inconsciente do texto, inconsciente genético e inconsciente estético _

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  • 7/30/2019 Inconsciente do texto, inconsciente gentico e inconsciente esttico _

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    INCONSCIENTE DO TEXTO, INCONSCIENTE GENTICO E INCONSCIENTE ESTTICO :

    NOVA PROPOSTA DE LEITURA A PARTIR DA PSICANLISE[1]

    Philippe Willemart.

    Laboratrio do Manuscrito Literrio DLM FFLCH

    Universidade de So Paulo

    24 de maio de 2002.

    11h-12.30h

    Resumo: Jean Bellemin-Nol inventou o conceito de inconsciente do texto nos anos setenta do sculo XX junto com Andr Green e

    Bernard Pingaud. Estudando os manuscritos de Hrodias de Flaubert, eu tinha encontrado o que chamei o inconsciente gentico, esse

    saber no sabido que circula nos manuscritos. Jacques Rancire ignorando provavelmente o que se fazia em crtica gentica, sustenta que a

    arte consiste em fazer emergir um saber que no se sabe como o contido nos numerosos objetos acumulados no antiqurio em La peau de

    chagrin de Balzac. M as "p ara que o banal (que so esses objetos) entregasse seu segredo, ele deve em primeiro lugar ser mitologisado".

    (Rancire.L'inconscient esthtique. p.38). A confrontao dos trs conceitos me levar a definir o mito como a associao de idias

    contraditrias (Lacan) e de saber e no saber (Rancire) para em seguida descobrir emLe Ct de Guermantes de Marcel Proust alguns

    desses objetos banais bastante surpreendentes. Veremos que esses objetos mitologisados construdos progressivamente nos Cahiers de

    Proust estruturam o texto publicado e abrem duas perspectivas tericas inditas: uma outra maneira de ler os textos literrios partindo dapsicanlise, diferente do que foi feito at hoje e em seguida, uma compreenso nova do conceito de inconsciente gentico.

    Num primeiro momento, vou definir trs conceitos que podem parecer ambguos para muitos porque os trsse referem ao inconsciente: o inconsciente do texto, o inconsciente gentico e o inconsciente esttico. Numsegundo momento e se tiver tempo, vou explicitar uma das decorrncias desta tripla distino No Caminho deGuermantes de Marcel Proust. E num terceiro momento, vou esboar um novo mtodo de leitura dos textosliterrios a partir da psicanlise.

    Freud definiu o inconsciente como um saber lgico e pessoal que no se resume a um pedao de nossahistria, mas que se faz presente nos lapsos de todo tipo - atitude, gesto, palavra, escrita - e nos sonhosprincipalmente. Lacan completou essa noo e acrescentando alguns elementos da teoria marxista, estendeu aesfera do inconsciente s estruturas simblicas - as estruturas polticas, econmica-sociais, universitrias, etc.,estruturas que nos cercam desde o nascimento.

    Os trs conceitos dos quais vou falar tem a ver evidentemente com Freud e Lacan, mas tem sua especificidade.

    O crtico literrio Jean Bellemin-Nol, o psicanalista Andr Green e o escritor Bernard Pingaud inventaram a

    expresso "inconsciente do texto" respectivamente em 1971[2], 1973[3] e 1976[4] sem qualquer referncia unsaos outros. Esse conceito subentendia para os trs uma transferncia de algo de inconsciente da parte do autor nostextos literrios.

    Bellemin-Nol constata a falha, o isolamento entre os campos do saber e a necessidade da

    interdisciplinaridade[5], em Psychanalyse et Littraturepublicado em 1978[6], lana seu livro Vers l'inconscient du texte

    em 1979 e o reedita em 1996 acrescentando a histria do conceito.[7] Em 1988, em Interlignes, Bellemin-Nol

    corrige a expresso "inconsciente do texto" por "trabalho inconsciente do texto"[8], reconhecendo dessa forma ainterveno tanto do inconsciente do escritor como o do leitor no texto.

    Em 1983, levando em conta a contribuio lacaniana e o estudo de um manuscrito de Flaubert, eu defendia aautonomia da escritura num artigo de Littrature nestes termos:

    "Em primeiro lugar, o autor no uma mnada isolada que pudesse reivindicar o que ele produz como sendo

    algo exclusivamente seu; como qualquer homem, ele a culminao de uma srie de desejos de sucessivasgeraes, o fruto de um momento cultural preciso."

    De fato, nascer nas ltimas dcadas do sculo XX no Brasil como a maioria de vocs e puder ler GuimaresRosa e Murilo Mendes, evidentemente diferente de nascer no fim do sculo passado e contentar-se deMachado de Assis mesmo se puder assistir Semana da Arte Moderna em 1922 )

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    Em segundo lugar, o autor utiliza uma lngua carregada de sentidos que o domina e controla mais do que elepensa. Neste sentido, somos falados, diz Lacan, muito mais do que falamos. No posso falar como quiser e devousar as palavras e a sintaxe da lngua usada. Se quiser inventar uma lngua prpria, serei considerado louco oupoeta.

    E, por fim, esta mesma lngua, uma vez colocada no papel e atravs da narrativa, fora arranjos e desloca

    elementos tanto no nvel do sintagma como do paradigma".[9]

    A crtica j no afirmava portanto, como Freud na anlise de Moissde Miguelangelo, que a escritura umaforma de expresso das pulses ou do desejo do artista. A escritura ou qualquer outra forma de arte define umcontexto ou um Simblico no qual o artista entra e moldado. O material escolhido, a pedra, a linguagem, ossons, as cores tambm cumprem uma funo e trabalham o escultor, o escritor, o msico ou o pintor, o que fazcom que a escritura no fornea ao leitor apenas as fantasias do escritor, mas muito mais as de seuscontemporneos e o simblico em que todos esto imersos.

    O fato de Proust ter vivido a Belle Epoque em Paris com o advento do impressionismo, do fauvismo e docubismo, de ter conhecido as teorias de Einstein, de Marie e Pierre Curie, de ter gostado de Maurice Maeterlinck ede Claude Debussy, de ter usado o telefone (34 citaes), o metr (2 citaes) e o automvel (39 citaes), etc.no o deixar imune na composio de sua obra.

    Portanto, a funo da arte no fazer entrever o inconsciente do artista, mas tampouco se limita a nos divertir

    ou a cobrir com um vu pudico o trgico da morte como pensava Lacan. Toda obra de qualidade que respondeao nosso imaginrio capaz de trabalhar nossa insero nas estruturas polticas, econmica-sociais, universitrias,etc. (o Simblico lacaniana) e modificar nossa relao com o desejo e as pulses (o Real).

    Em outras palavras, a leitura de uma obra, ao desfazer algum dos ns que impediam o desejo de agir, alivia oleitor, liberta-o de preconceitos muitas vezes desconhecidos e lhe permite gozar melhor a vida.

    Essa valorizao do aspecto teraputico da leitura era decorrente da posio do psicanalista que eu entoocupava; o estudo dos manuscritos me deu uma concepo da leitura no contraditria mas complementar primeira e me forou a concluir pela existncia de outro tipo de inconsciente, o inconsciente gentico que se fazpresente nos manuscritos de uma autor .

    Em 1988, no II Congresso da Associao Brasileira de Pesquisadores do Manuscrito Literrio, a APML,[10]

    apresentei sua primeira elaborao. A anlise aprofundada do manuscrito de Hrodiasde Flaubert me forneceu oselementos para essa elaborao e a escrita de Universo da criao literria (1993) permitiu que eu a desenvolvesse.[11]

    "O inconsciente gentico no (somente) um espao circunscrito, onde se engolfam as informaes afastadas,as palavras rasuradas ou substitudas, mas um conceito, uma virtualidade que autoriza os estudiosos da gnese a

    sonhar e a situar o real do manuscrito, isto , a manifestao de uma vida de desejos e de pulses".[12]

    Na Manuscrtica 5, acrescentava que "abria-se no manuscrito um espao vido de dados novos no qual se

    enfiam, ordenado pela escritura"[13].Hoje, insisto sobre esse acumulo de lgicas as vezes contraditrias que articulam-se aos poucos nos

    manuscritos.Aps este breve apanhado sobre a histria desses dois conceitos, o inconsciente do texto e o inconsciente gentico, quemostra que os dois referem-se ao trabalho do inconscienteno texto e no manuscrito, poderamos unific-los e adotaro conceito de inconsciente gentico para todo tipo de textos referentes a um mesmo romance ou a um mesmopoema, mas j que todos os crticos no tem acesso aos manuscritos dos autores estudados, manterei os doisconceitos

    Resta enfim comparar esses dois conceitos ao conceito elaborado por Jacques Rancire, "o inconscienteesttico".

    No romance A pele de onagro (1831) de Balzac, Rafael, o hri, visita um antiqurio e descobre inmerosobjetos acumulados nas diversas prateleiras da loja, restos de civilizaes e de culturas passadas ou longnquas:

    "crocodile, macaco, serpente empalhados sorriam para vitrais de igreja /.../ Um vaso de Svres, no qual MmeJacoto pintou Napolon, encostava numa esfinge dedicada a Ssostris (faras egpcios), etc." Todos esses objetostinham uma histria. "O comeo do mundo e os acontecimentos de ontem se casavam numa grotesca singeleza".[14] Assim, comenta Rancire, Balzac faz emergir um saber que no se sabe. O prprio Balzac no mesmoromance, anunciava que o grande poeta dos novos tempos no era o ingls Byron, mas o gelogo Cuvier (1769-

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    1832) que reconstituia populaes animais a partir de ossos e florestas a partir de vestgios fossilizados. [15]

    Da mesma maneira, "o escritor um gelogo ou um arquelogo que viaja pelos labirintos do mundo social e,

    posteriormente, pelos do eu".[16] "O inconsciente esttico se manifesta na polaridade da cena dupla da palavramuda: por um lado, a palavra escrita sobre os corpos qual se deve restituir sua significao linguageira por meiode um trabalho de decifrao e de reescrita; Balzac enumerando os objetos encontrados no antiqurio; poroutro, a palavra surda, de um poder inominvel, que se mantm por trs de toda conscincia e de toda

    significao".[17] o duplo discurso que acompanha sempre o discurso cotidiano de todos ns.

    Mas, acrescenta Rancire, "para que o banal (representado por esses objetos) revele seu segredo, primeiro eletem de ser mitologizado".[18]

    Mitologizar, lembra Lacan, quer dizer incorporar numa histria elementos que parecem contraditrios porquepertencem a registros diferentes, como os do mundo da realidade e os do mundo da fantasia. O pequeno Hans,um dos cinco casos analisados por Freud e relido por Lacan, entrega as rdeas do cavalo ao cocheiro de seu

    sonho e sua irm Anna[19]. O mito "permite confrontar uma srie de relaes entre os sujeitos, de uma riqueza ede uma complexidade perto das quais o dipo parece uma edio to abreviada, que afinal, nem sempre

    utilizvel".[20]

    Estamos todos inseridos em alguns mitos que nada mais so seno nossa maneira de compreender o mundo e

    nossa histria.[21]Em outras palavras, o crtico reconhece os elementos de uma mitologia numa fachada, na forma e na usura de

    uma roupa ou no caos de uma vitrine, elementos que anunciam a verdadeira histria de uma sociedade, a vida deuma coletividade e o destino de um indivduo ou de um povo. Assim como para Freud nenhuma circunstncia insignificante, tampouco existe hierarquia entre os objetos cotidianos nem detalhes negligenciveis. Nesse sentido, arevoluo esttica sucede revoluo freudiana.

    Que tipos de objetos encontrei em Proust que podem ser qualificados de objetos mticos? Ser a

    segunda parte da minha palestra.

    Minha leitura de Caminho de Guermantesprocurou "detectar algo que no comeo parece irredutvel e que por fim

    se integra ao sistema", sempre lembrando que no estamos falando dos mitos fundadores de nossas civilizaes,mas do mito individual que "se distingue por todos os tipos de caractersticas da mitologia desenvolvida. Est nabase de toda a situao social no mundo, como patente ali onde os mitos esto presentes por sua funo. Masmesmo ali onde esto, aparentemente, ausentes, como o caso na nossa civilizao cientfica, no creiam que elesno estejam em algum lugar. Embora o mito individual no possa de jeito nenhum ser restitudo a umaidentidade com a mitologia, uma caracterstica, no entanto, lhes comum: a funo de soluo numa situaofechada em impasse, [como o pequeno Hans entre seu pai e sua me.] O mito individual reproduz em menorescala o carter fundamental do desenvolvimento mtico, onde quer que o possamos captar de modo suficiente.Ele consiste, em suma, em enfrentar uma situao impossvel atravs da articulao sucessiva de todas as formas

    de impossibilidade da soluo"[22]

    Podemos compreender a construo de Em busca do tempo perdido como a de um mito, isto , histrias queresolvem problemas de impossibilidade de soluo em todos os nveis, desde o plano narratolgico at os fatos

    exteriores passando pelas personagens, como expe Compagnon.[23] Adotarei no entanto o ponto de vista deRancire especificando os elementos mticos contraditrios que aliam implicitamente saber e no saber nosGuermantes.

    Dessa forma talvez consiga mostrar uma lgica proustiana e um caminho possvel para a abordagempsicanaltica da literatura.

    Aps a anlise durante um semestre de onze passagens mais ou menos extensas de O caminho de Guermantes., posso

    destacar e const ituir trs categorias de elementos .A primeira consiste em discernir no tanto as coisas banais tratadas pelo narrador proustiano, mas os elementos

    contraditrios que, embora referidos a registros diferentes, es to enlaados no romance.

    A segunda retomar as descobertas proustianas relativas ao conhecimento das paixes da alma que se somam s

    teorias ps icanalticas ou as completam.

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    A terceira consistir em situar os dois inconscientes um em relao ao outro.

    A mitologia guermantiana

    Desde o comeo, o heri se exprime pelos nomes e particularmente pelo nome de Guermantes que lhepermite misturar forma e matria, o imaginado e o real, a lenda e sua percepo. Contudo, no momento em oleitor espera que o heri se renda realidade, forado a constatar que no nada disso que acontece.

    1. O heri se dava conta de que o capacho do hotel dos Guermantes no era o limiar do mundo maravilhoso,mas seu limite, o que lhe permitia manter o paradoxo do nome encantado, apesar do saber realista. Esse vil objeto

    sobre o qual todos os visitantes limpam os ps ou deixam suas marcas, far portanto parte dos mitos de Em buscado tempo perdido. Encontrar sua contrapartida no nome, tambm ambguo e funcionando nos dois registros. Umir remeter ao outro como o saber ao no saber. Sintomaticamente, eu poderia dizer que um limpa seu saber nooutro que lho devolve com sinal invertido: "No, no o que voc pensa". Mas os objetos nem sempre agem empares, cada um deles contm um no saber e um saber.

    O capacho em mau estado desde o comeo do romance[24] j designava o que o heri s compreendercentenas de pginas depois.

    "Os nomes citados tinham por efeito desencarnar os convidados da duquesa, que no adiantava se chamassemo prncipe de Agrigento ou de Cystira, pois a sua mscara de carne e de ininteligncia ou inteligncia vulgares oshavia transformado em uns homens quaisquer, tanto que eu, afinal de contas, fora dar na esteira (capacho) do

    vestbulo, no no umbral, como julgara, mas no fim do mundo encantado dos nomes".[25]O tempo lgico transcorrido entre o enunciado do objeto e sua interpretao bem mais longo que em dipo

    reide Sfocles, mas do mesmo tipo; com efeito, a fala de Tirsias, embora anunciasse a dipo que ele era oassassino de Laio, s ser entendida com a confirmao do pastor. O objeto que fala a quem (ou para quem)quiser ouvi-lo para os outros personagens apenas um capacho. Ele contm um no saber ou um insabido queilustra o inconsciente esttico definido por Rancire.

    2. O Nome, embora intimamente ligado ao capacho, dele se distingue porque desde as primeiras pginasparece indicar o caminho inverso, ou seja, sua reduo a uma identidade qualquer que volta a ganhar fora no finalda narrativa, reativado, ao que parece, por sua contrapartida, o capacho.

    O pio, outro mito, rene em seu jogo o Tempo plenamente vivido, que no movimento lento permite

    distinguir a estrutura das cores, as quais, pelo contrrio, elimina a toda velocidade."(se) os nomes perderam todo o colorido, como um pio prismtico que gira demasiado depressa e se nos

    afigura cinzento, em compensao quando, num devaneio, refletimos, procuramos, para voltar ao passado,moderar, suspender o movimento perptuo a que somos arrastados, pouco a pouco vemos de novo aparecerem,justapostos, mas inteiramente diversos uns dos outros os matizes que no curso de nossa existncia sucessivamente

    nos apresentou um mesmo nome".[26]

    Paralelo ao nome, o pio todavia no reaparece e pode facilmente ser assimilado a uma fala proftica queanuncia o que vai acontecer.

    3. O eu proustiano outro conceito que entra sem problemas na categoria de mito no sentido lacaniano dapalavra. O narrador insiste na multiplicidade de eus que constitui seu personagem, como ocorre com cada um de

    ns na sucesso de segundos, minutos e dias. Queremos o tempo todo recuperar nossa identidade, o idem deRicoeur, e deparamos constantemente com essa multiplicidade que nos lana para fora de nosso narcisismo.

    4. O rosto dos personagens, assim como o de Raquel, amante e prostituta, no concilia o amor romntico deRoberto de Saint-Loup e o amor venal do heri, o que o narrador caracterizou como um encontro deatmosferas?

    "A imobilidade daquele fino rosto, como a de uma folha de papel submetida s presses colossais de duasatmosferas, me parecia equilibrada pelos dois infinitos que vinham dar a ela sem se encontrarem, pois ela os

    separava. E com efeito, ao contempl-la ns dois, Roberto e eu, no a vamos do mesmo lado do mistrio".[27]

    5. A explicao da vida desejante por um mecanismo habilmente montado pelo narrador, a boneca noseria uma maneira de mostrar as contradies dessa personagem dilacerada entre as mulheres reais que encontram

    e o efetivo desejo?" esse o terrvel engano do amor, que comea por fazer-nos brincar, no com uma mulher do mundo

    exterior, mas com uma boneca do interior de nosso crebro, a nica alis que temos sempre nossa disposio, anica que possuiremos e que a arbitrariedade da lembrana, quase to absoluta como a da imaginao, pode fazerto diferente da mulher real como da Balbec real fora para mim a Balbec sonhada; criao fictcia a que, pouco a

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    pouco, para sofrimento nosso, foraremos a mulher real a assemelhar-se".[28]

    Objeto banal, porm posicionado num lugar estratgico e original, o crebro, a boneca contem um sabersurpreendente e indito.

    6. A falta de fronteiras entre os diversos campos artsticos, geogrficos, histricos, sociais, sexuais etc., alm derevelar um dos invariantes estruturantes de Em busca do tempo perdido e um modo de romper os limites impostospela sociedade e pela educao, no seria tambm uma forma adequada de resolver os conflitos nesses terrenos?

    "ao passar sem transio do parque cultivado para as alturas naturais de Meudon e do monte Valrien, nosabem onde colocar uma fronteira e pem a verdadeira campina na obra de jardinagem, cujo encanto artificial

    projetam muito alm dela"[29]

    O objeto banal tambm pode ser um no objeto, uma falha, uma ausncia que, em sua falta, reveladora.7. A aproximao histrica e pouco verdica dos sculos XIX e XVII, este ltimo tomado como modelo e

    encarnado no duque de Guermantes, no uma maneira de expor uma continuidade antes literria que social oupsquica entre o duque de Saint-Simon, Madame de Svign e os personagens-aristocratas? Ao contrrio doprecedente, o objeto pula um sculo e cria uma outra histria literria.

    "Havia tambm uma emanao, muito menos antiga, da vida de corte, seno nas maneiras muita vez vulgaresdo Sr. de Guermantes, pelo menos no esprito que as dirigia. Devia eu ainda sabore-la, como um aroma antigo,

    quando a encontrei um pouco mais tarde no salo".[30]

    8. O modo como Elstir retraa a impresso, a combinao do saber com o sentir, a busca do real em seuspredecessores, no indicam uma nova esttica que alia continuidade e inovao e um outro olhar sobre a histriadas artes?

    "As pessoas que detestavam aqueles horrores estranhavam que Elstir admirasse Chardin, Perroneau, tantos

    pintores a quem eles, os mundanos, apreciavam. No viam que Elstir tornara a fazer por sua conta, diante do real(com o indcio particular de seu gosto por certas pesquisas) o mesmo esforo de um Chardin ou um Perroneau eque, por conseguinte, quando deixava de trabalhar por si mesmo, admirava neles tentativas do mesmo gnero,

    espcies de fragmentos antecipados de obras suas".[31]

    Em suma, o capacho, o nome, o pio, o eu proustiano, o rosto, a boneca interior, a fronteira imprecisa, ahistria literria descontnua, a esttica do indcio nos predecessores, etc. constituem um conjunto de objetos banaismitologizados que constroem o Caminho de Guermantese revelam uma maneira diferente de detectar o trabalho doinconsciente no texto e de relacionar a literatura com a teoria psicanaltica.

    O que dizer do inconsciente gentico e do inconsciente esttico aps esta

    leitura?

    A diferena entre ambos os conceitos no reside tanto no objeto analisado, mas na maneira de ler o texto. Ogeneticista ver no inconsciente gentico a lgica da gnese, como bem diz o adjetivo, mas numa leitura "sdepois"; o filsofo, por sua vez, ler no inconsciente esttico a mitologizao do banal que revela um outro saber.

    Por isso, se quiser trabalhar com ambas as noes, terei de estudar a gnese dos objetos banais mitologizados,o que pode ser feito em duas etapas: primeiro, me perguntar qual este outro mundo descrito pelos objetosbanais destacados acima e, em seguida, detectar, na medida em que haja Cadernosacessveis, como caminha a lgicadesse mundo.

    Para descrever esse outro saber, tenho de articular o capacho, o nome, o pio, o eu proustiano, o rosto, aboneca interior, a fronteira imprecisa, a histria literria descontnua, a esttica do indcio do novo nospredecessores. Esses objetos devem ser vistos como pontos de interseco entre dois mundos, o mundoimaginado e o mundo dito realista, mundos que, embora construdos nos Cadernos, esto muito prximos dosmundos imaginrio e realista que os leitores conhecem. A originalidade do narrador proustiano est na elaboraodesse mundo intermedirio, interface dos dois outros mundos e parte deles.

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    mundo realista objetos banais mundo imaginrio

    Os objetos contidos no retngulo descrevem o narrador/heri ou o exprimem como os mitos revelam o

    mapa psquico do ser falante.O umbral constitudo pelo capacho um local de passagem obrigatrio para conhecer o mundo dos

    Guermantes, mas esse mesmo objeto tem o dom no s de remeter o heri ao mundo imaginrio, mas de for-lo desta maneira a entrar no mundo das artes. Embora os objetos banais provenham dos mundos imaginrio erealista, eles suscitam o mundo proustiano, como indica a flecha do segundo esquema, mas no oconstituem.

    mundo realista

    mundo imaginrio

    mundo proustiano

    O ltimo objeto percebido, o capacho, permite refazer a leitura de todos os objetos devido sua posio.Diante do capacho, o heri detm seu movimento, como o pio que diminuindo drasticamente sua velocidadedeixa adivinhar suas cores, como o eu idemdiante de seus mltiplos comparsas, como Saint-Loup e o heri diantedo rosto de Raquel, como o olhar retrospectivo de Elstir sobre a histria da pintura. O mundo fictcio do hotel deGuermantes, a vida colorida, o passado e a morte so preferveis ao mundo real desse mesmo hotel e tambm

    vida cinzenta do pio em plena velocidade e no presente.Portanto, a partir de uma parada da flecha do tempo simbolizada pelos objetos mitologizados que se

    constitui o mundo da arte, tambm chamado mundo espiritual pelo narrador. Contudo, a parada no passiva. Ocapacho remete ao mundo encantado dos nomes que apaga o presente,[ mundo em que Elstir procura o futuroanterior nas obras que o precedem, em que o eu identitrio se multiplica, em que o rosto de Raquel reporta ospersonagens ao infinito e em que o narrador evoca a parada definitiva que significa a vida. Em suma,] a volta aopassado apenas uma maneira de ampliar o presente, mas no qualquer presente j que as paradas soselecionadas no passado, ou ainda, uma maneira de suprimir as fronteiras, [outro no-objeto destacado,] e assimpoder elevar o mundo espiritual ou o mundo proustiano acima das marcas do tempo e dos mundos realista eimaginrio.

    mundo proustiano

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    mundo realista mundo imaginrio

    A seqncia dos objetos anuncia o inconsciente esttico que serve de base para o mundo encantado dos nomes.A leitura deles segundo a lgica do aprs-coup, ou seja, o percurso do capacho ao nome, retoma os objetosobservados na anlise e revela o inconsciente gentico. Ambos os conceitos so distintos, apiam-se um no outro eno se opem.

    Creio ter entrevisto dessa maneira algo diferente do que aquilo que a simples leitura dos Guermantesfornece aoleitor. Os objetos banais revalorizados por Balzac, Cuvier e Rancire oferecem simultaneamente uma novapossibilidade de leitura no contexto das relaes entre literatura e psicanlise e uma ampliao do conceito de

    inconsciente gentico inventado em 1990.

    [1] O texto que segue faz parte do livro:A Educao sentim ental em Proust. Ateli Editorial, setembro de 2002[2] A expresso foi util izada por Jean Bellemin-Nol em Psychanalyser le rve de Swann,Potique. Paris, Seuil, 1971 .8. pp. e retomada emLe Texte et l'avant-texte. Paris, Larousse, 1972. p.130.[3] Andr Green. Le double et l 'absent. Critique, n312, maio de 1973. pp. 391-412.[4] Bernard Pingaud. .Nouvelle Revue de ps ychanalyse, 14, 1976. pp. 251-257.[5] Este relativo isolamento entre os campos do saber, aqui, a psicanlise e a crtica literria, comprova mais uma vez uma falha grave entreos pesquisadores. Tentando remediar situao, o CNRS, o correspondente do CNPq na Frana lanou em maro deste ano um programaespecial incentivando a interdisciplinaridade.[6] Bellemin-Nol. Psychanalyse et littrature. Paris, PUF, 1978 (Que sais-je?).[7] Id., Vers l'inconscient du texte. Paris, PUF, 1996. p. 268.[8] Id., Interlignes.Essais de textanalys e. Lille, PUL, 1988, pp. 23-24.[9] "Le dsir du narrateur et l 'apparition de Jean-Baptiste dans le manuscrit d'Hrodias".Littrature. Paris, Larousse, 1983, 52. p.113[10] Uma contribuio terica leitura dos manuscritos: para um inconsciente gentico. II Encontro de edio crtica e crtica gentica. SoPaulo, ed. FFLCH-USP, 1990, p. 114. Esse mesmo texto foi apresentado ao corpo docente do Dpartement de Literatura Francesa daUniversidade de Paris VIII em maro de 1989.[11]

    Dans la chambre noire de l'criture (Hrodiasde Flaubert). Toronto, d. Paratexte, 1996[12] Willemart. Universo da criao literria. So Paulo, Edusp, pp. 115-117.[13] Id., De qual inconsciente falamos no manuscrito.Manusc ritic a. So Paulo, ed. Annablume, 1995 .5. pp.47-62[14] Honor de Balzac. La peau de chagrin(1831).Paris, Garnier-Flammarion, 1971.pp.71-72[15] Rancire. L'inconscient esthtique, p. 36[16] Ibid.,p.38[17] Ibid.,p.41.[18] Ibid., p. 38 .[19]Lacan. O Seminrio. Livro 4. A relao de objeto. (Trad. Dulce Duque Estrada). Rio de Janeiro, Zahar, 1995. p. 379.[20]

    Lacan. O Seminrio. Livro 1. Os escritos tcnicos de Freud. (trad. Betty Milan). Rio de Janeiro, Zahar, 1994. p. 104.[21] "Trabalho de desconstruo do mito e da histria, pessoais ou coletivos, todo analisando vem dizer como ele esbarrou no outro nomomento em que este outro surgiu para o sujeito atolado em seu narcisismo. /.../"as patologias simblicas (neuroses, perverses, psicoses)desencarnando o corpo-sujeito no corpo-objeto - mas revelia do corpo-sujeito no inconsciente simblico podem se articular, no a uma"falta" consciente de liberdade, mas a codificaes simblicas cegas /.../ limitando at o sofrimento a experincia de liberdade". Marc

  • 7/30/2019 Inconsciente do texto, inconsciente gentico e inconsciente esttico _

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    03/09/13 Inconsciente do texto, inconsciente gentico e inconsciente esttico :

    www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/32/htm/mesaredo/mr008.htm 8/8

    Richir. La communaut subjective. Les Cahiers de la philosophie," Jean Patocka. 11/12, 1990/ 1991. p. 173. Citado por Eugnie LemoineLuccioni. L'histoire l'envers. Pour une politique de la psychanalyse. Paris, Defrenne, 1993, p. 196.[22] Lacan. O Seminrio. Livro 4. A relao de objeto. pp. 337-338.[23]Compagnon, La dernire victime du narrateur . Critique. Maro de 1997. Crtica de Mario Lavagetto. Chambre 43. Un lapsus de Proust.pp. 135 e 137. Rainer Warning.Ecri re sans fin. La Recherche la lumi re de la cr itique textuel le. Marcel Proust Ecrire sans fin (Textes etManuscrits). Paris, CNRS ed. 1996. p. 26.[24] "[a esteira] estendida do outro lado daquele Equador e da qual minha me se atrevera a dizer, tendo-a visto como eu, no dia em que seachava aberta a porta dos Guermantes, que se achava em pssimo estado". Proust. O Caminho de Guermantes. p. 28. "tendu de l'autre ct

    de cet quateur et dont ma mre avait os dire, l'ayant aperu comme moi, un jour que leur porte tait ouverte, qu'il tait en bien mauvaistat". CG.p.330[25] Ibid., p.481. "Les noms cits avaient pour effet, de dsincarner les invits de la duchesse, lesquels avaient beau s'appeler le princed'Agrigente ou de Cystira, que leur masque de chair et d'inintelligence ou d'intelligence communes, avait chang en hommes quelconques, sibien qu'en somme j'avais atterri au paillasson du vestibule, non pas comme au seuil, ainsi que je l'avais cru, mais au terme du mondeenchant des noms". CG. p.831[26]Proust. Ibid., p. 12. si les noms ont perdu toute couleur comme une toupie prismatique qui tourne trop vite et qui semble grise, enrevanche quand, dans la rverie, nous rflchissons, nous cherchons, pour revenir sur le pass, ralentir, suspendre le mouvementperptuel o nous sommes entrans, peu peu, nous revoyons apparatre, juxtaposes mais entirement distinctes les unes des autres, lesteintes qu'au cours de notre existence nous prsenta successivement un mme nom. CG. p. 312[27]Ibid., pp. 143-144. ''L'immobilit de ce mince visage, comme celle d'une feuille de papier soumise aux colossales pressions de deuxatmosphres, me semblait quilibre par deux infinis qui venaient aboutir elle sans se rencontrer, car elle les sparat. Et en effet, laregardant tous les deux, Robert et moi, nous ne la voyions pas du mme ct du mystre". CG.p.458[28]O Caminho de Guermantes.p.334. " C'est la terrible tromperie de l'amour qu'il commence par nous faire jouer avec une femme du mondeextrieur, mais avec une poupe intrieure notre cerveau, la seule d'ailleurs que nous ayons toujours notre disposition, la seule que nouspossderons, que l'arbitraire du souvenir, presque aussi absolu que celui de l'imagination, peut avoir faite aussi diffrente de la femme relleque du Balbec rel avait t pour moi le Balbec rv ; cration factice laquelle peu peu, pour notre souffrance, nous forcerons la femmerelle ressembler". Proust. Le Cte de Guermantes. pp.665-666[29] Proust. ibid., p.347. " nos yeux passant sans transition du parc cultiv aux hauteurs naturelles de Meudon et du mont Valrien nesavent pas o mettre une frontire, et font entrer la vraie campagne dans l'oeuvre du jardinage dont ils projettent bien au-del d'elle-mmel'agrment artificiel" CG. p.679[30]

    Ibid., p. 377. "Il y en avait une (lgende) aussi, bien moins antique, manation de la vie de cour, sinon dans les manires souventvulgaires de M. de Guermantes, du moins dans l'esprit qui les dirigeait. Je devais la goter encore, comme une odeur ancienne, quand je laretrouvai un peu plus tard au salon.' CG. p.711[31] Proust. O Caminho de Guermantes.p. 378. "Les gens qui dtestaient ces "horreurs" s'tonnaient qu'Elstir admirt Chardin[31], Perroneau,tant de peintres, qu'eux, les gens du monde, aimaient. Ils ne se rendaient pas compte qu'Elstir avait pour son compte refait devant le rel(avec l'indice particulier de son got pour certaines recherches) le mme effort qu'un Chardin ou un Perroneau, et qu'en consquence quandil cessait de travailler pour lui mme, il admirait en eux des tentatives du mme genre, des sortes de fragments anticips d'uvres de lui. ".CG. p.713.