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João Pessoa – Brasil | ANO 1 VOL.1 N.1 | JUL./DEZ. 2014 | p. 155 a 170 155 Revista Latino-americana de Jornalismo | ISSN 2359-375X Internet: imagens no espaço e tempo Internet: images in the space and time ENTREVISTA: Marcos Palacios Interview: Marcos Palacios REALIZADA EM 21 DE SETEMBRO DE 2012 TRANSCRITA EM 26 DE OUTUBRO DE 2014 Resumo Entrevista concedida pelo professor Marcos Palacios, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) ao Programa Olhar da TV UFPB por ocasião da realização do III Pentálogo, promovido pelo Centro Internacional de Semiótica e Comunicação (CISECO), na cidade de João Pessoa, Paraíba, em setembro de 2012. Tema: “Internet: imagens no espaço e tempo”. A entrevista foi conduzida pelas professoras Emília Barreto e Virgínia Sá Barreto (professora do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFPB). Transcrição: Profa. Dra. Sandra Regina Moura (PPJ-UFPB). Palavras-chave Internet; Jornalismo digital; Jornalismo móvel; Interatividade. Abstract Interview given by Professor Marcos Palacios, of the Universidade Federal da Bahia (UFBA) to the Olhar Program of the TV UFPB at the completion of CISECO in the city of João Pessoa, Paraíba, in September of 2013. Theme: "Internet: images in space and time". The interview was conducted by teachers Emilia Barreto and Virginia Sá Barreto (teacher PPJ / UFPB). Transcript: Prof. Dr. Sandra Regina Moura (PPJ-UFPB). Keywords Internet; Digital journalism; Mobile journalism; Interactivity. Marcos Palacios JORNALISTA. Doutor em Sociologia pelo Center for Latin- American Studies da University of Liverpool (1979). Atua na área de pesquisa e ensino de Comunicação, com ênfase em Webjornalismo, Jornalismo Comparado e Novas Tecnologias de Comunicação. Criador, juntamente com o Prof. André Lemos (UFBA) do Grupo Ciberpesquisa, pioneiro no Brasil em estudos de Cibercultura (1996); criador juntamente com o Prof. Elias Machado, do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online (GJOL), um dos grupos pioneiros no estudo do ciberjornalismo no Brasl (1995). Em 2009 recebeu o Prêmio Adelmo Genro Filho como Pesquisador Senior, outorgado pela SBPJor (Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo). É professor-titular da Universidade Federal da Bahia. Autor e organizador dos livros Modelos de jornalismo digital (2003), Manual de Laboratório de Jornalismo na Internet (2007), Ferramentas para análise de qualidade no Ciberjornalismo (2011), dentre outros.

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João Pessoa – Brasil | ANO 1 VOL.1 N.1 | JUL./DEZ. 2014 | p. 155 a 170 155

Revista Latino-americana de Jornalismo | ISSN 2359-375X

Internet: imagens no espaço e tempo Internet: images in the space and time

ENTREVISTA: Marcos Palacios

Interview: Marcos Palacios

REALIZADA EM 21 DE SETEMBRO DE 2012 TRANSCRITA EM 26 DE OUTUBRO DE 2014

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Resumo Entrevista concedida pelo professor Marcos Palacios, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) ao Programa Olhar da TV UFPB por ocasião da realização do III Pentálogo, promovido pelo Centro Internacional de Semiótica e Comunicação (CISECO), na cidade de João Pessoa, Paraíba, em setembro de 2012. Tema: “Internet: imagens no espaço e tempo”. A entrevista foi conduzida pelas professoras Emília Barreto e Virgínia Sá Barreto (professora do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFPB). Transcrição: Profa. Dra. Sandra Regina Moura (PPJ-UFPB).

Palavras-chave Internet; Jornalismo digital; Jornalismo móvel; Interatividade.

Abstract Interview given by Professor Marcos Palacios, of the Universidade Federal da Bahia (UFBA) to the Olhar Program of the TV UFPB at the completion of CISECO in the city of João Pessoa, Paraíba, in September of 2013. Theme: "Internet: images in space and time". The interview was conducted by teachers Emilia Barreto and Virginia Sá Barreto (teacher PPJ / UFPB). Transcript: Prof. Dr. Sandra Regina Moura (PPJ-UFPB).

Keywords Internet; Digital journalism; Mobile journalism; Interactivity.

Marcos Palacios JORNALISTA. Doutor em Sociologia pelo Center for Latin-American Studies da University of Liverpool (1979). Atua na área de pesquisa e ensino de Comunicação, com ênfase em Webjornalismo, Jornalismo Comparado e Novas Tecnologias de Comunicação. Criador, juntamente com o Prof. André Lemos (UFBA) do Grupo Ciberpesquisa, pioneiro no Brasil em estudos de Cibercultura (1996); criador juntamente com o Prof. Elias Machado, do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online (GJOL), um dos grupos pioneiros no estudo do ciberjornalismo no Brasl (1995). Em 2009 recebeu o Prêmio Adelmo Genro Filho como Pesquisador Senior, outorgado pela SBPJor (Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo). É professor-titular da Universidade Federal da Bahia. Autor e organizador dos livros Modelos de jornalismo digital (2003), Manual de Laboratório de Jornalismo na Internet (2007), Ferramentas para análise de qualidade no Ciberjornalismo (2011), dentre outros.

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Marcos PALACIOS ▪ ENTREVISTA

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professor Marcos Palacios esteve em João Pessoa, em setembro

de 2013, entre os convidados do I Colóquio Semiótica das Mídias,

promovido pelo CISECO – Centro Internacional de Semiótica e

Comunicação. Na ocasião o professor concedeu esta entrevista especial às

professoras Emília Barreto e Virgínia Sá Barreto, gravada para o programa

Olhar, da TV UFPB. O professor fala sobre sua trajetória acadêmica e

sobre as pesquisas que vem desenvolvendo nas áreas de jornalismo

digital, palataformas móveis e novos recursos de veiculação jornalistíca.

Novas pesquisas em jornalismo digital

Eu atualmente estou trabalhando em duas áreas de preocupação dentro

do jornalismo digital, que é o espaço acadêmico em que me tenho movido

nos últimos vinte anos. Por um lado, tenho me dedicado a questões

relacionadas aos novos suportes para o jornalismo digital – os

smartphones e os tablets - e seu impacto no ecosistema midiático

contemporâneo. E nesse sentido estou particularmente interessado nas

potencialidades que se abrem com uma nova característica propiciada por

esses suportes que é a tactilidade.

Nós temos tradicionalmente pensado o jornalismo na internet em termos

de características próprias desse suporte para a prática jornalística e para

o consumo da informação jornalística: a hipertextualidade, a

interatividade, a multimidialidade, a instantaneidade, a potencialização da

memória e a personalização. Com as novas possibilidades abertas pelos

dispositivos que servem de suporte para o jornalismo na mobilidade surge

uma nova característica: a tactilidade. O uso do táctil como um sentido

humano é tremendamente potencializado. É claro que poderíamos dizer

que quando usamos o mouse já estamos, de alguma forma, envolvidos

com a dimensão táctil. Mas nas telas tactéis isso se potencializa

enormemente: utilizamos os dedos, o toque e os diferentes movimentos

de dedos, para produzir diferentes ações, e não só isso, pois podemos

também pelo táctil receber informação. Podemos ter um feedeback de

informação a partir do dispositivo. Com o mouse isso não acontece. Na

tela táctil você pode, por exemplo, fazer um determinado movimento e

sentir uma vibração como resposta a esse movimento. Esta é uma das

áreas de reflexão e experimentação na qual tenho trabalhado

recentemente.

O

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A outra área que tem me interessado, já de algum tempo, e que foi o

objeto mais direto de minha participação no evento realizado pelo Centro

Internacional de Semiótica e Comunicação (Ciseco), é a questão da

memória associada ao jornalismo, mais especificamente ao jornalismo nas

redes de alta velocidade e agora à sua prática nos suportes da mobilidade.

Tenho produzido reflexões sobre essa relação entre o jornalismo, a

memória e a História.

Tactlidade, Jornalismo e dispositivos móveis

O tipo de trabalho que tenho feito sobre a tactilidade não vai pelos

caminhos da cognição ou das relações entre a tactilidade e os processos

psicológicos ou fisiológicos da tactilidade. Essas são áreas importantes,

nas quais há muitos trabalhos realizados, mas que fogem à minha

competência.

Tenho me direcionado mais para questões práticas ligadas ao jornalismo,

associando a tactilidade ao design, equacionando os desafios de como

adaptar a produção jornalística nas interfaces da mobilidade a essa nova

potencialidade e dela tirar proveito. E aqui entram também em cena as

ideias de [Marshall] McLuhan, porque o McLuhan diz que o conteúdo de

um meio é sempre o meio

anterior. E nesse caso

também isso se verifica. O

que nós temos em relação

aos suportes da mobilidade,

aos smartphones e aos

tablets, num primeiro

momento, é a transposição

das formas de fazer do

jornalismo que já estão

consolidadas, que já estão

testadas no jornalismo da

web. Isso ocorre da mesma

maneira que nas primeiras

fases da produção na web, quando foram transpostos para o novo suporte

os modelos existentes do jornalismo impresso: transpunha-se, física e

metaforicamente, o jornalismo impresso para o jornalismo na web. Agora

temos um fenômeno semelhante que é a transposição da metáfora da

web para o dispositivo móvel. A metáfora facilita para o usuário a

utilização dos novos dispositivos, ao apresentar o semelhante, o já

conhecido. E facilita para o produtor que ainda não inventou formas

O que me tem interessado e ao grupo do Laboratório de Jornalismo

Convergente da Universidade Federal da Bahia, ao qual estou

ligado nesse projeto, é como criar uma linguagem própria dessas

novas plataformas, desses novos suportes, que não seja

simplesmente a utilização transpositiva.

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Marcos PALACIOS ▪ ENTREVISTA

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capazes de explorar cabalmente as novas potencialidades que lhe são

oferecidas pelos novos suportes.

O que me tem interessado, e ao grupo do Laboratório de Jornalismo

Convergente da Universidade Federal da Bahia, ao qual estou ligado nesse

projeto, é como criar uma linguagem própria dessas novas plataformas,

desses novos suportes que não seja simplesmente a utilização

transpositiva. Até porque a utilização transpositiva não contempla a

tactilidade, ou contempla a tactilidade de uma maneira muito primária,

porque não há o potencial da interação. O que me parece importante é

pensar justamente de que maneira essa tactilidade pode incrementar o

controle do usuário sobre o produto e isso naturalmente se liga a duas

características do jornalismo na web: à interatividade, por um lado, e à

personalização, pelo outro.

A interatividade é afetada,

no sentido de que a

tactilidade é um elemento

para acrescer essa

interatividade, o uso do táctil

naturalmente expande as

possibilidades de interação

entre o usuário e o produto,

isso é bastante claro,

especialmente quando se

considera a possibilidade de

um feedeback táctil. Não se

trata apenas de que eu

possa fazer mais movimentos e acessar mais facilmente menus, ter uma

agilidade maior nessa minha interação, mas eu posso, a partir do

feedeback, ter uma interação nos dois sentidos, quer dizer, eu interajo

com o dispositivo e recebo uma resposta do dispositivo, uma resposta

táctil e que me leva a uma outra forma de interação, por exemplo. Isso

por um lado.

Por outro lado, no Laboratório de Jornalismo Convergente nós estamos

também interessados no potencial de costumização que essa forma de

interagir traz consigo, o potencial para que a informação seja cada vez

mais pessoal, mais personalizada. A forma de consumir cada produto pode

A forma de consumir cada produto

pode ser ajustada às necessidades

de cada usuário, aos seus

interesses. Se me interessa mais

um determinado tipo de informação

ou outro determinado tipo de

informação, eu posso personalizar

o consumo do produto jornalístico.

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ser ajustada às necessidades de cada usuário, aos seus interesses. Se me

interessa mais um determinado tipo de informação ou outro determinado

tipo de informação, eu posso personalizar o consumo do produto

jornalístico. Acredito que a tactilidade incrementa a possibilidade dessa

personalização. Em parceria com Rodrigo Cunha, um especialista da área

do design, temos nos preocupado em pensar as formas de traduzir essa

potencialidade em termos de design, em termos de interfaces que

possibilitem o máximo de aproveitamento da característica e, ao mesmo

tempo, percebendo que isso se liga fortemente a essas outras duas

características [interatividade e personalização], pré-existentes em

qualquer suporte web para o jornalismo.

Jornalismo, Memória e armazenamento de dados

Outra área que tenho pesquisado, que tem me interessado no âmbito do

jornalismo de uma maneira geral e do jornalismo digital, nas redes

telemáticas mais particularmente, é a questão da relação entre o

jornalismo, a memória e a História.

Inicialmente eu diria que o

primeiro mito a ser desfeito é

a ideia que se resume num

ditado popular que diz: “o

jornal de ontem só serve

para embrulhar peixe”. Isso,

absolutamente, não é

verdade. Serve também para

embrulhar peixe, certamente,

mas não serve só para

embrulhar peixe; embrulhar

peixe é uma nobre função do

jornal do dia anterior, mas

não é a única. O jornal de

ontem sempre foi uma fonte,

uma forma de guardar a memória, uma forma de preservar a memória e

uma fonte para a História. Isso sempre ocorreu.

O jornal impresso registra o cotidiano, a atualidade que imediatamente se

torna passado, e esse cotidiano registrado e posteriormente resgatado, no

futuro se torna um elemento de reconstituição do passado e, portanto,

uma fonte para o historiador, o especialista na interpretação

Se um político se manifesta sobre alguma coisa, o que ele já disse

antes sobre isso? O que ele disse antes está de acordo com o que

ele está dizendo hoje, ou está em contradição? São formas de

recuperação da memória, fazendo a memória dinâmica na produção e

na recepção e possibilitando um jornalismo mais contextualizado,

que é uma marca do jornalismo de qualidade.

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historiográfica. Claro que o jornalismo enquanto uma fonte da História, o

jornalismo enquanto um reservatório da memória, demanda uma

interpretação como todo documento histórico, os documentos históricos

só existem num processo de interpretação.

Há uma autora norte-americana, Barbie Zelizer, que diz que, de uma certa

maneira, o jornalismo se constitui no primeiro borrador, um primeiro

rascunho da História, que depois é aproveitado pelo historiador. O

historiador dá a esse borrador uma forma mais definitiva através do

método historiográfico, dos recursos da multiplicidade de fontes a que

recorre, através da junção dessas diferentes fontes e do diálogo que o

historiador estabelece entre essas diferentes fontes.

Então, fica claro que desde os primórdios do jornalismo impresso, essa

atividade produzia um

reservatório de memória. Era

uma memória de acesso um

pouco complicado, porque

para acessá-la era necessário

ir a uma biblioteca, ao

arquivo do jornal, ou a uma

hemeroteca que tivesse

preservado as coleções dos

jornais. Muitas vezes isso era difícil ou mesmo impossível porque esse

material se deteriorava, já não existia mais.

Com a digitalização da informação de uma maneira geral, com a

digitalização da informação jornalística de maneira mais particular, esses

reservatórios de memória se potencializam enormemente. Essa memória

que era uma memória estática, escondida, por assim dizer, nesses

arquivos e nessas hemerotecas, passa a ser uma memória dinâmica, no

sentido de que pode ser utilizada tanto no processo de produção da

informação quanto no processo de recepção. Por que? Porque o jornalista

ao trabalhar a informação jornalística da atualidade, do momento, pode

imediatamente recorrer aos arquivos que estão digitalizados.

Naturalmente isso pressupõe a digitalização desses arquivos; nem todos

os jornais têm os seus arquivos digitalizados hoje em dia, mas isso é algo

que vem acontecendo de maneira crescente. Acho que podemos prever

que no futuro todos terão os seus arquivos passados digitalizados e os

O jornal de ontem sempre foi uma

fonte, uma forma de guardar a

memória, uma forma de preservar a

memória e uma fonte para a

História. Isso sempre ocorreu.

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seus arquivos de internet preservados. Assim, ao produzir a informação, o

jornalista pode se socorrer e ilustrar seu texto com a informação já

acumulada sobre aquele assunto ou assuntos correlacionados; no

processo de produção jornalística, a memória é acionada e se torna uma

memória dinâmica em contraposição à memória estática que dormia nos

arquivos de jornais e nas hemerotecas.

No processo de recepção acontece algo similar: cada vez mais o jornal

online, o jornal nos suportes novos da mobilidade, aciona a memória. Já

estamos acostumados a encontrar indicações ao pé da notícia do tipo “leia

mais”, ou “veja também”, que remetem ao percurso anterior daquela

informação ou a assuntos correlacionados no passado, remetem, portanto,

à memória jornalística. Como consumidores podemos agora mais

facilmente acessar essa informação passada. E o que isso produz? Produz

uma maior contextualização do fato jornalístico, o que é um elemento

fundamental para a qualidade do produto jornalístico. O que temos?

Temos essa transformação de uma memória estática numa memória mais

dinâmica, e de certa maneira, dado o grau de potencialização, isso é

quase uma ruptura em termos da memória anterior.

O jornalismo nos suportes anteriores à internet também usava a memória.

Estamos acostumados a ver no jornal impresso aquele ‘quadro’ aquele

‘olho’ no meio da matéria, fazendo uma recuperação de memória. Todo

jornal sempre teve um setor de pesquisa dentro da sua organização. Eu

próprio já trabalhei no setor de pesquisa de um jornal, onde fazíamos

justamente isso. Um fato importante ocorria e nós éramos solicitados a

produzir ‘uma memória’ desse fato ou de fatos correlacionados; quando

não havia muito que fazer, escrevíamos obituários de pessoas vivas,

“aquele lá está com o pé na cova...”. A memória naturalmente era

acionada, mas acionada de uma maneira muito menos frequente e

habitual.

A memória era acionada em momentos muito específicos, em momentos

comemorativos. Era o Dia 7 de Setembro? Então tinha que entrar um

quadrinho lembrando as margens do Ipiranga; completava-se o

aniversário da morte de alguém, então tinha que ter uma biografiazinha

para recuperar a memória. Ou então morreu fulano de tal e ai vai a

história completa do monstro ou santo, a depender do posicionamento do

jornal. A memória só era acionada esporadicamente, como um

complemento de certo tipo de narrativa jornalística.

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A memória dinâmica do jornalismo online possibilita uma outra utilização,

que é entretecer o fato da atualidade com essa memória, seja qual for o

fato. Todo acontecimento de alguma forma tem memória, tem fatos

correlatos do passado que podem ampliar essa contextualização, facilitar

essa contextualização. Se um político se manifesta sobre alguma coisa, o

que ele já disse antes sobre isso? O que ele disse antes está de acordo

com o que ele está dizendo hoje ou está em contradição? São formas de

recuperação da memória fazendo a memória dinâmica na produção e na

recepção e possibilitando um jornalismo mais contextualizado, que é uma

marca do jornalismo de qualidade.

Eu diria que o jornalismo de qualidade hoje é o jornalismo que produz

contexto. Porque produzir a informação direta e imediata do fato a própria

internet, em grande medida, produz, através de seus múltiplos

mecanismos de geração e circulação de informação. Tivemos na palestra

do professor Marc Abélès, no Ciseco, e numa passagem ele dizia que o

jornalista já não é necessário como mediador porque a internet produz a

informação e o jornalista apenas comenta. Discordo, porque acho que é

muito mais do que isso, o jornalista continua tendo uma função de

mediação, porque há uma imensa quantidade de informação que tem que

ser checada, filtrada, que tem que ser hierarquizada e colocada num

formato específico que é o formato jornalístico.

Há uma diferença entre informação e informação jornalística, entre

informação e discurso jornalístico estruturado, entre informação bruta e

informação hierarquizada, entre

informação descontextualizada e

informação contextualizada.

Contextualização é uma tarefa

fundamental para o jornalista de

hoje e para o jornalista do

futuro, se nós pensarmos em

termos de produção de um

jornalismo de qualidade. É claro

que a recuperação da memória,

da informação passada, é um

poderosíssimo elemento na criação dessa contextualização. Contextualizar

é ligar o que está acontecendo hoje com outras coisas que estão

acontecendo hoje e que fazem alguma conexão, mas é também ligar essa

O jornalista continua tendo uma função de mediação, porque há uma imensa quantidade de informação que tem que ser checada, filtrada, que tem que ser hierarquizada e colocada num formato específico que é o formato jornalístico.

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informação ao que aconteceu ontem, há um mês, há vários anos. O

passado também produz contexto.

Marginálias Jornalísticas Contemporâneas

Primeiro gostaria de explicar

um pouco o que é marginália.

Entendo marginália no

sentido dicionarizado da

palavra, como anotações de

margem. Nada tem a ver com

marginal no sentido

pejorativo da palavra, mas

tem a ver com margem no

sentido da margem de um

texto. A marginália enquanto

processo de produção textual

existe desde sempre; não sei

se podemos ir até a Idade da

Pedra, mas de repente até na

Idade da Pedra alguém

escrevia alguma coisa, fazia

algum sinal e alguém ia lá e fazia outra anotação, feita por outro autor a

partir de um signo produzido por um primeiro autor, um comentário aqui

seria uma marginália da Pedra Lascada. Nas pinturas rupestres da Serra

da Capivara [Piauí] há desenhos que foram posteriormente

complementados por outros autores. Teríamos ali exemplos de uma

marginália gráfica primitiva?

Pensando em termos mais recentes, os manuscritos eram frequentemente

anotados. O material usado para os manuscritos, o suporte para a escrita,

era muito caro, por isso era necessário utilizar todo o espaço disponível e

as margens eram largamente usadas para anotações não só sobre o texto

do manuscrito, mas algumas vezes até para a produção de outros textos.

Quando a imprensa é inventada e o livro se estabelece, a marginália

continua sendo uma prática, porque até antes da segunda fase da

revolução industrial os livros ainda eram caros e cada volume impresso

tinha uma circulação ampla. Circulavam por grupos de pessoas e, muitas

vezes, esses grupos se serviam das anotações de quem havia lido antes,

como forma de trocar comentários, trocar impressões sobre aquele texto.

O que me interessa é a relação

entre memória, História e

jornalismo. Esses comentários

podem ser vistos de duas formas.

Podemos procurar nesses

comentários uma forma de

alargamento da informação

jornalística. Os comentários de

alguma forma complementam essa

informação, contradizem essa

informação, trazem elementos de

tensão, trazem outras vozes.

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Marcos PALACIOS ▪ ENTREVISTA

João Pessoa – Brasil | ANO 1 VOL.1 N.1 | JUL./DEZ. 2014 | p. 155 a 170 164

O que estou tentando estabelecer é um paralelo entre esse tipo de prática

e os comentários de leitor como uma forma de marginália ao texto

jornalístico. Há quem diga que os comentários nos jornais não são

novidade e sempre existiram na forma mais restrita das cartas do leitor,

das cartas ao diretor, cartas à redação, que são comentários que os

leitores faziam e que eram naturalmente filtrados e colocados na edição

seguinte. No entanto, hoje o que nós temos é a possibilidade de um

comentário imediato com o jornalismo digital. Essa escrita à margem do

texto principal na forma de comentários de leitor passa a ter uma

ocorrência imediata após a divulgação do texto. Estou fazendo esse

paralelo entre a marginália clássica, a marginália literária, a que sempre

existiu, e essa nova forma de marginália no texto jornalístico que seriam

os comentários.

O que me interessa é a relação entre memória, História e jornalismo.

Esses comentários podem ser vistos de duas formas. Podemos procurar

neles uma forma de alargamento da informação jornalística. Os

comentários de alguma forma complementam essa informação,

contradizem essa informação, trazem elementos de tensão, trazem outras

vozes. O comentário aparece como elemento de multivocalidade nesse

jornalismo produzido para web, para o suporte da mobilidade. Por outro

lado, certos comentários podem ser verdadeiras ‘pérolas’ como, por

exemplo, a intervenção de um especialista que dá uma visão muito

precisa sobre aquilo que está veiculado na informação, ou a manifestação

de uma personalidade ilustre, que tem ou vem a adquirir no futuro um

interesse intrínseco. O New York Times colocou todo o seu arquivo de

jornais impressos na web e uma das coisas que se pode fazer é garimpar

personalidades que foram publicadas enquanto comentadores, que

assinaram cartas de leitores, pessoas ilustres, com Einstein ou Mark

Twain, que frequentaram as páginas do jornal enquanto comentadores de

notícia. Muitas personalidades podem ser recuperadas aí. Isso também

acontece no jornalismo na internet, onde o pesquisador pode pinçar certas

pérolas.

Outra dimensão que me interessa, para além das possíveis pérolas, é que

esses comentários, no futuro, podem também servir como um indicador

de um certo ‘espírito do tempo’: o que se comenta ali reproduz um pouco

qual era o contexto em que aquilo acontecia e quais eram as opiniões

mais recorrentes sobre um determinado assunto. Também o número de

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comentários pode constituir uma informação valiosa: se uma notícia é

mais comentada, outra menos comentada, o que é que isso pode nos

indicar em termos da situação em que essa recepção se deu naquele

momento? Esse tipo de produção discursiva, que estou chamando de

marginália jornalística, através dos comentários de leitores pode se

constituir num outro tipo de reservatório de memória para utilização

futura e em fonte para estudos de atitudes e comportamentos.

Eu costumo dar o exemplo de um vídeo que foi produzido pela União

Europeia, fazendo uma defesa da economia europeia, na base do apelo

“compre produtos europeus e não compre produtos de outros países”.

Nesse vídeo havia uma super-heroína, que era a Europa, e apareciam três

vilões, que eram o Brasil, a Índia e a China. O Brasil era o capoerista que

ia lá lutar contra a heroína, o chinês atacava com uma cortante arma

chinesa e a Índia era representada por um hindu com poderes mágicos.

Isso provocou muito mal-estar, muitas críticas, acusações de racismo e

etnocentrismo. O vídeo acabou sendo retirado do ar. Encontrei e guardei

uma notícia sobre a retirada do vídeo, publicada no jornal português

Diário de Notícias, com muitos comentários de leitores. É muito curioso

porque ali estão comentários de brasileiros e portugueses. Há muitos

brasileiros trabalhando, vivendo em Portugal. E há brasileiros vivendo no

Brasil que lêem jornais portugueses. Então havia muitos comentários de

brasileiros e portugueses. Numa verdadeira guerra. Muito daquilo era pura

troca de insultos.

Para se apreciar esses comentários e essa guerra de insultos é preciso

levar em conta o contexto. A troca de farpas está, de certa maneira,

refletindo o contexto em que a produção e a retirada do vídeo se deram.

O fato ocorreu num momento em que se estava justamente invertendo

uma relação que era da movimentação desses brasileiros e desses

portugueses. Os brasileiros que lá estão foram para Portugal há cinco,

seis, 10 anos atrás, quando havia prosperidade em Portugal, ofereciam-se

muitas oportunidades, os brasileiros foram para lá para usar essas

oportunidades. Com a crise econômica, isso foi se invertendo: os

brasileiros foram perdendo os seus empregos lá e os portugueses estão se

movimentando para o lado de cá. Sente-se nos comentários um reflexo

dessa situação e isso é interessante em termos de evidenciar um

determinado contexto, um determinado momento, as circunstâncias

específicas em que aquela recepção se dá e porque a recepção se dá

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daquela forma. Esse é um exemplo concreto do interesse que eu tenho

em relação a esses comentários, a essa marginália jornalística.

O que digo também é que esses comentários, e a classificação que deles

fazem as empresas de comunicação (“notícias mais comentadas”, “mais

compartilhadas”), também evidenciam o que eu chamaria de ‘agenda

secundária’, não secundária no sentido de menos importante, mas sim

secundária no sentido de que a agenda primária seria a agenda dos mídia,

o que está sendo agendado pelos mídia. E esses comentários produzem o

agendamento da recepção, fornecem pistas de como a agenda primária

foi recebida. São informações muito valiosas para a empresa: para que

lado isso vai? Como retenho e fidelizo minha audiência? Mas são também

valiosas para o jornalista, pois indicam o interesse da audiência, a

oportunidade de se dar continuidade a um assunto.

Mas para além da questão de mensuração de audiência, está também a

questão do ‘espírito de tempo’, tradução aproximada da expressão alemã

Zeitgeist. O professor Antonio Fidalgo, da Universidade da Beira Interior,

que participou da jornada do Ciseco, fez comentários pertinentes, tem

reservas ao uso da expressão Zeitgeist porque a expressão tem um

sentido bem estabelecido na Filosofia. Eu a utilizo de uma forma menos

rigorosa, com um sentido genérico, do dicionário: Zeitgeist como esse

espírito de tempo, uma determinada configuração que independe da

vontade de cada um, como o conjunto dessas vontades, o conjunto

dessas manifestações e da forma como nos manifestamos em

determinados momentos. Se a proibição do vídeo, que usamos como

exemplo, tivesse acontecido em um momento anterior, as manifestações

seriam de outra ordem. Vejo o Zeitgeist como aquilo que leva os atores,

coletivamente, a terem um âmbito de expressão e não outro âmbito de

expressão; como um delimitador dos caminhos das opiniões, um

demarcador de fronteiras de pensamento e posicionamentos em um

determinado momento, em determinadas circunstâncias. Sempre é

possível ir contra o Zeitgeist, é claro, mas teremos então um pensamento

e um posicionamento ‘contra a corrente’, ‘a contrapelo’, com suas

consequências positivas ou negativas.

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Interatividade e produção de informação

Quando falamos de participação do leitor é preciso desfazer alguns mitos.

Em primeiro lugar, essa ideia do cidadão repórter. Vamos com calma!

Uma coisa é ser fonte, produzir uma informação factual. Estou em casa e

cai um avião no terreno do lado e eu filmo isso. É uma forma de registro.

Em seguida, ligo para o jornal e digo: “caiu um avião”. Isso é uma forma

de produção de informação, de registro, de testemunho. A produção

jornalística é mais que isso. É o registro de um fato dentro de uma

determinada lógica discursiva e balizado por uma prática que é histórica e

não é essencialista. Não existe uma essência do jornalismo, mas existe

uma história do jornalismo e existe o jornalismo na História e, portanto,

esse texto que é reconhecido como jornalístico é mutável. Mas mesmo

sendo mutável, ele é, a cada momento, reconhecido como tal; a cada

momento histórico há um formato discursivo jornalístico com suas

especificidades, em contraposição ou complementação a outros formatos

textuais, discursivos, como por exemplo o formato discursivo jurídico, o

formato discursivo literário, o científico e por ai afora.

Quando nós lemos um texto, que está inserido em um determinado

tempo, somos capazes de dizer: isso é um texto jurídico, isso é um texto

literário, isso é um texto jornalístico. Dizer que todos somos jornalistas

quando colocamos alguma coisa na internet é uma bobagem. Somos,

cada vez mais, produtores de informação, verificáveis ou não. Somos

jornalistas – ainda que não tenhamos diplomas de cursos de jornalismo,

registro de jornalista ou o que seja – quando produzimos textos dentro de

um formato jornalístico e balizado pelos critérios que configuram a prática

jornalística num determinado momento histórico. Aí, sim, o cidadão pode

ser considerado jornalista, no sentido de que produziu um texto com essas

características.

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Quando uma empresa jornalística se propõe a transformar todos os seus

leitores em jornalistas, devemos tomar isso com muito cuidado. Na

verdade, o maior interesse da empresa jornalística é a fidelização do

leitor, e estou falando do jornalismo das grandes empresas, do chamado

mainstream. Não estou

falando, é claro, do

jornalismo alternativo, mas

sim do jornalismo da grande

mídia. Quando se abre ao

cidadão, com o intuito de

fidelizá-lo como leitor, a

possibilidade de contribuir na

produção de informação, os

resultados são em geral

risíveis. Se vocês tomarem

uma página do chamado

‘jornalismo cidadão’ nos

grandes jornais, o que vamos

ver é um mosaico de

informações retrabalhadas

pela redação, um mosaico de

informações totalmente

descabeladas, desconectadas,

sem qualquer critério de

hierarquia de informação. O

que chegar serve, o que

chegar se encaixa. Se eu disser “foi atropelado um gato em minha rua”, a

informação é publicada. Uma festa familiar que aconteceu, a formatura de

um grupo de estudantes do ensino fundamental em uma escola da

periferia da cidade, tudo é publicado e com o mesmo destaque do

atropelamento do gato. Onde estão os critérios de noticiabilidade? Onde

está a hierarquia da informação? A quem aquele conjunto heterogêneo

pode interessar? Olho pra aquilo e nem consigo me situar ali. Interessa

para os amigos e família daquele que viu o gato atropelado e teve seu

testemunho publicado no jornal, interessa para os alunos daquela escola

de periferia e seus familiares. Isso fideliza os leitores, pois eles se sentem

acolhidos. Busca-se dessa maneira a formação de comunidade, a

comunidade dos produtores e dos consumidores da informação, vende-se

A produção jornalística é o registro

de um fato dentro de uma

determinada lógica discursiva e

balizado por uma prática que é

histórica e não é essencialista. Não

existe uma essência do jornalismo,

mas existe uma história do

jornalismo e existe o jornalismo na

História e, portanto, esse texto que

é reconhecido como jornalístico é

mutável. Mas mesmo sendo

mutável ele é, a cada momento,

reconhecido como tal; a cada

momento histórico há um formato

discursivo jornalístico com suas

especificidades, em contraposição

ou complementação a outros

formatos textuais, discursivos (...)

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a ideia de que “nós formamos uma comunidade”. Faz sentido? Muito

pouco enquanto produção jornalística de qualidade, com interesse público,

critérios claros de noticiabilidade, padrões éticos, hierarquia informativa,

contextualização, ainda que, eventualmente, peças produzidas pelos

leitores tenham de fato valor jornalístico e possam até mesmo ‘subir’ para

as páginas principais do jornal. Mas faz muito sentido, principalmente,

quando o objetivo é fidelizar a audiência.

A fidelização do leitor no jornal impresso sempre se deu pela formação de

comunidade. Os leitores e assinantes de O Estado de S. Paulo formam

uma comunidade. O meu pai era leitor e assinante de O Estado de São

Paulo e passou para mim,

como que uma herança, o

hábito de assinar e ler esse

jornal, ao qual me acostumei

desde a infância. Nas redes

isso é mais complicado.

Porque os conteúdos se

tornam muito homogêneos.

Como fidelizo? Como faço

com que esse leitor volte ao

meu site e não a outro? Uma

das maneiras é buscar

fidelizar o leitor criando esse

sentimento de comunidade e

acolhendo a sua participação

dentro dessa comunidade

não apenas como leitor, mas

como ‘colaborador’, como

‘coenuciador’, ainda que isso

acontece apenas em páginas

especialmente concebidas para tal finalidade, ainda que suas contribuições

acabem em um gueto noticioso em forma de mosaico.

Por outro lado, isso se reflete também nos comentários do leitor. Nessa

modalidade de acolhimento, abre-se também a notícia principal para que

o leitor se expresse. Da mesma maneira que já se abria com as cartas. Só

que agora de uma maneira muito mais potencializada e muito menos

filtrada. Em geral há pouca censura nos comentários de leitores e passam

muitas coisas. Existem filtragens, existe censura no sentido de retirar ou

Dizer que todos somos jornalistas quando colocamos alguma coisa na internet é uma bobagem. Somos, cada vez mais, produtores de informação, verificáveis ou não. Somos jornalistas – ainda que não tenhamos diplomas de cursos de jornalismo, registro de jornalista ou o que seja – quando produzimos textos dentro de um formato jornalístico e balizado pelos critérios que configuram a prática jornalística num determinado momento histórico. Aí, sim, o cidadão pode ser considerado jornalista, no sentido de que produziu um texto com essas características.

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impedir a entrada de textos ou expressões que venham a gerar processos

jurídicos contra a empresa, mas pelo geral os comentários são publicados

na íntegra. Por outro lado, se não há muita filtragem, tampouco há

respostas.

Os comentários ficam lá, essa marginália fica por lá e eu espero que

venha a ser útil no futuro, para nos ajudar a recuperar a História e a

memória do nosso tempo. Mas no momento presente muito pouco do que

se comenta é respondido por aqueles que abrem esse espaço, pelas

empresas e pelos próprios jornalistas. É muito raro que o jornalista leia

aqueles comentários e em determinado momento entre ali e responda:

“Olha fulano, você disse isso, mas na verdade também tem isso, eu vi, eu

afirmo que sim, porque eu entrevistei. É verdade que o que você comenta

não entrou na matéria, mas para compensar eu vou colocar aqui esse

texto da entrevista com essa outra pessoa, com uma outra versão”, etc

etc. Isso não acontece ou acontece muito raramente na imprensa

tradicional. Nesse sentido, essa marginália vale mais como elemento de

fidelização no momento presente, mas pode vir a servir como elemento de

recuperação de memória e de construção da narrativa histórica no futuro.