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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
INTERSECÇÕES E DISTANCIAMENTOS DA AGENDA FEMINISTA NA
PRODUÇÃO DRAMATÚRGICA E TEATRAL DE ZORA SELJAN
Priscila de Azevedo Souza Mesquita1
Resumo: O presente artigo parte de teorias do teatro feminista desenvolvidas por pesquisadoras
inglesas e americanas, e tem por objetivo compartilhar um estudo preliminar das peças Oxum Abalô
e A Orelha de Obá (1958) da dramaturga brasileira Zora Seljan (1918-2006). Neste estudo
buscamos refletir sobre as possíveis intersecções destas peças com o teatro feminista, dialogando
com referenciais teóricos que nos ajudam a compreender o contexto no qual a autora estava
inserida.
Palavras-chave: Dramaturgia feminina brasileira. Estudos pós-coloniais. Mitologia afro-brasileira.
Introdução
Elaine Aston (1995) explica que o conceito feminista de mulheres “escondidas da história”
causou impacto na crítica literária, a qual buscou compreender primeiro “como e por que as
mulheres [...], foram enterrados pela história feita pelo homem e, segundo, iniciou a recuperação de
suas antepassadas femininas ‘perdidas’” (Aston, 1995, p. 15, tradução nossa). Para a crítica literária
isto implica em explicar “como as mulheres foram opressivamente representadas pelos homens na
literatura [...], e encontrar uma tradição de escrita feminina” (Aston, 1995, p. 15, tradução nossa). A
autora explica que uma abordagem feminista dos períodos “clássicos” do teatro ocidental, percebeu
que estes, além de excluir as mulheres, possuíam um aparato crítico fundamentado no sistema de
valores patriarcais, os quais regiam a sociedade e sua produção cultural, definindo o que era bom e
formando um cânone. A autora ainda argumenta que “o padrão de um ‘silenciamento’ histórico dos
textos femininos parece ocorrer quando e onde a autoria feminina critica ou ridiculariza as formas e
ideologias da cultura dominante” (Aston, 1995, p. 25, tradução nossa).
Como indica Marise Rodrigues (2006, p. 34), antes de cogitar a criação de um cânone,
contra-cânone ou não cânone, o importante é resgatar as autoras, suas obras e torná-las conhecidas,
de fácil acesso. Deste modo, poderemos ajudar a construir uma das muitas histórias do teatro
(Brandão, 2006). Os textos dramáticos revelam condutas e discursos enraizados em nossas
estruturas sociais e cognitivas, e a dramaturgia feminina “esquecida” pode, além de fazer essa
revelação, apresentar questionamentos, propor outras condutas e discursos e outros modos de
escrita.
1 Doutoranda em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (PPGAC/ UNIRIO), Rio de Janeiro, Brasil.
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Almejando contribuir com o projeto feminista, compartilhamos neste ensaio o início de
nossa pesquisa de doutorado que tem como objeto de estudo a produção teatral da escritora mineira
Zora Seljan (1918-2006), a qual, a partir de pesquisas folclóricas e etnográficas, produziu uma
dramaturgia inspirada em manifestações culturais e práticas performativas2 afro-brasileiras e
ameríndias. Na sondagem3 inicial sobre produção de Seljan, verificamos aproximadamente 11 peças
publicadas e 18 inéditas4, dentre dramas, comédias, óperas, ballets, farsas, peças para teatro de
bonecos e teatro folclórico. Foi uma autora premiada e sua trajetória está ligada a diferentes áreas
da criação e produção teatral. Fundou o Grupo Folclórico Teatro de Oxumarê e um grupo de teatro
de fantoches; criou programas de teatro para T.V.; assinou a coluna de crítica teatral do jornal O
Globo, foi jornalista, publicou livros de diversos gêneros literários e contribuiu para a realização do
I Congresso de Trovadores e Violeiros (Salvador, 1955); teve peça ilustrada por Carybé, livro
prefaciado por Jorge Amado e peças traduzidas e encenadas em outros países. Diante desta
expressiva produção, nossa pesquisa de doutorado está voltada para o resgate de parte desta história.
Neste ensaio focaremos nas peças Oxum Abalô e A orelha de Obá, que compõem a trilogia
Três Mulheres de Xangô, publicada pela primeira vez em 1958. Levamos em consideração que a
escrita dessas peças foi influenciada pelas características do Conjunto Folclórico Teatro de
Oxumarê, fundado por Seljan e pelo coreógrafo Antonio Novaes em 1956. O Conjunto era
composto por artistas que possuíam o conhecimento de danças, cantos, percussão e danças rituais
(SELJAN, 1978, p. 18). Assim, entendemos que a proposta de encenação de Seljan requer uma
especificidade de ator/ encenador, próxima da prática do brincante (BARROSO, 2007).
Nesta primeira abordagem partimos das noções sobre o teatro feminista desenvolvidas em
nossa dissertação de mestrado (Mesquita, 2012, p. 19), onde elucidamos que:
[...] o teatro feminista apresentado por Aston (1995; 1999), Goodman (1993) ou Dolan
(1991), busca em sua prática, um modo de trabalho relacionado aos ideais feministas do
Women’s Liberation Movement, movimento político que teve início nos anos 1960, durante a
Segunda Onda Feminista, lutando pela igualdade de direitos para as mulheres. Ainda que as
práticas apontadas pelas autoras citadas sejam comuns em grupos feministas, cabe ressaltar
que não são exclusivas destes.
Portanto, neste ensaio iremos buscar possíveis intersecções e distanciamentos entre a
dramaturgia de Seljan e o teatro feminista, tendo em vista que apesar das peças terem sido escritas
antes do Women’s Liberation Movement, há um longo histórico de lutas pelos direitos das mulheres
anteriores a esse movimento, como mostram Lucia Avelar e Patricia Rangel (2010). Para melhor
2 Utilizamos o termo práticas performativas de acordo com Zeca Ligiéro (2011, p. 107). 3 Sondagem realizada em consultas ao arquivo de Zora Seljan, na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB-RJ). 4 Este número é uma estimativa, pois o arquivo ainda não foi verificado em sua totalidade.
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formular a questão deste ensaio, recorremos ao que Sue-Ellen Case (1998) entende como projeto
teórico do feminismo para o teatro, explicando que esta “nova poética” tem por objetivo:
abandonar os valores tradicionais patriarcais incorporados em noções anteriores da forma,
prática e resposta do público a fim de construir novos modelos de crítica e de metodologias
para o drama que acomodaria a presença das mulheres na arte, o apoio a sua libertação das
ficções culturais do sexo feminino e desconstruir a valorização do sexo masculino. [...] Esta
"nova poética" desconstruiria os sistemas tradicionais de representação e de percepção das
mulheres e as colocaria na posição do sujeito (CASE, 1998: 143, tradução nossa).
Seljan desconstrói “os sistemas tradicionais de representação e de percepção das mulheres”
colocando-as na “posição de sujeito”? E no que diz respeito à metodologia de escrita e à forma, ela
ultrapassa os valores dominantes, propondo uma nova forma de escrita? A partir deste primeiro
olhar sobre sua dramaturgia, apontaremos alguns indícios, que nos aproximem dessas questões.
Oxum Abalô
Trata-se de um musical em três atos, com momentos dramáticos entremeados por cantos e
danças rituais do candomblé. A história conta como Oxum, e depois Iansan, se tornam mulheres de
Xangô, e como Oxum vence a guerra contra os Muçurumins. A história começa assim: Oxum,
casada com Oxosse, sente-se solitária porque este volta tarde de suas noites de caça. Oxosse
argumenta que, seus esforços são para prover Oxum, para que nada lhe falte e que quando eles se
casaram ela sabia que ele era um orixá muito ocupado. Oxosse avisa que Xangô, seu irmão, irá
fazer uma visita e pede que Oxum o receba bem. Oxum protesta por ter sido avisada em cima da
hora, pois dá muito trabalho preparar um almoço. Apesar disso, pede à Oxosse caçar um carneiro, a
comida preferida de Xangô, pois a primeira vez que alguém vai à casa de Oxum, deve comer tudo o
que aprecia.
Por interferência de Exu, o mensageiro dos orixás, aquele que provoca a contradição para
alimentar o eterno movimento, o rebanho é tocado para mais longe, e Oxosse demora pra voltar.
Xangô chega na ausência de Oxosse e Oxum lhe oferece o que tem de melhor, em seus melhores
pratos, mas Xangô exige comer na bacia de porcelana em que Oxum lava o rosto. Ekéde, ama de
Oxum, diz para ela ter cuidado, pois ninguém pode fugir ao tempo. Xangô diz para a ama não se
meter no que não é assunto dela. Iansan, irmã de Oxum, entra em cena discutindo com Exu, e é
reprendida por Oxum, por chegar tarde, toda desarranjada e brigando como um rapaz. Oxum diz
para Xangô não reparar, pois sua irmã é esquentada que nem homem e vive brigando.
Oxum oferece o quarto de hóspedes para Xangô descansar, com cama coberta de sedas e
peles, mas isto não agrada Xangô, que exige dormir no chão, ao lado da cama de Oxum. Oxum diz
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que a noite é fria e o chão é duro, mas Xangô insiste, pois isso é o que ele quer, e sempre faz o que
quer. Oxum então consente, e o primeiro ato finaliza com a seguinte frase de Ekéde, pois Oxossi
ainda não havia retornado da mata: “Ah, caçador descuidado, por que não vens proteger tua doce
ovelhinha?” (Seljan, 1978, p. 50).
No segundo ato Oxum já está morando no Palácio de Xangô. Ela se queixa que não dá conta
de suas obrigações como esposa, e sugere que Xangô despose outra mulher para que possam dividir
as obrigações. Então, Oxum, tenta aproximar Iansan e Xangô:
Oxum: [...] Apenas num ponto ainda mereces reparos. Descuida-te da beleza e não te
penteias como moça. Não usas joias e lindos vestidos. Pareces um menino travesso e já estás
em idade de te casar.
Iansan: Gosto tanto de ser livre, Oxum, de correr mundo sem dar conta a nenhum senhor.
Oxum: Tudo isto é bom irmã. Mas o homem foi feito para a mulher e a mulher para o
homem. Tens algum namorado?
Iansan: Meu coração só bate de amor pelas flores e pelas estrelas.
Oxum: Quando o coração vê os olhos do amado, murcham-se as flores e as estrelas
empalidecem.
[...]
Oxum: Um momento, querida! Eu te chamei para pedir-te um favor. Sinto-me indisposta e
me darias alívio se levasse a comida sagrada de Xangô.
[...]
Oxum: Deves te pentear e te vestir com decência para não envergonhares Xangô.
Iansan: Usarei roupas de sedas e colares.
Oxum: E meus braceletes e perfumes (SELJAN, 1978, p. 59).
Na sequência dos atos, Iansan conta à Oxum que bateu em Xangô quando foi levar sua
comida, pois ele tentou beijá-la. Em outro momento, Iansan novamente leva a comida sagrada para
Xangô:
Iansan: Eis tua comida sagrada.
Xangô (Abaixa-se, apanha a vasilha, olha e levanta-se, zangado): Abriste!
(Iansan abaixa a cabeça.)
Xangô: Insensata!
(Iansan esconde o rosto com os braços.)
Xangô: Quem vê minha comida, tem de provar dela!
Iansan: Eu sei!
Xangô: És capaz de comer fogo?
Iansan: Sou! (SELJAN, 1978, p. 69).
Xangô então come sua comida e oferece para Iansan comer:
Xangô: Levanta-te, Iansan! (Oferece-lhe uma espada.) Agora, és o corisco e me
acompanharás nas tempestades.
(Iansan beija e ergue a espada, um relâmpago atravessa o palco.) (SELJAN, 1978, p. 69).
Os Muçurumins se aproximam do reino de Xangô e uma guerra se inicia. Xangô quer que
todos deixem o Palácio e vá para a guerra, mas Oxum se recusa e Iansan o acompanha. Exu, conta a
Oxum que Xangô pensa nela com “ódio e desprezo. Compara tua conduta com a de Obá, sua esposa
mais velha, e a de Iansan, a esposa mais nova, que se cobre de glórias. [...] Xangô pretende
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repudiar-te” (Seljan, 1978, pp. 79,80). Mas Oxum está determinada: “Mostrarei a todos que sou
capaz de lutar, embora deteste a guerra [...]. Xangô mudará seu desprezo em admiração. Ficarei
igual a Iansan e Obá” (Seljan, 1978, p. 80). Iansan tenta interceder em favor de Oxum:
Iansan: Gosto muito de minha irmã Oxum. Ela me criou e sinto orgulho de sua beleza. Fico
tão satisfeita, admirando o encanto e a doçura de sua maneira de ser que me acalmo e sou
capaz de sorrir, mesmo estando furiosa. Contaram-me que vais repudiá-la. Não faça isto,
Xangô... Ela é diferente de nós; é como essas flores delicadas que nascem na água;
murcharia se viesse para a terra.
Xangô: Sabes que também governo a justiça?
Iansan: Sei, mas peço-te...
Xangô (Interrompendo-a): Não peças. Oxum precisa ser castigada. É um exemplo para os
homens. Ela errou; não posso transigir.
(Iansan olha furiosa, vira as costas e sai, pisando duro.)
Xangô (Correndo atrás dela): Moça bonita, escuta! (SELJAN, 1978, pp., 81, 82).
Oxum transforma-se num rio e pede para Exu cobrir os abarás com o molho que está dentro
de um vaso que boia no rio. Xangô e Oxosse fazem as pazes:
Xangô: Oxosse, meu irmão querido, agradeço-te o auxílio que nos trouxeste nesta guerra.
Corremos os mesmos riscos, sofremos as mesmas angústias e não é justo que conserves
rancores de mim. Sei que te ofendi naquilo que mais prezavas, mas não me encontrava no
meu natural, Oxosse; eu estava obedecendo ao tempo. Diz uma palavra e seremos unidos
como antes.
(Oxosse conserva-se calado)
Ogun: Responde, Oxosse. Não ouviste o que disse Xangô? Ele é o mais orgulhoso dos orixás
e, no entanto, caiu a teus pés.
Oxumarê: Oxosse, não podeis continuar brigados por causa de uma mulher que se negou a
lutar. Ela não merece essa honra.
Ogun: Xangô pretende repudiá-la.
Oxosse: Levanta-te, Xangô. Erraste, mas não tiveste culpa. Conheço a malícia das mulheres.
Que podemos fazer quando elas nos tentam?
(Um beija a mão do outro e saem abraçados. [...]) (SELJAN, 1978, pp 84, 85).
Oxum, ainda transformada em rio, manda as mulheres se colocarem na estrada, com os
alguidares contendo os abarás com o molho preparado por Oxum. Os muçurumins se aproximam
das mulheres, tomam à força os alguidares, comem os abarás e morrem. Oxum sai do rio e diz que
Xangô agora poderá orgulhar-se dela, pois derrotou o invasor. No final Xangô reconhece a luta de
Oxum e ela é coroada. Oxóssi sai de cena antes da coroação de Oxum, pois ele precisa esquecê-la.
Neste primeiro olhar sobre Oxum Abalô, expomos algumas impressões que a peça nos causa,
voltando nosso olhar para as relações entre os personagens. No início, a história dá a entender que
Oxum necessita que um homem a proteja de outros homens e que seu futuro está nas mãos de
Oxossi e Xangô. Oxum não queria que Xangô dormisse em seu quarto, mas consente e por isso é
expulsa de sua casa. Ao mesmo tempo, ela faz de tudo para agradar, compreende a necessidade de
Xangô de ter outras mulheres, e lhe arranja outra esposa. Mesmo sendo repudiada por não querer ir
à guerra, Oxum vence a guerra. Ela se mostra uma guerreira, assim como Iansan e Obá, porém
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vence a guerra para mostrar o seu poder à Xangô, um deus que julga, castiga e faz o que quer.
Oxosse perdoa Xangô, mas em nenhum momento estende seu perdão à Oxum. Oxum repreende
Iansan diversas vezes, por não se comportar como uma moça. Iansan, mesmo querendo ser livre,
casa-se com Xangô, como se esse fosse o destino esperado para as mulheres. Por outro lado, Iansan
não deixa de ser uma guerreira, lutando ao lado de seu esposo, e intervém em favor de Oxum,
representando a sororidade existente entre as irmãs. Nesta escrita dramática, muitos diálogos são
emblemáticos do papel que se espera das mulheres e da submissão da mulher ao homem, mas
apesar disso, elas tentam ir além do papel que se espera delas. As falas de Xangô são
representativas de alguém que detém o poder e determina o destino de suas mulheres, mas, ainda
assim, ele reconhece seu erro e glorifica Oxum.
A orelha de Obá
Nesta terceira peça da trilogia, em um ato, também entremeada por cantos e danças rituais
do Candomblé, Seljan se inspira em diferentes versões da lenda de Obá, a mulher mais velha de
Xangô, para explicar como esta perde a sua orelha. No primeiro quadro da peça, Iyá Têbêxê,
narradora da história, questiona quem foi que cortou a orelha de Obá. No coro, alguns respondem
que foi Iansan, e outros respondem que foi Oxum, dizendo que Obá “cortou sua orelha para
conquistar o amor do orixá do trovão” (Seljan, 1978, p. 181). Outros ainda dizem “Depois que
Iansan perdeu a orelha passou a se chamar Obá” (Seljan, 1978, p. 182).
No segundo quadro dramatiza-se uma das versões da lenda, na qual Obá tenta descobrir o
segredo de Oxum para receber tanta atenção de Xangô:
Obá: Xangô demora-se a teu lado e quando me visita é correndo, que nem por obrigação...
Oxum: Cisma boba, mana.
Obá: Está sempre cansado, queixando-se dos trabalhos... Que devo fazer para agradá-lo?
Oxum: A mulher é dominada pela cabeça. E está certo, porque a maternidade, zeladora da
vida, perpetua e desenvolve a inteligência da mulher. A mulher é a terra e o homem tal qual
um passarinho.
Obá: Queres dizer que...
Oxum: ... que a obrigação da terra é ser alimento, repouso e aconchego.
Obá: Dás tudo isto a Xangô?
Oxum: Ofereço-lhe iguarias renovando sempre os temperos. Enfeito a casa, me cubro de
jóias e perfumes para esperá-lo. Faço vestidos novos; mudo o penteado; invento iguarias
diferentes... Vês, não tenho segredo algum. O homem se governa pelo carinho.
Obá: Qual, irmã. Estás escondendo algum feitiço... Mas sou teimosa. Acabarei descobrindo-
te (SELJAN, 1978, p. 183).
Obá volta mais tarde à casa de Oxum e mexe nas panelas em busca do segredo. Oxum, que
está com um pano enrolado em sua cabeça, havia colocado um cogumelo com uma pérola dentro da
panela, e Obá pensa que é uma orelha. Como Oxum estava irritada pela intromissão de Obá, não
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desmente a história e ainda acrescenta: “É minha orelha direita. Cortei-a e coloco-a sempre na
comida. Deixo dar umas fervuras e guardo-a novamente dentro do sal, para não estragar” (Seljan,
1978, p. 186). Obá sai rindo, achando que descobriu o segredo de Oxum.
No terceiro quadro, quando Xangô vai abraçar Oxum, Obá entra em cena com um prato de
comida. Está ensanguentada, com uma faixa em torno de sua cabeça e Xangô a repugna:
Obá (Para Xangô): Meu senhor, prova esta comida.
Xangô (Recuando): Que horror! Tens as mãos e o rosto banhados em sangue!
[...]
Obá: É minha orelha direita que te ofereço ainda quente!
Xangô: Ah, infeliz! Estragaste minha alegria! Tira de meus olhos esta carne repugnante!
[...]
Oxum (Aproximando-se provocadoramente de Obá): Que ganhaste, mexeriqueira?
Obá (Atirando o prato em Oxum, que desvia): Ai de ti, desgraçada! A culpa é tua!
Oxum: Descobriste muito bem o meu segredo.
Obá (Avançando): Se eu te pegar, corto-te o pescoço.
Oxum (Desviando-se): Queres um brinco para enfeitar a orelha cortada?
Obá (Correndo para Oxum): Vou te dar uma argola de ferro e um colar de sangue! (Oxum
sai do palco perseguida por Obá)
Xangô (Como se estivesse acordando do choque): Mulheres! Respeitai minha presença!
(SELJAN, 1978, p. 188).
Já no quarto quadro, é contada outra versão da lenda de Obá. Nesta passagem, Obá é
mostrada como a orixá guerreira que conduziu o exército de Xangô na luta contra os muçurumins e
como uma curandeira, que ajuda os doentes. As falas de três homens do exército conduzido por
Obá, mostram uma relação dialética no que diz respeito à posição social desta mulher. Enquanto as
falas do 2º e o 3º homem exaltam os feitos de Obá e dizem que devem obedecê-la “porque ela é
mais forte e melhor do que todos” (Seljan, 1978, p. 190), as falas do 1º homem são direcionadas à
desvalorizar Obá: “Os guerreiros estão cansados de obedecer a uma mulher” (Seljan, 1978, p. 190).
O 1º e o 2º homem lutam por causa de uma espada, cada um reclamando para si a posse da
mesma. Obá entra no meio da luta para apartá-la e desafia o 1º homem, que é vencido por Obá e
morre. Nesta luta Obá perde sua orelha e diz: “Mais vale o braço que empunha a arma do que a
orelha que só pode aguentar uma frágil argola” (Seljan, 1978, p. 195).
Xangô, sabendo que o exército liderado por Obá está próximo, os convida para repousar em
seu palácio. Mas Obá manda o 2º homem dizer que não pode aceitar o convite porque os guerreiros
estão com peste. Xangô não acredita nesta mensagem e envia pelo 2º homem um bálsamo de
marisco e taioba para curá-la, dizendo que só levantará de seu trono para abraçá-la. Obá usa o
bálsamo e vai com seu exército ao palácio de Xangô. Ela de cabeça baixa o cumprimenta, com o
pano enrolado em sua cabeça e tenta esconder-lhe o ferimento.
Xangô (Erguendo-se): Levanta-te, rainha guerreira! [...] Salve Obá, filha das águas e esposa
do fogo.
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Obá: Salve Xangô, o doador do fogo!
Coro: O alívio das dores!
Obá: O céu te recompense!
Xangô: Colocaste meu bálsamo na tua ferida?
Obá: Assim o fiz.
Xangô: Então arranca esta venda!
Obá: Poupa-me o vexame. A cicatriz deve ser feia.
Xangô: Ordeno!
Obá (Tirando o capacete e desatando o pano, ao mesmo tempo que apalpa a ferida e
exprime admiração): Meu senhor! Cresceu de novo! Estou perfeita!
Coro: Milagre de Xangô!
Obá (Estendendo as mãos para Xangô): Abençoada seja a tua cabeça!
Coro: “Kauô Kabiêcile!”
Xangô (Segurando as mãos de Obá): És bela como o sol ao meio dia. Eu te amo, rainha da
guerra! (SELJAN, 1978, pp. 200, 201).
Observando o movimento desta história, o que podemos perceber é que se na primeira
versão da lenda, aparecem mulheres brigando por causa de um homem, na segunda versão, Obá
aparece como uma mulher guerreira, comandante de um exército, mas sua posição como
comandante não é totalmente aceita, justamente por ser uma mulher. Mas, mesmo sendo Obá uma
guerreira e curandeira, no fim, quem lhe cura é um homem.
Aproximações Possíveis
Se ponderarmos que Seljan era uma mulher, escrevendo sobre mulheres, ainda que se trate
de personagens mitológicos e que apareçam definidas em relação a um deus masculino, podemos
estabelecer uma relação com o pensamento de Hélène Cixous. Em The Laugh of the Medusa
(1976), Cixous sugere que as mulheres devem escrever sobre as mulheres e para as mulheres, como
um meio de resistência e transformação. Assim, a écriture féminine incentivará que outras mulheres
escrevam e, deste modo, entrem na história da qual foram excluídas.
Do mesmo modo, Aston (1999) esclarece que para o teatro feminista radical/ cultural, que
teve influência do pensamento de Cixous, levar as experiências femininas para o palco seria um
meio de tornar o teatro um lugar onde as mulheres pudessem olhar e refletir sobre suas próprias
experiências. Portanto, Seljan ao levar para o texto teatral a história das três deusas, revelando
conflitos pelos quais as mulheres passam em suas vidas, possibilita que a leitora/ espectadora reflita
sobre as suas próprias experiências. Podemos também entender que a autora coloca em cena três
arquétipos femininos, três possibilidades de ser mulher (Cecconello; Navarro, 2016), sendo que
cada arquétipo também apresenta diferentes facetas. Cada uma das deusas carrega em si uma tensão
entre uma potencial emancipação, em acordo com as suas personalidades próprias, e uma
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necessidade de obediência ao deus masculino. Mesmo quando se mostram poderosas, necessitam da
aprovação do deus.
Ao observar que autora coloca em cena histórias de mulheres e se empenha em tornar
visíveis práticas performativas que não tinham lugar nos espaços “oficiais”, arriscamos dizer que
ela se aproxima do teatro feminista. De acordo com Thiago dos Santos Molina (2011, p. 81), “a
presença de intelectuais, artistas e políticos no terreiro, uma marca do Opô Afonjá5, é uma estratégia
utilizada amplamente desde a gestão de Mãe Aninha para garantir a liberdade de culto e a
legitimidade do terreiro na sociedade oficial”. E, dentre estas presenças no Opô Afonjá, Molina
menciona Zora Seljan.
O dado acima apontado, nos leva a dialogar com a antropóloga norte-americana Ruth
Landes. Seu livro Cidade das Mulheres (2002) trata da pesquisa realizada no Brasil, no ano de
1938, sobre os candomblés da Bahia, focando sua atenção na presença de mulheres nos terreiros, e
o papel fundamental que desempenham nesse espaço. O que a autora mostra ao longo do livro é o
quanto os terreiros eram também um espaço de resistência feminina dentro de uma sociedade regida
por padrões patriarcais. Nos terreiros, organizados e gerenciados principalmente pelas mulheres, e
nos quais somente elas podiam dançar, as mães de santo e sacerdotisas não se casavam, pois
precisavam ter a liberdade para se dedicar ao seu santo e à sua casa, não podendo assim estar
subordinadas ao padrão católico de casamento. Porém, muitas delas mantinham relações duradouras
com seus parceiros, e necessitavam do auxílio financeiro que estes lhe proviam.
Marize Rodrigues, na introdução do livro de Landes (2002, pp. 12-15), escreve que a autora
ultrapassa a visão corrente entre os antropólogos de sua época em diversos aspectos: Landes opta
“por seguir a interpretação dos nativos em sua narrativa sobre a vida cotidiana deles”; evidencia as
“normas contraditórias de comportamento”, e as trata “justamente como contraditórias”; e vai além
da noção de que
a dominação masculina, vigente na sociedade brasileira como um todo, era também vigente
nos cultos afro-brasileiros. Ao desmontar este esquema simplista, mostrando a proeminência
das mulheres nos cultos nagô e dos homossexuais nos cultos caboclos, Landes expôs uma
fratura de gênero na análise dos cultos afro-brasileiros que merece atenção até hoje
(LANDES, 2002, p. 15).
Cogitamos que os textos de Seljan apresentam uma situação conflitante similar ao que nos
apresenta Landes: as mulheres almejam e lutam por sua emancipação, criando seus espaços e
estratégias de resistência, mas ao mesmo tempo se submetem e perpetuam determinadas normas,
revelando condutas fortemente arraigadas em uma sociedade patriarcal.
5 Ilê Opô Afonjá, Terreiro de Candomblé localizado em Salvador.
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À medida que aumentamos a lente com a qual olhamos para sua dramaturgia, a análise vai
se revelando cada vez mais complexa. Os textos expressam a hibridização surgida do encontro de
diferentes culturas e que não se restringe apenas ao processo de colonização do Brasil, mas vem de
períodos anteriores. As peças, inspiradas na mitologia afro-brasileira e nos ritos do candomblé,
representam um universo simbólico que combina aspectos da cultura de diferentes etnias africanas,
reelaboradas em solo brasileiro. Assim, esta mitologia também carrega em si alguns valores
patriarcais que sustentam a igreja católica (Landes, 2002). Além disso, os textos de Seljan
apresentam a intersecção de diversas formas de opressão, revelando além de conflitos religiosos,
opressões de classe, gênero e raça.
A hibridização cultural, manifestada na dramaturgia, não necessariamente foi consentida e
esconde por trás da máscara folclórica uma longa história de opressão, dor e sofrimento, mas
também de resistência. De acordo com Edward Said (2011, p. 26), “a preocupação ideológica com a
identidade está compreensivelmente entrelaçada com os interesses e programas de vários grupos –
nem todos de minorias oprimidas – que desejam estabelecer prioridades que reflitam tais
interesses.” Portanto, a arte, imbuída de uma ideologia, não somente manifesta de forma subjetiva o
processo de dominação material, como também pode ser um instrumento para a dominação ou para
a resistência.
[...] as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca
das regiões do mundo; elas também se tornam o método usado pelos povos colonizados para
afirmar sua identidade e a existência de uma história própria deles. [...] O poder de narrar, ou
de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o
imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos (SAID, 2011, p. 8).
Ao se inspirar nas formas e nos temas da cultura popular e na tradição oral, influenciada
pelo pensamento folclórico, os textos de Seljan expressam problemas relacionados ao projeto de
construção de uma identidade nacional. Ao mesmo tempo, os textos podem ser lidos como uma
forma de resistência à homogeneização cultural ditada pelos resquícios da cultura imperial, pois
afirma e legitima narrativas excluídas.
Entendemos, portanto que o domínio de um povo sobre outro, a conquista de bens e
territórios não se dá somente por meio da violência física e do derramamento de sangue, mas
também por vias subjetivas, sendo a linguagem uma grande aliada. E existem várias formas de
impedir que narrativas da diferença emirjam e se consolidem, sendo que uma delas é dificultar a
sobrevivência de artistas e pesquisadores por falta de recursos financeiros.
Elucubramos, portanto, que a pouca atenção dada à obra da autora, se explicaria não
somente pelo seu gênero, mas principalmente pelos temas abordados em sua dramaturgia e a
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estética escolhida. Ela funde na dramaturgia práticas performativas, ficando num lugar “entre” a
escrita tradicional e os ritos afro-brasileiros. Não sendo nem um, nem o outro, encontra-se num
espaço liminar, pois as formas tradicionais da dramaturgia parecem não dar conta do universo
abordado.
Outro fator, diz respeito à desvalorização da disciplina do Folclore (Vilhena, 1997), e o
preconceito existente em relação à cultura popular, o que impedia o financiamento oficial dos
grupos folclóricos existentes no período (Moraes, 1968). Além disso, para receberem
financiamento, os espetáculos eram classificados de acordo com a porcentagem que tinham de texto
falado, e os espetáculos folclóricos eram desclassificados por conter muitas danças e cantos
(Moraes, 1968). Sem financiamento, não conseguiam dar continuidade às montagens.
Para finalizar, ressaltamos que este ensaio reflete um estudo em fase inicial, e somente
apontamos caminhos que nos levem para um aprofundamento da pesquisa. Até o momento não
encontramos indícios que nos levem a crer que Seljan tivesse um posicionamento feminista,
portanto, a aproximação desta dramaturgia com o teatro feminista se dá somente pelo nosso olhar.
Consideramos, por fim, que a invisibilidade de sua produção teatral silenciou não só a autora, mas
também a diversidade de vozes subjacente à sua obra. Compartilhar este estudo é nossa
contribuição para que essas vozes possam ser ouvidas.
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Title: Possible intersections between the feminist theater and the plays Oxum Abalô and A
orelha de Obá of Zora Seljan
Astract: This article is based on feminist theater theories developed by english and american
researchers and aims to share a preliminary study of the plays Oxum Abalô and A orelha de Obá of
the Brazilian playwright Zora Seljan (1918-2006). In this study, we seek to reflect on the possible
intersections of these plays with the feminist theater dialoguing with theoretic references that help
us to understand the context in which the author was inserted.
Keywords: Zora Seljan. Dramaturgy. Feminist Theater. Brazilian Theater History.