intermedialogias
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Uma cartografia poética sobre o Grupo de Interferência Ambiental - GIATRANSCRIPT
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MORGANA BARBOSA GOMES
INTERMEDIALOgiaS:
UMA CARTOGRAFIA POTICA SOBRE O GRUPO DE INTERFERNCIA AMBIENTAL-GIA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas, Escola de Teatro e Dana, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para o ttulo de mestre em Artes Cnicas.
Orientadora: Prof. Dr. Sonia Lucia Rangel
Salvador2013
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Escola de Teatro - UFBA
Gomes, Morgana Barbosa. Intermadialogias: uma cartografia potica sobre o grupo de interferncia ambiental - GIA / Morgana Barbosa Gomes. - 2013.
148 f. il.
Orientadora: Prof. Dr. Sonia Lcia Rangel. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2013.
1. Artes cnicas. 2. Performance (Arte). 3. Ambientalismo interfe- rncia. 4. Teatro - Esttica. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. II. Ttulo.
CDD 700
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AGRADECIMENTOS
Ao GIA, que me ensina a estarjunto.A Sonia Rangel, pela sabedoria sensvel.A Denise Coutinho, Alex Beigui e demais professores e colegas do PPGAC, que colaboraram para o amadurecimento desta pesquisa.Ao bloco De Hoje a Oito, Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices, Opavivar, Poro, Frente 3 de Fevereiro, Rodante, Safadinhas, Fiar e bairro Santo Antnio, pela ampliao do corpus coletivo.A Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, pelo financiamento.
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RESUMO
Trata-se de uma pesquisa sobre o Grupo de Interferncia Ambiental-GIA, na qual adotou-se uma perspectiva potico-conceitual fundamentada pela ecosofia de Felix Guattari, entre outras influncias. Fez-se uma leitura das interferncias do GIA como potica micropoltica na arte contempornea, a partir de um mtodo prtico-terico, no qual foi realizada uma imerso da pesquisadora junto ao grupo, nos anos de 2011 e 2012, em Salvador e Cachoeira-BA. Foram selecionadas interferncias que aconteceram nesse espao-tempo, a saber: Samba GIA, Cerveja GIA, Caramujo, Quartel General, Carrinho, Pic Nic, Judas, Cabine DR e Flutuador, bem como o bloco de carnaval De Hoje a Oito e a Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices. O corpus terico da pesquisa, produzido a partir da articulao de referncias na arte e na filosofia contemporneas, enfatizou questes esttico-polticas trazidas no encontro sujeito-objeto, bem como questes metodolgicas e epistemolgicas que determinam o carter potico-conceitual da cartografia como mtodo e forma de pesquisa, inspirado em Suely Rolnik. So trazidas as proposies de alguns artistas da vanguarda brasileira, como a Interferncia Ambiental, de Hlio Oiticica, bem como as poticas de Lygia Clarck e Cildo Meireles. Essas referncias esto articuladas com a esttica relacional como teoria da forma, de Nicolas Bourriaud, e com a esttica como forma de socialidade sugerida por Michel Maffesoli e Michel de Certeau. So utilizados os conceitos de heterotopia, de Michel Foucault e de rizoma e alguns dos seus princpios derivados, como a heterogeneidade e a multiplicidade, de Gilles Deleuze & Guattari. A multiplicidade trazida, tambm, por talo Calvino como uma das propostas para o nosso milnio. Nesta cartografia potica, prope-se, ainda, uma epistemologia da arte, na qual a performance a expresso artstica da complexidade, conceito apropriado do pensamento de Edgar Morin, revelado em linguagens mltiplas e em estudos que pressupem uma escrita performativa. Esta cartografia constitui-se em uma leitura crtico-criativa da passagem potica pelo GIA, revelando uma performance de resistncia capitalizao da arte e das relaes sociais pela mdia e pelo mercado cultural, podendo trazer contribuies relevantes para o desenvolvimento dos Estudos da Performance, no mbito local-global das Artes Cnicas.
Palavras-Chave: Artes Cnicas, Performance, Interferncia Ambiental, Esttica Relacional, Potica Micropoltica
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ABSTRACT
This is a survey of the Group Environmental Interference-GIA, in which we adopted a perspective grounded by poetic-conceptual "ecosophy" Felix Guattari, among other influences. There was a reading of the interference of the GIA as micro poetic in contemporary art, from a practical-theoretical, which was held immersion of the researcher with the group, in the years 2011 and 2012, in Salvador, Bahia and Cachoeira . Were selected interference that happened in this space-time, namely: Samba GIA GIA Beer, Snail, Headquarters, Shopping, Pic Nic, Judas Booth DR and float, as well as a carnival Of Today Eight and Arts Fair , Wonders and esquisitices. The theoretical base of the research produced through the articulation of references in art and contemporary philosophy emphasized aesthetic-political issues brought against the subject-object, as well as methodological and epistemological issues that determine the character of the poetic and conceptual mapping as method and form of research, inspired by Suely Rolnik. The theoretical propositions of some of the Brazilian avant-garde artists such as Interference Environmental, Hlio Oiticica and Lygia Clark poetics and Meireles. These references are articulated with "relational aesthetics" as gestalt theory, Nicolas Bourriaud, and aesthetics as a form of sociality Meffesoli suggested by Michel and Michel de Certeau. We use the concepts of "heterotopia", Michel Foucault and "rhizome" and some of its principles derivatives such as "diversity" and "multiplicity" of Gilles Deleuze & Guattari. Multiplicity is brought also by Italo Calvino as one of the proposals for our millennium. In this poetic cartography, it is proposed also an epistemology of art, in which the performance is the artistic expression of the "complexity" of the appropriate concept Edgar Morin, revealed in multiple languages and studies that presuppose a performative writing. This mapping is in a critical and creative reading of poetic passage by GIA, revealing a performance of resistance capitalization art and social relations by the media and the cultural market and can bring significant contributions to the development of Performance Studies at local-global context of Performing Arts.
Keywords: Arts spectacle, Performance Art, Environmental Interference, Relational Aesthetics, Poetics micropolitics
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LISTA DE ILUSTRAES1
Figura 0. Introduo a uma nova crtica, Cildo Meireles ............................................................ 9Figura 1. As gias .......................................................................................................................... 10Figura 2. Anel de Moebius com Pssaros, Escher ...................................................................... 16Figura 3. Samba GIA na Lavagem do Bonfim, Salvador-BA .................................................... 25Figura 4. Samba GIA em festa do De Hoje a Oito, Salvador-BA .............................................. 28Figura 5. Samba GIA no FIAR, em Cachoeira-BA ..................................................................... 29Figura 6. Rtulo Cerveja GIA ......................................................................................................30Figura 7. Zero Dolar, Cildo Meireles ......................................................................................... 31Figura 8. Zero Cruzeiro, Cildo Meireles .....................................................................................31Figura 9. Cdula, Cildo Meireles ............................................................................................... 32Figura 10. Coca-Cola, Cildo Meireles ....................................................................................... 32Figura 11. Musa & Cerveja GIA, 2012 ...................................................................................... 32Figura 12. Cartaz Cerveja GIA ................................................................................................... 32Figura 13. Cerveja GIA no QG .................................................................................................. 32Figura 14. Cosmococa, Cildo Meireles e Neville d'Almeida ......................................................33Figura 15. Cosmoconha ...............................................................................................................33Figura 16.Caramujo na Lavagem do Bonfim, Salvador-BA .......................................................34Figura 17. Caramujo em Salvador-BA ....................................................................................... 34Figura 18. Caramujo na Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices, Salvador-BA .....................35Figura 19. Caramujo, em Terra Una, Serra da Mantiqueira, MG ...............................................35Figura 20. Caramujo, Samba GIA e Cerveja GIA no FIAR, em Cachoeira-BA ..........................35Figura 21. Caramujo com Opavivar em Me d Motivos, Salvador-BA .....................................35Figura 22. Parangol, Hlio Oiticica .......................................................................................... 36Figura 23. Cartaz abertura do QG na casa 7 ............................................................................... 37Figura 24. QG na casa 7, Salvador-BA ........................................................................................38Figura 25. Cartaz para Samba GIA e Cerveja GIA, Salvador-BA ...............................................39Figura 26. QG no MAM, Salvador-BA .......................................................................................39Figura 27. Cartaz Reunio Aberta do GIA, Salvador-BA ............................................................40Figura 28. Cartaz Cazao, Salvador-BA ....................................................................................41Figura 29. GIA cozinha para voc, no Cazao, Salvador-BA ...................................................42Figura 30. Maquiagem de Mnica Santana, e Sirva-se, de Olga Lamas, no Cazao, Salvador-BA.. 43Figura 31. Vdeo e Canto, com Erik Saboia e Aish Roriz, Cazao, Salvador-BA .................... 43Figura 32. Carrinho na Mudana do Garcia, Salvador-BA ......................................................... 44Figura 33. Carrinho em Salvador-BA ......................................................................................... 44Figura 34. Carrinho em Cachoeira-BA ....................................................................................... 45Figura 35.Carrinho em Salvador-BA .......................................................................................... 45Figura 36. Carrinho na Espanha .................................................................................................. 45Figura 37. Carrinho na Alemanha ............................................................................................... 45Figura 38. Cartaz Pic Nic ..............................................................................................................46Figura 39. Gia e Opavivar, em Me d Motivos, Salvador-BA ................................................... 47Figura 40. Michele Matiuzzi com GIA e Opavivar em Me d Motivos, Salvador-BA ............. 48Figura 41. Gia e Opavivar, em Me d Motivos, Salvador-BA .................................................. 48Figura 42. Carrinho do Opavivar, em Me d Motivos, Salvador-BA ........................................ 49Figura 43. Pic Nic, em Me d Motivos, Salvador-BA ................................................................. 49Figura 44. Judas em Salvador-BA ............................................................................................... 50Figura 45. Judas em Salvador-BA ............................................................................................... 51
1 Todas as ilustraes foram extradas da internet.6
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Figura 46. Michelle Mattiuzi beija Judas, Salvador-BA ............................................................. 52Figura 47. Judas, Salvador-BA ....................................................................................................52Figura 48. Judas, Salvador-BA ....................................................................................................52Figura 49.Cabine DR, na Festa do Santo Antnio, Salvador-BA ................................................53Figura 50. Chamada para Cabine DR, em Ns Cuidamos de voc, Salvador-BA ...................... 54Figura 51. Cabine DR, na Festa do Santo Antnio, Salvador-BA ............................................... 55Figura 52. Cabine DR, na Festa do Santo Antnio, Salvador-BA ............................................... 55Figura 53. Cabine DR, na Festa do Santo Antnio, Salvador-BA ............................................... 56Figura 54. Cabine DR, na Festa do Santo Antnio, Salvador-BA ............................................... 57Figura 55. Cartaz Flutuador ........................................................................................................ 58Figura 56. Flutuador, no MAM, Salvador-BA ............................................................................ 59Figura 57. Flutuador, no FIAR, Cachoeira-BA ......................................................................... 59Figura 58. Flutuador, em Me D Motivos, Salvador-BA .............................................................61Figura 59. De Hoje a Oito, no Carnaval, Salvador-BA ...............................................................65Figura 60. nio Bernardes, no De Hoje a Oito, Carnaval, Salvador-BA ....................................66Figura 61. De Hoje a Oito, na Festa de Yemanj, Salvador-BA ................................................. 67Figura 62. Estandarte do De Hoje a Oito, na Festa de Yemanj, Salvador-BA ..........................67Figura 63. De Hoje a Oito, no Carnaval, Salvador-BA .............................................................68Figura 64. De Hoje a Oito, no Carnaval, Salvador-BA .............................................................68Figura 65. De Hoje a Oito, no Carnaval, Salvador-BA .............................................................69Figura 66. De Hoje a Oito, no Carnaval, Salvador-BA ............................................................ 69Figura 67. Cartaz Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices .....................................................70Figura 68. Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices ................................................................ 71Figura 69. Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices .................................................................71Figura 70. Poemas e Sussurros, na Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices ..........................72Figura 71. Blides, Hlio Oiticica ..............................................................................................73Figura 72. Ncleos, Hlio Oiticica .............................................................................................78Figura 73. Penetrveis, Hlio Oiticica ...........................................................................................78Figura 74. Cartaz GIA ..............................................................................................................81Figura 75. Caminhando, Lygia Clark .........................................................................................82Figura 76. Bichos, Lygia Clarck .................................................................................................82Figura 77. GIA, em Salvador-BA ............................................................................................ 88Figura 78. Malhas de Liberdade, Cildo Meireles. ..................................................................... 90Figura 79. Peixe Morto, Submidialogia, Arraial D'Ajuda ......................................................... 93
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SUMRIO
INTRODUO: DAS DICOTOMIAS FEITAS P ................................................................ 9
O OBJETO COMO SUJEITO SOCIAL ........................................................................................ 9
PERCURSO POTICO-CONCEITUAL ......................................................................................14
CARTOGRAFIA COMO MTODO E FORMA ........................................................................ 20
n-1 3 : ISTO NO MATEMTICA ...................................................................................... 23
PLAT 1: MUSEU O SANTO ANTONIO ...........................................................................25
1.1. SAMBA GIA: REGISTRO EXPANDIDO ............................................................................. 27
1.2. CERVEJA GIA: POR UMA TTICA DE CONSUMO ........................................................ 30
1.3. CARAMUJO: FAA VOC MESMO UM PARANGOL .................................................. 34
1.4. QUARTEL GENERAL: HABITAR COMO OBRA DE ARTE ............................................. 37
1.5. CARRINHO: PELA ARTE DA MDIA LIVRE ................................................................... 44
1.6. PIC NIC: NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM PIC NIC ............................................... 46
1.7. JUDAS: OPERAO DE GERRILHA ARTSTICA ........................................................... 50
1.8. CABINE DR: O PARADOXO DA INTIMIDADE PBLICA ............................................. 53
1.9. FLUTUADOR: DE UMA DANA HETEROTPICA ........................................................ 58
PLAT 2: POTICA MICROPOLTICA .......................................................................... 64
2.1. DE HOJE A OITO: UM COLETIVO HETEROGNEO ..................................................... 65
2.2. Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices ............................................................................ 70
2.2.1. Poemas e Sussurros .............................................................................................. 72
2.3. INTERFERNCIA AMBIENTAL ....................................................................................... 74
2.4. ESTTICA RELACIONAL .................................................................................................. 84
2.5. O RIZOMA COMO MEIO DE PRODUO ..................................................................... 96
CONSIDERAES INCONCLUSAS ..................................................................................... 99
REFERNCIAS ....................................................................................................................... 103
ANEXO - CD Samba GIA
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DAS DICOTOMIAS FEITAS P
Onde h possibilidade da sntese, jamais fazer uma anlise.
Cildo Meireles
Figura 0. Introduo a uma nova crtica, Cildo Meireles.
O OBJETO COMO SUJEITO SOCIAL
O Grupo de Inferferncia Ambiental-GIA, objeto desta pesquisa, um coletivo de artistas
visuais, designers, arte-educadores e msicos, em sua maioria egressos da Escola de Belas Artes, da
Universidade Federal da Bahia - UFBA, constitudo em Salvador-BA, desde 1996, quando se
intensifica o surgimento desse gnero de potica na arte contempornea, com diversas
manifestaes no Brasil. Atualmente composto por Everton Marco, Ludmila Brito, Tiago Ribeiro,
Mark Davis, Cristina Llanos, Luis Parras e Cristiano Piton, o coletivo, em seu discurso e
comportamento, foge s tentativas de definio, o que traduz uma caracterstica dos tempos
contemporneos.
Aleatoriedade, humor e reflexes a respeito da vida cotidiana e suas singularidades: talvez esses sejam pontos chaves do GIA, coletivo artstico que foge a qualquer
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tentativa de definio. O grupo formado por artistas [] que tm em comum, alm da amizade, uma admirao pelas linguagens artsticas contemporneas e sua pluralidade, mais especificamente quelas relacionadas arte e ao espao pblico. Pode-se dizer que as prticas do GIA beberam na fonte da arte conceitual, em que o estatuto da obra de arte negado, em favor do processo e, muitas vezes, da ao efmera, buscando uma reconfigurao da relao entre o artista e o pblico. Um dos principais objetivos do grupo a utilizao de meios que possibilitem atingir uma margem cada vez maior de pessoas, tomando de assalto o espao pblico. Assim, as aes do GIA procuram interrogar as condies em que os indivduos atuam com os elementos do seu entorno, produzindo, assim, significados sociais. E esses significados, so tambm, processuais, pois segundo John Cage o mundo, na realidade, no um objeto, um processo. O GIA, portanto, est disposto a questionar as convenes sociais sempre que possvel, atravs de prticas concretas infiltradas em pequenas transgresses. A esttica GIA, baseada na simplicidade e ao mesmo tempo irnica, procura mostrar, portanto, que a arte est indissoluvelmente ligada vida (CATLOGO DO GIA, 2008).
Figura 1. As gias
Utilizando-se de uma esttica simples em sua estrutura e complexa em suas relaes, o GIA
produz interferncias ambientais, sobretudo, nos espaos pblicos da cidade, e se dilui de tal
maneira no cotidiano, que a arte deixa de ser privilgio de uma elite, para ser uma qualidade de
encontros provocados ou aleatrios, a partir da apropriao criativa dos elementos do dia a dia,
pelas pessoas que imergem no espao-tempo da sua potica. Aos 17 anos de existncia, com um
discurso que se pauta nos conceitos da anti-arte, o GIA acumula em sua histria interferncias feitas
e rarefeitas em diversos momentos e lugares: Quartel General (QG), Quanto, Bales, Carrinho,
Caramujo, Pipoca, Baba na Ladeira, Arrumadinho, Flutuador, Departamento de Interferncia
Ambiental (DIA), Fila, Rgua, Cama, Pic Nic, Sorriso Amarelo, No Propaganda, Manual do
Gato, Sapato de Papelo, Rabo do Tamandu, Salo de Maio, Curtir e No Curtir, O GIA cozinha
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pra voc, entre outras. Essas interferncias aconteceram com maior frequncia em Salvador-BA,
apresentando-se tambm em outros estados (Pernambuco, So Paulo, Esprito Santo, Rio de
Janeiro, Cear, Minas Gerais) e pases (Alemanha, Frana, Espanha, Holanda e Blgica). A
circulao e reconhecimento nacional e internacional da sua potica, a proximidade espao-
temporal do coletivo (possibilitada pela minha residncia em Salvador durante a pesquisa) e a
simpatia constatada em suas pginas virtuais, dotadas de provocaes agudas e bem humoradas,
foram elementos que confluram para minha escolha do GIA como objeto de pesquisa. Interessava-
me, a princpio, encontrar linhas de fuga coletivas para uma habitao mais alegre da cidade, o
ambiente em que vivemos, atravs de experincias criativas, o que denominei potica micropoltica.
Em pesquisas iniciais sobre insurgncias ou intervenes urbanas no Brasil e no mundo,
atravs de contedo disponibilizado na internet, o GIA se destacava como a referncia mais potente,
na Bahia. Durante a pesquisa, desloquei minha ateno da problemtica urbana e seus efeitos
sensoriais, que me levaram a buscar outros modos de habitao na cidade, para a criao de
ambientes, em uma perspectiva potica, atravs de interferncias ambientais. Isso implicava na
habitao da realidade objetiva atravs de uma produo coletiva de subjetividade mediada pelo
GIA como sujeito social.
Meu primeiro encontro presencial com o GIA aconteceu em 8 de maio de 2010, em
Cachoeira-BA, quando ainda no era pesquisadora do grupo. Ao tomar conhecimento, via internet,
de que o GIA faria uma performance no Salo Audiovisual do Recncavo2, parti de Vitria da
Conquista-BA, para encontr-los, tendo esse primeiro encontro acontecido em um bar de esquina.
Era fim de tarde, quando acompanhei a montagem do Caramujo, s margens do Rio Paraguau,
onde estaramos dois anos depois, quando oficializada uma relao de pesquisa acadmica, na qual
experimentaramos uma tenso das categorias, at ento insuspeitveis, de sujeito-objeto. Durante o
Salo, o Caramujo fora feito como ambiente imersivo para o Samba GIA, acolhendo um pblico
diverso e contando com a presena ativa de transeuntes daquela cidade, entre os quais destaco
jovens e mestres da msica regional. No decorrer do samba, o GIA props a performance do troca-
troca, na qual os presentes trocavam peas de roupa no meio da rua, quando vivemos o paradoxo da
no-representao em uma experincia pblico-privada (tratado mais especificamente no texto
sobre a Cabine DR). Nessa performance deixei com o GIA a blusa que vestia naquela ocasio, que
veio a se tornar acervo do coletivo, tendo-a encontrado durante uma das mudanas da sua sede, em
2012, quando fizemos uma ldica interpretao do meu retorno para eles, como uma espcie de
maGIA.
O processo criativo do GIA d-se a partir dos encontros com os integrantes do coletivo entre
si ou com outras pessoas. As reunies acontecem duas vezes por semana, em suas sedes provisrias
ou na casa das gias e so a condio primeira para o surgimento das ideias-aes, a partir de um
2 http://pub.descentro.org/wiki/salaodoreconcavo11
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movimento espontneo entre o prazer do encontro, a amizade, a reflexo sobre as questes da
cidade (donde surgem as proposies poticas) e de um processo criativo que acontece nessas
reunies. Nas experincias com o GIA, encontrei dimenses extremas equivalentes aproximao
entre a arte e a vida proposta pelas vanguardas artsticas da dcada de 1960.
[...] hoje a arte faz por si s essa aproximao, misturando cada vez mais questes artsticas, estticas e conceituais aos meandros do cotidiano, em todas as instncias: o corpo, a poltica, a ecologia, a tica, as imagens geradas pela mdia, etc (CANTON, 2011, p. 9).
Tal como as interferncias artsticas realizadas pelo GIA, existe um limite nfimo entre a
concepo potica e a vida cotidiana. Esse foi, para mim, o primeiro impacto entre o sujeito e o
objeto: o grupo negaria sua identidade, fazendo-me experimentar as implicaes prticas dos
conceitos trazidos nesta pesquisa. As gias recusavam o estatuto de artistas e a performance artstica
parecia algo demasiadamente conceitual para o cotidiano. As interferncias produzidas pelo GIA
atuam mais no sentido de potencializar caractersticas singulares da nossa cultura, do que na
produo de um estranhamento esttico como objetivo conceitual da performance artstica.
Nas reunies do GIA, a culinria revela-se como experimentao, nutrindo as reunies, em
um misto de afeto e criatividade. As receitas so compartilhadas com o pblico atravs do blog3 ou
do facebook4 do coletivo, bem como a pauta das reunies, ambas elaboradas no decorrer da mesma,
escritas e publicizadas, posteriormente. A culinria torna-se smbolo frequente na divulgao dos
trabalhos do grupo por ele mesmo, que j chegou a se denominar, publicamente, como um grupo
de arte-culinria". A culinria como ritual constitui-se como troca de culturas e produo de afetos.
O carter processual com que a potica do GIA desenvolvida, seja nas reunies ou a partir delas,
demonstra uma caracterstica rizomtica que se revela na experincia. O compartilhamento virtual
desses encontros produz no apenas a multiplicao das suas experincias, mas tambm uma
demonstrao, caracterstica da performance artstica, daquilo que se faz. Mostrar-se fazendo
performar: apontar, sublinhar e demonstrar a ao (SHECHNER, 2003, p.26).
Pauta da reunio GIA -7 de Junho de 20125:
dinmica da informaosaru, sarigu, marsupialchuvaaamestradoVitria da Conquistacabine DR
3 http://giabahia.blogspot.com.br/4 http://www.facebook.com/gia.bahia?fref=ts5 Extrada do blog do GIA.
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correio eleganteresidncia gua no Feijofesta no Santo Antnionecessidade de clcioqualidade das mostardaschoro de cebolapropriedades do cacauboa vizinhanaos inesquecveis aniversrios de Tiaguinhoninhadas de cachorrotcnicas de adestramentocriaes selvagenscampanha de risadaetc.
Arroz moda paulista - por Michele Mattiuzi
Ingredientes: 300g de carne de charque; 1 linguia calabresa; 200g de bacon; 2
cebolas mdias; 1 cabea de alho; 2 copos e meio de arroz; um pouco de tempero
verde (salsinha ou coentro); cominho, pimenta do reino gosto; 1 cenoura cortada
em cubinhos; 1 colher de leo de coco; 2 limes espremidos; Modos de preparo:
Misture tudo; Lquidos: Cerveja GIA, licor de jenipapo e licor de cacau.
Como delimitao para minha leitura sobre o GIA, escolhi dez interferncias que
aconteceram durante os dois anos da pesquisa (2011 e 2012), a saber: Samba GIA, Cerveja GIA,
Caramujo, Quartel General, Carrinho, Pic Nic, Cabine DR, Judas, Flutuador, bem como a atuao
do grupo em movimentos culturais especficos, seja nas festas tradicionais da cidade, como o
Carnaval (atravs do gia, bloco do GIA, e do De Hoje a Oito6, bloco do qual o coletivo
parceiro), a Lavagem do Bonfim e a Festa do Santo Antnio, seja nas festividades de carter mais
autnomo e comunitrio, como a Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices7, bem como o FIAR-
Festival de Intervenes Artsticas do Recncavo8 (em Cachoeira-BA) e, ainda, a residncia
artstica Me d Motivos9, realizada com o coletivo Opavivar10 (RJ), com o qual o GIA possui uma
afinidade potico-poltica. O critrio dessa escolha foi me ater s interferncias que acontecessem
durante o mestrado e s quais fosse possvel acompanhar estando presente e, mais, compartilhando
do mesmo espao-tempo, sendo essa uma condio da cartografia como mtodo, que impulsionou
tambm a intensidade da pesquisa, num jogo em que no esto separadas as foras do pensamento e
da vida.
6 http://dehojeaoito.blogspot.com.br/ e http://www.facebook.com/pages/Bloco-De-Hoje-a-Oito/288870097835868?ref=ts&fref=ts
7 http://www.facebook.com/nossafeira?fref=ts8 http://fiarbahia.wordpress.com/9 http://medemotivosopagia.blogspot.com.br/10 http://opavivara.com.br/
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PERCURSO POTICO-CONCEITUAL
Dentre as questes potico-conceituais que emergiam na experincia prtico-terica da
relao sujeito-objeto, eis algumas que conduziram o desenvolvimento desta cartografia: Como
habitar o mundo em que vivemos de maneira alegre e criativa, seja ele uma casa, um espao
cultural, ou mesmo as ruas e praas da cidade, ressignificando o espao-tempo imposto pelo modo
de vida capitalista? Como a performance artstica pode atuar como forma que aglutina os fluxos da
nossa subjetividade polifnica, mediando os saberes e fazeres entre as relaes humanas e no
humanas, em espaos coletivos, atravs de uma potica relacional? Se a deciso poltica mergulha
necessariamente em um mundo de microdeterminaes, atraes e desejos (DELEUZE &
GUATARI, 2007, v. 3, p. 103), me interessava compreender como se movimentam as foras nas
interferncias ambientais do GIA, seus atributos (tipo ou gnero de corpo sem rgos, substncias,
potncias), seu modos (tudo o que se passa, as ondas e as vibraes, as migraes, limiares, as
intensidades produzidas) e seus plats (suas regies de intensidade contnua): Um plat um
pedao de imanncia. Cada corpo sem rgos feito de plats. [] um componente de
passagem (DELEUZE & GUATARI, 2007, v. 3, p. 20). Desejava, ainda, a produo de uma
cartografia que se constitusse imagem desses vetores, do campo energtico que efetuam, suas
fronteiras e paradoxos, da vibrao microperceptiva das suas molculas na agitao do cosmos, ou
seja, da sua potica micropoltica como fora subversiva das macroestruturas vigentes, responsveis
pela constituio molar do poder e suas mais tristes representaes.
Trata-se de uma analtica das formaes do desejo no campo social, a partir dos cruzamentos de experincias molares e moleculares, ou seja, micropolticas e macropolticas: do ponto de vista da micropoltica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que so moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa s organizaes binrias, mquina de sobrecodificao [] No entanto, o inverso tambm verdadeiro: as fugas e os movimentos moleculares no seriam nada se no repassassem pelas organizaes molares e no remanejassem seus segmentos, suas distribuies binrias, de sexos, de classes, de partidos. A questo , portanto, que o molar e o molecular no se distinguem somente pelo tamanho, escala ou dimenso, mas pela natureza do sistema de referncia considerado (DELEUZE & GUARTTARI, 2007, v. 3, p. 94 e 95).
Constru um percurso potico-conceitual articulando algumas referncias da arte e da
filosofia contemporneas, na busca de uma forma que pudesse traduzir o pensamento proposto, bem
como de conceitos que pudessem traduzir as formas apresentadas. Assim, me apropriei das
proposies de alguns artistas, como a interferncia ambiental, de Hlio Oiticica, que trouxe
contribuies fundamentais sobre a estrutura da forma, alm das obras de Lygia Clarck e Cildo
Meireles, que se aproximam da potica do GIA. Articulei essas referncias artsticas com a esttica
relacional como teoria da forma, em Nicolas Bourriaud, e com a esttica como forma se 14
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socialidade sugerida por Michel Maffesoli e Michel de Certeau, alm dos conceitos de
heterotopia, em Michel Foucault, e de rizoma, em Gilles Deleuze & Felix Guattari,
especificamente de alguns princpios derivados desse ltimo, como a cartografia, a
heterogeneidade e a multiplicidade, que tambm trazida por talo Calvino como uma das
propostas para o nosso milnio, na perspectiva literria. Essa articulao potico-conceitual insere-
se na ecosofia trazida por Guattari, atravs da qual desenvolvi o termo potica micropoltica, a
partir das suas composies com Deleuze e Suely Rolnik. Eu buscava, ainda, uma epistemologia da
arte, que trata do processo de produo de conhecimento em uma perspectiva mltipla e de uma
potica capaz de conferir expresso a essa multiplicidade. Para tanto, transitei pelos estudos da
epistemologia contempornea, a complexidade, em Edgar Morin, cuja perspectiva concorre para
aquilo que denomino reunio epistemolgica, chegando at a performance artstica como princpio
aglutinador dinmico (BOURRIAUD, 2009, 29) de mltiplas linguagens, elaborado na fronteira
de diversos campos do conhecimento, como expresso artstica de um pensamento complexo. Esta
cartografia potica fruto de um desejo de construir pontes de linguagem entre a arte e a filosofia, a
experincia e o conceito, a expresso e o contedo.
O contedo no se ope forma, ele tem sua prpria formalizao []. precisamente porque o contedo tem sua forma assim como a expresso, que no se pode jamais atribuir forma de expresso a simples funo de representar, de descrever ou de atestar um contedo correspondente: no h correspondncia nem conformidade. [] Seria preciso determinar no uma origem, mas os pontos de interveno, de insero, e isso no quadro de pressuposio recproca entre as duas formas (DELEUZE & GUATTARI, 2007, v. 2, p. 28).
As dicotomias estabelecidas pelo pensamento moderno sobre a arte, a filosofia e a cincia
no comportam a complexidade da dinmica atual. Desde a dcada de 1960, novos cursos
inauguram a histria do pensamento, rompendo com os paradigmas clssicos de anlise social e
concepo esttica. No campo da arte, a partir da dcada de 1990, as teorias avanam para
tendncias de expresses artsticas, como a esttica relacional, uma abordagem francesa, que pode
ser associada com a interferncia ambiental, no Brasil. Verifica-se, no cerne dessas poticas, uma
superao dos limites do corpo experimentadas pela vanguarda anterior, pelas possibilidades de
explorao do espao-tempo de forma indissocivel no fazer artstico e, consequentemente, a
abertura da obra.
A dissoluo do sujeito contemporneo abala as fronteiras estabelecidas sobre o saber, a
partir de uma epistemologia que rompe com as fronteiras entre as disciplinas, conforme sugere o
pensamento complexo de Edgar Morin, no qual o fenmeno multidimensional consideraria a
filosofia como parte do processo de construo do conhecimento e no mais como opo terica .
Tal dimenso apresenta um processo de reconstruo conceitual que integra o conhecimento
objetivo e o subjetivo. Para Morin, a necessidade de um pensamento complexo veio da 15
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especializao do conhecimento, que teria destrudo a multidimensionalidade dos fenmenos na
modernidade. Tal complexidade implicaria em uma reorganizao das estruturas do saber, atravs
de uma relao circular ativa entre algumas disciplinas da cincia. Morin faz uma crtica
universidade, como instituio produtora de um saber especializado, que passa a ser capitalizado e
utilizado de maneira annima. Essa complexidade teria a incerteza como princpio e virtude e por
isso trazida como uma espcie de anti-mtodo. Tal princpio fora anunciado pela crise cientfica
do sculo XX, sobretudo, pela fsica contempornea, atravs de diversas teorias como a desordem
na Termodinmica, o Princpio da Incerteza (Heisenberg), a Teoria da Relatividade, o Princpio da
Complementariedade (Bohr), o conceito de antimatria (Paul Dirac) e a Teoria do Caos. O carter
aleatrio das mutaes genticas, na biologia molecular, tambm legitima o caos na cincia. O
pensamento complexo teria um sentido enciclopdico, no qual a aprendizagem transforma o saber
em ciclo atravs de alguns princpios, a saber: O Princpio sistmico (une o conhecimento das
partes com o conhecimento do todo); O Princpio hologramtico (cada clula uma parte do todo,
e o todo est nas partes); O Princpio do ciclo retroativo (a homeostasia de um organismo vivo
um conjunto de processos reguladores fundamentados em mltiplas retroaes); O Princpio do
Ciclo Recorrente (os produtos e consequncias so, eles prprios, produtores e originadores daquilo
que produzem); O Princpio da auto-organizao (a autonomia dos seres vivos, em termos de auto-
organizao e auto-produo, inseparvel da sua dependncia com relao ao ambiente, do qual
retira energia); O Princpio Dialgico (unio de dois princpios ou noes contraditrias e
indissociveis em uma mesma realidade); O Princpio da reintroduo do conhecimento em todo o
conhecimento (o conhecimento a reconstruo de uma inteligncia em uma cultura e em um
tempo determinados). A proposta epistemolgica de Morin prope a superao de um pensamento
simplificador que teria vigorado por toda uma era, no qual a cincia teria se apoderado do objeto e a
filosofia do sujeito, atravs da idealizao, racionalizao e normalizao dos fatos. Seu
pensamento possui uma inspirao espiral, de uma radicalidade justificada pela crise social e
humana igualmente radicais que experimentamos. Pode-se fazer uma analogia entre o pensamento
espiralado de Morin e a imagem do Anel de Moebius, que leio como uma sntese atravs da qual M.
C. Escher traduz o fenmeno da multidimensionalidade, no plano pictrico.
Figura 2. Anel de Moebius com Pssaros, Escher
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Retomando etimologia da palavra complexus, Morin adverte que tal pensamento aquele
que distingue e rene o conhecimento existente, sendo, pois, uma caraterstica da epistemologia
contempornea. Estamos em uma era em que tudo se compe, todo conhecimento se recicla. Os
antnimos no mais se anulam. nesse sentido que Michel Maffesoli escreve sobre a sabedoria
relativista ou o bom uso do relativismo: Esta 'sabe', por um saber incorporado, que nada
absoluto, que no h verdade geral, mas que todas as verdades parciais podem entrar em relao
umas com as outras (MAFESOLLI, 1998, p. 11). Maffesoli faz uma crtica razo abstrata da
modernidade como um sistema fechado sobre si mesmo e prope uma forma de razo aberta na
qual cada elemento da vida social afeta o seu contrrio. A isso chamamos reunio das antinomias,
cujas tenses caracterizariam a viso trgica da existncia. Tal como outros pensadores
contemporneos (Deleuze, Morin), Maffesoli prope o paradoxo como pressuposto para a
compreenso da realidade, a partir da reunio de verdades mltiplas: Com efeito, o paradoxo, em
seu sentido mais estrito, o prprio da vida comum. Repousando na empiria, esta ltima ,
estruturalmente, polissmica (MAFESOLLI, 1998, p. 14). No seio do paradoxo, conceitos
clssicos seriam retomados e (re)compostos s perspectivas atuais. Essa seria a qualidade mtica da
sistmica contempornea, sua religiosidade pag, que se assemelharia antiga intuio dos
alquimistas medievais. nesse sentido que diversas teorias, seja no campo da arte, da filosofia, ou
das cincias sociais sugerem estarmos vivendo uma espcie de retorno tradio, na qual a ps-
modernidade seria, em si, a pr-modernidade, o estado primrio da genialidade renascentista.
Maffesoli deseja um pensamento conectado com a vida, ao qual ele denomina de raciovitalismo,
[] em funo de uma pretenso, de uma ambio epistemolgica aventurosa e audaciosa, que
tenha por objetivo fazer entrar em sinergia perspectivas tericas opostas, seno contraditrias
(MAFESOLLI, 1998 p. 76). A unicidade posta em questo, sob a perspectiva da multiplicidade do
ser ou da matria.
Em suma, um verdadeiro trabalho intelectual de perceber o efeito de composio que est no prprio princpio de um pas, grupo, estilo artstico, sensibilidade poltica e religiosa. Entendendo-se que esse efeito de composio estruturalmente uno e mltiplo ao mesmo tempo (MAFESOLLI, 1998, p. 72).
Para Maffesoli, a reunio dos fragmentos heterogneos que compem a realidade
contempornea seria a responsabilidade de uma obra de arte que, deslocada para a vida cotidiana e
ordinria, nos levaria estetizao da existncia, de modo que moral poltica moderna, fundada
pelo vnculo contratual, suceder-se-ia a tica da esttica contempornea, baseada no vnculo
emocional, no compartilhamento coletivo de uma razo sensvel, de um saber dionisaco, no qual o
modo potico do conhecimento abriria portas para novas anlises sociais. Fundamentada pela
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esttica de Maffesoli, sugiro a arte como diferentes formas de existncia individual e coletiva, no
contexto social e na cultura como troca e produo de afetos.
A multiplicidade do conhecimento secundria constituio mltipla do sujeito,
pressuposto da filosofia contempornea. O rizoma, conceito trazido por Deleuze e Guattari, seria o
processo de produo do conhecimento atravs de um meio que se conecta com diversos pontos,
elaborando uma sntese que implica em processo de criao. O sujeito polifnico seria aquele
movido por foras de desejo, necessariamente coletivo. A isso chamamos agenciamento de
enunciao, constitudo de linhas e velocidades mensurveis, atravs do qual produzimos o discurso
e a realidade. No sistema rizomtico, sem comeo nem fim, o uno seria subtrado do mltiplo (n-
1), sendo a multiplicidade, pois, um dos princpios do rizoma: Um agenciamento precisamente
este crescimento das dimenses numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza
medida que ela aumenta as suas conexes (DELEUZE & GUATTARI, 2007, v. 1, p. 17 ). Isso
implica em um modo de apreenso e expresso de desenhos singulares, produzidos atravs de um
fluxo de variao contnua entre o corpo do indivduo e os elementos da realidade social.
A perspectiva da multiplicidade no mbito da literatura trazida por talo Calvino ao tratar
do romance contemporneo como uma enciclopdia aberta, mtodo de conhecimento e rede de
conexes entre os diversos elementos da realidade, sejam fatos, pessoas ou coisas.
Hoje em dia no mais pensvel uma totalidade que no seja potencial, conjectural multplice. [] Em nossa poca a literatura se vem impregnando dessa antiga ambio de representar a multiplicidade das relaes, em ato e potencialidade [] H o texto multplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo, segundo aquele modelo de Mikhail Bakhtin chamou de 'dialgico', polifnico' ou 'carnavalesco' rastreando seus antecedents desde Plato a Rabelais e Dostoivscki (CALVINO, 1990, p. 132, 127 e 131).
Para Calvino, epistemologia implcita na literatura contempornea determinaria o
conhecimento como produo de realidade. A inconcluso seria uma caracterstica desse tipo de
sistema lingustico, como em Morin, espiralado, uma espcie de literatura rizomtica
correspondente aos pensamentos no sistemticos da filosofia, dada s descontinuidades ou
variaes contnuas. Calvino sugere que literatura o lugar ideal para a construo de um saber
mltiplo, diante do saber especializado da cincia, cujo desafio seria tecer os diversos saberes e os
diversos cdigos em uma viso pluralstica e multifacetada do mundo. A multiplicidade, para ele,
concorre para a unio complexa do saber potico, filosfico e cientfico. nesse sentido que o autor
assume uma postura de apologia literatura como rede. Essa perspectiva conflui para a constituio
social da lngua como forma de conhecimento produzido por um sujeito cuja condio lhe comum
e anterior.
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O descolamento do conceito de multiplicidade, para a vida social, remete ao que se
denomina arte ordinria, modo de saber cotidiano implicado nos gestos e comportamentos dos
indivduos, zona de confluncia entre o mundo e o pensamento, o ser e a matria, imanncia
filosfica, experincia transcendental, metafsica da carne, sntese prtico-terica, paradoxo que se
coloca no cerne da esttica como epistemologia da arte. A performance artstica como forma
heterognea, tal como a literatura polifnica, produz expresses que correspondem s proposies
conceituais dos sistemas filosficos abertos. Seu hibridismo caracterstico associa livremente
linguagens mltiplas como as artes visuais, o teatro, a dana, a msica, a poesia, entre outras,
deslocando, ainda, o termo performativo do campo esttico para outros campos do conhecimento,
de modo a compor o vocabulrio de anlises crticas das mais diversas reas.
Do ponto de vista terico, o estudo da performance desloca-se do campo esttico para o da fenomenologia e dos aspectos culturais, antropolgicos e sociais envolvidos nessas aes. [] Na investigao do corpo, os inmeros trabalhos de escarificao e body-modification apontam o renascimento da body art e importantes confluncias entre moda e arte da performance. Na pesquisa do corpo estendido nas redes, na interface com novas tecnologias telemticas, artistas [] transitam no territrio nos sistemas performativos, construindo avatares, campos de telepresena e teleimerso e reiterando a esttica de eventos. No contexto do multiculturalismo, a discusso da performance contempornea aponta tambm para a questo de gnero, propondo uma srie de aes que expressam posies polticas em relao identidade feminina e homossexual. [] No contexto miditico contemporneo, a arte da performance tem sido apropriada pela industria cultural.[] Como resistncia a essa apropriao, surgem contextos de aes na rede, em experincias de mdia-ativismo e rdios-livres, com novssimos grupos colaborativos [...] (GUINSBURG, 2009, p. 268 e 269).
A histria da performance artstica, bem como a recente insero deste termo em
diversos campos do conhecimento, demonstra a complexidade da sua definio como linguagem.
Embora j fixadas na histria da arte e no mercado cultural, as expresses performativas seguem
em suas provocaes aos limites impostos sobre a expresso e o pensamento, apresentando-se como
potentes manifestaes artsticas contemporneas, com suposta predominncia da arte no sculo
XXI, por corresponder s fragmentaes caractersticas do nosso tempo. A confluncia de
pensamentos comuns elaborados por meios diversos, tal como a equivalncia entre a msica e a
matemtica, em formas diferentes, mostra que possvel traduzir um mesmo pensamento em
diversos discursos e, ainda, que possvel reunir essa diversidade em uma mesma expresso. Eis a
questo do uno e do mltiplo na perspectiva esttica. Se a complexidade na elaborao da
performance artstica lhe conferiu historicamente um lugar de difcil alcance conceitual, tampouco
simples seria determinar a sua funo, bem como da arte em geral, o que estaria condicionado a
circunstncias culturais especficas (SHECHNER, 2006).
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A multiplicidade abriu as possibilidades da experincia prtico-terica desta
pesquisa. Ao escolher o GIA, como objeto de estudo e principal foco da minha ateno cartogrfica,
coloquei-me no campo das Artes Cnicas atravs da performance. Esse lugar, coerente perspectiva
epistemolgica da pesquisa, trouxe a possibilidade de expanso dos horizontes artsticos e
conceituais desta cartografia. A multiplicidade foi o princpio no qual me ancorei para sustentar os
possveis e pertinentes paradoxos desse percurso, como artista e pensadora. A crise da
multiplicidade entre o meu corpo de atriz-danarina-poetisa, minha condio de pensadora oriunda
da Comunicao Social e Poltica, meu ar de aprendiz, minhas ambies filosficas, meu
anonimato e minhas inscries iniciais nas artes visuais e na msica, afetada pelo GIA, foi colocada
desde o incio desse encontro em que compartilhamos experincias poticas e polticas. No decorrer
desse percurso prtico-terico, a dana revelou-se como a linguagem mais confortvel para os
nossos dilogos criativos, pois que convocada pelas interferncias do GIA, como o Samba GIA e,
tambm, o Flutuador. Nesse ltimo caso, lanando-me em uma perspectiva menos tradicional da
dana, explorei a pausa e a experimentao na cena contempornea, bem como a abertura da obra,
pelo rompimento com as referncias de espao-tempo habituais. A dana comps, portanto, uma
significativa aliana criativa com o GIA, uma comunicao entre as artes visuais e as cnicas,
fundamental para o nosso entendimento expressivo.
CARTOGRAFIA COMO MTODO E FORMA
Esta cartografia potica a imanncia criativa de um pensamento espreita da dinmica do
seu objeto, atravs de uma ateno sensvel, de modo mais a acompanhar o seu processo, do que a
represent-lo. Deixei-me seduzir pelas relaes de fora e de movimento do GIA, sem que
houvesse separao entre a anlise e a experincia, ou seja, aquilo que passa, acontece, e toca
(BONDA, 2002, p. 5). A caracterstica processual da cartografia como mtodo de pesquisa se
aproxima da sociologia compreensiva de Maffesoli, associada por Sonia Rangel sua metodologia
para processos criativos.
[...] isto significa colocar-se dentro, em processo, em contato, sem um pr-modelo a ser comprovado, sem um pr-conceito, numa atitude de reconhecer o que emerge ou se configura como fluxos do pensamento encarnado nas aes, princpios da criao (RANGEL, 2012, p.1).
A desordem com que se movimenta o GIA e a consequente dificuldade de acompanh-lo,
refletia-se no jeito de pensar e de escrever sobre o grupo, de modo que a produo dos plats dava-
se concomitantemente, sem comeo, meio e fim. Essa organizao foi feita processualmente em
diversos momentos da pesquisa, a cada orientao uma nova forma, em um esforo para tornar o
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texto permevel, tal como o discurso amorosamente produzido por Roland Barthes, para traduzir o
sujeito enamorado.
prprio mesmo desse discurso que suas figuras no possam se arrumar: se ordenar, fazer um caminho, concorrer para um fim, (para uma instituio); no h primeiras nem ltimas. Para fazer entender que no se trata, aqui, de uma histria de amor (ou da histria de um amor), para desencorajar a tentao do sentido, era necessrio escolher uma ordem totalmente insignificante (BARTHES, 1985, p. 5).
Ao final desse processo, a cartografia organizou-se do seguinte modo: Das dicotomias
feitas p, em que apresento o objeto da pesquisa, o percurso potico-conceitual, a cartografia como
mtodo e forma e a imagem da epistemologia proposta. Dois plats, cuja ordem no altera o
entendimento: Museu o Santo Antnio, em que apresento as interferncias do GIA escolhidas,
desenvolvendo algumas questes especficas de algumas delas, com uma leitura mais ampliada em
Potica Micropoltica. Ao final da cartografia, apresento algumas consideraes inconclusas e
trago, como anexo, um CD como registro sonoro do Samba GIA.
A produo de saber foi atravessada pela inveno como exigncia do mtodo cartogrfico
(ESCSSIA; KASTRUP; PASSOS, 2010), um fazer implicado no pensar, que se constitui em
produo de realidade, manifestando-se em duas situaes durante a pesquisa:
1) Nas imerses criativas com o objeto, atravs, sobretudo, da msica e da dana, pois
participei ativamente dos processos criativos do GIA, um desejo compatvel com a sua
potica, de modo a no fazer deles apenas uma crtica, contemplao ou anlise imparcial, o
que no deixaria satisfeitas nenhuma das partes, bem como atravs de proposies artsticas
que emergiram no processo da pesquisa, durante o encontro com o grupo.
2) Na elaborao de um pensamento sobre arte que se constitui, tambm, como um processo de
criao e, consequentemente, uma escrita potico-conceitual, como um ato de escrever com
a experincia e no sobre ela.
Pesquisadores confluem para a necessidade de formas especficas aos estudos da
performance artstica, quer em termos de mtodo de pesquisa ou de literatura a respeito, devido as
suas caractersticas peculiares, como a indissociabilidade prtico-terica e a impossibilidade de
registro (FERNANDES, 2012; PHELAN, 2007). Essa sntese contribui para a cartografia como
mtodo e forma, atravs da qual produzi uma leitura do GIA, via um conhecimento sensvel do real,
conforme sugere a epistemologia implcita na literatura contempornea: Gadda sabia que 'conhecer
inserir algo no real; , portanto, deformar o real'. (Carlo Emilio Gadda apud talo Calvino, 1990,
p. 121), articulada com os autores lidos e antropofagicamente assimilados.
Estabeleci uma relao entre a performance e o rizoma, tomando-a como uma expresso
artstica do pensamento rizomtico. A perspectiva a partir da qual ambos os termos so,
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eventualmente, tratados no deixa de favorecer sua compreenso como uma linguagem ou um
sistema fechados sobre si mesmos, quando podemos compreend-los como a abertura de um corpo
a uma determinada experincia. Trata-se mais de ao do que de conceito, faz-se performance e
faz-se rizoma, de modo que referir a ambos sem produzi-los implica na comum deslealdade s suas
definies. Assim, escrever sobre performance torna-se tambm uma performance escritiva
(DELA POLLOK, 1998), da mesma maneira que escrever sobre o rizoma como mtodo de pesquisa
e processo criativo implicou em produzi-lo, experimentar o seu princpio cartogrfico. O uso
recorrente do discurso indireto livre uma das caractersticas cartogrficas do texto, fundamentada
pelo agenciamento coletivo do sujeito e da linguagem, como manifesto social da lngua.
Meu discurso indireto ainda um discurso indireto livre que me percorre de um lado a outro, e que vem de outros mundos ou de outros planetas. por isto que tantos artistas e tantos escritores foram tentados pela experincia do copo que se move na mesa (DELEUZE & GUATTARI, 2007, v. 2, p. 24).
A cartografia como mtodo de pesquisa est sendo implementada em programas de ps-
graduao de algumas universidades no Brasil (PUC-SP, UFRS-RS, UFS-SE) e tem como
referncia emblemtica a tese de doutorado em Psicologia Clnica (PUC-SP), de Suely Rolnik,
posteriormente publicada sob o ttulo Cartografia Sentimental. Em sua cartografia, Rolnik tece uma
narrativa, atravs da criao de figuras-tipo do feminino, que transitam pela crise identitria da
noivinha, produzida pelas transformaes contemporneas do desejo. Essas figuras so
produzidas a partir da experincia da autora como mulher que atravessa a contracultura no Brasil, a
ditadura militar, o exlio e o processo de redemocratizao do pas. Sua vida matria bruta para a
produo de uma teoria conceitual sobre as polticas de subjetivao, nos referidos contextos.
Pode-se dizer que o texto autobiogrfico, desde que entendamos por 'auto', aqui, no a
individualidade de uma existncia, a do autor, mas a singularidade do modo como atravessam seu
corpo, as foras de um determinado contexto histrico (ROLNIK, 2011, p. 22). O ttulo Cartografia
Sentimental sugere a capacidade de Rolnik se deixar afetar pelas questes por ela tratadas, no caso,
o corpus da sua gerao, atravs de uma vulnerabilidade s foras do mundo, uma alteridade
irredutvel, presente em seu corpo atravs das sensaes produzidas pelo contexto scio-poltico-
cultural por ela vivenciado: Dissolvem-se aqui, as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo
que separa o corpo do mundo (ROLNIK, 2011, p. 22). Rolnik produz uma sequncia de cenas sob
as perspectivas da percepo e do olho vibrtil, cuja dinmica constitui a dimenso micropoltica
do texto, sua natureza cartogrfica (RONLIK, 2011, p.13). Esse olho faz parte do corpo vibrtil,
que se aproxima do corpo sem rgos (ARTAUD, 2012), ou do corpo efervescente (BANES, 1990),
os corpos de intensidade pura que tambm atravessam a escrita e fazem cena com a linguagem. As
diversas facetas das noivinhas de Rolnik funcionam como as personagens conceituais definidas por
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Deleuze & Guattari, na medida em que [] operam os movimentos que descrevem o plano de
imanncia do autor, e intervm na prpria criao dos conceitos (DELEUZE & GUATTARI,
2005, p. 85). A criao de personagens conceituais uma estratgia narrativa dos filsofos, seus
heternimos, que se diferencia das personagens produzidas pelos artistas na literatura, no cinema ou
no teatro: A diferena entre os personagens conceituais e as figuras estticas consiste de incio no
seguinte: uns so potncias de conceitos, os outros, potncias de afectos e perceptos (DELEUZE &
GUATTARI, 2005, p. 88).
A criao de personagens ou figuras conceituais utilizada, tambm, no mtodo dramtico
de Roland Barthes, ao tratar do discurso amoroso, na medida em que tece, amorosamente, o seu
discurso terico. A enunciao de Barthes se justifica pela busca do prazer no texto e pode ser
relacionada com a sntese proposta por Cildo Meireles na epgrafe deste texto introdutrio, que
transforma a anlise em experincia.
[] por em cena uma enunciao e no uma anlise [] Se o autor empresta aqui ao sujeito apaixonado a sua 'cultura', em troca o sujeito apaixonado lhe passa a inocncia do seu imaginrio, indiferente aos bons costumes do saber (BARTHES, 1985, p.1 e 5).
O mtodo da pesquisa tensionava os limites ticos entre ser ou no ser GIA, atravs da
experincia do afeto, de uma relao que se configurava de amor ao objeto, bem como das questes
trazidas por essa experincia de alteridade. Assim, a leitura sobre o GIA passou a ser uma
composio com grupo, no apenas atravs da produo de um escrita, mas tambm de uma
imerso em seus processos criativos, bem como em proposies criativas que se efetivaram nesse
encontro, como a performance Poemas e Sussurros (tratada no segundo plat), de modo que as
definies eu-outro ou sujeito-objeto aos poucos se tornaram uma questo desnecessria.
n-1 3 : ISTO NO MATEMTICA
Maffesoli retoma importncia do algarismo trs (3) na vida social, na qual a noo de
terceira pessoa assume uma dimenso epistemolgica desestabilizadora das simplificaes
redutoras, o repouso do dinamismo cultural e individual sobre a tenso de elementos heterogneos
da realidade. A questo da unicidade trazida por ele como o ajuste de elementos variados, o
princpio vital da multiplicidade. O terceiro seria o componente do dado mundano cujo papel
implicaria na combinao dos diversos elementos da realidade, ainda que contraditrios. Essa seria
a esfera epistemolgica da fractalidade, materializada no ato criativo. Para ele, ao lado da arte e
da vida cotidiana e alm do debate que agita as cincias ou as filosofias, encontramos a
preocupao com o fractal no seio das mltiplas instituies (MAFESOLLI, 2003, p. 176 ). O
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paradoxo em ao seria a expresso mxima das sociedades complexas. A unio dos elementos
heterogneos constituiria as diversas particularidades individuais que, por sua vez, compem a
respirao social levando integrao do individual e do coletivo. Para Maffesoli, a efervescncia
e a imperfeio do nmero trs esto sempre na origem da vivacidade e do dinamismo
investigativo (MAFESOLLI, 2003, p. 177). Esse vitalismo seria fruto de uma sensibilidade ao
esprito do tempo, que admite a dimenso conflituosa da existncia e se verifica nos modos de ser e
de existir da humanidade, atualmente.
Estabeleci uma relao entre a metfora da trade (3), em Maffesoli, e a expresso algbrica
n-1, utilizada por Deleuze e Guattari, ao sugerirem a subtrao do uno no mltiplo para a produo
da multiplicidade: preciso fazer o mltiplo, no acrescentando sempre uma dimenso superior
[...] Subtrair o nico da multiplicidade a ser constituda; escrever n-1. Um tal sistema poderia ser
chamado rizoma (DELEUZE & GUATTARI, 2007, v. 1, p. 15). Apresento essa relao atravs da
in(ad)equao n-1 3, que no possui, aqui, uma funo matemtica, traduz apenas a imagem
relacional entre esses dois pensamentos, atravs de uma apropriao criativa dos nmeros, tal como
nos mostrou possvel o cinema, em Matemtica do Amor (Marilyn Agrelo, 2010). No filme, a
protagonista Mona Gray vive no pequeno mundo de si mesma e estabelece uma relao potica
com o mundo atravs dos nmeros, somando seus passos ou multiplicando pessoas no parque.
A expresso n-1 3 traduz, para mim, a imagem da condio epistemolgica da pesquisa, e
pode ser relacionada com as personagens conceituais de Rolnik e de Barthes. Se a complexidade da
epistemologia contempornea foi uma crise que se manifestou no processo da pesquisa, eis que dei
passagem ao que me interessa nisso tudo, o meio como comeo e como fim, ou seja, o processo
como proposta e como produto, e que existe uma ressonncia entre o mtodo da pesquisa e o
processo criativo do GIA, quando os nossos projetos se fundem na epistemologia proposta (n-1
3), na qual o privilgio do sujeito filosfico ou do objeto cientfico se (trans)forma na sntese
sujeito-objeto, que teria sido o desejo de artistas-tericos como Hlio Oiticica e Antonin Artaud.
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PLAT 1
MUSEU O SANTO ANTNIO
Santo Antnio Descasamenteiro
(Morgana Poiesis)
para tiSanto Antnio Descasamenteiro
acendo sem velas rosadas
De Hoje a Oitofadinhas rodantessero procuradas
Rua dos CarvesLadeira da gua Brusca
Travessa dos Perdes
no primeiro domingo do msdo 15 mistrio da praa
trocam-se maravilhas por esquisiticesvendem-se Delcias de Vov Tala
na ginga do samba e da capoeiramestres da malandragem
vestem branco e chapu de palha
no largono forte
na encruzilhada
rodas de PombaGIAsinos tocam Virgem Maria
jogo de gato e de ratobeatas espiam
madrugada
pequenino s tuSanto Antnio Descasamenteiro
de tudo se sabee de resto se inventa
debruada na janela da ruame sonho Pessoa na paisagem
lanada em poema roubado:
Eu sou tu!Santo Antnio Descasamenteiro
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Se, para Oiticia, o museu era o mundo, para o GIA, o museu o Santo Antnio. No apenas
porque durante a pesquisa o grupo esteve sediado nesse bairro, onde alguns dos seus integrantes
residem, onde tambm acontecem as suas reunies e encontros, como a maior parte das suas
interferncias foram a feitas ou da partiram. O Santo Antnio acolhe um efervescente movimento
cultural, no qual o GIA est implicado, articulando-se com outros artistas e amigos, produzindo
coletivamente um cotidiano criativo que tem como premissa o estarjunto. Observa-se, ainda, uma
crescente migrao de artistas para o Santo Antnio, investindo em residncias que se tornam
espaos de criao artstica, em um bairro de casas antigas e arquitetura histrica, cujo cotidiano
denota uma pequena cidade cosmopolita. Enquanto Salvador caminha para o anonimato produzido
pela acelerao e crescimento das cidades globais, acrescidos os transtornos consequentes de uma
gesto pblica que nem sempre corresponde a essa demanda, a atmosfera do Santo Antnio se
difere da dinmica de outros bairros, revelando-se como gracioso reduto cultural e comunitrio,
com frequentes manifestaes artsticas. Reconheo nas prticas desse bairro, das quais o GIA faz
parte, o que Nicolas Bourriaud denomina esttica relacional, segundo a qual as obras funcionam
como dispositivo para produzir encontros casuais, individuais e coletivos, tendo em vista as
relaes de vizinhana cultivadas pelos seus moradores, que se constituem como uma teia onde se
inscrevem as composies criativas, de modo que as relaes interpessoais e artsticas esto
intimamente ligadas.
[] alm do carter relacional intrnseco da obra de arte, as figuras de referncia das esferas das relaes humanas agora se tornaram formas integralmente artsticas: assim, as reunies, os encontros, as manifestaes, os diferentes tipos de colaborao entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de convvio, em suma, todos os modos de contato e de inveno de relaes representam hoje objetos estticos passveis de anlise enquanto tais (BOURRIAUD, 2009, p. 40).
As interferncias do GIA escolhidas para compor o corpus desta pesquisa, como Samba
GIA, Cerveja GIA, Caramujo, Quartel General, Carrinho, Pic Nic, Judas, Cabine DR e Flutuador,
tiveram o Santo Antnio como atelier ou museu. Neste primeiro plat, fao uma breve leitura
das interferncias supracitadas a partir de questes especficas trazidas por cada uma delas. A ordem
da apario no cronolgica, pois essas interferncias se atravessaram umas s outras, estiveram
juntas em diversas experincias, de modo que no lhe cabem um critrio de organizao.
Sem pretender causar um impacto radical no cotidiano da cidade, as interferncias do GIA
se diluem em seus eventos e festas tradicionais, como o Carnaval, a Lavagem do Bonfim, a Festa
do Santo Antnio ou a Feira de Artes Maravilhas e Esquisitices. O GIA se dilui nessa feira, da
mesma maneira que se dilui no bloco De Hoje a Oito, como movimentos culturais de maior
dimenso, nos quais o grupo atua como parceiro, afirmando ora a sua identidade, ora o seu
anonimato. Esses eventos so trazidos no segundo plat, Potica Micropoltica, bem como a minha
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performance Poemas e Sussurros, conforme sugere a inclinao metodolgica da pesquisa, de
descentralizao do objeto.
O desejo de comunidade vivenciado no Santo Antnio como um lugar de movimentos
artsticos coletivos, sugere semelhanas entre esse, que um dos bairros mais antigos de Salvador,
com a Greenwich Village, tida como uma heterotopia (conceito apresentado no II plat) da nao
norte-americana, que viria a compor a histria da vanguarda artstica, na dcada de 60, guardadas as
diferenas espao-temporais: As cidades, percebia-se, precisavam de uma injeo do esprito de
comunidade, para a cura de seus males (BANES, 1999, p. 48). A experincia comunitria do Santo
Antnio pode ser relacionada com a Greenwich Village, na medida em que so comunidades
reinventadas por artistas em sua maioria oriundos de outros lugares, quer bairros, cidades, estados
ou pases, em dilogo com moradores mais antigos, dotados de uma cultura local. O desejo de
comunidade, em ambos os casos, determina no apenas sua estrutura, com o surgimento de espaos
coletivos que funcionam como residncias ao mesmo tempo domiciliares e artsticas, mas, tambm,
a produo cultural coletiva e, consequentemente, o domnio pblico da arte. Nesse sentido, as
interferncias apresentadas confluem para a leitura que sugiro do bairro Santo Antnio como museu
expandido, na cidade de Salvador.
1.1. SAMBA GIA: REGISTRO EXPANDIDO
Figura 3. Samba GIA na Lavagem do Bonfim, Salvador-BA
Tem gente que sonhacriar o que lhe parecefazer com que as coisas sejam
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de um jeito que ningum viu!E vive sonhando,pensando, matutando,tentando encontrar um jeitode mudar a situao...Aproveitando esse registro expandido,eu lhe digo, meu amigo:voc muda opinies...Modificando aquilo que est ao seu lado,voc muda o mundo todo, acredite em suas aes!11
O samba como gnero musical caracterstico da cultura brasileira, com forte expresso na
Bahia, apropriado pelo GIA, no apenas como forma de popularizao da arte contempornea,
como o foi tambm por Oiticica [...] o samba me veio como uma necessidade vital de desinibio
intelectual, da necessidade de uma livre expresso (OITICICA, 2011, p. 75), mas, ainda, como
uma espcie de registro expandido das suas interferncias. As letras do Samba GIA remetem s
interferncias produzidas pelo grupo, em uma ampliao do entendimento de registro como imagem
e de imagem como vdeo e fotografia (recursos tambm utilizados pelo GIA), para a composio
sonora como produtora de imagens (CAESAR, 2011). Da mesma maneira que msica imagem
sonora expandida no tempo, poesia tambm o , de modo que o Samba GIA produz imagens em
versos e melodia.
Figura 4. Samba GIA em festa do De Hoje a Oito, Salvador-BA
Para Peggy Phelan, o carter no representativo da performance, quer gestual, escrita, ou
sonora, a desloca da hierarquia reprodutiva dos valores verticalizados pela metfora, ao eixo
aditivo, associativo e horizontal de contiguidades da metonmia, pois sua condio no documental
11 Letra do Samba Gia, bem como as demais composies que antecedem a leitura das prximas interferncias.28
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implica que dela se trate com a mesma intensidade do seu objeto, uma vez que no poderia imitar
uma arte que no-reprodutiva, quer em termos econmicos, tecnolgicos ou lingusticos. Nessa
perspectiva, busca-se expandir os modos de registro da performance artstica, quer atravs de fotos,
vdeos, textos, msica ou oralidade, de modo que tais formas tragam em si uma nova criao, uma
produo subjetiva que compe com a anterior e no a reproduz ou representa.
Para Phelan, a ontologia da performance d-se por meio da presena absoluta e da
desapario.
A prova documental de uma performance funciona assim como uma espora cravada na memria, um incitamento memria para ela se tornar presente. [] O Presente aquilo que no tolera nem a morte nem o renascimento, mas aquilo que pode existir apenas por causa destas duas condies originrias. Os dois so necessrios ao Presente para que este seja/esteja presente, para que ele exista na animao suspensa entre o Passado e o Futuro (PHELAN, 1997, p. 171 e 181).
Para alm da melancolia presena-ausncia de Phelan, na qual a performance aparece para
desaparecer, bem como da perspectiva ontolgica na qual essa ambiguidade colocada, Lepecki
(2006) sugere uma leitura da dana contempornea a partir de mltiplas temporalidades, nas quais o
presente no estaria restrito ao aqui e agora, mas tambm aos afetos por ele produzidos. Podemos
partir dessa perspectiva mltipla, em que passado, presente e futuro se fundem, para ler o Samba
GIA como performance que opera como presentificao das interferncias do grupo, pois faz parte
dos afetos por elas produzidos, ao mesmo tempo em que os produz, atualizando a presena das
interferncias cantadas, por sua vez desaparecidas, posto sua qualidade efmera, produzindo uma
outra performance, feita de msica e dana. O Samba GIA como imagem sonora de um registro
expandido conduz o pblico a um outro lugar que no mais aquele das interferncias realizadas,
expandindo o seu alcance no tempo-espao das ondas sonoras.
Figura 5. Samba GIA no FIAR, em Cachoeira-BA
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Escolhi o Samba GIA como a primeira interferncia desta cartografia, pois o seu carter de
registro expandido perpassa as outras interferncias citadas, constituindo-se como a cartografia do
grupo na sua passagem por diversos lugares, bem como o meio atravs do qual ele levado na
memria do acontecimento. Se, para Phelan, as performances que se utilizam da sonoridade
explorando a repetio como elemento constitutivo conduz a mente a outros estados de conscincia,
durante o Samba GIA, o consumo da Cerveja GIA, prxima interferncia a ser tratada, tambm
estimulado como meio de alter-la. Esta cartografia traz como anexo um CD do Samba GIA.
1.2. CERVEJA GIA: POR UMA TTICA DE CONSUMO
Figura 6. Rtulo Cerveja GIA
Cerveja GIAPra aliviar o calor!Cerveja GIA,sempre um novo sabor!Cerveja GIA,Venha comigo provar,Tipo surpresa, Cerveja GIA vai te agradar!Se bebeu ou no bebeu,O papo rola legal!A esculhambao
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Vem de forma natural!No pirataria,No cpia nem clonecerveja Gias entende quem consome!
A Cerveja GIA produzida atravs da sobreposio de um rtulo com a identificao do
GIA, sobre os rtulos originais. Essa desconstruo semitica produz uma interferncia sutil que se
assemelha com as proposies potico-polticas de Cildo Meireles, como Inseres em Circuitos
Ideolgicos, nas quais mensagens crticas eram inseridas em determinados produtos comerciais,
depois devolvidos circulao, das quais fizeram parte o projeto Coca Cola (que consistia em
escrever, sobre uma garrafa de Coca Cola, mensagens crticas ao imperialismo norte-americano), o
Zero Cruzeiro e o Zero Dolar (em que imagens oficiais de rplicas das notas do cruzeiro e do dlar
eram substitudas pelas imagens de ndios, psicticos, ou Tio Sam) e o Cdula (em que indagaes
perturbadoras como Quem matou Herzog? eram gravadas em notas de dinheiro). Tal como os
projetos de Meireles, a singularidade da Cerveja GIA consiste em funcionar no interior de circuitos
de controle de informao no centralizada, onde o indivduo pode se fazer ouvir numa escala
muito grande, desproporcional sua condio individual (MEIRELES, 2011, p. 56).
Figura 7. Zero Dolar, Cildo Meireles
Figura 8. Zero Cruzeiro, Cildo Meireles
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Figura 9. Cdula, Cildo Meireles Figura 10. Coca-Cola, Cildo Meireles
O processo de singularizao da Cerveja GIA, atravs da apropriao de um meio
hegemnico, para a construo de um outro discurso, sugere tambm a ressignificao do estatuto
de consumidores desse produto, para um outro tipo qualificado de consumo, do qual fala Michel de
Certeau. Em seu estudo sobre as prticas cotidianas dos consumidores, Certeau aborda experincias
atravs das quais possvel subverter o uso dos produtos impostos pela ordem social e econmica
dominante, atravs de uma maneira criativa de us-los, ou das artes de fazer, suas piratarias, sua
clandestinidade, seu murmrio incansvel, em suma, sua quase-invisibilidade, pois ela quase no se
faz notar por produtos prprios (onde seria o seu lugar?) (CERTEAU, 2007, p. 95). Se, por um
lado, a Cerveja GIA refora a conveno social do consumo de um substncia lcita, produz, ao
mesmo tempo, uma crtica s marcas da indstria. A imagem de um pirata no rtulo da Cerveja GIA
contradiz, intencionalmente, a letra do samba que dela trata.
Figura 13. Cerveja GIA no QG
Figura 11. Musa & Cerveja GIA Figura 12. Cartaz Cerveja GIA
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Alm dessa desconstruo semitica, a alterao nos estados da percepo e da conscincia
provocada pela Cerveja GIA tambm faz parte do fenmeno artstico, tal como as experincias de
Charles Baudelaire (2007) e Artaud (2012) com substncias alucinatrias e delrios poticos.
Durante a pesquisa, encontrei apenas um registro quanto ao consumo de outras substncias
psicoativas, por parte do GIA, em sua manifestao com o Opavivar, na publicao
Cosmoconhas12, em que imagens de personalidades como Che Guevara e Batatinha aparecem
preenchidas com folhas da Cannabis. A Cosmoconha se assemelha com o programa in process
Cosmococa, de Oiticica e Neville d'Almeida, que inclui nove blocos-experimentos, cada um deles
compostos de slides fotografados no ato de espalhar carreiras de cocana nas capas de discos e
livros, projetados em ambientes imersivos.
Figura 15. Cosmoconha
Figura 14. Cosmococa, Cildo Meireles e Neville d'Almeida.
Da Cerveja GIA, que uma interferncia presente em todas as outras, mesmo sem o rtulo
que a caracteriza, posto que j reconhecida pelo pblico, passo para a leitura do Caramujo, que
tambm se articula com as demais interferncias, assumindo variaes em cada tipo de uso ou
ocasio.
12 http://www.medemotivosopagia.blogspot.com.br/2012/03/motivo-cosmoconha-1.html33
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1.3. CARAMUJO: FAA VOC MESMO UM PARANGOL
Figura 16.Caramujo na Lavagem do Bonfim, Salvador-BA, 2012
O Caramujo (2002) uma cobertura fixa ou mvel, a depender da ocasio. Quando fixo,
uma lona amarela esticada por arames, em rvores e outros suportes. Quando mvel, um tecido
amarelo fino, ou amarelo dourado, bordado com as fitas coloridas do Senhor do Bonfim, produzido
na boemia criativa do bairro Santo Antnio. J foi Caramujo-Ponto, cobertura de ponto de nibus
descoberto, em dia de chuva, em Salvador, Caramujo Poltico, feito do reaproveitamento de
banners dos candidatos em campanha eleitoral, no campus da UFBA, em Ondina, Tenda do Amor,
na Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, j abrigou o Samba GIA nas avenidas de So Paulo e em
um bar de esquina, em Cachoeira-BA, e tambm vendedor de razes, no Ptio de So Pedro, em
Recife-PE. J esteve nas ruas de Colnia (Alemanha) e Madrid (Espanha). O Caramujo, cujos
materiais variam, experimentado em espaos pblicos de forma geral, pontos de nibus, praas,
galerias de arte, s vezes em eventos especficos dentro do circuito artstico oficial, noutras, diludo
nas festas tradicionais da cidade, como o Carnaval e a Lavagem do Bonfim, ou ainda, a Feira de
Artes, Maravilhas e Esquisitices.
Figura 17. Caramujo em Salvador, 2008
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Figura 18. Caramujo na Feira de Artes, Maravilhas e Esquisitices, Salvador-BA
Figura 19. Caramujo, em Terra Una, Serra da Mantiqueira-MG
Figura 20. Caramujo, Samba GIA e Cerveja GIA no FIAR, em Cachoeira-BA
Figura 21. Caramujo com Opavivar em Me d Motivos, Salvador-BA
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Em busca de um mito, Oiticica encontrou a dana, criando o Parangol, estrutura malevel
feita para ser vestida por um corpo que lhe atribua vida, significado, movimento. O prprio ato
de vestir' a obra j implica uma transmutao expressivo-corporal do espectador, caracterstica
primordial da dana, sua primeira condio (OITICICA, 2011, p. 73). O GIA reconhece no
Parangol a inspirao para o Caramujo, seja como tenda, espao-tempo provisrio a ser habitado
aos batuques do samba e, portanto, da msica e da dana, como gesto da imanncia do ato
corporal expressivo (OITICICA, 2011, p. 78 ), seja como estandarte (como a imagem do Santo
Antnio sendo levada para o Senhor do Bonfim, embalada em uma espada de So Jorge ou Yans, a
planta, ou uma pequena lona amarela desfiada nas pontas, no bloco gia, no Carnaval), cujo ato de
carregar configura-se, tambm, como um tipo de dana. Oiticica teria encontrado no Parangol, a
formulao definitiva de uma arte ambiental.
Da para o estabelecimento perceptivo de relaes entre a estrutura Parangol, vivenciada pelo participador, e outras estruturas caractersticas do mundo ambiental, surge o que chamo de vivncia-total Parangol, que sempre acionada pela participao do sujeito nas obras e lanada no mundo ambiental como que querendo decifrar a sua verdadeira constituio universal transformando-o em percepo criativa. [...] seria isto uma iniciao s estruturas perceptivo-criativas do mundo ambiental? (OITICICA, 2011, p. 74).
Figura 22. Parangol, Hlio Oiticica
A estrutura do Caramujo funciona como espao imersivo para encontros, frequentemente ao
som do Samba GIA e da Cerveja GIA, aberto para participao livre e criativa do pblico e amigos.
A apropriao perceptiva do pblico ativo como parte da concepo da obra encerra a criao do
sistema ambiental, ao mesmo tempo em que sugere a sua abertura. Essa participao bastante
livre, incluindo a no-participao nas suas inmeras possibilidades tambm (OITICICA, 2011,
p. 79), sendo possvel, portanto, danar em pausa e cantar em silncio, pois o estar junto implica em 36
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um acolhimento social das manifestaes individuais e suas singularidades, de outro modo teramos
uma nova moral coletiva.
Passo, agora, para a leitura do Quartel General, espao-tempo frequentemente de(s)limitado
pelo Caramujo, havendo uma fuso atual dessas duas interferncias, de modo que todo Caramujo
implica, j, em um QG.
1.4. QUARTEL GENERAL: HABITAR COMO OBRA DE ARTE
Figura 23. Cartaz abertura do QG na casa 7, 2011
Samba do QG
Subvertendo o espao da arte no museu,Reconhecendo a importncia de estar junto e se encontrarPossibilidades de construir, de produzir e de fazer...Juntar amigos o objetivo do QG!Bota uma planta pendurada numa corda pra enfeitarPrende uma lona amarela e rebaixa o teto para aconchegarUma esteira e uma rede confortvel para se deitarTornam o espao mais confortvel para ficarUm caf bem quente pra gente se sentar e conversar, Cerveja Gia pra galera se animar e levantar! Com os instrumentos, vai tocando cada um em seu lugar,Segura a onda, que o samba vai comear!Lailaila, lalailailailai
O Quartel General ou QG consiste em um espao hbrido de funes heterogneas
(Portiflio do GIA, 2011), territrio para livre ocupao, no qual o GIA prope uma imerso alegre 37
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e criativa. Uma das suas primeiras instalaes foi feita no Museu de Arte Moderna, em Salvador-
BA (2008), apresentando uma mostra documental sobre coletivos brasileiros que trabalham com o
espao pblico, fruto dos Sales de Maio, encontros de artistas produzidos pelo GIA, em 2004 e
2005. Nesse QG foram expostos vdeos, imagens, registros e demais documentos do GIA, sendo
utilizados, tambm, alguns jogos populares, como mesas de bilar, de maneira que o espao foi
ocupado pelos funcionrios do museu e pelos moradores do Gamboa, comunidade vizinha.
Atravs de propostas criativas que estimulem o uso de suportes e meios no convencionais de expresso, o grupo transforma e define o espao a partir das funes que lhe so atribudas oportunamente como o prprio ato de habit-lo (Portiflio do GIA, 2011).
Figura 24. Cartaz para Samba GIA e Cerveja GIA, Salvador-BA
Algumas residncias-sedes-atelir do GIA tornaram-se QG de carter mais prolongado, nem
por isso menos efmero, como a casa 46, na Rua das Laranjeiras, Pelourinho, em 2009, espao-
tempo para encontros de amigos com o Samba GIA e a Cerveja GIA, aberto s quintas e s sextas,
onde alguns integrantes do grupo tambm residiram. No ano de 2011, o QG-sede do GIA era na
casa 7 da Rua dos Adobes, no Santo Antnio, em cuja inaugurao estive presente. No ano
seguinte, 2012, o QG-sede do GIA se muda para a casa 13, da Praa dos Quinze Mistrios, a saber,
um teatro alternativo e particular (propriedade de Daniel Vilas Boas, morador do bairro). O tempo
de trs meses previsto para o QG nesse espao, consistiu, pois, na ocupao de um teatro e suas
possibilidades, sendo acordada uma troca, em que o GIA contribuiria para a estrutura fsica do
espao enquanto l estivesse. Alm disso, o QG seria, pela sua concepo artstica, um espao para
encontros, receitas experimentais, danas livres, histrias vividas e inventadas, samba, composies
poticas diversas.
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Figura 25. QG na casa 7, Salvador-Ba Figura 26. QG no MAM, Salvador-BA.
Passo a descrever dois eventos que ganharam uma maior dimenso no perodo do QG-sede
do Gia, nesse espao-tempo, a Reunio Aberta e o Cazao.
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Figura 27. Cartaz Reunio Aberta do GIA, Salvador-BA
No evento Reunio aberta do GIA, a convidada especial Paula Damasceno preparava o Hot
Dog com vontade de colocar dend vencido no molho, enquanto relatava sua experincia como
no-artista na residncia artstica em Elsewhere, Carolina do Norte. Em seguida, projetou imagens
do Carolina 85, documentrio de sua autoria, sobre os 85 anos do Carolina Theatre, nos Estados
Unidos, provocando um intenso debate sobre as condies dos espaos de cinema no Brasil e, mais
especificamente, na Bahia, pois que insistimos em trazer cena a nossa cultura historicamente
ofuscada pela grande mdia e polticas culturais. A Reunio aberta nesse QG-sede, acomodava-se
em um espao aconchegante, feito com colagens de objetos diversos, que faziam ou no parte do
acervo do GIA, fotografias, sucata, mapa geogrfico, vestgios de cenografias, bales amarelos,
cartazes antigos, plantas, buqu de flores de papel, Judas arrependido e perdoado, estandartes dos
blocos do bairro, uma biblioteca bastante especfica (cujo acervo trata basicamente do tipo de
potica na qual o GIA se insere), alm de uma cozinha improvisada. Na contemporaneidade, a
colagem diz respeito no apenas a uma tcnica de montagem, tornando-se, tambm, um