezas resumem-se
a um par de recordações soltas:
lembra-se de tocar em casa algumas
peças de Debussy e canções tradi-
cionais de origem dúbia; e de a sua
mãe interpretar Ravel quando se
sentava ao teclado. Tudo isto apon-
ta no mesmo caminho: as canções
de Agnes Obel constroem-se em tor-
no de um método regressivo que
bem podia chamar-se psicanálise.
Mas esses ecos, clínicos, com dema-
siadas implicações, já não interes-
sam ao desprendimento que preten-
de imprimir à sua música.
Este método — do qual confessa
que “seria muito difícil sair, mesmo
que o quisesse fazer” — vem acom-
panhado de uma necessidade de li-
bertação e de não querer dar um
nome às coisas. Daí a ideia de que a
procura teria de fazer-se não numa
contemporaneidade excessivamen-
te compartimentada em milhentos
minúsculos subgéneros, mas em al-
go que estivesse incrustado bem
mais fundo. “Antes de trabalhar nas
minhas coisas a solo tocava em ban-
das e aí era tudo muito focado no
estilo e no tipo de som”, diz, identi-
ficando aquilo de que queria afastar-
se com quantas forças tivesse. “Por
isso, quando comecei a trabalhar
fervorosamente nas minhas compo-
sições, quando percebi que queria
fazer um disco que fosse meu, deixei
de pensar nesses termos, deixei-me
de géneros.” Escolheu então privi-
legiar uma relação intuitiva com as
melodias, criando um contexto men-
tal eventualmente falacioso mas que,
ainda assim, indicasse um cami-
nho.
A inscrição consciente num géne-
ro, no entanto, teria a vantagem de
balizar a criação de Agnes Obel, ga-
rantindo uma segurança natural.
“Só que não estou a mimetizar como
na música pop, sou mais livre neste
projecto, que é conceptual por ter
a ver comigo, com as minhas ori-
gens, com o sítio de onde vim, e tor-
na tudo mais pessoal.” A sua recusa
implicou ter de assumir que, para
todos os efeitos, a matéria-prima a
esculpir seria ela própria.
Berlim ajudou-a igualmente a
sentir-se livre para levar até ao fim
a transformação que resultou pri-
meiro na música de Philharmonics
e agora no mais assertivo Aventine.
Na Dinamarca “há menos espaço e
é tudo muito perfeito e imutável”,
afirma em tom de queixa. “Em Ber-
lim há muito espaço, não me sinto
confinada nem cercada. E há muitos
sítios em transformação, é fácil sen-
tirmos que podemos chegar e per-
tencer, há espaço para mudança.”
Bailarinos no céuO fascínio de Agnes Obel pelo pas-
sado não se limita às suas próprias
e falíveis memórias. Por vezes, é
mesmo olhando para obras passa-
das que consegue ficar em paz com
as canções em que trabalha. Exem-
plo perfeito disso mesmo é Dorian,
tema incluído em Aventine — e total-
mente desligado de qualquer asso-
ciação à personagem de Oscar Wil-
de. Obel andava pouco satisfeita
com o tema, mas era incapaz de
identificar a origem do desconforto.
Até que o namorado, o fotógrafo e
realizador de cinema de animação
Alex Brüel Flagstad, decidiu, ao pes-
quisar imagens para o vídeo de The
curse, preparar uma brincadeira
com Dorian, justapondo a canção
às imagens de The Very Eye of Night,
o filme da cineasta experimental
russo-americana Maya Deren, de
1958, em que bailarinos da Metro-
politan Opera dançam sobre um
tapete que é, na verdade, um céu
estrelado. Ao trocar a composição
original de Teiji Ito pela canção de
Agnes, as imagens abandonaram a
estranheza e o mistério, e carrega-
ram-se de um onirismo que parece
feito à medida.
“Foi realizado nos anos 50 mas pa-
rece muito moderno e muito antigo,
ao mesmo tempo”, conta em claro
modo de elogio. “Tem um tempo pró-
prio”, reforça. As imagens mostra-
ram-lhe, na altura, que a canção de-
via, afinal, permanecer intocada. O
desconforto passou assim que perce-
beu a beleza potencial daquilo que
tinha registado na pré-produção. Até
porque a cantora/pianista dinamar-
quesa gosta de alçapões secretos,
sentidos ocultos, ligeiras insinuações
de que sob o rio da normalidade cor-
re algo de mais inquietante. Daí que
se refira às canções de amor dos anos
50 e 60 como “uma porta de acesso
ao surreal”. “Nalgumas dessas can-
ções vejo um elemento sombrio mis-
turado com toda a toada fantasista
— porque as fantasias são um escapis-
mo e uma atracção pelo desconheci-
do, pelo mistério”, justifica.
Isso diz-nos o porquê de Agnes
Obel gostar de espreitar para trás da
cortina ou por baixo do tapete, ten-
tando encontrar o que há de pertur-
bador disfarçado na sombra do be-
lo. “Nem tudo está bem, habitual-
mente”, conclui. “E é essa aparência
de que sim que torna tudo quase
assustador.” E isso é válido também
para as suas canções? “Espero que
sim”, responde. E, em seguida, con-
ta-nos uma história. A história de
como os instrumentos podem pro-
duzir sons diferentes daqueles para
os quais foram criados, de como um
violoncelo pode muito bem levar
pancada para marcar o andamento
das suas delicadas autorias e de co-
mo, acima de tudo, estas lhe são
preciosas. Agnes, autora de canções
quase virginais, era capaz de coisas
feias se alguém lhes fizesse mal.
Ver crítica de discos pág. 26 e segs.
Agnes Obel, cantora dinamarquesa a viver em Berlim, faz no encantador Aventine uma viagem à infância que só por acaso não toma acidentalmente a saída da psicanálise. Olhando com atenção, podemos avistar uma inquietação a pulsar sob a superfície deste disco.
Gonçalo Frota
Não queiram fazer mal a estas canções
20 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Deixemos de dizer “nós” pa-
ra falar daquele que vemos
em palco. Acabemos com
a ideia de que esse corpo
pode ser o nosso, de que
aquela música pode ser o
compasso da nossa respiração e de
que aquela luz é a fronteira que os
nossos sentidos delimitam. O que
tem feito as delícias do discurso so-
bre a dança contemporânea e os
truques que se têm usado para, em
vez do corpo se falar em espaço, em
vez de movimento se falar em tempo
e em vez de coreografia se falar em
naratividade, caem por terra em
Grind. Mea culpa. Seria mais fácil
voltar a repetir esse jargão tornado
científico do que olhar de frente pa-
ra o que o palco negoceia em dar a
ver, do que aceitar que, em Grind,
tudo isto podia ser verdade se não
fosse uma ilusão e um truque. Mais:
um dispositivo e um mecanismo fic-
tício criado pelas brilhantes mentes
de Jefta van Dinther (coreografia),
Minna Tiikkainen (desenho de luz)
e David Kiers (paisagem sonora).
Apresentação única hoje, no Centro
Cultural Vila Flor, Guimarães, no 6º
Festival Internacional de Dança Con-
temporânea, que assistirá à estreia
em Portugal do trabalho no novo boy
wonder da dança contemporâna eu-
ropeia.
“Se olhar à volta e começar a ten-
tar perceber o que me associa a ou-
tros criadores, o que percebo é que
é a falha, o vazio, o que falta, que
me move.” “Nós, consumidores da
criação contemporânea”, começa
por dizer, mas rapidamente corrige
reconhecendo que a inventividade
que lhe é apontada decorre de uma
saturação do discurso sobre um mo-
vimento potencialmente conceptu-
al e de uma ideia de presença em
palco que quase tende a esquecer o
que se está a ver. Assim, Grind, que
se pode traduzir por “esmagar”. é
um exercício de tal modo violento
que, no seu aparente minimalismo
estético, dir-se-ia até, por força da
sua expressividade falsamente mo-
nótona, destrói, como uma implo-
são, a consciência dos que nela qui-
serem tomar parte.
É uma experiência. Uma experi-
ência sensitiva, física, violenta, que
força o que é inorgânico a experi-
mentar uma estrutura, que coloca
o corpo em estado de alerta e que o
abandona à sua sorte. “É tudo isso”,
diz Van Dinther, “e é também um
desdobramento contínuo que pro-
duz uma reflexão sobre a falha e a
perda e assume, sem pudor, a ence-
nação da sua própria finitude”. É um
auto-retrato em composição, diz,
“excitado” com a própria ideia de
destruição.
Trabalho de exclusãoHabita Grind - mas na verdade todo
o trabalho de Van Dinther (seis co-
reografias em menos de dez anos)–
uma exploração daquilo que é da
ordem do sensível e sensorial. Como
se o movimento não existisse senão
como construção emocional. Ele
chama-lhe “o diálogo entre a matéria
e o material” e, no vai-e-vem de pos-
sibilidades de leitura que um discur-
so coreográfico assente na interpe-
lação ao real possa ter, o que vai
sedimentando esse discurso é um
exercício de exclusão não apenas do
que é acessório mas também do que
parecia ser evidente e funcional. “O
meu trabalho é, absolutamente, um
trabalho de exclusão”, assume. “É
mais até, é um trabalho que se recu-
sa a ceder ao próprio processo e ao
entusiasmo primário que a experi-
ência possa provocar. Mas não é por
isso que não é um trabalho intuiti-
vo”. Escreveu Anna Ångström no
jornal Svenska Dagbladet, na estreia:
“Mesmo que seja abstracto, Grind
potencia fortes reacções físicas, as-
sociações de imagens e, muitas ve-
zes, desconforto. Por um lado pare-
ce sugerir uma violência distópica
relacionada com uma contempora-
neidade em estado bruto. Por outro,
parece uma tentativa para, ‘espec-
tacularmente’, alterar a nossa forma
de sentir e perceber [o que nos en-
volve]”.
Thiago Granato, que co-assinou
com Van Dinther a peça que se se-
guiu a Grind, This is concrete, fala de
um “equilíbrio desconcertado” para
descrever o modo de construção de
um movimento absolutamente auto-
fágico. “A tentativa de sincronização
dissonante [promovida] pelos três
elementos – movimento, música e
luz – estimula um determinado tipo
de percepção no espectador. Esta
Tiago Bartolomeu Costa
Auto-retrato em
composiçãoFulgurante estreia do sueco Jefta van Dinther, boy wonder da dança contemporânea europeia que assina, com Grind, um dos melhores espectáculos dos últimos anos. Hoje, em Guimarães.
VIK
TOR
GA
RDSA
TER
VIK
TOR
GA
RDSA
TER
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 21
sincronia entre os diferentes ele-
mentos no palco também existe en-
tre a cena e o espectador”, diz o
coreógrafo falando de uma vibração
que obriga a uma reacção, a uma
resistência que o (nos) levará a tor-
nar-se cúmplice da própria peça.
É através da duração e da exten-
são do movimento que o corpo vai
permitindo a repetição em loop de
certas frases. E, num acumular de
justaposições, o movimento começa
a surgir já não como material inor-
gânico mas como um fluxo contínuo
que transfere do movimento para a
música, da luz para a definição do
corpo, uma coreografia que anula
qualquer fuga.
A ilusão de tudo poderHá uma angst, um mal-estar, uma
insatisfação em Jefta van Dinther
que o faz recusar a formatação de
um discurso que espera por uma
dança que satisfaça a ambição da
transcendência. A sua é, ao contrá-
rio, uma dança que se quer enraizar,
o mais fundo possível, num mapa-
corpo emocional e investigar modos
de protecção de um contexto – po-
lítico, social, analítico – que pede ao
corpo que seja mais do que apenas
receptáculo. E não há nada que Jef-
tha van Dinther goste mais do que
explorar o corpo a partir do que lhe
é intrinsecamente frágil: a ilusão de
tudo poder.
“De forma engenhosa, van Din-
ther transforma a sua coreografia
minimalista e repetitiva de modo a
que a mais discreta mudança ganhe
importância. Por vezes o movimen-
to atinge uma carga que lhe é fatídi-
ca, como se o que acontecesse em
palco fosse uma alegoria da luta do
homem moderno no interior de
uma realidade altamente comple-
xa”, escreveu o jornal online sueco
Nummer, em 2011. A esta possibili-
dade de leitura no palco de reflexos
directos da vida quotidiana van Din-
ther reage com sentimentos contra-
ditórios. Primeiro a surpresa e, de-
pois, a credulidade. “Não quero
forçar uma leitura do meu trabalho
que sujeite o espectador a compor-
tar-se, ou a reagir a ele, do mesmo
modo que eu porque, de facto, es-
tamos em campos diferentes. Mas
se a percepção que eu imagino que
se possa ter vai ao encontro de uma
que eu poderia ter como especta-
dor, por outro lado imagino que
isso diga muito mais respeito à pes-
soa em causa do que ao que o es-
pectáculo possa surgir”. Mas as re-
acções têm sido assim, viagens men-
tais que levantam questões
pertinentes – ou tão pertinentes co-
mo as que em comum possam ser
levantadas por um espectáculo que
é uma viagem individual. “Fico mui-
to entusiasmado quando escolho
uma direcção que não sabia mas,
no fim, sou só humano, e acabo por
ir ao encontro de coisas que já re-
conhecia. A explicitação de uma
ideia não deveria ser, em si mesma,
suficiente para me fazer acreditar
que esse é o caminho. Gosto do que
tudo o que possa ajudar a construir
uma ideia de conjunto mas não gos-
to de uma ideia de conjunto que
seja harmónica”.
A duração de Grind – 45 minutos
– permite admitir que Jefta van Din-
ther reconhece que o tempo solici-
tado para uma presença deve ser
menor do que o tempo imaginado.
“O corpo experimenta sensações
diferentes conforme é, ou não, su-
jeito a situações de confronto. Em
Grind o meu próprio corpo reage a
estímulos que não posso prever, que
surgem do que possa estar a pensar
naquele momento e que são, na ver-
dade, reacções a relações que esta-
beleço com o próprio tempo que
passei a viver esta peça”. E é então
que se revela: Jefta van Dinther está
apaixonado. Tem poucos dias mas
já faz de tal modo parte da sua per-
formance que esta noite, em Guima-
rães, se olharmos atentamente para
o momento em que ele leva as mãos
ao rosto vamos poder sentir o que
ele sente: o cheiro do sexo que teve
há dias e que, sem pudor, nos conta
em pormenor, como se quisesse par-
tilhar a sensação de redescoberta
do seu trabalho nesse detalhe da sua
vida íntima. O exemplo que nos dá
para nos aproximar da descarga de
adrenalina que é Grind, deixa-o tam-
bém a ele mais próximo não tanto
da estreia, em 2011, mas do proces-
so de descoberta de uma coreogra-
fia que se revela como um território
exclusivo e onde o corpo é só um
ponto de questionamento.
Há uma angst em Jefta van Dinther que o faz recusar a formatação de um discurso que espera por uma dança que satisfaça a ambição da transcendência
Jefta van Dinther está apaixonado. Esta noite se olharmos para o momento em que ele leva as mãos ao rosto vamos poder sentir o que ele sente: o cheiro do sexo que teve há dias
Informações 21 790 51 55 · [email protected] · www.culturgest.ptTicketline Reservas e informações: 1820 (24 horas)��·��Pontos de venda: Agências Abreu, Galeria Comercial Campo Pequeno, Casino Lisboa, C.C. Dolce Vita, El Corte Inglés, Fnac, Megarede, Worten e www.ticketline.sapo.pt
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Day For Nightde Cão Solteiro & André GodinhoTEATRO DE SEG 17 A QUA 19 DE FEVEREIRO · 21H30 · 12€ · M12
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Economia: uma ciência que transforma o mundo?por José Castro CaldasCONFERÊNCIAS TERÇAS 4, 11, 18, 25 DE FEVEREIRO · 18H30 · ENTRADA GRATUITA
18 de fevereiro A Economia e a Grande Recessão 25 de fevereiro Outras Economias
Festival RESCALDOTEATRO DE QUI 20 FEVEREIRO A SÁB 1 MARÇO · 21H30 · 6€ (PREÇO ÚNICO DIÁRIO) · M3
Produção Culturgest�/�Trem Azul Comissário Travassos Qui 20 fevereiro 10 000 Russos; The Jack Shits Sex 21 fevereiro Nuno Rebelo; Rodrigo Pinheiro�/�Thomas Lehn Sáb 22 fevereiro Tiago Sousa�/�Maria Leite; Eduardo Raon�/�Tomaž Grom Qui 27 fevereiro Simão Costa; Sturquen; Fat Freddy Sex 28 fevereiro Nuno Aroso; Peixe Sáb 1 março Kilimanjaro; Vitor Rua Dj Set De 20 fevereiro a 1 março Exposição de Ilustração de Amanda Baeza
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22 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Sofia Lorena
do futuro A caminho
Morte, perda, determinação e esperança. Foi isso que três jovens jornalistas portugueses encontraram na Estrada da Revolução, conjunto de reportagens, livro e um documentário que estreia esta semana.
A mãe de dois líbios assassinados na pior das prisões de Muammar Khadafi fotografada no memorial aos mártires. João Fontes (em primeiro plano) e Tiago Carrasco, os autores do filme que acaba de estrear, durante a viagem
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 23
Mohammed Ali encontrou
aconchego longe de casa
e fez das fotografias dos
mártires e dos familiares
que os choram a sua nova
família. A morada é um
antigo tribunal de Bengazi, capital
da revolta líbia, tornado memorial
das vítimas, Prédio da Liberdade.
Hamza Zinoubi continua a não ter
dinheiro nem expectativas de uma
vida diferente. Foi na sua cidade que
tudo começou e é mesmo ali que me-
nos parece ter acontecido. Moham-
med Draz não tem casa e escolheu
viver na Tahrir do Cairo. Enquanto
ali estiver, a revolução continua e
tudo faz mais sentido.
Há mortos aqui, mesmo se nunca
vemos os seus corpos, tantos, tantos
mortos. Há desesperança. Mas há
mais vida e futuro, mesmo se esta
gente parece presa ao presente. Cada
um à sua maneira, estes jovens são
guardiões da revolução e do que há-
de vir.
A Síria também cá está e na Síria
é tudo diferente. Homens e mulhe-
res decidiram resistir porque não
lhes resta outro caminho e a vida
agora é defender a revolta com a
vida ou morrer a tentar.
Tiago Carrasco, João Fontes e João
Henriques quiseram perceber como
é que começa uma revolução. Parti-
ram de Lisboa um ano depois das
primeiras manifestações em Sidi Bou-
zid, cidade perdida do Centro da Tu-
nísia, a mesma onde Hamza Zinoubi
compra T-shirts largas no mercado
para depois as apertar e revender a
jovens como ele, que querem sentir-
se na moda, como quase todos os
jovens em todas as cidades do mun-
do. É o mesmo mercado onde Moha-
med Bouazizi vendia legumes até ao
dia em que se imolou pelo fogo. Os
três portugueses, todos então com
menos de 30 anos, voaram até à Tur-
quia e daí seguiram, sempre de trans-
portes públicos. Passaram por países
onde caíram ditadores, como a Tu-
nísia e o Egipto, foram à tragédia da
Síria, ao vizinho e protectorado his-
tórico Líbano, visitaram monarquias
do Golfo onde os regimes tremeram
e ficaram, como a Jordânia. Pelo ca-
minho, perceberam que as revolu-
ções começaram mas estão por ter-
minar, todas. E ninguém melhor do
que os dois Mohammed, o líbio e o
egípcio, para nos dizer isso mesmo.
“Junto das populações, apesar de
se sentir alguma decepção com a
realidade, com o que não aconteceu
como se queria, ficou a impressão
de que é possível fazer cair um dita-
dor”, diz o repórter de imagem João
Fontes. “Isso acaba por dar àquelas
pessoas um poder de que nós esta-
mos arredados”, completa o repór-
ter Tiago Carrasco.
Poder e esperança. “Fazia-me fal-
ta sentir essa esperança, essa deter-
minação, essa capacidade das pes-
soas de se juntarem e de levarem
essa determinação até ao fim, até
que ela tenha consequências”, diz
o escriba do grupo. “Deixar de ouvir
a frase ‘Não me vou manifestar por-
que isso não vai mudar nada’ e subs-
titui-la por ‘Vou-me manifestar e vou
mudar tudo’.”
De novo em viagemA conversa acontece por Skype. Lis-
boa, do lado de cá; do lado de lá, o
hall não muito iluminado de um ho-
tel perto de Lucknow, capital do
Uttar Pradesh, um dos mais pobres
e conservadores estados da imensa
Índia. É lá que Tiago Carrasco e João
Fontes acordam por estes dias. Com
o fotógrafo João Henriques já foram
“até lá abaixo”, de carro por África
até ao mundial de futebol da África
do Sul, em 2010, e lançaram-se na
estrada das revoluções. Agora, Tia-
go Carrasco e João Fontes, os auto-
res do documentário que esta sema-
na estreou, puseram-se de novo a
caminho para filmar a vida das ado-
lescentes que integram as Red Bri-
gades, milícias populares que patru-
lham as ruas e protegem as indianas
de potenciais violadores.
Tal como aconteceu nos projectos
anteriores, este pode ir sendo acom-
panhado no Facebook (The Red Bri-
gade Project), ao mesmo tempo que
ainda decorre uma campanha para
financiar a edição do documentário
Até Lá Abaixo (ifundnews.com/pt/
atelaabaixo). Estas viagens fazem-se
mas fazem-se com os tostões conta-
dos. No caso da Estrada da Revolu-
ção, somando o dinheiro do sema-
nário Sol, onde foram publicando
reportagens, ao adiantamento do
livro (Oficina do Livro) e ao investi-
mento da BeActive (a produtora que
assina a edição do documentário),
os três jornalistas partiram com 33
euros por dia cada. A aventura fez-se
– e ganhou o Prémio Gazeta de Mul-
timédia – mas só graças ao engenho
e à hospitalidade árabe.
“Nós já viajámos muito, atraves-
sámos África. Somos abertos e esta-
mos habituados a outras culturas”,
diz João Fontes. Mas isso não impe-
diu o embate com o mundo árabe e
muçulmano, que quase desconhe-
ciam. “A maioria dos meus amigos
não são religiosos e o islão é uma
religião muito diferente da que nos
rodeia”, continua. É, em vários des-
tes países a religião está por todo o
lado, entra-nos pelos ouvidos – “so-
mos constantemente absorvidos
pelos sons das mesquitas” – e inva-
de-nos a vista. Vemos o que estamos
à espera de encontrar e depois so-
mos obrigados a olhar outra vez. “Os
salafistas, os homens barburdos, a
televisão mostra sempre os terroris-
tas com estas barbas grandes... De-
pois, conversamos com eles e as
impressões vão mudando. Eu até
deixei crescer a barba.”
Estas revoluções foram feitas por
homens e por mulheres, mas há mais
homens neste documentário, muito
mais homens do que mulheres. Faz
sentido. Em poucos dos sítios por
onde passaram teria sido possível a
três jovens portugueses chegarem à
proximidade que alcançaram com
os protagonistas desde filme se eles
fossem mulheres. “Combinámos vá-
rias entrevistas com mulheres, na
Síria, na Jordânia, mas elas vieram
acompanhadas por homens, não es-
tavam à vontade, não seria a mesma
coisa”, diz João Fontes.
São poucas as mulheres com direi-
to a papel próprio aqui, mas não nos
esquecemos delas. Saímos da sala e
continuamos a ver a silhueta da mãe
dos dois presos de Abu Salim, centro
de detenção sinónimo de tortura e
de morte na Líbia de Muammar Kha-
dafi. Imaginamo-la velha e cansada,
atrás da túnica branca que segura
para tapar o rosto enquanto sustém
a fotografia dos filhos perdidos. Saí-
mos da sala e continuamos a ver o
rosto de quem aceitou a realidade
impossível de ver morrer um filho
porque “ele percebeu melhor do que
eu e eu percebi que eu estava erra-
da”. Najwa Karam disse ao filho que
não lhe perdoava se morresse. “Não
estou zangada contigo”, sussurou-
lhe, já na morgue.
As duas mães são visitas do tribu-
nal onde Mohammed Ali dorme, que
mantém limpo com um cuidado ex-
tremo e onde faz sites com listas dos
desaparecidos do regime derrubado
e da luta que acabou com a sua mor-
te. “Quando alguém sente saudades
de uma pessoa vem cá falar com ela”,
diz, rodeado de fotos de mártires. O
guardião dos mortos fala na “vergo-
nha em expressar sentimentos” como
a saudade na cultura líbia e nós pen-
samos que é tão bom que ele exista
e esteja ali, para aquelas famílias. “Es-
te lugar tornou-se na minha casa.
Sentes mesmo que há vida, é sim-
ples.”
Um amigoJoão Fontes e Tiago Carrasco estão
muito longe de Bengazi e do Cairo,
mas não esqueceram os protagonis-
tas das revoluções que tanto quise-
rem testemunhar. Os desertores e
civis tornados rebeldes na província
síria de Idlib, por exemplo. “’Quando
Bashar cair quero regressar a Binnish
para festejar com vocês’, disse o Fon-
tes. ‘Depois, vocês visitam-nos em
Lisboa e vamos divertir-nos à gran-
de’”, lê-se no livro de Tiago Carrasco.
“‘E íamos beber cerveja, dançar e
beijar mulheres em Portugal?!’, ex-
clamou Wassim. ‘Gostava muito. Mas
sabes, tenho a certeza que vou mor-
rer nesta revolução. Todos temos
essa certeza.’” A Síria, diz o jornalis-
ta, “vai continuar a piorar”. Sim, to-
dos temos essa certeza.
Os dois portugueses não esquecem
ninguém, mas têm preferidos e eles
estão no filme. “O Hamza, tunisino,
pela proximidade de idades. Mas
principalmente o Mohammed Draz”,
diz João Fontes. “Sim, o Draz”, inter-
rompe Tiago Carrasco. Na Tahrir a
fervilhar de protestos permanentes,
a certa altura os radicais salafistas
invadiram um palco de manifestan-
tes liberais e o jovem egípcio acabou
acusado de ter roubado a câmara dos
portugueses. “Quando chegámos à
esquadra ele estava quase a ser pre-
so. Tivemos de explicar que ele não
nos tinha roubado a câmara, que era
nosso amigo”, conta o jornalista. E
era. “No domingo de Páscoa, ficamos
sem dinheiro. E foi o Draz, que era
um sem-abrigo, que nos emprestou
dinheiro para comer.”
Tiago Carrasco e João Fontes que-
riam muito saber de Mohammed
Draz mas nunca mais conseguiram
contactá-lo. Já do tunisino continuam
a receber notícias. No filme, são dele
as frases mais desesperançadas. É
ele que sente que afinal nada mudou,
veio “a liberdade” mas ficaram por
vir “as oportunidades” e ele, que tem
sonhos de uma vida bem diferente,
não sabe se vai aguentar. Já passaram
uns anos. No fim do filme, ficamos a
saber tudo o que os autores sabem
sobre o que aconteceu a estas pesso-
as. Hamza Zinoubi está feliz e encon-
trou mesmo outro caminho.
Ver crítica de filme págs 24 e 25
“Fazia-me falta sentir essa esperança, essa determinação, essa capacidade das pessoas de se juntarem e de levarem essa determinação até ao fim, até que ela tenha consequências”, diz Tiago Carrasco
24 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
claro, perder-se-iam, ou não se
revelariam da mesma maneira, as
alusões ao magno tema do filme,
“o papel da tecnologia na vida
contemporânea”. Não que Jonze
tenha algo de muito inovador a
dizer ou a mostrar: apenas que a
ilusão do contacto tomou o lugar
do verdadeiro contacto (os planos
das ruas, toda a gente sozinha,
sem ver ninguém, concentrada
nos auscultadores ou nos ecrans
dos telefones), e que tudo
funciona em falsidade e
substituição, entre os jogos de
realidade virtual e as cartas
fictícias que são o ganha-pão do
protagonista. O fundo “poético”
do filme não é mais do que isto,
um lamento pesaroso, sonâmbulo
e sentimental pelo avanço da
solidão na Humanidade. Já os
vimos mais poderosos, mais
ferozes, com menos ganga.
Dizer isto – que o filme é
decepcionante,
independentemente das suas
premissas ou conclusões – não é
dizer que seja para deitar fora.
Joaquin Phoenix, por exemplo, é
impecável, aguentando o filme,
sempre em modo deprimido e
reprimido, a falar com ecrãs e em
diálogos “imateriais”. Há alguns
flashes da imaginação delirante
de Spike Jonze, e sobretudo do
seu sentido de humor. Mas
apenas uma única cena capaz de
condensar e materializar os
fantasmas que o filme
timidamente convoca: aquela em
que o “sistema operativo”
encontra um corpo humano para
o substituir, para uma espécie de
bailado de acasalamento
estranho, assombrado e
“diferido”, onde o movimento e a
coreografia lembram algumas
coisas dos melhores telediscos de
Spike Jonze.
Tropa de lata
Robocop
De José PadilhaCom Joel Kinnaman, Gary Oldman,
Michael Keaton, Abbie Cornish
mmmmm
O cinema americano continua a
sua grande aventura na auto-
reciclagem: agora é a vez de
Robocop, decalcado do original
assinado por Paul Verhoeven no
final dos anos 80, entretanto
tornado “objecto de culto”. Para
este reboot de Robocop (agora diz-
se assim, talvez porque soe mais
moderno do que remake) os
produtores decidiram-se pela
contratação do brasileiro José
Padilha, autor do polémico Tropa
de Elite e respectiva sequela, que
assim passa, portanto, do “Bope”
(o corpo especial da polícia
brasileira retratado nesses
filmes) ao “robocópe”.
Alguma ironia haveria na
escolha, ou então total ausência
dela, porque Tropa de Elite, no
fundo, era a declinação realista
do mesmo tipo de fantasia
securitária desenhado em
Robocop, embora Verhoeven
fosse, obviamente, muito mais
sofisticado e mordaz a lidar com
as ambiguidades políticas
inerentes.
Com as ambiguidades politicas
inerentes e com o resto: o
Robocop de Padilha é um remake
escanzeladíssimo do original,
absolutamente “normalizado”,
“standardizado” mesmo, para se
confundir com a cartilha do filme
de super-heróis que parece ser
neste caso o único horizonte.
Uma das coisas mais fortes da
recordação do filme de
Verhoeven era a maneira como
criava uma sensação de caos,
de caos social e de caos
politico, que inquietava e
desarmava e dava um sentido
ao seu lado revanchista. Aqui, se
se mantém Detroit como cenário,
aquela Detroit falida que
entretanto se tornou símbolo
maior da “decadência industrial”
dos EUA, Padilha desperdiça ou
ignora liminarmente qualquer
espécie de reverberação que daí
pudesse vir: é puro “cenário”,
tratado com indiferença e
submetido aos rodriguinhos da
história. A sátira politica também
está ausente da narrativa, e para
compensar Padilha e os seus
argumentistas bordejaram o
filme com a personagem de
Samuel L. Jackson, um
“pregador” ao modo Fox
News, que vem exortar ao
securitarismo na América e
no mundo (mas é tão
Cine
ma Estreiam
Fala com elaA sinopse dava para imaginar um exercício de fetichismo maníaco, gelado, e pensar em gente como Buñuel ou Ferreri. Mas não foi esse o filme que Spike Jonze fez. Luís Miguel Oliveira
Uma História de Amor
HerDe Spike JonzeCom Joaquin Phoenix, Scarlett
Johansson, Amy Adams, Rooney
Mara
mmmmm
A sinopse era boa, muito
boa: um homem
apaixonado pela voz do
sistema operativo do seu
computador. Dava para
imaginar um exercício de
fetichismo maníaco, gelado, e
pensar em gente como Buñuel,
Ferreri e outros autores de
tratados sobre uma
masculinidade entrada em perda
puramente onanista. A sinopse, e
a ideia original de Spike Jonze,
continua a ser boa, mas não foi
esse o filme que ele fez, e Uma
História de Amor (título português
que involuntariamente ou não vai
directo ao ponto do filme, muito
mais do que o Her original) é
como se, a partir do momento
inicial promissor, Jonze tivesse
tomado as piores opções e
seguido pelos caminhos
menos interessantes. Para
começar, o sistema operativo
não é bem um sistema
operativo como os que
conhecemos, não se limita a um
repertório de meia-dúzia de
frases maquinais ou às indicações
das meninas do GPS. É um
sistema operativo muito mais
sofisticado (Uma História de Amor
é um filme no “futuro”, um filme
de “ficção científica”), com
ilimitadas capacidades de
aprendizagem e interacção.
Tem uma espécie de alma, e
descobre depois que
também tem uma espécie de
sentimentos. Uma personagem,
portanto, uma personagem de
“corpo inteiro” a que só falta o
corpo – mas como tem a voz de
Scarlett Johansson, que é,
digamos assim, um “corpo” que
toda a gente conhece, identifica e
imagina, a “batota” de Jonze é
dupla.
E é “batota” porque, na
verdade, exactamente o mesmo
filme podia ter sido feito com o
pressuposto de uma história de
amor “à distância”, ele (que é
Joaquin Phoenix) num canto do
mundo e ela noutro, em contacto
através do Skype ou doutra
geringonça qualquer. Mas aí,
O Robocop de Padilha: truculência zero, substituída por uma sinceridade ingénua e desajeitada que não aspira a mais do que ser o nascimento de um novo-velho franchise
Joaquin Phoenix é impecável, aguentando o filme, sempre em modo deprimido e reprimido
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 25
e lugares-comuns mais ou
menos abstractos
(“liberdade”, “democracia”,
etc), trata-se aqui de furar essa
cortina, esse “ecrã”, e ir aos
sítios, ver as pessoas, ouvi-las,
observar a “Primavera Árabe”
nos seus movimentos
contraditórios e frequentemente
trágicos. Sem ser um objecto
extraordinariamente
conseguido, Estrada da
Revolução tem uma razão de
ser que não se perde: a
“urgência”, o olhar a quente, e
nisso não dá mau nome a uma
hipótese de “cinema jornalístico”
que até é uma tradição
praticamente inexistente em
Portugal. Não evita uma
contiguidade, eventualmente
excessiva, com o território da
reportagem televisiva, mas tem a
noção sóbria do valor e da força
de um documento, mesmo se o
documento for apenas um rosto,
um testemunho, um silêncio.
Qualidades que, quanto mais
não seja, justificam a sua
vontade de “ser um filme”, que
fará sentido ver numa sala de
cinema. L.M.O.
Continuam
Filomena
PhilomenaDe Stephen FrearsCom Judi Dench, Steve Coogan e
Sophie Kennedy Clark
mmmmm
Judi Dench como mãe-coragem
irlandesa que, 50 anos depois,
ganha finalmente coragem para ir
à procura do filho que foi
obrigada a dar para adopção?
Queremos, claro – até porque se
há coisa que Stephen Frears
sempre soube fazer foi dirigir
actrizes (e podemos lembrar
mais do que apenas o Óscar
para Helen Mirren por A
Rainha). Mas a história verídica
de Philomena Lee, uma das
vítimas dos conventos irlandeses
de Maria Madalena usadas quase
como trabalho escravo para
expiar o pecado da concepção
fora do matrimónio, queda-se por
uma modorra mais convencional
do que é habitual no autor de
Anatomia do Golpe ou Chéri.
Demasiado gentil para ser
inteiramente convincente
como denúncia dos males da
religião, demasiado
sarcástico para ser reconfortante
como lição de vida de alguém que
soube perdoar, Filomena tem
uma dimensão “televisiva”,
caseirinha, que nem a eficácia da
dupla formada por uma Dench
imperial e um Steve Coogan
verrinoso (no papel do repórter
caído em desgraça que procura a
redenção investigando o caso)
consegue salvar. J.M.
patética a personagem, e tão
patética aquela introdução com
os robots em Teerão, que nem
como paródia se aguenta).
Resta o “frankensteinianismo”
da intriga, a fusão “homem/
máquina”, a questão da “alma”
a prevalecer sobre os “chips”,
mas tudo isto é resolvido com
uma vulgaridade simplória,
agravada pela falta de carisma de
todas as personagens, dos heróis
aos anti-heróis. Truculência zero,
substituída por uma sinceridade
ingénua e desajeitada que não
aspira a mais do que ser o
nascimento de um novo-velho
franchise. L.M.O.
Estrada da Revolução
De Dânia Lucas
mmmmm
O rasto, convulso e com sabor
a sangue, da “Primavera
Árabe”, tal como seguido por
um grupo de jornalistas
portugueses através de vários
países do Norte de África e do
Médio Oriente. A perspectiva é
pertinente: se, como tantas
coisas hoje, a história desta
“Primavera” foi sobretudo
contada pelos “media”
ocidentais, e tanto teve de uma
“construção” assente em slogans
Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets
AS ESTRELAS DO PÚBLICO
JorgeMourinha
Luís M. Oliveira
Vasco Câmara
A Estrada da Revolução – mmmmm – O Clube de Dallas mmmmm mmmmm mmmmm
Filomena mmmmm – mmmmm
Golpada Americana mmmmm mmmmm mmmmm
O Lobo de Wall Street mmmmm mmmmm mmmmm
Ninfomaníaca - parte 1 mmmmm mmmmm mmmmm
Ninfomaníaca - parte 2 mmmmm mmmmm mmmmm
Quando Tudo Está Perdido mmmmm – mmmmm
Robocop – mmmmm –Uma História de Amor mmmmm mmmmm mmmmm
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
Estrada da Revolução não dá mau nome a uma hipótese de “cinema jornalístico”
Filomena tem uma dimensão “televisiva” que nem a eficácia da dupla Judy Dench/Steve Coogan consegue salvar
26 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Disc
osClássica
Cantar o desassossegoInquietante e surpreendente: um universo coeso à volta da arte perturbadora de Adolf Wölfli, construído por um dos grandes compositores da actualidade. Rui Pereira
Georges Aperghis
Wölfli-Kantata
Neue Vocalsolisten Stuttgart
SWR Vokalensemble Stuttgart
Marcus Creed, direcção musicalCypres CYP 5626
MMMMM
A música de
Georges
Aperghis
(Atenas, 1945),
compositor
grego radicado
em Paris desde 1963, vai ficar na
História. A sua audição inquieta-
nos de uma boa maneira. Parece
que nos interpela. Damos
connosco a procurar todas as
referências que temos de música
escrita desde tempos imemoriais,
e somos constantemente
desafiados pela originalidade. No
domínio da música vocal, o seu
legado tem mais de 30 anos e é
um caso muito sério de
diversidade de géneros e de
consistência de escrita. O mais
recente CD a aparecer no mercado
com a sua música reúne dois
grandes agrupamentos vocais, o
Neue Vocalsolisten Stuttgart e o
SWR Vokalensemble Stuttgart,
para a interpretação da
monumental Wölfli-Kantata, com
base em desenhos e textos de
Adolf Wölfli (1865-1930), artista
suíço que viveu a maior parte da
vida internado num hospital
psiquiátrico. Entramos, assim,
num domínio perturbador, em
que se misturam sentimentos de
profunda vergonha, medo,
alucinações, cálculos visionários,
desenhos abstractos, e que
incluem notação musical.
A transposição destes elementos
para música já inspirou diversos
compositores contemporâneos.
No caso de Aperghis, e mais
concretamente no caso desta
cantata para coro a cappella que
ganhou o prémio Prince Pierre de
Monaco em 2007, o trabalho de
composição teve início em 2001
com a primeira parte, uma peça
para seis solistas, e terminou
cinco peças depois, em 2006. Na
base de tudo estão jogos de
palavras que criam texturas e
ritmos, densidades que desafiam
constantemente a nossa
percepção de espaço e de tempo e
por onde se vislumbram fugazes
harmonias, por vezes
extremamente belas e
pacificadoras.
Pop
Dança modernaUm género documentado: quatro anos e pico na vida do punk americano, e da revolução que ele engendrou. Mário Lopes
Vários
Punk 45 — Kill Hippies! Kill
Yourself!Soul Jazz; distri. Megamúsica
mmmmm
O punk além do
punk? Ou o punk
tal como é,
manifestação
contracultural
genuinamente
underground, divorciada das
regras da indústria? Punk 45 — Kill
Hippies! Kill Yourself!, compilação
organizada pela sempre fiável Soul
Jazz para acompanhar em paralelo
o livro que, coordenado por Jon
Savage e Stuart Baker, documenta
a estética e a atitude do punk
através das capas dos singles que
fizeram a sua história, mostra o
outro lado que ficou escondido
quando todos os olhares se
centraram na Bowery e no CBGB
de Ramones, Television, Talking
Heads, Patti Smith ou Blondie.
Primeiro de dois volumes (a
este, agora distribuído em
Portugal, sucedeu em Janeiro a
versão britânica da história), Punk
45 funciona como uma espécie de
Nuggets, a famosa compilação do
garage-rock americano da década
de 1960, dedicado à geração
seguinte. Em 21 canções e outras
tantas bandas, redescobrem-se a
fúria adolescente niilista, o
aborrecimento que fermenta o
desejo de agitação, a provocação
como método e a procura do novo
como consequência — nos
melhores casos. Como explica o
texto que acompanha a edição,
encontramos aqui aqueles que,
fora do grande centro nova-
iorquino e sem acesso a uma
indústria discográfica e mediática
completamente desligada do
punk, criavam em Akron, Nova
Orleães, Cleveland ou Los Angeles
as suas microcomunidades.
Várias das bandas que aqui
ouvimos, com os The Normals,
têm como discografia um único
single; outras, como os influentes
electric eels (assim mesmo, em
minúsculas, em homenagem ao
poeta ee cumings), atravessaram o
tempo sem discos no currículo.
Num lapso de quatro anos (1976-
1980, com os Flaming Groovies,
saídos de 1973, como excepção),
capta-se um momento criativo
particular. Apesar de os Randoms
gritarem Let’s get rid of New York,
carta de amor e ódio à cidade,
nem eles escondem aqueles que
são os modelos principais para
este movimento de refundação
rock’n’roll: os Ramones, os
Stooges e o sotaque de Mick
Jagger. Assim é na tão agressiva
quanto cartoonesca I’m a bug, dos
The Urinals, no hino aos excessos
juvenis de Wild weekend, dos The
Zeros, ou no Your full of shit, dos X
Blank X, que acelera o ritmo até às
proximidades do hard-core por
vir. Os títulos das canções
mostram a raiva que se liberta, o
terrível mal-estar que o tédio
provoca, a violência do gesto: Kill
yourself, gritam os The Lewd, e
esse grito é mais importante do
que a chapa quatro Stooges em
que a canção é composta.
Entre esta massa de bílis bolsada
(de que o humor não está ausente),
sobressaem precisamente aqueles
que escapam ao modelo: eles sim,
eram o futuro, tudo o resto era um
presente incerto e excitante, uma
vaga de músicos que, espalhada
pelos EUA, acabava por definir
inadvertidamente uma linguagem
comum. Eis então a Modern dance
dos Pere Ubu de David Thomas:
aquela voz que quebra em vibrato
demente no final dos versos e
aqueles rhythm’n’blues e
rockn’roll geneticamente
adulterados (de onde vem o slide
demoníaco, bizarro, que dá à
canção um peso atormentado?).
Ou esses The Bizarros, magnífica
banda de Akron, Ohio, criadora de
Ice age: duas guitarras que, ao
contrário das dos bailados dos
Television, chocam, repelem-se e
atraem-se novamente, sujas de
distorção, qual rock’n’roll em
versão pesadelo (mas dançamos,
não pararemos de dançar
enquanto o mundo ameaça
desabar). E que dizer de Crash
Course In Science, electrónica
experimental vagamente
aparentada a canção pop que
utiliza sintetizadores, caixas de
ritmo e electrodomésticos para
criar uma Cakes in the home que
soa hoje tão contemporânea
quanto, por exemplo, Micachu &
The Shapes?
É por bandas como os
Tuxedomoon de Joeboy the electric
ghost (a canção enquanto
happening), pelos grandes
Theoretical Girls de US Millie ou
pelos The Deadbeats de Kill the
Georges Aperghis é um caso muito sério de diversidade de géneros e de consistência de escrita: parece que nos interpela
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 27
Incubação silenciosa
Agnes Obel
AventinePIAS; distri. Edel
mmmmm
Agnes Obel tem
um respeito
quase doentio
pelo silêncio.
Cada uma das
canções de
Aventine — como já acontecia, de
resto, no anterior Philharmonics —
parece esculpida com o cuidado
permanente de que nenhuma nota
possa ofender ou perturbar o
sossego de quem quer que seja.
Chegam de mansinho, tomam o seu
lugar em arpejos minimais ao piano
(que fazem vénias largas a Erik
Satie, Claude Debussy ou mesmo
Philip Glass), e depois ali ficam,
todas juntas, num movimento
quase inaudível para que a voz
soprada da cantora dinamarquesa
feche um círculo de encanto
precário, de uma fragilidade que
nos poria em sobressalto não fosse
a certeza de que toda esta leveza
está, afinal, presa por cabos de aço.
Num balanço algures entre uma
Tori Amos sem a carga libidinosa
que atravessa muitas das suas
canções e uma PJ Harvey a quem
fosse subtraída toda e qualquer
ponta de qualidade raivosa, Agnes
Obel poderia não passar de uma
fazedora de canções assépticas, de
emoções temperadas e demasiado
domadas para, na verdade,
provocar uma resposta detectável
pelo mais sensível dos
sismógrafos. Mas aquilo que é
controlo em Aventine não verga a
beleza, o espaço perfeitamente
delimitado das suas canções não
faz da música um objecto
desalmado. Tome-se por exemplo
o tema-título, Aventine, em que
Obel cede algum do seu precioso
silêncio a um arranjo de cordas
que, sendo rígido, arrisca um
balanço minimal.
Por outro lado, Agnes Obel vai
soltando entre os fios de voz
temas instrumentais ao piano que
preenchem os espaços com uma
melancolia suburbana próxima
daquela que costuma infectar as
bandas sonoras do compositor
por Ornette Coleman, Carter e
Bradford eram dois texanos a viver
em Los Angeles, tendo-se tornado
pioneiros do free jazz na Costa
Oeste. Depois de recrutarem o
contrabaixista Tom Williamson e o
baterista Bruz Freeman, irmão do
saxofonista Von Freeman,
iniciaram uma colaboração que
viria a revelar-se das mais
duradoras no jazz de vanguarda.
Originalmente editado na Flying
Dutchman, a label criada por Bob
Thiele depois de abandonar a
Impulse, Flight for Four é uma
bomba e antecipa, em mais de três
décadas, algum do melhor jazz
moderno que se produz
actualmente. É absolutamente
incrível pensar que esta música,
vibrante como poucas, num
turbilhão de permanente
criatividade que a torna totalmente
relevante para os dias de hoje,
tenha sido gravada no mesmo ano
que Abbey Road ou From Elvis in
Memphis. Numa reedição
absolutamente imaculada que
reproduz o LP original, aquilo que
mais nos chama a atenção é a
qualidade do som — na mistura e
captação brilhantes de Thiele (é
urgente reavaliar as técnicas de
estúdio de gigantes como Thiele ou
Rudy Van Gelder) e no trabalho
notável de digital transfer de
Jonathan Horwich, patrão da
International Phonograph. E aqui a
importância da qualidade do som é
directamente proporcional àquilo
que nos deixa ouvir — uma música
plena de detalhes em que as vozes
de cada um dos músicos surgem
com uma clareza pouco habitual.
Tanto Carter como Bradford
procuravam desenvolver os
conceitos harmolódicos de
Ornette, cruzando-os com as
referências escaldantes do hard-
bop, e criando uma música
exploratória em que cada nota tem
um peso e um lugar bem definido.
Nada é leviano ou supérfluo. A
tonalidade bluesy que atravessa
todo o álbum é suportada de forma
notável pela secção rítmica,
particularmente por Williamson,
cujas frases circulares antecipavam
já muito do trabalho desenvolvido
por nomes como William Parker
mais de uma década depois.
ribombante particularmente
fascinante), estão lá as harmonias
vocais que engrandecem a
melodia (majestosidade é a
palavra) e os órgãos,
mellotrons e sintetizadores
que dão colorido psicadélico,
divagante, a toda a música.
Não será desajustado dizer que
os Temples são, de certa forma, a
versão britânica dos Tame
Impala. Acrescentando-se de
imediato que tal condição não
os menoriza em nada. Mesmerise
soa realmente a homenagem ao
que Kevin Parker nos
ofereceu em Innerspeaker e
Lonerism, mas é caso único.
No restante, a britishness dos
Temples diferencia-os claramente.
Há um certo ar trovadoresco em
canções como The golden throne,
arrancado às raízes da folk
britânica e transformado pela alta-
voltagem eléctrica. E há o brilho
que Marc Bolan trouxe ao
rock’n’roll, ou à ideia de
rock’n’roll enquanto algo maior
do que a vida, nessa trepidante
Keep in the dark que cresce da
simplicidade de uma guitarra
acústica e de um ritmo bem
marcado até rodopiar em
carrossel psicadélico de
luzes faiscantes e coros
inebriados.
Os Temples, descendentes dos
Zombies e dos primeiros Primal
Scream; descendentes dos Byrds e
dos Moody Blues; devotos de Joe
Meek, o visionário produtor
britânico do final da década de
1950 e início da seguinte, e
familiares do neo-psicadelismo
dos MGMT, entendem o rock
como espaço ainda em aberto,
como local onde se concretiza a
fantasia de escapar ao mundo
para atingir um mundo melhor.
Têm os discos certos e as ideias
certas. O lugar que descobriram
em Sun Structures é um regalo
para a vista (perdão, para os
ouvidos).
“Take me away to the twilight
zone”? Rapidamente e em força.
Sem quaisquer receios. Os
Temples acabaram de chegar, mas
sabem muito bem o que andam
aqui a fazer. M.L.
hippies (manifesto geracional
que, curiosamente, soa a
actualização de Kill for peace,
dos Fugs, banda charneira da
contracultura nova-iorquina da
década de 1960) que a descarga de
energia e o frémito que percorrem
Punk 45 se tornam algo
verdadeiramente sério.
Da destruição regeneradora
nascia o novo. A três décadas de
distância, vemo-lo distintamente
entre a pequena multidão de
bandas muito zangadas e muito
entediadas a procurar a salvação
em discos dos Stooges.
Twilight zone
Temples
Sun StructuresHeavenly; distri. Edel
mmmmm
Não há tempo a
perder: “Take me
away to the
twilight zone”,
cantam os
Temples logo em
Shelter song, a canção que abre o
álbum de estreia da banda de
Kettering, Sun Structures.
Primeiro som: a guitarra de 12
cordas confirmando que Roger
McGuinn, nos Byrds, ofereceu
novos mundos ao mundo. Mas a
guitarra, aquele som de guitarra,
é apenas a introdução, a
primeira das várias camadas com
que, passe a redundância foleira,
se constrói o templo dos Temples.
No coração destas canções
estão quase sempre aqueles
acordes simples que fariam delas
peças muito trauteáveis mesmo se
nada existisse em volta. Mas nesse
caso não faria sentido o pedido
inicial. Para isso estão lá os bons
truques de produção que
mantêm a banda a levitar
numa dimensão em que todo
o eco é melodia agradável aos
ouvidos (a bateria e o baixo
ganham uma propriedade
norte-americano Thomas
Newman (Beleza Americana,
Revolutionary Road). E é mesmo
de infecção que se trata. Porque os
discos de Obel são mais sonsos do
que parecem. Dir-se-ia que estas
canções passam sem deixar
quaisquer marcas, mas ficam a
incubar em silêncio, instalando-se
e reclamando cada vez mais
atenção. Gonçalo Frota
Jazz
O futuro, 35 anos atrásReedição de um clássico freebop gravado no final dos anos 60 por dois dos grandes visionários do jazz. Rodrigo Amado
John Carter & Bobby Bradford
Quartet
Flight for FourInternational Phonograph
mmmmm
Gravado em 1969,
no mesmo ano
do celebrado
Seeking, álbum
que assinala a
estreia em disco
do genial John Carter e do quarteto
que manteve durante longo tempo
com o não menos brilhante Bobby
Bradford, este Flight for Four
manteve-se na sombra por
demasiado tempo. Apresentados
Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets
Os magníficos The Bizarros: rock’n’roll em versão pesadelo, mas como não dançar?
Os Temples são, de certa forma, a versão britânica dos Tame Impala — mas não só
As canções de Agnes Obel começam por parecer desalmadas e acabam por tornar-se infecciosas
Genial, John Carter antecipou em mais de três décadas algum do melhor jazz moderno
FRANK EIDEL
28 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
Livr
os
Ficção
A sombra é também fi lha da luzDuas novas edições confirmam o regresso de um autor muito cá de casa: Stefan Zweig. Hugo Pinto Santos
Novela
de Xadrez
Stefan Zweig
(Trad. Álvaro
Gonçalves)Assírio & Alvim
mmmmm
Amok
Stefan Zweig
(Trad. Alice
Ogando)Relógio D’Água
mmmmm
Durante longos anos, Stefan Zweig
gozou em Portugal de uma
invulgar reputação. Tanto assim
que quase não havia casa com
biblioteca, ou mesmo o proverbial
punhado de livros, que não
dispusesse de uns quantos
volumes do autor de obras como
Caleidoscópio, Lendas, Coração
Impaciente ou até Triunfo e
Infortúnio de Erasmo de Roterdão
(“Meu venerado mestre”, chamou-
lhe Zweig, que o considerava a
“apresentação encapotada” de si
próprio) e Maria Antonieta (“O
destino favorece as analogias”).
Contudo, e apesar dessa fortuna
editorial, a atenção dispensada ao
autor austríaco por parte das
editoras nacionais não foi, de
modo nenhum, regular, tal como
não foi sistemática ou depurada a
sua edição. Na verdade, houve que
esperar pela década passada para
surgirem edições dignas dos novos
tempos, que contemplassem
títulos inéditos, ou que pudessem
substituir com proveito as
traduções antigas. Foi o que
aconteceu com os títulos então
lançados pela Antígona —
Confusão de Sentimentos (2004) e
O Combate com o Demónio —
Hölderlin, Kleist, Nietzsche (2004)
— e pela Assírio & Alvim — O
Mundo de Ontem: Recordações de
Um Europeu (2005) e Magalhães: o
Homem e o Seu Feito (2005). E
volta a ser o caso da tradução de
Novela de Xadrez — acompanhada
de um breve estudo — que Álvaro
Gonçalves fez para a Assírio &
Alvim. Por seu turno, a Relógio
D’Água reedita, numa série
uniforme (Obras de Stefan Zweig) e
em cuidada revisão, a tradicional
tradução de Alice Ogando para
Amok.
As duas novelas activam o
dispositivo da deslocação e da
distância para gerar os seus efeitos.
Se, em Amok, Zweig recua às suas
viagens orientais para compor uma
narrativa de arrepiante revelação
dos mais obscuros panoramas
interiores da alma humana, em
Novela de Xadrez o enquadramento
ficcional da viagem por navio —
presente em ambas — condu-lo ao
horror nazi. (Trata-se, como é
sabido, do único ponto da obra de
Zweig em que essa referência é
abertamente produzida.) Nos dois
casos, a evasão no espaço permite
uma invasão da psique das suas
personagens. No entanto, e como
diz aquele que é, decerto, o
biógrafo de referência de Zweig,
Alberto Dines: “Ao contrário de
outros que buscaram a
espiritualidade nos antípodas,
Zweig trouxe na bagagem oriental
a paixão doente, o sofrimento
delirante, a corrida desvairada,
tudo embutido numa exótica
palavra malaia — amoq”. Nesse
sentido, em Amok o exotismo é
anulado em detrimento de uma
constatação quase etnográfica. O
termo que dá título à obra que viria
a tornar-se uma das mais
renomadas (se não mesmo a mais
famosa) do autor é descrito como
“a loucura, uma espécie de raiva
humana, literalmente falando”: “A
causa é, sem dúvida, o clima, esta
atmosfera densa e asfixiante que
oprime os nervos, como uma
trovoada” (p. 37). O médico que
começa por recusar-se a fazer um
aborto e que, tarde de mais, tenta
substituir o sinal desse primeiro
impulso por um furor com tanto de
amoroso como de patológico, é o
sujeito ideal para esta prospecção
impenitente, uma auto-análise até
às últimas consequências: “Ponho-
me a nu e digo: eu” (p. 19). A sua
própria incumbência, enquanto
narrador substituto, reflecte esta
condição, que chega a explicitar-se
— “Os enigmas psicológicos têm
sobre mim uma espécie de poder
inquietante” (p. 14). Com uma
frieza que oculta o “império da
febre” (p. 48), a narração do clínico
revela uma obsessão imparável,
que se desgoverna em torno
daquela mulher que o leva a trair a
dignidade profissional e a exigir
como pagamento a pessoa da
própria paciente, e que o
conduzirá, no termo da sua
narrativa, ao suicídio. Uma solução
ficcional que, de resto, a novela
introduz de forma subliminar mas
irreprimível: menos como pista do
que enquanto técnica da
composição — “Quisera dormir…
sonhar… e, no entanto, não me
apartava desta magia, não voltava
para baixo, para o meu esquife” (p.
11); “Eu não posso ficar no
camarote, nesse túmulo…” (p. 15).
A própria embarcação em que
decorre a narração é já um
simulacro da morte, cuja pulsão
habita o médico e permite formar
os vínculos subreptícios da novela.
De resto, o suicídio — de que o
próprio autor viria a sucumbir — é
um aspecto patente em diversos
pontos da mundividência e da
própria produção escrita de Zweig.
Quando, por exemplo, se referiu
aos últimos momentos de Freud,
usou os seguintes termos: “Deu
autorização ao médico para pôr
fim à sua dor, como um herói
romano”. E não são poucos os
casos em que o suicídio surge
como solução trágica das suas
obras ficcionais. Pense-se, entre
outras, em Coração Destroçado,
Vinte e Quatro Horas da Vida de
Uma Mulher, ou neste Amok. E
atente-se também no modo como
descreveu a queda do autor de O
Príncipe de Homburgo — “Kleist só
conseguia suportar a vida na
exacta medida em que a todo o
momento estava preparado para
dela se desfazer”. Isaac Babel foi
intermediário do encontro
soviético entre Stefan Zweig e
Sergei Eisenstein. Antes do
atabalhoado conciliábulo, Babel
brindara o realizador com um
relato empolgado de Amok. De tal
forma que, quando ele, por fim,
leu o livro, o considerou muito
inferior à versão do amigo: “Pálido
reflexo do verdadeiro Amok”, diria.
O jogo que, em Vinte e Quatro
Horas da Vida de Uma Mulher, é
compulsão, fuga para a frente,
desejo de morte nas mesas de jogo,
torna-se, em Novela de Xadrez, uma
sombria parábola sobre a opressão
nazi. No tabuleiro, define-se a
tensão de um passado de terror, já
que é o jogo que compele a
personagem à rememoração. O
xadrez, “uma ciência, uma arte,
oscilando entre estas categorias,
como a urna de Maomé entre o
Céu e a Terra” (p. 33), é a centelha
que pôde salvar do mais fundo
negrume a vítima do regime
hediondo. O Dr. B., protagonista e
segundo narrador da novela (a
abdicação do narrador era um
processo comum na ficção de
Zweig), é uma declinação já
distante do anti-herói — “Eu, um
homem infeliz como sou, para
quem a curiosidade pelas coisas
relacionadas com a mente
degenera numa espécie de paixão”
(p. 35). A partir do momento em
que o narrador passa a ser ele, a
narração torna-se mais elástica,
Stefan Zweig usa a deslocação e a distância como dispositivos de exploração dos mais obscuros panoramas interiores da alma humana — o que, no caso absolutamente sem exemplo de Novela de Xadrez, lhe permite abeirar-se abertamente do horror nazi
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 29
com saltos e abalos nos nexos
lógicos e temporais — “Só muito
depois, quando estava preso há já
bastante tempo, me lembrei de que
o seu comportamento de desleixo
inicial no trabalho se transformara
nos últimos meses num súbito afã”
(p. 54). À tortura infligida pela
Gestapo opusera o narrador,
conforme revela na sua
retrospectiva, uma espécie de
erotismo da leitura e dos volumes
impressos — “Há quatro meses que
não sabia o que era ter um livro nas
mãos e a simples ideia de um livro
onde se podiam ver palavras
enfileiradas, linhas, páginas e
folhas, de um livro no qual se
podiam ler, seguir, absorver no
cérebro pensamentos distintos,
novos, diferentes, desviantes, tinha
qualquer coisa de embriagante e
em simultâneo de anestesiante” (p.
64) —, vertido num ritmo
composicional febril mas
milimetricamente preciso; Romain
Rolland, leitor atento da obra do
seu amigo, sublinhou,
precisamente, a importância da
composição. Com impecável
gestão verbal — do advérbio, por
exemplo: “Este sistema do quarto
de hotel estava concebido de forma
diabolicamente útil e
psicologicamente assassina” (p.
60) —, Zweig recria a inusitada
tortura nazi aplicada à
personagem. É em resultado desse
mecanismo do horror que a
personagem se depara com um
manual de xadrez que, além de
tábua de salvação perante a
iminência de loucura, funciona
como trave-mestra da narrativa e
articula os seus ângulos só
aparentemente desencontrados. A
especialização xadrezista da
personagem constituiu o antídoto
para a tortura, a solução para o
vazio — “Não há nada no mundo
que produza uma semelhante
pressão sobre a psique humana
como o próprio nada” (p. 56) — de
quem viveu “como um
mergulhador numa redoma” (p.
57).
Viver com a morteA propósito da morte de um filho, um hino ao indizível e ao incompreensível: como é possível “viver com isto”? José Riço Direitinho
O Filho
Michel Rostain
(Trad. Luísa Feijó)Sextante
mmmmm
Em finais de
2003, o
encenador
francês Michel
Rostain (n. 1942)
viu-se
mergulhado na
mais temível e
incompreensível
de todas as dores, a da morte do
seu filho único, Lion, de 21 anos,
que em poucas horas foi vitimado
por uma “meningite fulminante”.
Anos passados, e numa aparente
tentativa de continuar a processar
a tristeza e o luto, Rostain
escreveu O Filho — Prémio
Goncourt Primeiro Romance
2011. O livro é um testemunho do
que significa perder um filho, um
acontecimento contranatura para
que ninguém está preparado;
uma história sobre a busca de um
qualquer sentido onde sabemos
que não existe sentido algum; um
ainda assim esperançoso andar às
voltas num lugar que sabemos
vazio, pois, como escreveu a
poeta russa Marina Tsvetáeva,
“não se teve um filho, tem-se
sempre”.
Desde as primeiras horas da
sua tragédia pessoal, Rostain
percebeu que a morte tem de ser
vivida como uma parte da vida, e
O Filho é o sublinhar desse
sentimento, com a repetição ao
longo da narrativa de um “Viva a
vida, viva o Sol, viva a vida!”,
mesmo nos lugares mais
inesperados, como a morgue ou
as cerimónias fúnebres, “já não
por acreditar mas porque é
preciso, dê por onde der”.
Apesar do carácter
aparentemente autobiográfico,
Michel Rostain escreveu algo na
fronteira entre a biografia e a
ficção, ao escolher para narrar a
sua história a voz do filho morto
— um narrador-fantasma (capaz
de ironia e de uma alegria por
vezes absurda, ou de inesperado
humor negro) que sublinha o
lado ficcional da narrativa. Vinda
de um lugar que preenche toda a
cartografia afectiva do pai, a voz
de Lion, paródica e
estranhamente cheia de vida, vai
descrevendo o que aconteceu no
caos daqueles dias: as primeiras
febres confundidas com um
sintoma gripal, a primeira recusa
da ambulância, a descoberta de
manchas púrpura um pouco por
todo o corpo, o transporte para o
hospital, a sala de reanimação, a
morte, as cerimónias fúnebres,
as cinzas espalhadas nas
encostas de um vulcão na
Islândia (naquele “silêncio das
paisagens infinitas”), o agora
famoso Eyjafjallajökull — cujas
cinzas paralisaram, em 2010, o
tráfego aéreo sobre a Europa
(como se as cinzas de Lion
estivessem de volta a França
sopradas por aquele vulcão
escolhido ao acaso seis anos
antes).
O filho parece dialogar com o
pai — fazendo reparos, lendo-lhe
os pensamentos soturnos, os
muitos arrependimentos pelo
ipsilon.publico.pt
Michel Rostain encontrou neste romance pós-traumático a via para retomar o diálogo perdido com o seu único filho
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A NOVA BABILÓNIAA NOVA BABILÓNIAC I N E - C O N C E R T O
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30 | ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014
facto de não ter estado mais
presente nas horas anteriores à
morte, passadas no supermercado
ou a desarrumar a casa para que a
maca pudesse passar (“A morte é
uma máquina de
arrependimentos”). O mesmo pai
que nos dias e nas semanas que se
seguem, quando a morte
verdadeiramente começa, escava
o passado do filho em busca de
sinais (não sabe que sinais), lendo
mensagens de telemóvel,
folheando cadernos e agendas,
revendo antigos álbuns de
fotografias (ou organizando novos,
como o das fotografias que tirou
na sala de reanimação ou na
morgue), ouvindo histórias de
pessoas que com ele privaram
quando estudou noutra cidade,
autênticos exercícios de desespero
de quem quer manter a memória
acordada, como se com isso
pudesse impedir a partida do
filho. É de um desses exercícios de
tristeza uma das mais pungentes
descrições, quando 11 dias depois
da morte o pai leva a roupa da
cama do filho à lavandaria:
“Subsiste ainda alguma coisa de
mim nas dobras brancas que leva
para a lavandaria como quem leva
os santos sacramentos. O meu pai
chora, de nariz enfiado no
algodão. Evita os olhares, faz
muitos mais desvios do que o
necessário (…), vai aproveitando.
Dá mais uma snifadela ao edredão
e finalmente empurra a porta da
loja.”
Michel Rostain não escreveu
um salmódico canto de lamento,
mas uma espécie de hino ao
“indizível”, ao
“incompreensível”, à morte como
uma parte da vida, e sobretudo à
possibilidade de se poder “viver
com isto”.
Poesia
A distensãoA poesia aqui é um jogo — mas sem vencedores nem derrotados. Gustavo Rubim
E se por hipótese esta máquina
começasse a funcionar e se
desse início ao longo processo
tentativa-erro
Marta NavarroA Tua Mãe
mmmmm
O pequeno livro
de estreia de
Marta Navarro, E
se por hipótese
esta máquina
começasse a
funcionar e se
desse início ao
longo processo
tentativa-erro, faz lembrar outro
famoso livro de estreia, no caso de
Manuel António Pina: Não é o fim
nem o princípio do mundo, calma é
apenas um pouco tarde, publicado
em 1974. Não é sinal de influência
nem exercício de imitação, mas
não deixa de haver certa afinidade
de humor. Títulos demasiado
longos para livros razoavelmente
curtos: um desequilíbrio que,
brincando com a extensão, produz
um efeito de distensão, mais
declarado no apelo à “calma”, de
Pina, mais enigmático na
“hipótese” maquinal de Marta
Navarro.
Essa semelhança não é
superficial. Em ambos os casos é
uma inflexão da língua poética que
ocorre e, tal como Manuel António
Pina não correspondia a nenhuma
linha identificável das que se
cruzavam no espaço poético da
língua portuguesa, Marta Navarro
aparece agora sem família visível.
Por outro lado, a inflexão tem um
ponto comum: o sentido do jogo. O
primeiro poema é uma breve peça
beckettiana em que cinco
personagens (Z, X, Y, W e O)
trocam entre si a função de
baralhar e dar cartas. Para cumprir
a função, vão mudando de lugar
numa certa ordem. Nunca
ninguém, no entanto, parece
satisfeito com o jogo que lhe
calhou. Voltam a dar e nunca chega
o momento de alguém jogar uma
cartada efectiva. Mas alguma coisa
muda sempre e, no fim, cada um
se levanta, já não para ir “ocupar”
o lugar que antes era de outro, mas
para “deixar vago” para outro o
lugar que anteriormente era seu.
Num dos seus níveis de leitura, a
alegoria das cartas está muito apta
para representar a relação entre
poetas. E, lida assim, ela insiste na
distensão: quem tem
(temporariamente) o poder de dar
cartas concorda, sem conflito, em
ceder o lugar a outro, num
ambiente em que ninguém
acredita no jogo que lhe foi
distribuído. Neste mecanismo
deixa de haver guerra entre
poéticas — recorde-se a frase de
Ossip Mandelstam: “Em poesia, é
sempre a guerra” — e deixa
portanto de haver vencedores e
derrotados, apostas ganhas e
apostas perdidas. Ao mesmo
tempo, ninguém na realidade vai a
jogo: instala-se o inquietante
consenso de que nem vale a pena
jogar, qualquer pretexto bastando
para baralhar e voltar a dar.
Engana-se quem vir nesta cena
um programa ou uma declaração
resignada. O poder da pequena
comédia é o de manter o
distanciamento, como se Marta
Navarro traçasse o quadro para,
traçando-o, poder ficar fora dele.
Não num exterior sobranceiro, mas
na relativa exterioridade de quem
evita confusões para não ser
neutralizado. E assim se percebe
que a sua escrita dê todas as
impressões menos a de quem não
arrisca tudo o que tem para dar. O
título das duas partes do livrinho
di-lo com clareza: Do Excesso e Da
Destruição. Combinadas, justificam
a epígrafe de Alberto Giacometti,
porque também a poeta parece
impressionada pela “fragilidade
dos seres vivos” e pela “energia
incrível” de que parecem precisar
“para se manterem de pé”.
Entre excesso e destruição, a
atenção à experiência vital e à
possibilidade de lhe dar (ou
encontrar) sentido é o motor dessa
máquina cujo êxito não é qualquer
produto mas, apenas, conseguir
que ele funcione. Cada poema
parece, assim, escrito de maneira a
nunca perder contacto com o
ponto em que poderia não haver
poema nenhum. De que serviria,
então, quando se trata de fazer
tudo para tentar “habitar um
corredor sem fim à vista” e de
produzir “um pequeno milagre”
que “é o que esse corredor/ de
facto me é”, de que serviria perder
tempo em guerras com o passado
ou o presente da poesia? O poema
citado tem por título LET’S PLAY A
GAME e em poucos se vê tão bem
como o poema é para Marta
Navarro um assunto sério. Quer
dizer, pessoal e defendido com
uma ênfase rara em tempo de
poetas sem convicção: “ESTA
ARMA ESTÁ CARREGADA ou/ EM
DEFESA DA POESIA PESSOAL”,
lê-se com maiúsculas no meio do
mesmo poema que, se convida a
jogar, é de certeza um jogo
perigoso. A distensão parece então
desaparecer e dar lugar a outro
género de combate, um combate
pela afirmação simultânea da
“mão” pessoal (“Porque na minha
mão caibo eu e o resto, mas a mão
é/ minha”) e da imensidão do
poema “que cresce sempre que
uns olhos se deixam tocar por/
outros”. Pensa-se numa
restauração do lirismo, numa velha
identificação entre poesia e amor,
mas o próprio poema o desmente:
“É aqui neste pequeno eixo (…)/
que ela gira/ não a poesia do amor/
mas a poesia do tacto”.
O desejo de tocar o sentido do
mundo, de fazer passar entre os
dedos as mais pequenas diferenças
de sentido, pode ser a ficção que
orienta esta escrita. Por isso, não
está longe de uma espécie de prosa
selvagem, como a que se intitula
DE LÚCIDO A LOUCO, ao mesmo
tempo monólogo e carta de uma
actriz fechada dentro de si mesma,
de uma mulher para o seu filho. Se
nem tudo nesse fluxo resiste bem à
leitura, a travessia do vazio e do
tédio (“Uma pausa com vista para
nada”) que nele se narra, como
uma espécie de de profundis, tem
uma força de verdade que justifica
o próprio desequilíbrio que
produz. O seu tema é a busca da
seriedade. No final, a narradora
ouve, alucinada, um coro de búzios
a incitá-la: “Vai para casa, minha
pequena, para a tua casa de
bonecas. Vai brincar com os
outros”.
Se, por hipótese, o resultado da
brincadeira tiver sido este livrinho,
nós, os outros, bem podemos
saudar a tentativa de Marta
Navarro, que é daquelas que
atestam como o erro está, de facto,
no coração do acerto.
Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets
Na fastidiosa discussão sobre a venda em
leilão dos quadros de Miró, omitiu-se
geralmente esta pergunta incómoda, mas
indispensável para percebermos o que está
em jogo: porque é que aqueles banqueiros
do BPN, cúpidos e filisteus de nome próprio
— até muito para além do que a lei permite —
adquiriram um acervo artístico que agora muitos
querem preservar em território nacional,
concedendo-lhe uma sublimidade que não aceitam
ver trocada por um valor redutível a capital real? A
resposta é óbvia e toda a gente a conhece. Porque os
banqueiros, na medida em que sabem muito de
dinheiro, têm também da arte este saber importante
e necessário: as obras de arte circulam como o
dinheiro. E se a arte se comporta como o dinheiro é
porque o dinheiro se comporta como a arte. Mas esta
última formulação já escapa certamente ao saber dos
indivíduos da economia e das finanças que, dessa
arte, são praticantes sem conceitos (e, como é sabido,
intuições sem conceitos são cegas). É preciso ter lido
Georg Simmel e a sua Filosofia do Dinheiro para
compreender que o dinheiro pertence de facto e de
direito ao “mundo espiritual”; ou ter sido alguma vez
confrontado com esta afirmação do poeta Wallace
Stevens”: “Money is a kind of poetry”. Nada exprime
melhor a natureza mercantil do nosso mundo do que
a arte. Os museus especulam hoje sobre as suas
colecções exactamente da mesma maneira que os
bancos: pondo o seu capital (a colecção), ou o capital
de outrem, em circulação (através de exposições).
Quanto mais ele circula, mais se acumula. A arte é
puro valor de troca (de um ponto de vista marxista,
representa a mercadoria por excelência) e tem um
valor de uso nulo. Segundo o sociólogo francês Pierre
Bourdieu, o valor simbólico da obra de arte, o
“interesse pelo desinteresse”, é a imagem especular
do seu valor de uso. O objectivo principal dos museus
de arte contemporânea é obter a confiança do
público na arte e no capital, segundo o princípio de
que as duas coisas são inseparáveis. Veja-se, por
exemplo, a estratégia do Guggenheim, ao
transformar os produtos da arte contemporânea
numa ideia de poder económico, mais do que
cultural, como fez em Bilbau, que é também um caso
ideal de fabricação da aura artística, de
transformação do contemporâneo numa classicidade
monumental e num efeito de sacralidade.
Percebendo esta lógica, facilmente se percebe
também a razão pela qual acabam por ter pouca
força, para se imporem contra a lógica puramente
económica do raciocínio filisteu, os argumentos da
“inteligência”, da “sensibilidade” e da “educação
artística”: os quadros de Miró não nos chegaram
senão por via do investimento baseado na
rentabilidade e não circularão senão impulsionados
pelo movimento que os fez chegar até nós. Mas há
um argumento de que nos podemos servir sem nos
tornarmos o servus servorum do Estado, da Beleza e
da Arte, que a própria condição epocal, e não apenas
a conjuntura nacional, tornou risível. Não é preciso
ser um encartado especulador da mercadoria
artística para saber que, se for posta à venda uma
grande quantidade de Mirós, o seu valor de mercado
desce. E se 99 por cento dos Matisses de todo o
mundo fossem reservados em fundos, a procura por
esse escasso um por cento em circulação seria
enorme e o preço seria muito mais elevado. A um
Governo como o que temos não queiram os cidadãos
ministrar educação artística: é uma tarefa impossível,
ociosa, cujo resultado trará sempre pouca arte e
muita ideologia. O que é imperdoável é que quem
sabe tão bem que arte é dinheiro pareça não estar à
altura da regra de que dinheiro é arte.
Estação Meteorológica
Dinheiro é arteAntónio Guerreiro
ípsilon | Sexta-feira 14 Fevereiro 2014 | 31
Expo
siçõ
esComunidades sentimentaisUma exposição que arrisca novos modos de sentir o trabalho artístico. Nuno Crespo
Bells are still ringing
De De Almeida e Silva, Efrain
Almeida, Flávio Gonçalves,
Gabriel Abrantes, Vasco Araújo,
entre outros.
Lisboa. Galeria Graça Brandão. R. Caetanos,
26A. Tel.: 213469183. 3ª a Sáb., das 12h às 20h.
Até 8/03.
Pintura, Escultura, Vídeo, Outros.
mmmmm
Bells are still ringing é um
exposição celebratória. E celebra
a arte, os artistas, uma certa ideia
de comunidade que ainda
sobrevive e, sobretudo, o facto de
apesar de tudo a energia criativa
persistir enquanto elemento
fundamental do tecido das nossas
sociedades. É uma exposição
arriscada, primeiro porque os
argumentos que permitem juntar
estes artistas dizem sobretudo
respeito a afectos e a sentimentos
e, portanto, não há uma tese
curatorial desenvolvida à maneira
de um argumento lógico-estético,
uma disciplina; e, depois, porque
a heterogeneidade das propostas é
tão intensa que facilmente a
exposição poderia cair numa
dispersão.
O pretexto da reunião foi o Natal
e a ideia de comunidade afectiva
que esta festa cristã invoca, mas
esta não é uma exposição sobre o
Cristianismo ou, a sê-lo, é-o no
sentido mais profundo de uma
religião de abertura a todos, sem
excepções. Por isso, escultura,
vídeos, pintura e cinema
convivem sem tentar anular-se
uns aos outros. Aqui, o apelo mais
forte é o da felicitação, de que a
peça de Vasco Araújo, Estrelinha
que te guie, é a expressão directa:
um conjunto de postais fixados na
parede que, ao modo típico da
quadra, desejam felicidades a
quem os lê (Auguri! Auguri!). Se a
celebração é um dos temas fortes,
outro é o da reunião. E a casa de
tecido que ocupa o centro da
galeria, contribuição de João
Pedro Vale e Nuno Alexandre
Ferreira (The story teller,
2008/2013) é a sua boa síntese.
Uma escultura que não só permite
uma muito boa marcação e
organização espaciais, mas
simultaneamente invoca a
metáfora da interioridade e da
domesticidade tão importante
neste discurso expositivo.
Mas esta não é uma exposição
apenas com artistas reconhecidos
(aos já mencionados dever-se-ia
acrescentar Gabriel Abrantes); o
curador junta-lhes novos nomes,
alguns deles acabados de sair das
escolas de belas artes ou de
cinema e todos relativamente
desconhecidos do público. Este
gesto de Alexandre Melo não é
uma novidade: já no início dos
anos 2000, num célebre texto no
jornal Expresso, o crítico e
curador falou numa “Geração
de Ouro” à qual associava os
cinco novos artistas (Filipa
César, João Pedro Vale, João
Onofre, João Vilhena e Vasco
Araújo) mais promissores. Uma
aposta pessoal bem sucedida e
que, uma década depois, tenta
renovar. E esse é um outro
contexto em que se deve integrar
esta exposição, que tem a
fertilidade de não fazer recurso
exclusivo de artistas obscuros,
mostrando igualmente como, em
alguns casos, passada uma
década há artistas que se mantêm
novos. Não se trata de explorar
sistemas de confirmação, mas sim
de energia sentimental — é como
Melo tivesse a propor como tese
(e é um ponto pertinente de
debate) que a “nova arte” não é
uma questão de cronologia, antes
diz respeito ao fôlego, à
capacidade de renovação e de
diálogo.
Os artistas mais novos desta
exposição não são claramente
apostas, como acontecia no texto
mencionado, mas representam
temas importantes do modo como
o discurso das artes
contemporâneas se compõe.
Primeiro a persistência do cinema
na galeria/museu (Flávio
Gonçalves); depois, a escultura
caracterizada por elementos
banais como sapatos, ténis e papel
mas possuindo um conhecimento
muito pertinente do modo como a
colocação de um objecto pode
alterar a totalidade da
configuração espacial (Igor Jesus);
e a pintura que critica e se
apropria de momentos
importantes da história da
disciplina (De Almeida e Silva);
até à utilização do vídeo como
forma de lidar com os fantasmas
internos do sujeito, acedendo a
uma espécie de acesso à
biografia inconsciente do
artista, tão ao tom de Louise
Bourgeois, e como convocação do
jogo de expectativas frustradas e
que o trabalho artístico
protagoniza (Igor Jesus). Entre
outros exemplos possíveis.
A excelência de Bells are still
ringing está no modo arriscado
como, sem medo do erro, procura
novos modos de sentir o trabalho
artístico — um trabalho em que o
essencial, como escreve o curador,
“é a partilha de sentimentos” que
“define o trabalho de
cooperação.” Um risco do qual,
independentemente do juízo
definitivo sobre a singularidade de
cada uma das obras apresentadas,
vale a pena ser cúmplice.
Escultura de Efrain Almeida, um dos artistas que Alexandre Melo incluiu nesta comunidade unida por uma certa energia sentimental
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SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR. OBRIGATÓRIA A APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO NO ACTO DO LEVANTAMENTO.
MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICA APOIO INSTITUCIONALMECENAS CICLO PIANO
14:00h —
ElektraRichard Strauss Orchestre de Paris Coro Gulbenkian Esa-Pekka SalonenPatrice ChéreauColaboração do festivald’Aix-en-Provence e Institut Français du Portugalfilme/ópera, 2013
17:00h —
Orquestra XXIDinis Sousa Gustav Mahler Sinfonia nº1 (versão de câmara)
19:00h —
Vem cantar Gershwin com o Coro GulbenkianJorge Matta Marta Hugon Patrycja Gabrel
21:00h —
Orquestra Gulbenkian e elementos do Estágio Gulbenkian para Orquestra (EGO)Joana CarneiroRichard Strauss Assim falou ZaratustraHector Berlioz Sinfonia Fantástica
23:30h —
2001 Odisseia no Espaço Stanley KubrickFilme, 1968 Grande Auditório – Memorial de uma obraDocumentário de João Mário Grilo — Auditório 3 a partir das 14h00 e em sessões contínuas Acesso InterditoExposição de fotografia de Ana Gaiaz e Márcia Lessagaleria de exposições temporárias
* Requer levantamento prévio de bilhete Bilhetes disponíveis no próprio dia a partir das 10:00hLimitado a 2 bilhetes por pessoa
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GULBENKIAN FESTA REABERTURA 15 FEVEREIRO ENTRADA LIVRE*
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