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    As Institutasou

    Tratado da Religio Crist

    vol. 1

    Edio clssica (latim)

    Joo Calvino

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    CARTA AO REI 11

    N D I C E

    Prefcio 1 edio ................................................................................................................... 17Prefcio 2 edio ................................................................................................................... 21Carta ao Rei Francisco I ............................................................................................................ 23Prefcio edio de 1559 ......................................................................................................... 43Prefcio edio francesa de 1541 e subseqentes, nessa lngua ............................................ 45

    CAPTULO I

    O CONHECIMENTO DE DEUS E O CONHECIMENTO DE NS MESMOS SOCOISAS CORRELATAS E SE INTER-RELACIONAM

    1. O conhecimento de ns mesmos nos conduz ao conhecimento de Deus ........................................ 472. O conhecimento de Deus nos leva ao conhecimento de ns mesmos ............................................. 483. O homem ante a majestade divina ................................................................................................ 49

    CAPTULO II

    EM QUE CONSISTE CONHECER A DEUS E A QUE FIM LHE TENDE O CONHECIMENTO

    1. Piedade o requisito para se conhecer a Deus ............................................................................... 502. Confiana e reverncia so fatores do conhecimento de Deus ....................................................... 51

    CAPTULO III

    O CONHECIMENTO DE DEUS FOI POR NATUREZA INSTILADO NA MENTE HUMANA

    1. Universalidade do sentimento religioso ........................................................................................ 532. Religio no invencionice gratuita ............................................................................................. 543. Impossibilidade de atesmo real .................................................................................................... 55

    CAPTULO IV

    ESTE MESMO CONHECIMENTO SUFOCADO OU CORROMPIDO,

    EM PARTE PELA IGNORNCIA, E EM PARTE PELA DEPRAVAO1. Superstio ..................................................................................................................................... 572. Apostasia ........................................................................................................................................ 583. Idolatria .......................................................................................................................................... 594. Hipocrisia ....................................................................................................................................... 59

    CAPTULO V

    O CONHECIMENTO DE DEUS FULGE NA OBRA DA CRIAO DO MUNDOE EM SEU CONTNUO GOVERNO

    1. Inescusabilidade do homem ........................................................................................................... 61

    2. Visibilidade da sabedoria divina ................................................................................................... 623. O ser humano evidncia mxima da sabedoria divina ................................................................. 634. A ingratido humana em relao a Deus ....................................................................................... 63

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    12 LIVRO I

    5. Confuso de criatura e Criador ..................................................................................................... 646. A soberania de Deus sobre a criao ............................................................................................. 667. O governo e o juzo de Deus ........................................................................................................ 678. O soberano domnio de Deus sobre a vida humana ..................................................................... 689. Deus melhor visualizado em suas obras do que em especulaes da razo .................................. 6910. Propsito deste conhecimento ................................................................................................... 7011. Cegueira humana ante a evidncia de Deus na criao ............................................................... 7112. A superstio humana e o engano dos filsofos constituem obstculos manifestao divina ... 7213. Ao Esprito Santo abominvel toda e qualquer religio de procedncia humana ..................... 7414. Insuficincia da manifestao de Deus na ordem natural ........................................................... 7515. Inescusabilidade final do homem .............................................................................................. 76

    CAPTULO VI

    PARA QUE ALGUM CHEGUE A DEUS O CRIADOR NECESSRIO

    QUE A ESCRITURA SEJA SEU GUIA E MESTRA1. O verdadeiro conhecimento de Deus na Bblia ............................................................................ 772. A Bblia, a Palavra de Deus escrita .............................................................................................. 783. A Bblia o nico escudo a proteger do erro ............................................................................... 794. A superioridade revelacional da Bblia sobre a criao ................................................................ 80

    CAPTULO VII

    POR QUE NECESSRIO QUE SE ESTABELEA O TESTEMUNHO EM PROL DAESCRITURA PARA QUE SUA AUTORIDADE SEJA INDUBITVEL: EVIDENTEMENTE,DO ESPRITO. DA SER MPIA FALSIDADE SUSTENTAR QUE SUA CREDIBILIDADE

    DEPENDE DO ARBTRIO DA IGREJA1. A autoridade da Bblia provm de Deus, no da Igreja ................................................................. 812. A Igreja est fundamentada na Bblia ........................................................................................... 823. Agostinho no contraria esta tese ................................................................................................. 834. O testemunho interior do Esprito superior a toda prova ........................................................... 845. A Bblia autenticada pelo Esprito ............................................................................................. 85

    CAPTULO VIII

    AT ONDE LEVA A RAZO HUMANA, H PROVAS SUFICIENTEMENTE SLIDASPARA ESTABELECER A CREDIBILIDADE DA ESCRITURA

    1. Superioridade da Bblia em relao a toda a sabedoria humana ................................................... 882. Beleza estilstica de certas pores da Bblia ............................................................................... 893. A antigidade da Bblia ............................................................................................................... 904. A fidedignidade de Moiss ........................................................................................................... 905. Os milagres reforam a autoridade de Moiss, o mensageiro divino ............................................ 916. Incontestabilidade dos milagres mosaicos ................................................................................... 927. Cumprimento das profecias mosaicas .......................................................................................... 928. Cumprimento de predies de outros profetas ............................................................................. 939. Preservao e transmisso da lei .................................................................................................. 9410. A Bblia foi maravilhosamente preservada por Deus .................................................................. 95

    11. Simplicidade e autoridade do Novo Testamento ........................................................................ 9612. Perenidade da Bblia .................................................................................................................. 9713. Testemunho dos mrtires ............................................................................................................ 98

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    CARTA AO REINDICE 13

    CAPTULO IX

    OS FANTICOS QUE, POSTA DE PARTE A ESCRITURA, ULTRAPASSAMA REVELAO E SUBVERTEM A TODOS OS PRINCPIOS DA PIEDADE

    1. Apelo fantico ao Esprito em detrimento da Escritura ................................................................ 992. A Bblia o rbitro do Esprito .................................................................................................... 1003. A Bblia e o Esprito Santo no se dissociam .............................................................................. 101

    CAPTULO X

    PARA CORRIGIR TODA SUPERSTIO, A ESCRITURA CONTRAPE TODOSOS DEUSES DOS PAGOS EXCLUSIVAMENTE O DEUS VERDADEIRO

    1. A doutrina bblica de Deus como Criador .................................................................................. 1032. Os atributos divinos atestados, de igual modo, na Bblia e na criao ....................................... 1033. Os idlatras so inescusveis ante a noo generalizada da unicidade de Deus ......................... 105

    CAPTULO XI

    UMA ABOMINAO ATRIBUIR FORMA VISVEL A DEUS, E GERALMENTESE APARTAM DO DEUS VERDADEIRO QUANTOS ESTABELECEM DOLOS PARA SI

    1. Representar a Deus atravs de imagens corromper-lhe a glria ............................................... 1062. Representar a Deus por meio de imagens contradizer-lhe o ser .............................................. 1073. Manifestaes e sinais que patenteavam a presena divina no servem de base para as imagens 1084. A Bblia condena imagens e representaes de Deus ................................................................. 1095. A Bblia no justifica a representao iconoclstica ................................................................... 1116. O parecer contra as imagens de certos vultos da patrstica ........................................................ 111

    7. Inaceitabilidade das imagens do romanismo .............................................................................. 1128. A feitura de imagens procede do desejo de tocar a Deus ............................................................ 1139. O uso das imagens conduz idolatria ........................................................................................ 11410. O culto de imagens ento reinante ........................................................................................... 11611. O sofisma do culto de latria e dulia .......................................................................................... 11612. Funo e limitao litrgica da arte .......................................................................................... 11713. A introduo de imagens na histria da Igreja .......................................................................... 11814. Argumentos enganosos que embasam a deciso iconlatra do Conclio de Nicia de 787 ....... 11915. O absurdo da hermenutica bblica dos paladinos da iconolatria ............................................. 12016. Pronunciamentos e prticas blasfemas e absurdas em relao iconolatria ............................. 121

    CAPTULO XII

    IMPORTA QUE DEUS SEJA DISTINGIDO DOS DOLOS,PARA QUE SE CULTUE INTEGRALMENTE SOMENTE ELE

    1. A verdadeira religio proclama o Deus nico e absoluto ............................................................. 1232. A ilusria distino de latria e dulia ........................................................................................... 1243. Improcedncia do culto de dulia luz das Escrituras ................................................................. 125

    CAPTULO XIII

    NAS ESCRITURAS, DESDE A PRPRIA CRIAO,

    SE ENSINA UMA ESSNCIA NICA DE DEUS, QUE EM SI CONTM TRS PESSOAS1. Infinitude e incorporeidade de Deus ............................................................................................ 1272. A questo de trs pessoas e a unidade substancial de Deus ........................................................ 128

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    14 LIVRO I

    3. Adequao dos termos Trindade e Pessoa interpretao do conceito bblico ........................... 1294. Utilidade dos termos Trindade ePessoa em relao a conceitos herticos ................................ 1305. Sentido e distino de termos fundamentais, a saber,substncia, consubstancial, essncia,

    hipstase, pessoa e trindade ...................................................................................................... 1316. Pessoa, essncia e subsistncia .................................................................................................. 1337. Deidade do Verbo ...................................................................................................................... 1348. Eternidade do Verbo .................................................................................................................. 1359. Evidncias veterotestamentrias quanto divindade de Cristo .................................................. 13610. O Anjo das teofanias era Cristo ................................................................................................ 13711. Os apstolos aplicam a Cristo o que fora dito do Deus eterno .................................................. 13912. As obras de Cristo atestam sua divindade ................................................................................. 14013. Os milagres de Cristo e as prerrogativas divinas que lhe so outorgadas atestam sua divindade 14114. A obra do Esprito Santo atesta sua divindade ......................................................................... 14215. O Esprito identificado com a Deidade .................................................................................... 143

    16. A unidade de Deus luz do batismo ........................................................................................ 14417. Trs pessoas: distino, no diviso ......................................................................................... 14518. Funes distintivas das pessoas da Trindade ........................................................................... 14619. O relacionamento hiposttico e a unidade consubstancial ........................................................ 14720. O conceito bsico do Deus Trino ........................................................................................... 14821. A atitude prpria em relao a esta doutrina e s heresias que se lhe opem ........................... 14922. A obstinao dos antitrinitrios, principalmente Serveto .......................................................... 15023. H no Filho a mesma divindade do Pai .................................................................................... 15224. O termoDeus no se aplica exclusivamente ao Pai; ele igualmente extensivo Palavra ....... 15425. A essncia nica de Deus comum s trs pessoas .................................................................. 15626. A subordinao do Filho no lhe implica divindade de categoria inferior ................................ 15727. Irineu est longe de legitimar a tese dos que negam a Deidade de Cristo ................................ 15928. Nem mais favorvel lhes Tertuliano ....................................................................................... 16029. O testemunho patrstico em geral confirma a doutrina da Trindade ......................................... 160

    CAPTULO XIV

    AT MESMO NA PRPRIA CRIAO DO MUNDO E DE TODAS AS COISAS,COM INCONFUNDVEIS MARCAS A ESCRITURA DISTINGUE O

    DEUS VERDADEIRO DOS FALSOS DEUSES

    1. O conhecimento de Deus base da criao e o despautrio da especulatividade ........................ 163

    2. A bondosa providncia de Deus para com o homem se acha espelhada na obra dos seis dias dacriao ........................................................................................................................................ 1653. Os anjos so criaturas de Deus, que de tudo o Senhor ............................................................ 1654. Em matria de angelologia, deve-se buscar somente o testemunho da Escritura ......................... 1675. Funes e designativos dos anjos ............................................................................................... 1686. O ministrio dos anjos a velarem de contnuo pela proteo dos crentes ................................... 1697. Precria a base para afirmar-se a realidade de anjo da guarda individual ................................ 1708. Hierarquia, nmero e forma dos anjos ....................................................................................... 1709. A realidade pessoal dos anjos ..................................................................................................... 17110. Improcedncia da angelolatria .................................................................................................. 17211. O ministrio dos anjos motivado pela necessidade humana ...................................................... 173

    12. Nossos olhos no devem desviar-se de Deus para os anjos ...................................................... 17413. A luta contra o Diabo e suas hostes .......................................................................................... 17514. O batalho demonaco vasto ................................................................................................... 175

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    CARTA AO REINDICE 15

    15. A malignidade do Diabo ........................................................................................................... 17616. A degenerescncia dos seres diablicos .................................................................................... 17717. O poder do Diabo est sujeito autoridade de Deus ................................................................ 17718. Limitao do poder satnico sobre os crentes e domnio sobre os incrdulos .......................... 17819. A realidade pessoal dos seres diablicos .................................................................................. 18020. O que a criao nos ensina concernente a Deus ....................................................................... 18121. A que nos deve conduzir a contemplao das obras de Deus ................................................... 18222. Deus criou todas as coisas para o bem do homem, da a gratido que lhe devemos .................. 183

    CAPTULO XV

    COMO O HOMEM FOI CRIADO: ONDE SE TRATA DAS FACULDADES DE SUA ALMA,DA IMAGEM DE DEUS, DO LIVRE-ARBTRIO E DA INTEGRIDADE

    ORIGINAL DE SUA NATUREZA

    1. O homem foi criado sem mcula: Deus no culpado do pecado humano ................................. 1852. Espiritualidade e imortalidade da alma, contudo distinta do corpo ............................................. 1863. O homem imagem e semelhana de Deus ................................................................................ 1884. A verdadeira natureza da imagem de Deus s determinvel luz da concepo bblica da

    regenerao em Cristo ................................................................................................................. 1905. O emanacionismo dos maniqueus quanto origem da alma ....................................................... 1916. Definio e propriedade da alma ................................................................................................ 1927. Entendimento e vontade: os centros das faculdades da alma ...................................................... 1958. Livre-arbtrio e responsabilidade de Ado .................................................................................. 195

    CAPTULO XVI

    DEUS, POR SEU PODER, SUSTENTA E PRESERVA O MUNDO POR ELE CRIADO,E POR SUA PROVIDNCIA ELE REGE CADA UMA DE SUAS PARTES

    1. A providncia, corolrio lgico da criao, razo por que no se separam .................................. 1982. O que rege o mundo a providncia, no o acaso ou a sorte ...................................................... 1993. Deus, causa primeira, tambm a tudo rege em sua providncia .................................................. 2004. Natureza da providncia: no envolve prescincia; atual e eficaz, universal e particular ........ 2025. A providncia especial de Deus no mbito da prpria natureza .................................................. 2046. A providncia especial de Deus no mbito da vida humana ........................................................ 2057. A providncia de Deus no mbito dos fatos naturais .................................................................. 2068. A doutrina da providncia no mera crena no destino ou fado, na sorte ou acaso .................. 207

    9. A imprevisibilidade e ignorncia humanas no discernem a causao divina dos eventos ........... 208

    CAPTULO XVII

    AT ONDE E A QUE PROPSITO SE DEVE APLICAR ESTA DOUTRINA,PARA QUE SEU PROVEITO SE NOS EVIDENCIE

    1. Sentido e alcance da providncia ................................................................................................ 2112. A reverncia devida providencial sabedoria e governo de Deus ............................................... 2123. A providncia no anula a responsabilidade humana .................................................................. 2144. A providncia divina longe est de dispensar todos os meios de proteo e socorro .................. 2155. A providncia divina no nos justifica a iniqidade ................................................................... 216

    6. O conforto que aos crentes propicia a doutrina da providncia de Deus .................................... 2187. A atitude do crente tocado pela viso da providncia benigna de Deus ...................................... 2198. A serenidade que a certeza da providncia divina faculta ante as adversidades ........................... 220

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    16 LIVRO I

    9. Relevncia das causas intermdias ............................................................................................. 22110. A certeza da providncia divina nos sustenta ante os perigos mltiplos que nos ameaam ....... 22211. A certeza da providncia divina nos propicia jubilosa confiana em Deus e sua operao ........ 22312. Sentido das passagens que falam de arrependimento por parte de Deus ................................... 22513. Arrependimento em Deus, antropomorfismo pedaggico ......................................................... 22614. A condicionalidade dos fatos na perspectiva da soberana providncia de Deus ........................ 227

    CAPTULO XVIII

    DEUS DE TAL MODO USA AS OBRAS DOS MPIOS E A DISPOSIO LHES VERGA AEXECUTAR SEUS JUZOS, QUE ELE PRPRIO PERMANECE LIMPO DE TODA MCULA

    1. Eficincia, no permissividade, a relao de Deus para com a ao dos mpios ....................... 2292. A eficincia da providncia divina na mente e corao de todos ................................................. 2313. A vontade de Deus una e soberana ........................................................................................... 2334. No procedente incriminar a Deus pelo fato de fazer uso dos mpios para seus propsitos

    magnos ........................................................................................................................................ 235

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    CARTA AO REI 17

    P R E F C I O 1 E D I O

    Indiscutivelmente, Joo Calvino o pensador mximo da Reforma e sua famosaobra, as chamadasInstitutas, o magnum opus no apenas de seus escritos, mas detoda a literatura produzida pelos Reformadores. Verdadeira aberrao histrica, deum lado, deplorvel lacuna teolgica, de outro, mais at, pasmosa expresso daincria ou displicncia da liderana eclesistica, esta obra monumental ainda noexiste em portugus decorridos quatro sculos de existncia da f reformada! O

    presbiterianismo brasileiro, entretanto, de longa data vem clamando pela traduodasInstitutas. Iniciativa tomada neste sentido, passados j duas dcadas e mais deum lustro, ainda no parece haver vindo ao encontro desse desideratum. Em1970,se me no trai a memria, o Congresso de Homens Presbiterianos reunido no Recifedirigiu direo da Igreja Presbiteriana do Brasil pedido formal a que providencias-se essa desejada, mas retardada traduo. Presente ao conclave, fui instado peloento Presidente do Supremo Conclio a assumir essa tarefa, fazendo a traduodiretamente do latim, ao invs de o ser da verso francesa. Foi s em 1973,entretan-

    to, que, gozando de um estgio nos Estados Unidos, merc da deferncia da Chris-tian Reformed Church, pude tentar atender incumbncia. De fato, nesse perodotraduzi todo o livro I. Escrevi, porm, ao Presidente do Supremo Conclio que atraduo exigiria muito mais tempo e se faria de mister reduzir-se-me-ia otrabalhode docente no Seminrio, que eu ento exercia. Retornando ao Brasil, absorvido pelas obrigaes do magistrio e voltado redao de meuManual de Grego,des- continuei a traduo at 1979, quando, j agora professor da Universidade

    Estadualde Campinas (UNICAMP), consegui que a traduo fosse aceita como correspon-dendo ao trabalho de pesquisa exigida dos professores dessa egrgia instituio deensino. Revi a traduo j feita do livro Igreja e prossegui por um tero do livro II,quando, discutindo a matria com o professor Franz Leonard Schalkwijk, doSemi- nrio Presbiteriano do Recife, conclu que a obra assumira carterexcessivamente acadmico, seja na linguagem demasiado erudita, seja nas notasinclusas, dada a forma do original latino para cada frase e clusula. Resolvi, pois,no s refazer a redao, mas tambm reduzir ao mnimo necessrio as

    referncias e notas explica- tivas. esta traduo revista que, com muitas graasao Senhor, carinhosamente ofereo agora aos estudiosos, no desejo sincero deenriquecer-lhes a vida espirituale legar Igreja um tesouro precioso para a obra de doutrinao e aprofundamentoteolgico. Praza a Deus abenoa-la, para que alcance esse alvo, motivo de minhas

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    18 LIVRO I

    Uma palavra de explicao se impe. Ante um documento histrico dessa im-portncia e de teor to distanciado da forma verncula, um dilema se interpunha:ou apegar-me ao texto, buscando-lhe a mxima fidelidade, ou, com vistas

    clareza da traduo, afastar-me sensivelmente do original. Optei pela primeiraalternativa, dei- xando a futuros expositores a incumbncia de interpretar eafeioar a expresso de Calvino a moldes mais comunicativos e a forma de fatomais verncula, mais livre e atualizada, parafraseada at. Logo, em ser literal,busquei reter, tanto quanto exe- qvel, o exato sentido do original latino, quia prpria terminologia, se no a fraseologia, pois estou que a primeira e principalqualidade de uma boa traduo a mxima fidelidade ao que diz o autor. Se, porvezes, a linguagem parece algo obscu-

    ra e especiosa, isso se deve prpria natureza do latim e ao estilo de Calvino, queno parece azado modificar. Todavia, inserem-se, em colchetes, palavras eexpres- ses que, no parte do original, visam a tornar mais clara a traduo.Ademais, aduzem-se explicaes e variantes ou alternativas forma adoptada,facilitada, as- sim, a compreenso do texto. Entretanto, uma obra que tem de serlida de forma pausada, refletida, cuidadosa, sem sofreguido nem aodamento, aateno voltada para com o contexto e a tnica da matria enfocada.

    Afigurou-se proveitoso cotejar a traduo presente com outras de fcil acesso.Destarte, fiz uso da Edio Francesa, texto atualizado de Pierre Marcel e Jean Cadi-

    er, de 1955 (abreviatura: EF), da valiosa traduo para o ingls de Ford LewisBat- tles, edio de 1961 (abreviatura: B), da tradicional traduo de JohnAllen, 7a. edio americana, de 1936 (abreviatura: A), da verso alem de KarlMuller, ediode 1928 (abreviatura: KM) e da espanhola de Cipriano de Valera, na forma darevi- so de 1967 (abreviatura: CR). At onde possvel, verifiquei as refernciasfeitas aos acervos da Patrologia Latina de Magne (PLM) e sua congnere, a

    Patrologia Grega (PGM), bem como Loeb Classical Library (LCL) e aoCorpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (CSEL), de outra sorte citadosconforme se mencio- nam nas verses cotejadas.

    Ponto que merece esclarecimento o referente s citaes de textos bblicos.Mantive a forma adoptada pelo prprio Calvino. No o texto da Vulgata, pelomenos na Verso Clementina, dela divergindo, por vezes, sensivelmente. matria para interessante considerao da Crtica Textual. Ademais, pareceCalvino modifi-ca-los, alter-los, adapta-los, fundindo passagens ou fracionando-as, conforme o aque visava, proceder longe de estranhvel em uma poca em que a moderna

    diviso capitular e versicular ainda no era generalizada, muito menosestereotipada, nemos cnones critico-textuais fixados e reconhecidos como hoje. Este , portanto, umaspecto em que se h de atualizar ou revisar o texto ao aplica-lo em moldescorren- tes. A fidelidade histrica, entretanto, no permitiria referi-los em termos

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    das tradu- es modernas ou do texto agora vigente.

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    CARTA AO REIPREFCIO 1 EDIO 19

    Muito e a muitos teria de registrar meu profundo agradecimento para que pu-desse levar a cabo esta para mim venturosa empreitada. Primeiramente, a Deus, PaiAmantssimo, que me conservou com vida e conferiu a capacidade para esta delica-

    da e morosa tarefa; Christian Reformed Church o propiciar-me perodo deestudos que me facultaram o contacto primeiro com o esforo de traduo, bemcomo o interesse na presente edio, objetivando em valioso subsdiofinanceiro; ao Dr. Peter de Klerk, bibliotecrio do Calvin College, Grand Rapids,Michigan, a valiosa colaborao prestada no uso de obras de seu acervo einformaes fornecidas poste- riormente; assim, ao Rev. Jlio Andrade Ferreiraque, generosamente, tanto me as- sistiu com livros de que tive necessidade aolongo de todo o demorado labor da traduo; Unicamp o slido apoio iniciativa, expresso na aceitao deste traba- lho como parte dos encargosexigidos dos docentes; ao professor Rodolfo Ilari, colega de docncia, ainestimvel ajuda na consecuo desse apoio; ao Rev. Celsinoda Cunha Gama, Diretor Executivo de Luz Para o Caminho, o empenho em fazercom que a obra viesse a lume, assumindo de comeo a dura tarefa de publicao;ao presbtero Glaycon Andrade Ferreira, que se desdobrou na reviso primeira dacom- posio; ao presbtero Dr. Paulo Breda Filho, Presidente do SupremoConclio da Igreja Presbiteriana do Brasil, ao presbtero Antonio Ribeiro Soares,Diretor Supe- rintendente da Casa Editora Presbiteriana, e ao Rev. Sabatini Lalli,

    o interesse emter a obra publicada sob o patrocnio da Igreja Presbiteriana do Brasil, comosempre desejamos. Ao Rev. Sabatini, ademais, o penoso trabalho de reviso finale as opor- tunas sugestes feitas na parte redacional. minha nobre esposa,Amlia Stephan Luz, a dedicao e ajuda prestadas de mil e uma formas, sem oque no teria eu tido condies de levar a cabo a rdua empreitada. Aosestudantes do Seminrio Presbi- teriano de Campinas e a muitos colegas ogeneroso estmulo, demonstrado vezes tantas e de tantas maneiras. Dereconhecimento especial, finalmente, credora a Comisso Calvino, constituda

    de ilustres irmos do Norte, centralizados no Recife, que me respaldaram oesforo com sugestes preciosas, certa ajuda financeira at que assumi a docnciacom tempo integral na Universidade, leal incentivo e muita orao.

    Que lhes recompense a todos a nobreza de alma o grande Senhor Nosso. Eque seja este esforo, fruto de intenso labor e especial carinho, ricamenteabenoado por Deus de sorte que dele possam muitos auferir grande proveitoespiritual e muito estmulo para testemunhar eficazmente de Cristo e seuEvangelho.

    Campinas, junho de 1984

    Waldyr Carvalho Luz

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    20 LIVRO I

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    CARTA AO REI 21

    P R E F C I O 2 E D I O

    fato assaz auspicioso que a primeira edio dasInstitutas em nossa lngua portu-guesa haja sido toda vendida em pouco mais de uma dcada de sua publicao. Porum lado, demonstra que nosso meio cultural, apesar de tantas limitaes e carncias,se esmera em cultivar e aprofundar seus conhecimentos teolgicos, nodesdenhando uma obra que, embora produzida no sculo 16, de imensaatualidade, no somente porque representa a magnum opus da Reforma

    Protestante, documento histrico de real grandeza, mas tambm porque umasistematizao da doutrina bblica de invul- gar profundidade e acuracidadehermenutica irretorquvel, fundamento essencial do pensamento protestanteclssico. Por outro lado, revela uma viso compreensiva e ampla do mundoteolgico, o mais das vezes afeito a vultos e obras ditas modernas, modismosefmeros e superficiais, de pouca durao e mesmo razes.

    A presente edio difere da anterior em que no mais se aduzem as repetidasnotas

    de rodap que registravam variantes comparativas de traduo verificadas emduas verses do ingls, da alem, da espanhola e, mesmo, da francesa. Tambm, acritrio dos editores, retiram-se os colchetes que assinalavam termos e formas que,no en- contradas no texto latino original, o tradutor inseriu para efeitos de clarezae expres- so, como o caso dos artigos definido e indefinido e do pronome daterceira pessoa, ausentes na lngua latina, que ns, falantes luso-brasileirosadaptamos do demonstra- tivo ille, ill, illud, em sua forma acusativa. Tais aduesbem que poderiam aparecer em itlico ou negrito. Tratando-se de documento de talvulto, ao traduzirmo-lo, procu- ramos, sem sermos literais, ater-nos ao estilo e

    terminologia de Calvino o mais poss- vel, pelo que nem sempre a traduo clarae fluente como seria de desejar-se. Os editores, para tornar o texto mais lcido eacessvel, tomaram a liberdade de fazer certos ajustes e alteraes, registrando,porm, em nota de rodap a forma integral da traduo de nossa lavra na primeiraedio. preciso que o leitor tenha em mos exatamente o que o telogo deGenebra escreveu, sem deturpaes ou falseamento do teor, exatido necessria emdocumento desse jaez e importncia.

    Congratulamo-nos com a Editora Cultura Crist pela arrojada, mas oportuna,

    iniciativa de reeditar as Institutas e alegramo-nos em poder continuar facultandoao estudioso Calvino falado em nosso idioma.

    Abenoe o Senhor este nobre empreendimento.

    Campinas, setembro de 2003Waldyr Carvalho Luz

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    22 LIVRO I

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    CARTA AO REI 23

    C A R T A A O R E I F R A N C I S C O I

    Ao Mui Poderoso e Ilustre Monarca,

    FRANCISCO,

    Cristianssimo Rei dos Franceses,

    seu Prncipe,

    JOO CALVINO

    Roga Paz e Salvao em Cristo

    1. CIRCUNSTNCIASEM QUEA OBRAFOIINICIALMENTE ESCRITA

    Quando, de incio, tomei da pena para redigiresta obra, de nada menos cogitava, mui preclaro Rei, que escreveralgo que, depois, houvesse de ser apresentado peran-te tua majestade. O intento era apenas ensinar certos rudimentos, merc dos quaisfossem instrudos em relao verdadeira piedade quantos so tangidos de algumzelo de religio. E este laboreu o empreendia principalmente por amora nossos

    compatrcios franceses, dos quais a muitssimos percebia famintos e sedentos deCristo, pouqussimos, porm, via que fossem devidamente imbudos pelo menosde modesto conhecimento. Que esta me foi a inteno proposta, no-lo diz oprprio livro, composto que em uma forma de ensinar simples e, por assim dizer,superficial.

    Como, porm, me apercebesse de at que ponto tem prevalecido em teu reinoa fria de certos degenerados, de sorte que no h neles lugar nenhum sdoutrina, dei-me conta da importncia da obra que estaria para fazer, se, mediante

    um mesmo tratado, no s lhes desse um compndio de instruo, mas aindapusesse diante deti uma confisso de f, merc da qual possas aprender de que natureza a doutrinaque, com fria to desmedida, se inflamam esses tresloucados que, a ferro e fogo,conturbam hoje teu reino. Pois nem me envergonharei de confessar quecompendiei aqui quase que toda a smula dessa mesma doutrina que aquelesvociferam deveria ser punida com o crcere, o exlio, o confisco, a fogueira, quedeveria ser extermina-da por terra e mar.

    2. DEFESADOSFIISPERSEGUIDOS

    Sei perfeitamente de quo atrozes denncias teriam eles enchido teus ouvidose mente, no af de tornar nossa causa diante de ti a mais odiosa possvel. Mas,em funo de tua clemncia, isto deve ser-te cuidadosamente ponderado, se

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    suficiente

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    haver acusado, que nenhuma inocncia haver de subsistir, nem nas palavras, nemnas aes.

    Se no interesse de suscitar dio, porventura algum alegue que esta doutrina, daqual estou tentando dar-te a razo, j por muitos tem sido condenada pelo veredicto

    de todos os Estados, solapada por muitas sentenas peremptivas dos tribunais,outra coisa no estar a dizer seno que, em parte, ela tem sido violentamentepisoteada pela facciosidade e prepotncia dos adversrios; em parte, insidiosa efraudulenta- mente oprimida por suas falsidades, invencionices e calnias.

    Constitui arbitrariedade o fato de que, no facultada oportunidade de defesa auma causa, contra ela se passem sanguinrias sentenas; dolo que, parte dequalquer delito, ela seja acusada de fomentar sedies e promovermalefcios.

    Para que no pense algum que estamos a queixar-nos dessas coisas injusta-mente, tu mesmo, Rei nobilssimo, podes ser-nos testemunha de com quementiro- sas calnias ela diariamente trazida diante de ti, como se a outro fimno disponha seno arrebatar das mos dos reis os cetros, pr por terra todos ostribunais e normas judicirias, subverter a todas as instituies e estruturaspoltico-administrativas, perturbar a paz e a tranqilidade pblicas, anular todas asleis, desmantelar domni-os e posses, enfim, promover total runa de tudo. E, no entanto, o que ouves ape- nas uma parcela mnima. Pois que certas coisas horrendas se espalham entre

    o povo, coisas que, se fossem verdadeiras, deveria o mundo inteiro, commerecida razo, julg-la digna, juntamente com seus autores, de mil fogueiras ecruzes.

    Quem a esta altura haveria de surpreender-se de que, onde se d crdito a essascivilizaes profundamente inquas, contra ela se tem inflamado o dio pblico?

    Eis por que todas as suas classes, de comum acordo, concordam e cooperamem nossa condenao, bem como de nossa doutrina, arrebatados por esta paixo,quan- tos se assentam nos tribunais para exercer o juzo, em lugar de sentenas

    reais, pronunciam os preconceitos que trouxeram de casa. E julgam haver-secriteriosa- mente desincumbido de suas funes, se a ningum ordenam queseja levado ao suplcio, a no ser que seja incriminado por confisso direta oupor slidos teste- munhos.

    Mas, de que crime? Dessa doutrina condenada, dizem-no. Mas, em bases deque direito foi ela condenada? Ora, isto deveria ser a essncia da defesa, a saber,no repudiar a prpria doutrina, ao contrrio, hav-la por verdadeira. Aqui, noentanto, nos vedado at mesmo o direito de falar em surdina!

    3. APELOEMFAVORDOSFIISOPRIMIDOS

    E assim, no sem justa razo, Rei invictssimo, rogo-te que empreendas cabalinvestigao desta causa, causa que at agora tem sido tratada desordenadamente,

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    quando no de todo tumultuada, e sem nenhuma sistemtica de direito, e mais sob aagitao do impulso de seriedade condigna do judicirio.

    Nem julgues que estou aqui arquitetando minha defesa pessoal, merc da qualme resulte seguro regresso ptria, da qual, embora a ame tanto quanto prprio

    do sentimento humano, no p em que esto as coisas atualmente no deploro profunda- mente estar dela distanciado. Antes, estou a abraar a causa comumde todos os piedosos, que outra no seno a prpria causa de Cristo que, detodos os modos, jaz hoje em teu reino lacerada e espezinhada, dir-se-ia reduzida adesesperada con- dio, isto, por certo, mais em decorrncia da tirania de certosfariseus do que de teu querer.

    Aqui, porm, a nada leva denunciar como isso acontece. O certo queesta causa est sofrendo dura opresso. Isto, pois, os mpios tm conseguido:

    que a verdade de Cristo, se no aniquilada como que em debandada e destroo,por certo que ser ostentada como que enxovalhada e vilipendiada. E a pobrezinhada Igreja est ou devastada por cruis morticnios, ou arruinada por banimentos,ou ralada por ameaas e terrores, que nem sequer ousa alar a voz. E, aindaagora, com a costumeira insnia e ferocidade, investem desabusados contra amuralha que j esta desmoronar-se, e prontos a levar a plena consumao a devastao a que seacos- tumaram. Entrementes, ningum vem frente para opor-se, em suaproteo, a tais exploses de violncia. E se alguns h que desejam ser tidos

    como a favorecer especialmente a verdade, so eles de parecer que se devamignorar o erro e a impru- dncia de homens incultos. Assim, pois, falam homenscomedidos, chamando de erro e imprudncia o que sabem ser a plena verdade deDeus; e chamando de ho- mens incultos, aqueles cuja inteligncia vem no tersido, de modo algum, despre- zvel a Cristo, uma vez que ele os teve por dignosdos mistrios de sua celestial sabedoria! A tal ponto, todos se envergonham doevangelho!

    Cumprir-te-, portanto, Rei serenssimo, no apartares os ouvidos, nem a

    mentede to justa defesa, mormente quando est em jogo questo de to alta importncia,a saber: como se far patente na terra o carter intocvel da glria de Deus, comosua dignidade retenha a verdade de Deus, como entre ns o reino de Cristo perma-necer ntegro e inabalvel. Matria essa digna de tua ateno, digna de teuconhe- cimento, digna de teu juzo!

    Com efeito, certamente esta considerao faz o verdadeiro rei: reconhecer-seum ministro de Deus na gesto do reino. Aquele que assim no reina para o servioda glria de Deus no exerce o reino; ao contrrio, exerce a usurpao. Ademais,muito se engana quem espera a prosperidade diria do reino que no regido pelocetro de Deus, isto , por sua santa Palavra, quando no pode falhar o orculoceles-te em que se proclamou, a saber, onde haja faltado a profecia, haver de espalhar-seo povo [Pv 29.18].

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    Tampouco deve privar-te desse esforo o menosprezo de nossa humildade. Dequo insignificantes somos, e abjetos homnculos, na verdade disso estamoshones- tamente cnscios. Sim, diante de Deus, mseros pecadores; vista doshomens, absolutamente desprezveis, escria e lixo do mundo; se o queres, ou

    qualquer outra coisa que de mais vil se possa, porventura, referir. De sorte quenada resta de que nos possamos gloriar diante de Deus, seno to-somente de suamisericrdia [2Co10.17, 18], merc da qual, parte de qualquer mrito nosso [Tt 3.5], fomosadmiti- dos esperana da eterna salvao, nem mesmo diante dos homens nossobra seno nossa impotncia [2Co 11.30; 12.5, 9], o que, a mera admisso,sequer com um aceno, entre eles suprema ignomnia.

    Nossa doutrina, porm, sublime acima de toda glria do mundo, invicta acima

    de todo poder, importa que seja enaltecida, pois no nossa, mas do Deus vivo ede seu Cristo, a quem o Pai constituiu Rei, para que domine de mar a mar e desdeos rios at os confins do orbe das terras [Sl 72.8]. E de tal forma, em verdade,deve ele imperar, que, percutida s pela vara de sua boca, a terra toda, com seupoder de ferroe bronze, com seu resplendor de ouro e prata, ele a despedaar como se outracoisa no fosse seno diminutos vasos de oleiro, na exata medida em que osprofetas vaticinam acerca da magnificncia de seu reino [Dn 2.34; Is 11.4; Sl 2.9].

    Nossos adversrios, verdade, vociferam em contrrio que nos servimos alei-vosamente da Palavra de Deus, da qual, a seu ver, seramos os mais depravadoscorruptores. Esta, na verdade, no s uma calnia por demais maldosa, masainda um deslavado despudoramento; tuprprio, ao leres esta nossa confisso, em virtu-de da prudncia que te assiste, o poders julgar. Aqui tambm ser bom dizeralgu- ma coisa, a qual te provoque ou desejo e ateno, ou pelo menos te abraalgum caminho para l-la.1

    Quando Paulo quis que toda profecia fosse conformada analogia da f (Rm

    12.6), estabeleceu uma regra extremamente segura, pela qual deva ser testada ainterpretao da Escritura. Portanto, se a doutrina nos esquadrinhada basedesta regra de f, nas mos nos est a vitria. Pois, que melhor se coaduna com af e mais convenientemente do que reconhecer que somos despidos de todavirtude, para que sejamos vestidos por Deus; vazios de todo bem, para quesejamos por ele plenifica- dos; escravos do pecado, para que sejamos por elelibertados; cegos, para que seja- mos por ele iluminados; coxos, para que sejamospor ele restaurados; fracos, para que sejamos por ele sustentados; despojando-nosde todo motivo de glria pessoal, para que somente ele seja glorioso e ns nelenos gloriemos? [1Co 1.31; 2Co 10.17].

    Quando dizemos estas e outras coisas desta espcie, interrompem-nos eles e

    1. Primeira edio: Contudo, algo se impe ainda aqui dizer que prpria leitura ou te desperte o desejoe a ateno, ou, certamente, o caminho [para isso te] aplane.

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    protestam com veemncia, dizendo que, desse modo, se subvertem no sei que cegaluz da natureza, pretensas preparaes, alm do livre-arbtrio e das obras meritriasda salvao eterna, com suas supererrogaes. que no podem suportar que emDeus residam o pleno louvor e a glria de todo bem, virtude, justia e sabedoria.

    Com efeito, no lemos que fossem repreendidos os que da fonte da gua viva(Jo 4.14) tenham bebido sobejamente. Ao contrrio, sofrem pesadas censurasos que cavaram para si cisternas rotas e que no conseguem reter gua (Jr 2.13).Por outro lado, que mais se coaduna com a f do que assegurar-se que Deus nosseja Pai propcio onde a Cristo reconhecido como irmo e propiciador; do queesperar todas as coisas alegres e prsperas confiadamente da parte desse Deuscujo inenar- rvel amor para conosco a tal ponto chegou que no poupou ao prprio Filho, entre- gando-o por ns [Rm 8.32]; que aquiescer a segura

    expectao da salvao e da vida eterna, quando se tem em conta que Cristo nosfoi dado pelo Pai, em quem todos os tesouros esto escondidos?

    A esta altura, agarram-nos e bradam que no falta a essa certeza da f arrognciae presuno. Como, porm, nada devemos presumirde nsprprios, assim de Deusse deve presumir tudo. Nem por outra razo nos despojamos de vanglria, senopara que aprendamos a gloriar-nos no Senhor [2Co 10.17; 1Co 1.31; Jr 9.23, 24].

    Que mais direi?

    Passa em rpida revista, mui poderoso Rei, todos os elementos de nossa causa

    e considera-nos mais execrvel que qualquer espcie de homens celerados, se noverificares, com cristalina clareza, que nisto nos afadigamos e sofremos aprbrios,porque depositamos nossa esperana no Deus vivo [1Tm 4.10], porque cremos seresta a vida eterna: conhecer ao nico Deus verdadeiro e quele a quem ele enviou,Jesus Cristo [Jo 17.3]. Em razo desta esperana, alguns dentre ns soconfinados em grilhes, outros fustigados com varas, outros levados de um lado para outro como objeto de ridculo e zombaria; uns forados ao exlio, outrostorturados com extrema crueldade; outros, alijados pela fuga. Todos nos vemosoprimidos pela an- gstia da situao, apostrofados com terrveis execraes,

    lacerados de infmias, tratados de maneiras as mais afrontosas.Atenta, agora, para nossos adversrios (falo da classe dos sacerdotes, a cujo

    arbtrio e talante os demais exercitam hostilidades para conosco, e por ummomento pondera comigo de que so levados pelo zelo).

    4. ESCRITURAETRADIO

    Permitem, com pronta facilidade, tanto a si mesmos como aos outros, ignorar,negligenciar, desprezar a verdadeira religio, que foi transmitida pelas Escrituras eque deveria ser mantida constante entre todos. E pensam pouco importar que al-

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    gum creia ou deixe de crer acerca de Deus e de Cristo, desde que, pelo que cha-mam f implcita, submeta o entendimento ao arbtrio da Igreja. Nem sepreocupam muito se ocorre que se conspurque a glria de Deus com vociferantes blasfmias, contanto que ningum levante um dedo contra o primado da s

    apostlica e a auto- ridade da Santa Madre Igreja.Por que, afinal, lutam com to acirrada virulncia e ferocidade em favor da

    missa, do purgatria, das peregrinaes e baboseiras tais, a ponto de negarem quetem de haver s piedade, sem, por assim dizer, f mais explcita nestas coisas,quan- do, entretanto, nada dessas coisasprovam eles ser da Palavra de Deus?

    Por qu, seno porque Deus seu ventre [Fp 3.19], a religio a cozinha, priva-dos dos quais no s crem que no sero cristos, mas, realmente, nem aindaseres humanos? Ora, embora uns se empanturrem regaladamente, outros roam

    frgeis migalhas, todos, entretanto, vivem do mesmo caldeiro que, sem essessubsdios, no se esfriaria, no se congelaria de todo. Por isso, j que peloprprioventre cada um desses est extremamente solcito, assim cada qual se mostraacrrimo batalha- dor por sua f. Enfim, todos uma a isto se votam: ou preservarinclume o poder,ou abarrotar o ventre. Ningum, contudo, d sequer a mnima demonstrao de zelosincero.

    5. LIBELOADVERSRIONem ainda assim cessam de investir contra nossa doutrina e de invectiv-la e

    infam-la com quantas alcunhas possam, no empenho de torn-la ou odiosa ousus- peita. Dizemser ela doutrina nova e originada no h muito. Ridicularizam-na de ser duvidosa e incerta. Indagam de que milagres tenha sido confirmada.Perguntamse porventura procedente que ela prevalea contra o consenso de tantos santos pais e contra o uso mui antigo. Insistem dizendo que confessamos ser ela

    cismtica, uma vez que move guerra contra a Igreja, ou que declaramos que aIgreja esteve semimorta por muitos sculos, durante os quais nada parecido se fezouvir.

    Finalmente, ponderam que no se faz necessrio farta cpia de argumentos, poiso que ela se pode julgar pelos prprios frutos, visto que tem engendrado toavul- tado acervo de seitas, cifra to elevada de tumultos sediciosos, todesbragada li- cenciosidade.

    Certamente que lhes muito fcil vituperar uma causa desassistida perante amultido crdula e ignara. Entretanto, se a ns tambm fossem facultadas mtuasoportunidades de arrazoar, digo que de pronto lhes seria estancada a fervura destaacrimnia com que, nesse tom, de boca cheia, e to viciosa quanto impunemente,espumejam contra ns.

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    tamente com eles o Senhor, mediante sinais, portentos e muitos atos de poder [Hb2.4; Rm 15.18, 19].

    Quando, pois, ouvimos que eles constituem marcas do evangelho, porventuraos converteremos em destruio da autoridade do evangelho? Quando ouvimos

    que foram destinados simplesmente autenticao da verdade, porventura osacomoda- remos confirmao de mentiras? Portanto, conveniente examinar einvestigar, em primeiro lugar, a doutrina, a qual o evangelista diz terprecedncia sobre os milagres; doutrina que, se for aprovada, s ento deve, porfim, de direito, recebera confirmao dos milagres.

    Entretanto, a marca distintiva da boa doutrina, da qual o autor Cristo, esta:ela no se inclina a buscar a glria dos homens, mas a de Deus [Jo 7.18; 8.50].

    Quando Cristo declara que esta a comprovao da doutrina, os milagres sovisu- alizados em falsa luz, os quais so levados a outro propsito que no o deglorifi- car o nome do Deus nico. E convm que tenhamos sempre em mente queSatans tem seus milagres, os quais, embora sejamfalazes prestidigitaes, antesque genu- nos prodgios, entretanto so de tal natureza, que podem seduzir osdesavisados e simplrios [2Ts 2.9, 10]. Mgicos e encantadores sempre sedestacaram porseus milagres. A idolatria sempre foi nutrida por milagres decausar pasmo. Contudo, eles no legitimam nossa superstio, nem dos magos,nem dos idlatras.

    E com este arete, os donatistas, outrora, abusavam da simplicidade da popu-lao, de que eram poderosos em milagres. Portanto, agora respondemos anossos adversrios, o mesmo que Agostinho respondeu ento aos donatistas: oSenhor nos acautelou contra esses milagreiros quando predisse que haveriam devir fal- sos profetas, os quais, em virtude de sinais mentirosos e prodgios vrios,induziri- am os eleitos ao erro, se isso pudesse acontecer [Mt 24.24]. E Pauloadvertiu que o reino do Anticristo haver de vir com todo poder, e sinais, eprodgios enganosos[2Ts 2.9].

    Mas, insistem eles, esses milagres no so operados por dolos, nem pormistifi- cadores, nem por falsos profetas, mas pelos santos. Como se na verdadeno soubs- semos que esta a artimanha de Satans: transformar-se em anjo deluz [2Co 11.14]. Em tempos idos, os egpcios cultuaram a Jeremias, sepultadoem seu meio, com sacrifcios e outras honras divinas. Porventura no estavamabusando do santo pro- feta de Deus para o s fins de sua idolatria? E no entantocom tal venerao de seu sepulcro chegavam ao ponto de pensar que, como justa recompensa disso, eram curados da picada de serpentes! Que diremos,

    seno que sempre foi esta, e haverde sempre ser, a mui justa punio de Deus: enviar a eficcia do erro queles queno tm recebido o amor da verdade, para que creiam na mentira [2Ts 2.11]?

    Portanto, de modo nenhum nos faltam milagres, e esses no so passveis dedvida, nem suscetveis a zombarias.Aqueles, porm, aos quais eles apelam em seu

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    abono, so meros embustes de Satans, uma vez que desviam o povo do verdadeiroculto de seu Deus para o engano.

    8. O TESTEMUNHO DOSPATRSTICOS

    Alm disso, os patrsticos se nos opem cavilosamente (refiro-me aosescritores antigos e, alm disso, de uma era melhor), como se os tivessem porsufragadores de sua impiedade, por cuja autoridade a contenda pudesse serdirimida e se nos inclina- ria, para falar at com extremada modstia, a melhorparte da vitria.

    De fato, ainda que muitas coisas tenham sido escritas por esses patrsticos,com admirvel descortino e reconhecida excelncia, em certos casos, contudotem-lhes acontecido o que s costuma acontecer aos homens, isto , estes filhospiedosos, com a agudeza de esprito, de discernimento e de compreenso, com queso dota- dos, deles s cultuam os lapsos e erros. Aquilo, entretanto, que comacerto disse- ram, ou no o observam, ou o dissimulam, ou o deturpam, de sortede possas dizer que sua nica preocupao tem sido catar esterco em meio aoouro.

    Ento, contra ns investem com mpios brados como sendo ns desprezadorese inimigos dos patrsticos. Ns, porm, to longe estamos de desprez-los que,se fosse esse nossopresente propsito, de nenhuma dificuldade me seria possvel

    com- provar-lhes com as prprias opinies a maior parte daquilo que estamoshoje afir- mando. Contudo, em tais moldes lhes versamos os escritos que temos deter sempre isto em mente [1Co 3.21-23]: tudo nosso para servir-nos, no paradominarsobre ns, e nssomos de um, Cristo, a quem se deve, sem exceo, emtudo obedecer. Quem no observa esta distino, na f nada ter de slido, umavez que muita coisa ignoraram estes santos vares, no raro discreparam entresi, por vezes at a si mesmos se contradisseram.

    No sem razo, frisam eles que somos admoestados por Salomo [Pv 22.28] a

    no ultrapassarmos os marcos antigos que nossos pais estabeleceram. Mas, anorma no a mesma em se tratando de limites de glebas e em questo deobedincia daf. Mais apropriada esta que se estabelece nestes termos: esquea seu povo e acasa de seu pai [Sl 45.10]. Se, porm, com tanto ardor se regozijam emavllhgorei/n[^ll@G(r#'n alegorizar], por que no adotem os apstolos como pais, antes que aqualquer outro, cujos termos prescritos no lcito remover? Ora, assiminterpretou Jernimo, cujas palavras eles inseriram em seus cnones. E se

    querem que sejam fixos os limites destes a quem entendem por pais, por que elesprprios to impie- dosamente os ultrapassam, quantas vezes lhes apraz?

    Do elenco dos patrsticos eram aqueles dos quais um disse que nosso Deus nocome, nem bebe, e assim no tem necessidade de clices, nem de pratos; outro, queos ritos sagrados no requerem ouro, nem com ouro se fazem aceitveis as coisas

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    que com ouro no se compram. Ultrapassam, portanto, esse limite, quando emseuscerimoniais to efusivamente se deleitam com o ouro, a prata, o marfim, o mrmore,as pedras preciosas, as sedas, nem pensam que Deus s devidamente adorado seo for atravs de tudo o que derive em requintado esplendor, ou, melhor, em

    extrava- gante pompa.Patrstico era aquele que sentenciou que, por isso, sem reservas, fazia uso de

    carne no dia em que os demais dela se abstinham: que era cristo. Desse modo,eles ultrapassam os limites, quando com terrveis exprobraes execram aalma que tenha provado carne durante a quaresma.

    Patrsticos eram esses dos quais um declarou que o monge que no trabalhassecom as prprias mos fosse julgado igual ao assaltante, ou, se opreferes, ao ladro;o outro, que no era prprio aos monges viverem do alheio, mesmo se fossem ass-

    duos nas contemplaes, nas oraes, nos estudos. Tambm este limite elestm violado, quando encerraram em prostbulos e bordis os ociosos e bojudosventres dos monges, para que se cevassem dos bens alheios.

    Patrstico era quem afirmou ser horrenda abominao ver-se pintada em tem-plos de cristos a imagem, seja de Cristo, seja de qualquer santo. Tampouco foiisto pronunciado pela voz de um nico homem, mas at decretado por um conclioecle- sistico: que no se pinte em paredes o que se adora. Muito longe est deque se contenham dentro destes limites, quando no deixam sequer um canto

    vazio de imagens.Aconselhou outro patrstico que, aps havermos cumprido o dever de humani-dade para com os mortos, em sepultando-os, os deixssemos descansar. Eles rom-pem totalmente estes limites quando incutem a perptua solicitude dos mortos.

    Do elenco dos patrsticos era aquele que testifica que a substncia do po e dovinho permanecem assim na Santa Ceia, e no cessam, como em Cristo, o Senhor,a substncia e natureza humana subsistem unidas divina. Desse modo,ultrapassam

    o limite quantos imaginam que, recitadas as palavras do Senhor, cessa a substnciado po e do vinho, para que se transubstancie em corpo e sangue.

    Patrsticos eram os que, como exibiam a toda a Igreja uma s Eucaristia, ecomo, ademais, excluam dela os dissolutos e os criminosos, assim drasticamenteconde- navam a todos aqueles que, presentes, dela no participassem. Elesremoveram es- ses limites para bem longe, quando no apenas os templos, mas atas casas particu- lares, enchem com suas missas, a cuja participao a todomundo admitem, por mais vis e degenerados que sejam, e a cada um com tantomaior prazer quanto maior

    a gorjeta? A ningum convidam f em Cristo e genuna comunho dos sacra-mentos, antes, mercadejam sua prpria obra como sendo a graa e o mritode Cristo!

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    limites, se eu quisesse passar em revista quo petulantemente estes sacodemde sobre si o jugo dos patrsticos, de quem desejam parecer filhos obedientes. Nome seriam suficientes meses, realmente anos at.

    E, no obstante, eles so de to desabusada e deplorvel impudncia, que ou-

    sam invectivar-nos de que no hesitamos em transgredir os limites antigos!

    9. O VALOR DO COSTUME

    Ora, se nos evocam o costume, certamente que nada conseguem, pois se agiriamui injustamente conosco se tivssemos que ceder ao costume. Sem dvida que, seos juzes dos homens fossem retos, se fazia necessrio buscar o costume dos bons.Contudo, no poucas vezes costuma acontecer mui diferentemente, pois o que sev praticado por muitos logo adquire o foro de costume. Alm disso, dificilmenteem algum tempo as coisas humanas estejam to bem que o melhor agrade maioria. Portanto, o erro pblico quase sempre resultou dos vcios particularesde muitos, ou, melhor, o consenso comum dos vcios, que agora estes bons varesquerem que seja tido por lei.

    Que aqueles que tm olhos vejam que no apenas um oceano de males teminundado o orbe, que numerosas pestes ameaadoras o tm invadido, que tudo seprecipita runa, de tal sorte que, ou haver de desesperar-se inteiramente quanto situao humana, ou fazer frente a to grandes males que s vezes preciso

    aplicara fora. E o remdio rejeitado no por outra razo, mas porque j de muito nosacostumamos aos males.

    Todavia, ainda que o erro pblico tenha lugar na sociedade dos homens, noreino de Deus, contudo, o que se ouve e se observa s sua eterna verdade, qualno se pode impor a injuno de alguma extenso de tempo, de algum costume, dealguma conjurao. Assim, outrora ensinava Isaas aos eleitos de Deus queno dissessem: Conspirao, em referncia a tudo aquilo em que o povo dizia:

    Conspi- rao [Is 8.12]. Isto , que elesprprios no conspirassem compartilhandodo senti- mento mpio do povo, nem temessem deles o que temiam, nem seespantassem, mas, ao contrrio, se santificassem ao Senhor dos Exrcitos e estefosse para eles o temor e espanto.

    Agora, pois, que lancem eles exemplos diante de ns, como queiram, no ape-nas os sculos sucessivos, mas ainda os tempos atuais. Se santificarmos o Senhordos Exrcitos, no seremos grandemente espantados. Ora, ainda que muitossculos tenham anudo mesma impiedade, poderoso aquele que exercevingana at a terceira e quarta gerao [Ex 20.5; Nm 14.18; Dt 5.9]; ainda que, aum s tempo, o orbe inteiro conspire na mesma maldade perversa, pela experinciaele nos ensinaram qual seja o fim daqueles que transgridem com a multido,quando a todo o gnero

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    humano destruiu pelo dilvio, preservando apenasNo comsua reduzida famlia, oqual, por sua f, e esta de um s, condenasse ao mundo todo [Hb 11.7; Gn 7.1].

    Afinal, o mau costume outra coisa no seno uma como que peste pblica,em que no menos sucumbem quantos tombam na multido. Ademais, conviria

    que ponderasse o que em certo lugar diz Cipriano: Aqueles que pecam porignorncia, embora no podem ser eximidos de toda culpa, contudo podemparecer de certo modo escusveis.Aqueles, porm, que obstinadamente rejeitam averdade oferecida pela benevolncia de Deus nada tm que possam pretextar.

    10. CONCEPES ERRNEAS QUANTONATUREZA DAIGREJA

    Com seu dilema, no to prementemente nos arrocham que nos forcem a con-fessar, ou que a Igreja esteve por algum tempo semimorta, ou que agora estejamosns em conflito com a Igreja. A Igreja de Cristo certamente tem estado viva, eviva continuar por quanto tempo Cristo reinar destra do Pai, por cuja mo ela sus- tentada, por cuja proteo guardada, por cujo poder ela retm suaintangibilidade. Pois ele cumprir, indubitavelmente, o que uma vez prometera, asaber, que haverde estar com os seus at a consumao do mundo [Mt 28.20]. No momento nosustentamos contra ela nenhuma luta, uma vez que, em pleno consenso com todoo corpo dos fiis, cultuamos e adoramos ao Deus nico e a Cristo, o Senhor [1Co

    8.6], nos moldes em que tem sido sempre adorado por todos os piedosos.Entretanto, eles no se desviam pouco da verdade, quando no reconhecemnenhuma Igreja seno aquela que descortinam pela viso natural e a tentamcircunscrever aos limites a que, de modo algum, foi ela confinada.

    A controvrsia gira nestes gonzos: primeiro, que eles contendem dizendo quea forma da Igreja sempre concreta e visvel; segundo, que identificam a prpria forma com a s da igreja romana e a ordem de seus prelados. Nsafirmamos, em contrrio, no s que a Igreja pode subsistir sem nenhuma

    expresso visvel, nem que ela contm a forma nesse esplendor externo queestultamente admiram, mas, em marca bem diferente, a saber, na pregao purada Palavra de Deus e na legtima administrao dos sacramentos.

    Eles se exasperam quando nem sempre podem apontar a Igreja com o dedo.Quo freqentemente, porm, aconteceu de ela deformar-se ante o povo judeu atal ponto que no podia ser distinguida por nenhuma aparncia? Que formapensamos haver ela refulgido, quando Elias deplorava por ter ficado sozinho?[1Rs 19.14]. Quanto tempo, desde a vinda de Cristo, ela ficou obscura e semforma? Quantas vezes, desde essa poca, ela foi de tal modo oprimida porguerras, por revoltas, por heresias, que em parte alguma fosse contemplada comesplendor? Se porventura tivessem vivido nesse tempo, teriam crido existirento alguma Igreja? Elias, po-

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    rm, ouviu que foram conservados sete mil homens que no tinham dobrado os joelhos diante de Baal [1Rs 19.18]. Tampouco nos deve pairar alguma dvidade que Cristo sempre reinou na terra, desde que subiu ao cu. Com efeito, se entoos piedosos houvessem requerido alguma forma perceptvel aos olhos, porventura

    no teriam prontamente cedido ao desnimo?Alis, j em seu sculo, Hilrio havia considerado ser um mal superlativo que,

    tomados de estulta admirao pela dignidade episcopal, no se apercebiam que seocultava por debaixo dessa mscara mortfera e sinistra, porque assim fala contraAuxncio: De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois mal quede vs se haja apoderado o amor s paredes, mal que venerais a Igreja de Deus emtetose edifcios, mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura pass-vel de dvida que nestes o Anticristo haver de assentar-se? A mim mais seguros soas montanhas, as florestas, os lagos, os crceres e as furnas. Pois nestes, profetiza oProfeta, ou habitam, ouso lanados.

    Entretanto, o que hoje o mundo venera em seus bispos cornudos, seno quepresume serem santos prelados da religio aqueles a quem v presidirem s cidadesde maior renome?

    Fora, portanto, com to estulta admirao! Antes, pelo contrrio, uma vez ques ele sabe quem so os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: s vezes eleat mesmo priva a viso dos homens da percepo exterior de sua Igreja.

    Confesso que isso o que merece a impiedade dos homens; por que porfiamosns em opor- nos justa vingana de Deus? Em moldes como esses, o Senhor puniu em tempos idos a ingratido dos homens. Ora, visto que no quiseramobedecer-lhe verdade,e sua luz extinguiram, quis ele que, tornando-se cegos em seu entendimento, no sfossem enganados por falsidades absurdas, mas ainda imersos em trevas profundas,de tal sorte que no se evidenciasse nenhuma expresso exterior da verdadeira Igre-ja. Contudo, em todo o tempo em que ela foi extinta, ele preservou os seus, aindaque no s dispersos, mas at mesmo submersos em meio aos erros e s trevas. Nem de admirar, pois, que soube preserv-los tanto na prpria confuso de Babilnia,quanto na chama da fornalha ardente.

    Entretanto, o fato de quererem julgar a forma da Igreja em funo de no sei quev pompa, o quanto isso perigoso, e para que a exposio no se prolongue desme-didamente, o indicarei em poucaspalavras, em vez de tecer-lhe longa considerao.

    O pontfice, insistem, que ocupa a s apostlica, e quantos foram por ele ungi-dos e consagrados sacerdotes, uma vez que sejam assinalados porsuas mitras ebculos, representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso eles no

    podem errar. Por qu? Porque so pastores da Igreja e consagrados ao Senhor.E porventura Aro e os demais guias de Israel no eram pastores? Contudo Aro

    e seus filhos, j investidos sacerdotes, no entanto erraram quando forjaram o bezer-

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    ro [Ex 32.4]. Segundo este raciocnio, por que no teriam representado a Igrejaaqueles quatrocentos profetas que mentiam a Acabe? [1Rs 22.11, 12]. A Igreja,po- rm, estava do lado de Micaas, por certo um homem sozinho e desprezvel, decuja boca, entretanto, procedia a verdade.

    Porventura os profetas no levavam diante de si no s o nome, como tambma forma da Igreja, quando uma se insurgiram contra Jeremias e, ameaadores,se jactavam de que no era possvel que a lei perecesse ao sacerdote, o conselhoao sbio, a palavra ao profeta? [Jr 18.18]. Jeremias enviado sozinho contra todaessa horda de profetas, para que da parte do Senhor denunciasse que acontecerque a lei perecer ao sacerdote, o conselho ao sbio, a palavra ao profeta! [Jr 4.9].

    Por acaso no refulgia tal esplendor naquela assemblia que os sacerdotes, osescribas e os fariseus reuniram a fim de captar pareceres acerca de como tirariam

    a vida a Cristo? [Mt 26.3, 4; Jo 11.47-53; 12.10]. Que se vo agora e se apeguem mscara exterior, e assim se faam cismticos a Cristo e a todos os profetasde Deus; por outro lado, que faam dos ministros de Satans rgos do EspritoSanto!

    Ora, se esto falando a srio, respondam-me em boa f: entre que agentes elugares pensam que a Igreja residia depois que, por decreto do Conclio deBasilia, Eugnio foi deposto e alijado do pontificado e Amadeu investido emseu lugar? Ainda que se arrebentem, no podem negar que, no que tange exterioridade, esse Conclio foi legtimo, alm de tudo convocado no apenas

    por um pontfice, mas por dois. Eugnio foi ali condenado de cisma, rebelio econtumcia, juntamente com todo o bando de cardeais e bispos que haviam comele maquinado a dissoluodo Conclio. Entretanto, mais tarde apoiado no favor dos prncipes, recuperou inte-gralmente o pontificado. Em fumaa se desfez essa eleio de Amadeu, solenemen-te consumada que forapela autoridade de um snodo geral e sacrossanto, exceto queo supracitado Amadeu foi aplacado em virtude de um chapu cardinalcio, comoum co a ladrar se cala quando lhe tirado naco de carne. Do grmio desseshereges rebeldes e contumazes procedeu tudo quanto em seguida tem havido depapas, car- deais, bispos, abades, padres.

    Neste ponto, impe-se agarr-los e imobiliza-los. Pois, a qual das duas facesconferiro o nome de Igreja? Porventura negaro que foi esse um Conclio Geral,de nada carecendo quanto majestade exterior, j que, em verdade, foisolenemente convocado por duas bulas, consagrado mediante o legado da sromana a presidi-lo, em todas as coisas devidamente conformado s normasregulamentares, a conser- var-se sempre na mesma dignidade at o fim?Declararo Eugnio cismticos com toda sua coorte, pela qual foram todos

    consagrados?Portanto, ou definam a forma da Igreja em outros termos, ou, por mais

    numero- sos que sejam, sero por ns tidos como cismticos quantos, cnscia edeliberada- mente, foram ordenados por hereges.

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    E se nunca antes se fizesse evidente que a Igreja no se prende a pompasexter- nas, eles prprios podem dizer-nos que disso constitui prova abundante,visto que, sob esse pomposo nome de Igreja, por tanto tempo orgulhosamente seapregoaram

    ao mundo, quando, entretanto, no passavam de pestes mortferas Igreja. Noestou me referindo aseus costumes e queles atos hediondos de que empanturra oviver de todos, quando, como os fariseus, dizem que devem ser ouvidos, noimita- dos [Mt 23.3].

    Se devotares um pouco de teu lazer a lerestas nossasponderaes, sem sombrade dvida reconhecers que a prpria,sim, a prpria doutrina, base da qual arg-em que devem ser tidos como sendo a Igreja, no passa de mortfero matadourode almas, tocha incendiria, runa e destruio da Igreja.

    11. ALEGAMQUE OS TUMULTOS RESULTAMDAPREGAO REFORMADA

    Finalmente, agem no com pouca malcia quando, com despeitada virulncia,rememoram quo vultosas perturbaes da ordem, tumultos e contendas tem apre- gao de nossa doutrina trazido consigo e que frutos ora est produzindo emmuitos. Ora, injustamente deriva-se contra ela a culpa desses males, culpa que sedeveria lanar perfdia de Satans. Esta como que uma admissvel propriedadeda divina Palavra: que ela jamais vem tona sem que Satans se desperte e se

    assanhe. Eis aqui a mais segura marca, e particularmente fiel, em virtude da qualse distingue das falsas doutrinas, que se divulgam com facilidade, enquantorecebem de todos ouvi- dos atenciosos e so ouvidas por um mundo que asaplaude.

    Desse modo, por alguns sculos, durante os quais todas as coisas estiveramsubmersas em profundas trevas, quase todos os mortais dedicavam seu passatempoe divertimento a esse senhor do mundo, em coisa alguma diferindo de algumSarda- npalo, repousava e se deliciava em completa tranqilidade. Afinal de

    contas, que outra coisa havia a fazer, seno folgar e divertir-se, na serena eimperturbada possedeseu reino? Quando, porm, refulgindo das alturas, sua luz dissipou bastante astrevas, quando o reino daquele valente [Lc 11.22] foi perturbado e abalado, ento,na verdade, ele comeou a sacudir seu costumeiro torpor e a correr s armas.

    Alis, primeiramente incitou o poder dos homens, por cuja instrumentalidade,de forma violenta, oprimisse a verdade que aclarava. Como nada lograsse por essemeio, voltou-se para as ciladas. Excitou, atravs de seus catabatistas e outros por-tentos de embusteiros, dissdios e contentas doutrinrias, com os quais a obscure-cesse e, por fim, a extinguisse. E agora teima em assedi-la com ambos essesenge- nhos de guerra. Com efeito, no apenas tenta, pela fora e pela mo doshomens, arrancar essa semente genuna, mas ainda, quanto possa, se esfora porsufoc-la com suas ciznias, para que no medre e frutifique. Entretanto, tudoisso lhe ser

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    baldado, se dermos ouvidos ao Senhorcomo nosso monitor, o qual, h muito, no snos ps a descoberto suas artimanhas, para que no nos viesse a apanhardespreve- nidos, mas ainda nos armou com defesas bastante slidas contra todasas suas m- quinas de guerra.

    Alm disso, quo desmedida a perversidade de assacar o dio contra aprpria Palavra de Deus, seja das sedies que contra ela atiam os rprobos erebeldes, seja das seitas que engendram os impostores! Todavia, isso no novidade! Interro- gado foi Elias, se porventura no era ele aquele que perturbavaa Israel [1Rs 18.17]. Para os judeus, Cristo era um sedicioso [Lc 23.5; Jo 19.7].Aos apstolos impingi- ram o crime de sublevao do povo [At 24.5-9]. Que outracoisa esto a fazeraque- les que hoje nos imputam todos os distrbios, tumultos econtendas que contra ns efervescem? Ora, Elias nos ensinou a resposta que se

    deva dar a tais acusadores[1Rs 18.17, 18]: no somos ns que semeamos os erros ou incitamos os tumultos;ao contrrio,so os mesmos que lutam contra o poder de Deus!

    Alis, uma vez que baste esta resposta para conter-lhes a temeridade, assim,por outro lado, sersuficiente para ir ao encontro da obtusidade de outros, queno raro acontece que se deixem abalar com tais escndalos e assim fiquem perturbados, cedendo vacilao. Portanto, para que com esta confuso nopercam eles o ni- mo, e no sejam alijados do pedestal em que se firmam, saibamesses que as mesmas coisas que hoje nos sobrevm, os apstolos as

    experimentaram em seuprprio tem- po. Havia indoutos e inconstantes que, parasua prpria perdio, como no-lo diz Pedro [2Pe 3.16], corrompiam o que foradivinamente escrito por Paulo. Havia des- prezadores de Deus que, em ouvindohaver proliferado o pecado para que a graa superabundasse, de imediato postulavam: Permaneamos no pecado para que a graa se enriquea [Rm6.1]; em ouvindo que os fiis no esto debaixo da lei, de pronto vociferavam:Pequemos, porquanto no estamos debaixo da lei, mas sob a graa [Rm 6.15].Havia aqueles que o acusavam de instigador do mal. Infiltravam-

    se muitos falsos apstolos para destruir as igrejas que ele edificara [1Co 1.10-13;2Co 11.3, 4; 12, 13; Gl 1.6, 7]. Alguns pregavam o evangelho por inveja e porfia,no em sinceridade [Fp 1.15]; at mesmo por esprito de contenda, pensando agra-var-lhe a presso dos grilhes [Fp 1.17]. Em outras partes, no era muito oprogres-so do evangelho. Todos buscavam o prprio proveito, no o de Jesus Cristo [Fp2.21]. Outros voltavam atrs como ces a seu vmito e porcos aseu espojadouro delama [2Pe 2.22]. Muitos pervertiam a liberdade do Esprito em licena da carne[2Pe 2.18, 19]. Falsos irmos se insinuavam, dos quais, mais tarde, ameaavam os

    piedosos com perigos [2Co 11.3, 4]. Entre os prprios irmos suscitavam-se varia-dos desencontros.

    Nessas circunstncias, que haveriam os apstolos de fazer? Porventura no de-veriam ter dissimulado por um tempo, ou, antes, posto de parte e renegado esse

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    34 LIVRO I

    evangelho que viam ser a sementeira de tantos litgios, motivo de tantos perigos,ocasio de tantos escndalos? Mas, em meio a tribulaes dessa ordem, vinha-lhes lembrana que Cristo era uma pedra de tropeo e rocha de escndalo [Rm 9.33;

    1Pe 28; Is 8.14], posto para a queda e soerguimento de muitos e por sinal decontra- dio a outros [Lc 2.34]. Armados desta certeza, avanavam ousadamentepor entre todos os riscos de tumultos e agravos.

    Com o mesmo pensamento convm tambm que nos fortaleamos, uma vezque Paulo testifica ser este o perptuo gnio do evangelho: que seja aroma demorte para morte aos que perecem [2Co 2.16], embora ele nos tenha sidodestinado antes a este propsito: que fosse o aroma de vida para a vida e o poderde Deus para a salvao dos fiis [Rm 1.16]. Isso mesmo o que tambm

    certamente experimentaramos, se no corrompssemos com nossa ingratidoeste benefcio de Deus to singular, e para nossa runa pervertssemos o que nosdeveria ser nossa nica garantia de sal- vao.

    12. CONCLUSO

    Mas, volvo-me a ti, Rei. Em nada te movam essas vs cavilaes com quenossos adversrios porfiam por infundir-te pavor, a saber, que, merc deste novelevangelho, pois assim o chamam, no se procura nem se busca outra coisa, seno

    ocasio para tumultos e impunidade para todos os desmandos. Pois, tampouconos-so Deus autor de diviso, mas de paz [1Co 14.33]; nem o Filho de Deus, que veiopara destruir as obras do diabo [1Jo 3.8], ministro do pecado [Gl 2.17].

    E ns estamos sendo imerecidamente acusados de tais intenes, das quais,cer- tamente, jamais temos dado sequer a mnima razo de suspeita. Se taisfssemos ns, como dizem, que premeditamos a subverso de reinos, ns de quemnenhuma palavra facciosa jamais se ouviu, e cuja vida, a todo tempo que

    vivamos sob teu cetro, foi sempre conhecida comopacata e singela, e que aindaagora, escorraadosde nossos lares, contudo no cessaramos de suplicar em orao toda prosperidade ati e a teu reino. Ns que afoitos buscamos desenfreada liberdade para toda sortede desregramentos; ns de quem, ainda que nos costumes muitas coisas possamser censuradas, entretanto nada h digno de to veemente censura. Nem toinsatisfat- rio progresso temos, pela graa de Deus, experimentando noevangelho, que a esses detratores no possa nossa vida ser exemplo de castidade,de generosidade, de mise- ricrdia, de moderao, de pacincia, de sobriedade e

    de toda e qualquer virtude.Que de fato tememos e adoramos a Deus com sinceridade coisa de si mesma

    perfeitamente evidente, uma vez que buscamos que seu nome lhe seja santificado,quer atravs de nossa vida, quer atravs de nossa morte [Fp 1.20]. E da inocnciae

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    da integridade cvica, o prprio dio tem sido obrigado a dar testemunho em favor

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    CARTA AO REI 36

    de alguns de ns, em quem se punia de morte exatamente o que se deveria revestirde singular louvor.

    Ora, se h quem, sob pretexto do evangelho, promove distrbio, at aqui nose verificou que esses existem em teu reino; se h quem acoberta a permissividadede seus desregramentos com a liberdade da graa de Deus, muitssimos dos quaisco- nheo, h leis e penalidades legais com que devam ser severamentereprimidos, conforme o que merecem. Entrementes, de modo algum o evangelhode Deus no tenha mau nome por causa da maldade de homens degenerados.

    Tens, Rei, sobejamente exposta, em farta cpia de exemplos, a virulenta ini-qidade de nossos caluniadores, para que a suas cavilaes no te inclines comouvido desmedidamente crdulo. Arreceio-me at de haver-me estendido excessi-

    vamente, uma vez que este prefcio j se avizinha da escala de quase completaapologia, com que, no entanto, no diligenciei por tecer uma defesa, mas simples-mente predispor-te o esprito, a que ds ouvidos prpria apresentao denossa causa, esprito, na verdade, ora de ns averso e alienado, acrescento-o, atinflama- do, cuja graa, no obstante, confiamos poder reaver, se esta nossaconfisso, que desejamos seja diante de tua majestade nossa defesa, sereno edesapaixonado, uma vez a leres.

    Se deveras, ao contrrio, a tal ponto os sussurros dos malvolos te ocupam osouvidos, que aos acusados nenhuma ocasio sucede, alm de tudo, de falarem emseuprprio favor, merc de tua conivncia estejam sempre essas frias intratveisa exercer sua sanha pertinaz, mediante encarceramentos, flagelaes, torturas,muti- laes, fogueiras, ento nos veremos reduzidos ao extremo mximo.Todavia, assimser que em nossa pacincia possuamos nossas almas [Lc 21.19] ena forte mo de Deus esperemos, mo que, fora de dvida, a seu tempo semanifestar, e armada se estender, tanto para livrar aos pobres de sua aflio,quanto ainda para punir os desprezadores que, com to segura confiana, estoagora a exultar.

    O Senhor, Rei dos reis, te firme o trono na justia [Pv 25.5] e o solidifique naeqidade, mui ilustre Rei.

    Em Basilia, 1o de Agosto do ano de 1536

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    contudo penso que ningum h que de mais calnias seja atacado, mordido,lacerado.

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    44 LIVRO I

    Quando esta nota j estava no prelo de Augsburgo, onde se reunia a Dieta Impe-rial, recebi notcias confirmadas de que se havia espalhado o boato de meu retornos hostes papais, e de que nos paos dos prncipes fora esse boato recebido com

    bem maior favor do que devera. Esta , em verdade, a recompensa que meoutorgam aqueles a quem, por certo, no so desconhecidas as mltiplasevidncias de minha constncia, evidncias que, assim como repelem calnia tovil, dela tambm deve- riam me ter defendido diante de todos os juzes probos ehumanos. Engana-se, po- rm, o Diabo com toda sua caterva se pensa que, cominvestir contra mim com ptridas mentiras, haver-me-ei de tornar, por causadessa vilania, mais quebrantadoou mais moroso, porquanto confio que Deus, em sua imensa bondade, haver-me-

    de conceder que persevere no curso de sua santa vocao com pacincia constante,de que nova mostra exijo aos leitores piedosos na presente edio.

    Ademais, neste labor, este tem sido meu propsito: preparar e instruir de talmodo os candidatos sagrada teologia, para a leitura da divina Palavra, que nos lhe tenham fcil acesso, mas ainda possam nesta escalada avanar semtropeos. Ora, estou ciente que a tal ponto abrangi, em todas as suas partes, asuma da reli- gio, e tambm em tal ordem a dispus, que, se algum a hajaaprendido de forma correta, no ser difcil ajuiz-lo no s o que especialmentebuscar na Escritura, mas ainda a que fim deva atribuir tudo quanto nela se contm.

    Portanto, aplanado, por assim dizer, este caminho, se vier eu mais tarde a publi-car quaisquer exposies da Escritura, uma vez que no terei necessidade de elabo-rar extensas discusses acerca de assuntos doutrinrios e fazer longas divagaesem torno de lugares comuns, sempre com parcimnia as haverei de condensar. Poressa razo, aliviado ser o leitor piedoso de grande aborrecimento e enfado, se

    Escritura se achega premunido do conhecimento da presente obra como de um ins-trumento necessrio. Uma vez, porm, o contedo deste tratado, como em espelhos,em tantos comentrios meus claramente se reflete, prefiro declarar qual seja esse

    propsito mediante o prprio contedo, a proclam-lo em palavras.Felicidades, leitor amigo, e se destes meus labores colheres algum fruto, ajuda-

    me com tuas preces diante de Deus, nosso Pai.

    Genebra, 1 de agosto do ano 1559

    * * *

    Aqueles cuja inteno fora com modesto livreto defender,

    Vultoso volume o fizeram comseu esforo de aprender.

    * * *Agostinho, Epstola VII: Eu me confesso ser do nmero daqueles que, apren-

    dendo, escrevem; e aprendem, escrevendo.

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    CARTA AO REI 45

    P R E F C I O E D I O F R A N C E S A D E 1 5 4 1 ES U B S E Q E N T E S, N E S S A L N G U A

    PROPSITO DESTA OBRA

    Para que possam os leitores auferir maior proveito da presente obra, dir-lhes-ei,em poucas palavras, qual o benefcio que lhes advir do uso deste livro.Porquanto, ao proceder assim, mostrar-lhes-ei qual o propsito ao qual se

    devero ater e ao qual dirigir a ateno ao l-lo. Embora a Santa Escrituracontenha uma doutrina perfeita, qual nada se pode acrescentar, porque aprouve a nosso Senhor nela revelar osinfinitos tesouros de sua sabedoria, entretanto a pessoa que no for bastanteexperi- mentada em seu manuseio e entendimento necessita de certa orientaoe ajuda, para saber o que deva nela buscar a fim de no vaguear incerta, antesalcance rota segura que lhe faculte atingir sempre o fim a que a convoca o SantoEsprito.

    que o dever daqueles que tm recebido mais ampla iluminao de Deus queos outros vir em socorro dos smplices neste particular e que lhes dem a mopara os conduzir e os ajudar a encontrar a plenitude do que Deus nos quis ensinarem sua Palavra. Ora, isso melhor no se pode fazer que mediante as Escrituras,focalizan-do-se os temas principais e conseqentes que so compreendidos na filosofia crist.Pois quem desses conhecimentos se assenhoreia estar em condies de aproveitarna escola de Deus mais em um dia do que outro em trs meses, na medida em quesabe, com relativa preciso, a que reportar cada sentena e possuidor dessa regrapara dispor com acerto tudo quanto se lhe apresenta.

    Vendo, pois, quo grande era a necessidade de assim assistir queles queansei- am por ser instrudos na doutrina da salvao, esforcei-me, segundo acapacidade que me tem dado o Senhor, por dedicar-me a este mister. E para estefim escrevi a presente obra. Redigi-a primeiramente em latim, para que pudesseservir a todos os estudiosos, de qualquer pas que fossem, ento, em seguida,almejando comunicar o que da poderia advir de proveito nossa gentefrancesa, traduzi-a tambm para nossa lngua.

    No ouso arrogar-lhe testemunho demasiado lisonjeiro, nem pronunciar-me quanto a quo proveitosa lhe possa ser a leitura, temendo parecer que minhaobra atribuo valor excessivo. Todavia, posso bem prometer que poder isto sercomo que uma chave e entrada que a todos os filhos de Deus outorgue acesso acorreta e cabal compreenso da Santa Escritura.

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    46 LIVRO I

    Da, se a partir de agora e para o futuro, conceder-me o Senhor meios eoportu- nidades para escrever alguns comentrios, serei o mais sucinto possvel, porquanto no se faro necessrias longas digresses, visto que, nesta obra, j

    focalizei exten- samente quase todos os artigos que dizem respeito f crist.E j que foroso nos reconhecer que de Deus procedem toda verdade e s

    doutrina, ousarei, um tanto presunosamente, afirmar, com singeleza, a opinioque nutro desta obra: ela mais de Deus que de mim prprio. Portanto, se algumlouvor houver ela de suscitar, a Deus se deve ela render.

    Exorto, pois, a todos quantos nutrem reverncia para com a Palavra do Senhor,a que a leiam e, com diligncia, a entesourem na mente; se almejam possuir, primei-ro, um sumrio da doutrina crist, em segundo lugar, um meio de fruir real proveito

    da leitura tanto do Antigo quanto do Novo Testamentos. Quando assim o tiveremfeito, sabero por experincia que no os tenho tentado seduzir mediante palavrea-do improcedente. Se algum no lhe puder alcanar todo o contedo, no sedeses- pere por isso; prossiga, sem arrefecimento, na segura expectativa de queuma passa- gem lhe haja de projetar mais luzes sobre a outra. Acima de tudo,insistiria nesta recomendao: importa em tudo quanto exponho recorrer aotestemunho da Escri- tura, que evoco para ajuizar da procedncia e justeza do queafirmo.

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