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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste – Juiz de Fora – MG
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Imagem Vestígio: A Cidade Híbrida Por Uma Perspectiva Audiovisual
Trabalho apresentado ao GT de Audiovisual (Foto, cine, radio, tv), do XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Lucas Alvim Bichara Costa (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) Márcia Izabel Dimas Duarte (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) Rafael do Prado Monteiro (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) Vinícius Loureiro Marques (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) Lucas Alvim Bichara Costa: Graduação em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda na Faculdade de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), concluído em dezembro de 2006. Endereço eletrônico: [email protected]. Márcia Izabel Dimas Duarte: Graduação em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda na Faculdade de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), concluído em dezembro de 2006. Endereço eletrônico: [email protected] Rafael do Prado Monteiro: Graduação em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda na Faculdade de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), a ser concluído em dezembro de 2007. Endereço eletrônico: [email protected] Vinícius Loureiro Marques: Graduação em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda na Faculdade de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), concluído em dezembro de 2006. Endereço eletrônico: [email protected]
Resumo
O projeto busca, partindo de uma perspectiva audiovisual, pensar a cidade através de seus eventos particulares e seus vestígios. Eventos que carregam uma possibilidade de revelar a complexidade do espaço urbano quanto a seus movimentos híbridos e a suas tensões. Pretende-se, com isso, exaltar um olhar possível à cidade contemporânea, que busque em seus pormenores uma possibilidade alternativa ao olhar homogêneo, em busca de uma dinâmica heterogênea, que as dê novo significado, sem ignorar suas diferenças. Uma experimentação em vídeo se destina a encontrar esses vestígios distribuídos por Belo Horizonte e traduzir estas negociações, pontuando-se em questões como o tempo, o espaço, o deslocamento e a ocupação.
Palavras-chave
Vestígio; cidade; audiovisual
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Imagem vestígio: introdução
Parte da intenção deste trabalho está em discutir e, possivelmente, ampliar a
potência do audiovisual como perspectiva. O audiovisual como método e alternativa
própria de conceber uma discussão. Aqui se tomará a cidade como objeto, e se buscará
discuti-la partindo de suas imagens e sons. Apontar a cidade e fazê-la se revelar em sua
complexidade por possíveis olhares – a câmera, o habitante, o espectador, o homem
com a câmera. Pois é isto o que se questiona, e aqui se pretende discutir. Como perceber
tal complexidade da cidade e os movimentos híbridos do ambiente urbano? Como torná-
los visíveis ou tencioná-los em uma discussão audiovisual? O que se tira daquilo que,
no cenário urbano, torna-se ignorado ou vestigial, em função de se esclarecer e perceber
esta complexidade? Desta maneira, busca-se na experimentação, por meio do olhar da
câmera, potencializar o olhar do citadino. Ao habitante de Belo Horizonte, a cidade em
questão, há possibilidade de uma proposta de olhar? Como inscrever em uma
experimentação a complexidade de signos heterogêneos e seus vestígios?
Neste sentido, não se propõe direcionar o pensamento sobre a cidade por meio
de uma discussão estritamente sociológica ou historicista. Ainda que a cidade evoque,
obviamente, um pensamento relativo à sociologia e a uma historicidade de sua
formação, este estudo pretende, porém, pensá-la por uma perspectiva audiovisual.
Afinal, tendo a cidade tal presença decisiva na formação do homem contemporâneo, não
seria possível vê-la das mais diversas maneiras, discuti-la sob os mais diversos campos
do conhecimento? Conceber este espaço por meio de uma reflexão audiovisual seria,
antes, pensá-la diante daquilo que talvez lhe seja mais particular e imediato: imagem,
som e movimento. A cidade como manifestação audiovisual em si. Por meio de muros,
janelas, portas, ruas, vitrines, praças, esquinas – essencialmente, modos de ver. Um
espaço orientador do olhar, neste esconder e revelar que lhe ocorre enquanto ele próprio
se emoldura.
Como pólos da discussão, dois possíveis modelos de cidades: ao primeiro
capítulo, Cidade-cinema, se trará uma cidade moderna, exemplificada basicamente aos
moldes da Paris pós-revolução industrial. Ao segundo capítulo, Vídeocidade, uma
cidade aqui chamada por hipermoderna, baseada na Tóquio do século XXI. O termo
“pós-moderno”, neste caso, foi evitado, pois poderia trazer dúvidas quanto à existência
temporal destas duas cidades propostas. Desta forma, não se pretende determinar uma
sucessão de estruturas urbanas ao longo da história. Deve-se considerar ambas como
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eminentes, destacadas de qualquer linearidade ou cronologia. Diante destes dois
modelos de cidades propostos em cada capítulo, cinema e vídeo virão em paralelo,
discutidos enquanto composição, reflexo e representação destes centros urbanos. Não
há, porém, ordem destes fatores – cidade, vídeo e cinema serão tomados em uma
discussão que navegue sobre um plano; e não que os estabeleça divididos em causa e
conseqüência, de forma linear ou hierárquica.
O terceiro e último capítulo, Belo Horizonte e o vestígio como imagem, trará
uma discussão que tome esta mesma cidade como objeto. Propor-se-á, após a discussão
polarizada nos capítulos anteriores, uma maneira de encontrar, na capital mineira,
possibilidades para percebê-la em meio à sua complexidade. É, portanto, proposital o
choque entre os dois modelos extremos e idealizados de cidade apresentados nos dois
primeiros capítulos. Não se trata somente de uma questão de estrutura, mas é também
intenção separá-las para se fazer esclarecer dois tipos distintos de percepção e, desta
forma, tencioná-los em função de uma terceira, Belo Horizonte. A intenção é,
justamente, propor o choque ao leitor, de dois momentos, ou contextos, explicitamente
diferenciados – sujeitando-o à própria dinâmica daquilo sob tratamento do texto, e à
própria peculiaridade de diferentes maneiras de se perceber. Ainda, será apresentado, ao
longo do terceiro capítulo, o pensamento proposto sob o termo vestígio, que ao mesmo
tempo se configurará como índice e objeto a ser perseguido, baseado em um percurso
metodológico próximo ao paradigma semiótico peirciano.
Por meio da experimentação em vídeo Ao passante, se buscará uma proposta de
olhar. Trata-se, de certa forma, de uma reivindicação a uma possível maneira de
experimentar a cidade - especificamente Belo Horizonte – que possa revelá-la e que, por
meio do olhar da câmera, potencialize suas tensões. Pretende-se, tomando como
orientação a discussão exposta no terceiro capítulo, buscar formas de se demonstrar as
tensões desta cidade, atendo-se a seus vestígios - eventos aparentemente corriqueiros
que carregariam, em seu íntimo, uma possibilidade contrária ao olhar homogêneo.
Essencialmente, o tempo, o espaço, o deslocamento e a ocupação pontuarão aquilo que
se passará durante a experimentação audiovisual.
Cidade-cinema: O lanche do bebê
“Aparente paradoxo sugerir que um material tão frágil e perecível possa conservar. Mas, diz Deleuze, é a própria imagem cinematográfica que, em si
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mesma, é capaz de preservar. Ela conserva as crianças, as casas vazias, os plátanos... Ela conserva o vento. Não as grandes tempestades, mas quando a câmera brinca com o vento, adiantando-se ou voltando atrás dele. Instantes de magia e graça. O cinema preserva todas essas coisas que, de outro modo, não poderíamos ver.” (PEIXOTO, 2004, p. 49).
Contemplar. O flâneur, imerso na ebulição da metrópole moderna, deslumbra-se.
O flâneur e a cidade-cinema
Paris do século XIX. Em função da explosão populacional trazida pelos avanços
da Revolução Industrial, a cidade francesa reorganiza-se ao reconstruir-se, literalmente.
Grandes bulevares, amplas calçadas, enormes espaços abertos, galerias, postes a gás.
Paris torna-se, de fato, cidade-luz. Esta nova Paris enquadra a si, define vistas – como e
por onde vê-la – seja na renovação de seus espaços, de sua iluminação ou de suas
passagens, seja na construção de novos marcos, na expansão de suas ruas ou na abertura
de galerias. Os recém construídos monumentos atuam de forma muito clara em função
desta orientação. Eles surgem em meio aos cruzamentos, ou ao fim das praças, e
conduzem o parisiense; reordenam-lhe o olhar em relação à composição da cidade,
pontuando-a quase literariamente, literalmente. Como os pontos de fuga comuns a uma
obra renascentista, o monumento direciona àquilo que deve ser visto. Tal modernidade
da nova Paris exige, consequentemente, um novo cidadão, e deste novo cidadão, um
novo modo de com esta negociar, um novo olhar - se lhe apresenta como uma
experiência inédita, ímpar. Pensar esta nova cidade, e compreender também a mudança
do olhar que ela invariavelmente induz, requer pensar, primeiro, o seu personagem.
Aquele que a ela tenha experimentado, e que dela permita conceber a idéia daquilo que
lhe tenha trazido, tanto quanto daquilo que com ela tenha negociado.
Este é o sujeito sugerido por Benjamin. Como produto da Paris do século XIX,
depara-se com uma cidade em pleno desenvolvimento, a concreto e asfalto. É ele o
personagem moderno possível, o flâneur, “homem das multidões” (BENJAMIN,
1989:45). Sua peculiaridade está no prazer do encontro às mudanças recentes trazidas
pela imersão de sua cidade na modernidade. A flânerie, ou o ato de flanar, é fruto do
deslumbramento deste personagem. Sua nova cidade, como a Paris dos monumentos,
lhe convida a caminhar por seus recém construídos passeios, avenidas, galerias; mostra-
se como paisagem a ser observada. Cabe a ele caminhá-la, percebê-la e experimentá-la
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– em seu íntimo, um processo peirceano. Baudelaire expõe o flâneur como um
espectador imerso na multidão
“A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, o espectador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 9).
O flâneur é, de fato, o observador ímpar e personagem da cidade moderna. Ele é
o passante, o que vaga pela cidade, nota suas ruas e becos; pára, admira, procura
experimentar cada momento como singular. Simmel, em A Metrópole e a Vida Mental,
classifica a metrópole moderna como possível responsável pela imersão do sujeito na
homogeneidade de um corpo único, absoluto. O flâneur, de certa forma, escapa em sua
subjetividade a tal corpo homogêneo. Ainda que motivado a adentrar a turba, a perder-
se no fluxo, sua individualidade se preserva no papel de observador que assume
enquanto se posiciona em meio à multidão. A multidão, por sua vez, por ele se perde.
Notavelmente, a cidade moderna exige, sim, um pensamento racional, um espírito
objetivo pela sua aceleração, pelas mudanças extremadas. Deve o homem estabelecer-se
diante das novas regras impostas por sua nova cidade. Pensa-se imediatamente, desta
forma, em um processo de automatização, uma estrutura generalizante. Porém, é
também neste grupo maior, em que o sujeito ganha maior movimento e maior liberdade,
que adquire a individualidade dada por sua função – aí está o flâneur, o espectador, o
observador.
Jonathan Crary expõe que, neste momento, século XIX, surge a idéia da visão
subjetiva. A visão, como parte do sujeito, se distanciaria da possibilidade de uma
definição objetiva ou concreta – ela seria imperfeita, variável. A visão mais dependente
ou sujeita à própria constituição do corpo do ser humano e de suas capacidades
sensórias, que em relação ao redor que lhe cerque. Torna-se imediata a figura do
observador - o homem separa-se do seu redor ao passo que sua visão dissocia-se do que
lhe é exterior. Porém, não se deve confundir, a percepção do homem obviamente
caminha junto às suas reorganizações sociais. Ainda, não é a percepção humana que se
altera ao longo da história, o que se transforma é o contexto onde ela se insere; onde e
quando a percepção é experimentada pelo sujeito. O flâneur, neste sentido, busca um
olhar externo à cidade e seus indivíduos para assim sobressair-se – desta forma se
permite admirar por vê-la em cada uma de suas esquinas.
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Inevitável não pensar, paralelamente, a cidade moderna - contemplativa e
extasiada pelo olhar do flâneur – e o cinema. Nesta cidade, o flâneur, mais que
observador, é, literalmente, o espectador, como o é aquele que se põe diante da tela de
cinema. Seja em meio às ruas e à multidão da cidade, seja em meio às cadeiras e ao
público de uma sala de cinema, flâneur e espectador encontram-se diante de um
enquadramento, uma janela que possibilite durar aquilo que pareça fugidio, que lhes
clama por olhar. Cidade e cinema como experiência espaço-temporal, onde o
movimento é apreendido, provado e contemplado.
Tal paralelo permite ir além. Esta cidade moderna se movimenta como as
imagens cinematográficas; carrega consigo a textura da película, o som dos projetores
em rotação. A fábrica, como grande objeto da modernização, traz a rotina peculiar das
linhas de montagem, o ritmo insistente de Chaplin em Tempos modernos, em um preto e
branco sóbrio, racional, definitivamente moderno. Um movimento de sopro, circular,
cadente. A cidade moderna é como um filme de poucos e precisos cortes, de longos
planos. De avenida em avenida, de janela em janela, de esquina em esquina, muro a
muro, aos poucos as cenas mudam, e passam. Assim, a cidade cria seu próprio corte. O
olho do flâneur é, ainda, além do próprio olho de espectador, também como a câmera de
cinema: procura, espera, contempla, eterniza. Cada passo do flâneur é como um
fotograma cinematográfico. A cidade se constrói diante de seu olhar, ao andar, como um
filme ocorre ao passar de cada instante capturado pela película. A urbe moderna permite
que nela se encontrem momentos, deixa-se perceber como objeto de tamanha mudança
e transformação que hipnotiza. Captura o olhar de seu personagem.
Em função desta possibilidade do contemplar que aqui se credita à cidade
moderna, é preciso traçar um comentário acerca daquilo que é a própria contemplação,
ou daquilo que é o contemplado. O instante, ou momento, está na modernidade
diretamente vinculado à visão. Por carregar este vínculo visual, este momento se torna
sempre fugidio – o homem dele toma consciência e assim ele já não o é. O presente
escapa na medida em que invoca ser reconhecido; ao indivíduo o presente lhe passa
entre os dedos, pois percebê-lo lhe estabelece como já passado. Vive-se o presente, de
fato, apenas na sensação, um estado primário, não racional – uma sensação prática à
qual Heidegger chamou de “pronto ou presente para ser utilizado”. A questão temporal
não é, pois, crucial na compreensão do momento:
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“Não é que o passado lança luz no que é presente ou o que é presente lança luz no que é passado; ao contrário, uma imagem é aquilo em que o Então e o Agora juntam-se em uma constelação como um flash de luz. Em outras palavras: uma imagem é a dialética imobilizada num instante. Pois quando a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do Então com o Agora é dialética: não de natureza temporal, mas de natureza imagística.” (BENJAMIN, 1980, p.50).
Este instante, o agora, deixa-se perceber somente por meio do reconhecível que
lhe é atribuído pelo visual, pelo que pode ou é visto. Benjamin, em analogia fotográfica,
apresenta que o então, a situação, é banhada por um flash de luz no instante em que
ocorre, ou seja, no agora. É neste exato momento em que ela pode ser capturada, pois,
no instante seguinte, se perdeu. A sensação da modernidade – e em conseqüência, da
cidade moderna – é uma seqüência de instantes, de presentes que estarão sempre
esvaindo. É esta sensação que abrolha o cinema como representante de uma
temporalidade definitivamente moderna. A sucessão de momentos, fragmentados em
fotogramas, capturas do então no agora, é o cerne do cinema moderno. Aprisionamento
da sensação. É o que claramente se nota no cinema de Jean Epstein, teórico e cineasta
francês. Em La Chute de la maison Ush, o cineasta apresenta o cinema com a sensação
da modernidade, por meio de instantes que convidam o espectador a concentrar-se, a
devorar cada cena, antes que, na seguinte, ela se perca. As cenas decompõem-se em
fotogramas - momentos sensoriais entitulados por Epstein como fotogenias. Tais
fotogenias contêm fragmentos da experiência real, transparecem a sensação do instante.
O objetivo primordial destas sensações contínuas é trazer um prazer verbalmente
indescritível. Enquanto o filme ao espectador é transmitido, espera-se vivenciar o
momento, não se permitem desvios de atenção. Apenas se percebe o agora. O olhar fixo
do observador carece desta sensação, e é desta forma que assim alimenta o desejo do
espectador extasiado.
O cinema é o olhar do novo homem, é uma experimentação da própria cidade. O
filme, para Epstein, acolhe tal paradoxo que criou. Por ter como elemento a fotogenia,
indecifrável, o cinema, assim sendo, é indefinível. “Quebra-se a cabeça querendo-se
defini-la”, mas não há o que definir; apenas contemplar como o observador, flanar como
o flâneur. O cinema narrativo tenta estagnar, ou melhor, estancar sentimentos, o que é
impossível. A imagem fotogênica é, essencialmente, uma variação do espaço e do
tempo. A cidade moderna é mais um deslocamento deste espaço e deste tempo, e por
isso é alvo do cinema. Aí está o movimento, peça chave da ligação por atravessar e
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captar essa variação simultânea. É dessa maneira que George Méliès, ao assistir O
lanche do bebê, dos irmãos Lumière, projetado na inauguração do Café de Paris,
apresenta seu desinteresse pela cena frontal em que se desenrolava a cena da família
burguesa. Méliès desvia sua atenção para outro plano, o canto ao fundo, no qual as
árvores, ao balanço do vento, chamariam sua atenção de forma muito mais potente,
ainda que suavemente. Lá ele vê o dispositivo do cinema, e lá ele o está - a vida que
passa e que não se repete, as folhas que dançam ao vento invisível. É esse o olhar do
homem moderno que, perante um mundo a pleno vapor, pára e contempla a nova
paisagem. Como Méliès, contempla àquela ao fundo, efervescente, ainda que sutil, e
que agora se desenrola na cidade.
Se há no cinema moderno algo de ímpar, é isto. O momento, o instante ínfimo -
e a possibilidade de eternizá-lo. Eternizar, neste caso, não na possibilidade técnica da
película que permite gravar e conservar uma imagem, pensar desta forma seria muito
raso, mas na forma de experimentar a duração, perceber e apreender o durante do que
passa. Deleuze, em A imagem-tempo, expõe que a imagem cinematográfica não deve
apenas ser vista e ouvida, mas também e principalmente lida. Deve o cinema romper
com o elemento puramente sensório; para ser compreendido, ele requer contemplação,
apreensão e reflexão - é legível. O cinema é literário. A experiência do homem moderno
se aproxima do espectador cinematográfico no momento em que ambos lêem, seja em
uma cidade que lhe impressiona e lhe dispõe modos de ver, seja imerso em uma sala de
cinema. Neste sentido, a cidade moderna – ou cidade-cinema – conserva estruturas que
permitem um vagar necessário à sua contemplação, à sua leitura. Suas paisagens têm
força, como os monumentos da nova Paris, objetos imantados, pontos de fuga. O
movimento desta cidade requer um tempo que não as impeça de se mostrarem e de
serem reparadas. É no durar que se aproxima esta cidade do próprio cinema, ele se faz
presente em ambos; em um olhar lento, vagaroso, essencialmente possível. Existe
duração, e neste durante cidade e cinema conservam e eternizam momentos; e
possibilitam, antes, experimentá-los.
Um possível paradoxo. A cidade moderna carrega, obviamente, o instante da
aceleração do mundo, tudo adquire movimento e corpo. Ela dissolve-se sobre seus
próprios limites. Não há mais definição de início e fim como as antigas cidades muradas
da Europa medieval. A entrada do homem no capitalismo configura um processo de
constante renovação – produção e consumo. Crary coloca a atenção como questão
essencial ao pensar a modernidade. O homem, em meio ao ritmo imposto pelo moderno
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- seja nas fábricas, ao trabalhar; ou nas ruas, ao consumir – estaria sujeito a uma perda
drástica de sua capacidade de percepção. Ainda, e isto será discutido, o movimento, a
expansão e a agitação trazida pela cidade moderna não impedem, por fim, que haja
contemplação. Mesmo que estremecida pela Revolução Industrial, a cidade moderna
permite a parada, o olhar externo ao seu cotidiano. A parada se justifica naquilo que
talvez lhe pareça mais ambíguo – o movimento. Basta voltar à figura do flâneur. Em
meio à aceleração recente do mundo à sua volta, certa ingenuidade diante do novo lhe
põe a reparar o que o cerca. Crary diz que, “nesse novo sistema de objetos, baseado na
produção contínua do novo, a atenção foi mantida e realçada pela introdução regular da
novidade”. A aceleração da modernidade carrega, antes de tudo, a imposição de uma
atenção que se permita mover rapidamente; “torna-se um regime de atenção e distração
recíprocas”. O capital requer esta mudança, ele é a própria aceleração.
Deve-se pensar, portanto, que justamente tais mudanças tão extremas fortalecem
a possibilidade de delírio, de exaltação, de deslumbramento. Obviamente, aí está neste
regime o paradoxo. Atenção e distração tornam-se estados indissociáveis. A atenção
requer, necessariamente, um processo em que se perceba algo de um contexto mais
amplo. Como um recorte, a atenção impõe distrair-se daquilo que esteja às margens,
isolar uma parte do todo. Há aqui um paralelo definidor a ser pensado. A possibilidade
do instante em meio ao movimento da cidade moderna – e também do cinema – estaria
como o processo perceptivo que envolve o estado de atenção. O instante estaria lá,
imerso no movimento e dele inseparável, possível enquanto recorte do todo. O instante
e o movimento existem em continuum, assim como trata Crary dos estados de atenção e
distração. Neste sentido, a novidade é o que hipnotiza e, para ser assimilada, propõe
uma observação que vá além do simples passar dos olhos, uma observação que dure,
que a recorte do espaço todo. O cinema traz o movimento em relação à fotografia, bem
como a cidade moderna contrapõe-se às vilas rurais e interioranas, ao também adquirir
movimento. Questiona-se, na fotografia, ou na vila rural anterior à modernidade,
haveria a possibilidade do instante? Não é este instante, de fato, indissociável de um
predecessor movimento? Para Deleuze, “no momento em que a imagem
cinematográfica confronta-se mais estreitamente com a fotografia, também se distingue
dela mais radicalmente”. É ao durar o movimento, ao dar tempo e ao mostrar o próprio
tempo que o cinema se diferencia. Na cidade moderna, este próprio movimento incita
decupá-la – ela já não é uma cidade parada, fotográfica.
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Homem-câmera-flâneur
Dziga Vertov, em O homem com a câmera (1929), é o flâneur em sua essência.
Olho e câmera tornam-se um só. O cineasta leva ao extremo a idéia da câmera como
continuação do homem, o cine-olho. O cine-olho vem para vencer a fraqueza do olho
humano, que se distrai e desvanece dos momentos. A cidade, em toda sua agitação, em
meio ao caos do desenvolvimento exponencial, eterniza-se no registro de momentos
ímpares; singulares ao olhar do homem-câmera-flâneur. Mais que apenas registrar como
a visão, o cine-olho apresenta suas possibilidades de variar a velocidade, confundindo-
se com o caos da cidade eminente e dando a possibilidade de manipulação da imagem,
de acordo com a vontade do montador. Grandes espaços abertos, praças públicas, de
circulação, tornam-se paisagens ao deslumbre da câmera. Os rostos se congelam por
pequenos instantes, como numa referência ao eterno que conduz a imagem, antes que
ela continue a correr pelo filme. O cotidiano aparentemente comum de uma cidade
moderna padrão se preserva naquilo que não se vê imediatamente, mas se nota pelo
olhar de um homem com a câmera.
Como Deleuze, Vertov pensa o cinema como um processo de aspectos literários.
Considera que montar um filme é como escrevê-lo. Lê-se a cidade, deixando o cine-
olho recortar as passagens a serem utilizadas. E a montagem trata de escrever o filme.
Assim como as frases possuem suas entonações e pontuações, o filme deve possuir
ritmos e intervalos que darão à sua devida leitura, trarão à tona o que se é proposto. O
diretor do filme é chamado por Vertov, antes, de montador, por considerar cada
específico momento pelo qual passa a criação de um filme moderno como sendo um
processo, no todo, de pura montagem. Monta-se quando se cria o roteiro, ao juntar-se
idéias e inventários relacionados ao que se busca no filma até que o tema se feche, “se
monte”. Monta-se quando é feita a seleção de planos pelo cine-explorador, quando se
fazem escolhas diante do que e para onde se direcionar, quais observações deverão ser
feitas, “montadas” pertinentemente. E finalmente, monta-se quando de fato a
decupagem é analisada e organizada, agora sim literalmente montada em uma ordem
ritmada que, por fim, resulta em uma seqüência de instantes, ou “cine-eu vejo”.
Vertov consegue colocar as teorias de cine-olho - até então aparentemente
limitadas a isso, teorias - na prática do próprio cinema. Em óbvia metalinguagem com
seu próprio objeto de trabalho, Vertov produz um filme de certa forma altamente
didático, tanto para os teóricos como para os cineastas modernos. O cineasta trata de tal
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tríade entre homem, cidade e cinema. Ele oferece cenas que tratam da visão do homem
e do cinema, o cine-olho, da cidade moderna e de toda sua agitação maquínica. Em seu
produto está a relação entre estes pólos, no processo de criação da cidade moderna, do
homem moderno e do cinema moderno. Em O homem com a câmera, há cenas literais
desse funcionamento - o cinegrafista captura, com seu olhar e por meio do olho da
câmera, os momentos desta modernidade. Após a captura de fotogenias contínuas,
Vertov mostra, além da captura, a própria edição inserida no filme. Cada seqüência de
fotogenia é decupada. Então se vê, fixo, o instante. Quando a seqüência é passada, cria-
se o movimento. Exalta-se, então, a fotogenia como o material para o cinema, o
elemento com o qual o cinema cria sua arte, e este último, o olho do novo homem,
moderno.
“NÓS1 declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra.”
(VERTOV, In: XAVIER, 1983, p. 248).
A capacidade narrativa do cinema, neste caso, não traz nada da essencialidade da
cidade moderna. O sujeito clássico entra em crise e é na instabilidade dessa nova cidade
que o homem moderno surge, curioso e com um olhar cinematográfico. Essa cidade-
cinema evoca o olhar moderno, o olhar de sensações de devaneio, que não podem ser
explicadas, fazendo Vertov classificar os romances basicamente como idiotas. A câmera
funciona como o olho do novo homem, captando os momentos da cidade. Um olhar
atento e concentrado. Em cena de seu filme, o olho humano é comparado e sobreposto à
lente da câmera; o abrir da câmera é o despertar de uma mulher, o cinema mostra o
mundo ao homem, que antes possuía um olhar vacilante, coberto como a janela com
cortinas. O homem com a câmera, porém, não deve ser notado como exemplo sintético
do cinema contemplativo e de duração anteriormente discutidos. Pelo contrário, Vertov
mostra, essencialmente, a relação direta que aqui se discute entre a cidade e o cinema
como modos de ver que se revelam, que funcionam nesta dinâmica do perceber, do ver,
do ouvir, e que compartilham de uma unidade – e por isto contribui fundamentalmente a
esta discussão. O cinema é como o flash de Benjamin que lança sua luz sobre a cidade
moderna, clareando o olhar do espectador para que este veja o então e agora. O novo
homem não é mais passivo perante o cinema moderno como o antigo homem era
perante o cinema clássico. Os filmes trazem histórias abertas, convidativas. Fazem o
espectador prender sua atenção e experimentar o cinema. O sujeito não é mais o
1 (Publicado no n.º 1 da Revista Knophot de 1922). Primeiro programa publicado na imprensa pelo grupo dos documentaristas-kinocs, fundado por Vertov em 1919.
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camponês que vislumbra as cidades medievais muradas, ele faz parte dela, vive inserido
nela e a sente assim como o cinema o faz, proporcionando a experiência para seus
espectadores. Muito além da produção de um filme moderno, Vertov registra
concretamente a cidade moderna, suas características, seus moradores, e sua relação
estética com o cinema. A relação que acompanha seu íntimo, que surge com ela e que,
com ela, participa da construção de novos modos de ver, novas formas de olhar. O novo
olhar desta cidade, o olhar-cinema.
O novo homem vai sendo atravessado por esse tempo contemplativo e
deslumbrante, tempo que permeia sua vida. Uma projeção que define e reflete novos
modos de ver. Aprende a encarar uma nova cidade, reordenando sua própria visão.
Desenvolvendo enquadramentos. Fixando na retina, imprimindo e projetando o fugidio,
um tempo rígido que parece começar a se dissolver lentamente, a se escoar em
movimento continuamente acelerado.
O flâneur se apressa. Não há tempo para ver tanta coisa. As ruas, as vitrines, as
paredes se transformam em esteiras automáticas que se movem diante das lentes, que
agora também flanam, sozinhas. A tela, que refletia majestosa a projeção, sai para as
ruas e ganha luz própria. Emana-se uma luz azulada e inebriante por todos os cantos. A
tela de vidro fala sozinha. Age sozinha. E o caminhante desliza sobre a fluidez
movediça. Seu desejo pela duração parece ir se tornando mais distante. É hora de
apertar o passo.
Vídeocidade: Luz, câmeras, visão
De resto, assim como um mero vagão que pode ser acrescentado a uma locomotiva, este termo possui uma especificidade que, na língua francesa, ao ser usado ocasionalmente como substantivo, não se sabe muito bem a qual gênero ele pertence: masculino ou feminino? Un ou une vidéo? “Adjetivo invariável”, precisa o verbete do dicionário Petit Robert. Nosso termo carece pois de sexo e, portanto, de corpo. Indo além, podemos dizer que não pertence a nenhuma língua (própria), pois é o mesmo em francês e em inglês (vídeo-tape, videogame), italiano (videoarte), alemão (Videobandern, Videoskulptur, Videokassette, Videokunstwerken) ou português (videopôquer, “videocassetada”). Palavra-esperanto, intraduzível, desprovida pois de imaginário. (DUBOIS, 2004).
Power on
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Sobre a trama de concreto e asfalto que se expande apressada pelas verticais e
horizontais, culturas discrepantes trançam uma nova e densa malha urbana. Nômades
sem rumo imprimem suas digitais em um constante movimento de troca, onde as
fronteiras culturais se diluem em um mosaico saturado e contaminado, que se reconstrói
em função de um tempo que progressivamente parece se esgotar. Descontínua e mais
acelerada, as cidades constituem um perímetro particular da hipermodernidade,
propondo uma ordem diferente do tempo e dos espaços. Cruzam-se de interesses
políticos, históricos, comunicacionais e, sobretudo, estéticos – fundindo-se,
deformando-se e modelando-se com uma nova plasticidade. A luz emitida no ar é
intensificada. Painéis luminosos, faróis de carros e infinitas janelas de arranha-céus
somam um brilho intenso, transformando a cidade em um grande painel luminoso,
sempre visível: vídeocidade.
A nova cidade e a comunicação urbana em particular são comparadas por
Massimo Canevacci a um coro que canta com múltiplas vozes autônomas que se isolam
e sobrepõem-se umas às outras, relacionando-se no cenário urbano – a “cidade
polifônica”. Partindo do rádio e da televisão que, de certa forma, já proporcionaram um
primeiro domínio da temporalidade urbana, presencia-se uma intensa difusão dos
instrumentos audiovisuais, que vêm dar um novo impulso às formas de interação do
indivíduo metropolitano. A cidade superexposta, como assim define Paul Virilio
(1991), se configura como um espaço rico para pensarmos os efeitos dessas absorções
tecnológicas. A comunicação vem se afirmando como um meio modelador da nova
sociedade urbana, fazendo com que a mediação dê eco à infinidade de vozes que
competem por visibilidade.
Essa “mediatização social” reestrutura as interações coletivas, ao passo que a
cultura urbana cede gradativamente esses espaços públicos, às tecnologias eletrônicas.
O fenômeno do “comunicar-agora” proporcionado pela popularização crescente da
Internet quebra alguns opostos urbanos, como a noção do nacional versus estrangeiro,
do lazer versus trabalho, notícias e entretenimento, subalterno e hegemônico, tradicional
e moderno, política e ficção, intervindo profundamente no jogo social intercambiado
que a cidade propõe. Os novos meios tecnológicos, segundo Paul Virilio (1991),
trouxeram a superposição de tempos que influenciam na imagem produzida pela cidade,
ou seja, estas imagens sofrem efeitos de torção e distorção iconológicas cujas
referências mais fundamentais desaparecem uma após a outra.
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Se a metrópole possui ainda uma localização, uma posição geográfica, essa não se confunde mais com a antiga ruptura cidade/campo, tampouco com a oposição centro/periferia. A localização e a axialidade do dispositivo urbano perderam há muito sua evidência. Não somente o subúrbio provocou a dissolução que conhecemos, mas também a oposição ‘intramuros’, ‘extramuros’ se dissipou ela própria, com a revolução dos transportes e o desenvolvimento dos meios de comunicação e de telecomunicação, daí esta nebulosa conurbação de franjas urbanas. (VIRILIO,1991, 11)
Canevacci conceitua esse panorama como resultante da proliferação dos signos
eletrônicos e imagéticos ao longo do território metropolitano, denominando-o video-
scape. O crescimento desse ambiente saturado produz um novo sujeito. Um novo
vagante, um flâneur que se reestruturou de modo a sobreviver imerso em uma nova
ordem comunicacional. O “neoflanêur metropolitano” (CANEVACCI, 1993). O sujeito
criado pela vídeocidade é pautado por um jogo visual mais complexo, uma vez que seu
olhar não é mais direcionado pelas perspectivas lineares dos grandes espaços abertos. O
fluxo da informação urbana se desloca frente ao novo flanêur de forma a permitir o
deslizamento livre do olhar sobre o plano visual. Com isso, a competição por
visibilidade no cenário videográfico da cidade é travada de forma agressiva e os
artifícios utilizados para surpreender o passante são minuciosamente estudados. A
comunicação na vídeocidade é articulada para uma rápida absorção. Para quem tem
pressa e desvia o olhar rapidamente de dentro do carro, do metrô. Não há tempo para
contemplar. O tempo se estreita constantemente.
Entre os video-scape e os visual-scape se produz o emaranhado eletrônico que difunde as informações (jornais, revistas, redes de TV, outdoors, filmes, documentários, cassetes, grifes, música, etc.), cujo mix não separa, antes mistura o mundo das mercadorias e o das notícias, os panoramas visuais e urbanos. O resultado final na percepção dos espectadores – e toda metrópole é uma complicada estratificação de espectadores – é um repertório interconexo de imprensa, celulóide, telas eletrônicas, videogames, telefones unicelulares, videotel, que torna mais tênue a linha que deveria separar as paisagens realistas das ficcionais. Estes video-scape são imagined-centered, isto é, centralizam a atividade construcionista da realidade sobre eles próprios, sobre as próprias imagens. (CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica. 1997, p. 36)
A luz própria do pixel
A metáfora da vídeocidade aqui proposta remete a um gênero relativamente
novo, mais heterogêneo – o videoclipe. Segundo Néstor Canclini, por mesclar música,
imagem e texto e por se configurar como transtemporal, fazendo uma sobreposição de
diversas épocas, o videoclipe poderia ser definido como um “intergênero”.
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“Há videoclips empresariais, políticos, musicais, publicitários, didáticos, que substituem o manual de negócios, o panfleto, o espetáculo teatral, a teatralização mais ou menos fundamentada da política nos comícios eleitorais. São dramatizações frias, indiretas, que não requerem a presença pessoal dos interlocutores. O mundo é visto como efervescência descontínua de imagens, a arte como fast food. Essa cultura pret-à-prienser permite des-pensar os acontecimentos históricos sem preocupar-se em entendê-los.” (CANCLINI, 2003, p.306)
Para o vídeo, não existe norma nem regra. Não há características únicas que
possam descrevê-lo como puro, como exclusivamente vídeo, com uma linguagem
específica. Talvez aquilo que mais se aproxime da pureza única de vídeo seja a vídeo-
arte. O vídeo é um sistema híbrido, por congregar na composição da obra recursos do
cinema, do teatro, da literatura, do rádio, da computação gráfica. É dotado de um
discurso impuro por natureza, que processa formas de expressão colocadas em
circulação por outros meios, atribuindo-lhes novos valores (MACHADO, 2002, p.190).
A “especificidade” do vídeo, segundo Arlindo Machado, encontra-se na solução dada ao
problema da síntese de todas essas contribuições. A verdadeira essência do vídeo está
naquilo que Bellour denomina passagens: entre o móvel e o imóvel, entre a analogia
fotográfica e o que a transforma. O teórico trata dessas passagens como a forma com
que o vídeo foi capaz reunir em si uma mescla de várias mídias até então existentes,
compondo sobreposições inesperadas que modificaram a nossa capacidade de produção
e apreensão das imagens em termos globais. Assim, ele situa o entre-imagens como o
lugar híbrido peculiar ao vídeo, ou seja, um lugar de todas as passagens, um lugar físico
e mental, múltiplo.
Uma semiótica das formas videográficas deve, portanto, ser capaz de dar conta desse fundamental hibridismo do fenômeno da significação na mídia eletrônica, da instabilidade de suas formas e da diversidade de suas experiências, sob pena de reduzir toda riqueza do meio a um conjunto de regras esquemáticas e destituídas de qualquer funcionalidade. (MACHADO, 2002, p.192.)
Se através da leitura se decifra a cidade-cinema, a experiência videográfica
estaria mais próxima a outras duas artes mais imediatas: a pintura e a música. Nessa
cidade hipermoderna, a observação deslumbrada do simples “passar por” se desdobra
em uma experiência multisensorial carregada de significados. Uma imensa
sobreposição, uma mescla, um cruzamento entre imagens e sons que compõe uma
complexa cinética urbana. A cidade pautada pelo vídeo não mais oferece brechas para a
contemplação passiva. Exige do sujeito uma atenção efêmera e multiplicada,
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simultânea, somada à apuração dos sentidos. Sua montagem é pulverizada, sem oferecer
continuidade nas suas imagens heterogêneas.
Por estar nesse constante trânsito, é possível concebê-lo como estado e não
somente imagem. Como “uma forma que pensa as imagens”. Nesse sentido, o vídeo
pode ser visto como uma forma que reflete o cinema, a televisão e até mesmo o próprio
vídeo, constituindo-se um pensamento-imagem. Phillipe Dubois (2004) reafirma esse
inter-lugar do vídeo e sua falta de especificidade. O autor situa o fenômeno até mesmo
como um “modo de passagem”, que se situa entre dois estados de imagem: o cinema e o
computador. Porém, torna-se simplista e até mesmo impossível dissociar o suporte
videográfico da informática. O vídeo já é um formato absorvido pela tecnologia digital,
codificado em matrizes numéricas. Isso faz com que a captura, edição e distribuição (ou
disseminação) torne o processo comunicativo mais veloz e, de certa forma, mais livre
pela sua fluidez em todas as etapas do processo. Partindo desse conceito mais amplo da
palavra video, nota-se todos os espaços públicos e privados de uma metrópole
permeados pelo seu movimento típico.
Fast-forward / Rewind
O crescente acesso aos meios de captura de imagem e a ampliação da exibição,
que atinge também as ruas, provoca uma mudança decisiva na definição dos pólos de
criação e recepção. Todo esse fenômeno redireciona o posicionamento do flâneur
perante as imagens. O espectador ainda permanece ávido por devorar novas imagens
mas, agora, em sua nova roupagem mental, a plena espectatorialidade cede parte da sua
passividade a um protagonismo latente. Além de receber imagens, cabe a ele registrá-las
e tornar-se, também, parte delas. As câmeras vagam por todas as partes, minúsculas,
acopladas a microcomputadores e telefones celulares. Sistemas de vigilância invadem
sutilmente os espaços privados e públicos, ansiosos por um flagrante inesperado. O
voyeurismo se consolida como entretenimento. As lentes assumem uma nova postura
ainda mais ativa, redefinindo a temporalidade experienciada pelo sujeito urbano, que
propõe dilatar o tempo através de um registro onipresente e ininterrupto. Um tempo que
promete se deslocar entre o futuro pulsante, projetado e o passado, sempre inacabado.
Fast-forward. Ou Rewind.
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Ademais, o espectador de cinema executa um ato deliberado de comprar um ingresso e se introduzir na sala escura com a finalidade exclusiva de assistir a um filme, ao passo que o espectador da imagem eletrônica é, em geral, um espectador involuntário, que se encontra “de passagem” no espaço da exibição, que chega depois que o espetáculo já começou e que provavelmente já terá se retirado antes que ele acabe, conforme o modelo do telespectador “passeando” pelos canais televisuais com seu controle remoto, mas também o do transeunte de um aeroporto ou de uma estação de metrô, momentaneamente fisgado pela tela de um circuito fechado de TV. (MACHADO, 1997, p.94)
Enquanto na cidade-cinema a profundidade de campo se faz definitiva, como um
espaço substancial (contínuo e homogêneo), a tradução do espaço em movimento e
duração e a lentidão, na vídeocidade nota-se uma profundidade de tempo, um espaço
acidental (descontínuo e heterogêneo), a visibilidade do tempo na imagem (instante), a
velocidade, com imagens onde espaço e tempo são comuns, em uma megalópole
heterogênea e múltipla.
Em Hong Kong Song, vídeo de Robert Cahen, é possível observar o novo modo
de percepção da cidade instaurado por suas novas formas somadas aos novos meios
técnicos: no vídeo há uma sobreposição de tempos, a mistura de seus contornos,
misturando o que se vê com o que será visto em seguida. César Guimarães (1998)
analisa esse tempo do vídeo utilizando termos como visibilidade eletrônica do tempo ou
quarta dimensão da imagem (citando, aqui, Arlindo Machado).
A imagem completa, o quadro videográfico, não existe mais no espaço, mas na duração de uma varredura completa da tela, portanto no tempo. (...) A imagem eletrônica é (...) a síntese temporal de um conjunto de formas de mutação. (MACHADO, 1992, p. 114)
Um vídeo experimental é capaz de produzir seres de sensação, auto-suficientes,
que transbordam a percepção, a experiência, e incorporam-se nos materiais de arte
(perceptos), blocos de sensações característicos da cidade superexposta (VIRILIO,
1991). Pela cidade o vídeo se perfaz aberto mostrando uma cidade por onde correm as
imagens como veias/tráfico num turbilhão de diversidades multifacetadas.
Outros deslocamentos
Uma nova interioridade se exprime assim em tais lugares, necessitada de controle ou de abandono, e de multiplicar os olhares com os quais irá se cruzar. Cada um adquire o status de neoflâneur. Só que no shopping o novo vagabundo perde somente algumas horas. Ele constrói a sua própria identidade como resultado de um compromisso com os infinitos “outros”, com todos aqueles com quem se encontrará para trocar olhares ou para se oferecer ao olhar. (CANEVACCI, 1993, p.34.)
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Na vídeocidade o cidadão se configura como um cliente permanente,
confirmando seu caráter anônimo despontado na modernidade. Aqui, o fluxo de
imagens corre basicamente em função da estética consumista. Carros e pedestres se
apressam em sua finalidade, buscando a sobrevivência no palco do consumo. No
contexto da venda, a imagem é o principal índice ofertado aos transeuntes. As
publicidades travam guerras abertas, nas quais as armas são cores destacantes, robustez
e tecnologias de ponta para competir por segundos de uma percepção instantânea.
Outdoors, telões, cartazes e panfletos travam jogos de opostos e contradições,
confirmando a ambivalência da imagem. Nos shopping centers, as praças privatizadas,
“o verdadeiro produto oferecido é comunicação”, afirma Canevacci (1997).
É possível detectar o perfil dos sujeitos gerados pelo mecanismo da vídeocidade
no filme “Encontros e Desencontros”, de Sofia Copolla. Dois personagens americanos
se encontram na Tóquio do século XXI, típico exemplo desse novo espaço. Ambos
passam por uma série de choques culturais, geralmente ligados à língua, trejeitos e
costumes japoneses, porém se encontram em uma cidade que lhes apresenta tudo aquilo
o que eles estão habituados em outras grandes cidades, com algumas leves
discrepâncias. A Tóquio de “Encontros e Desencontros” é como uma grande cidade
“caricaturizada”, onde os personagens constantemente convivem com a estranheza e a
familiaridade que a cidade lhes passa, se deslocando entre uma cidade composta por
painéis publicitários. Trata-se de uma “cidade-global”, que funciona como um centro de
fluxos de informação, de imagens, monetário, um hiper-espaço capaz de articular-se no
capital mundial.
A arte não possui um lugar delimitado na vídeocidade, nem uma clareza formal
ou estética, como acontece na cidade moderna. Os valores culturais relativos a estes
aspectos são bastante diluídos e a arte existe em toda a parte, completamente
desvinculada de um padrão representativo ou legitimador. Por isto, passou a ocupar
outro ou, melhor dizendo, outros papéis no espaço urbano. As condições características
de produção do vídeo lhe dão capacidade de produzir um quadro mais estilizado e
abstrato, sem compromisso linear com a realidade, cuja interpretação se dá em função
do contexto cultural em que a obra é exposta. É possível perceber que ocorre uma
confusão entre o sujeito consumidor e o produtor. Dessa forma, apesar de não conter
normas rígidas é capaz de se sistematizar para que ocorra a comunicação, e a inserção
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do meio como canal de expressão social. Como denomina Arlindo Machado (2002),
trata-se de um sistema caótico, com coerência em cada obra, mas sem valor normativo.
Longe de se deixar escravizar por uma norma, por um modo padronizado de se comunicar, por uma “linguagem” restritiva do termo, cada obra, na verdade, reinventa a maneira de se apropriar de uma tecnologia enunciadora como o vídeo. Nesse sentido, as “possibilidades” dessa tecnologia estão em permanente mutação e crescem na mesma proporção de seu repertório de obras. (MACHADO, 2003, p.200.)
No universo videográfico, deixa de se definir tão claramente o vínculo entre o
autor e a obra. Assim como no videoclipe, as demais áreas artísticas são um espaço
aberto para intervenções, potencializando ao máximo a definição formalizada por
Umberto Eco em sua “Obra Aberta”. Não só o espaço para diferentes interpretações é
mais amplo na vídeocidade, como também as próprias obras se apresentam com uma
carga semiótica mais densa e repleta de raízes em diversos pontos diferentes - como o
rizoma de Guattari e Deleuze na obra “Mil Platôs”; elas se configuram como
desterritorializadas, por não se referirem mais a uma cultura ou lugar específicos, mas
ao mesmo tempo, caracterizam uma identidade para vídeocidade, que também não tem
mais uma vinculação específica com o território onde está inserida.
O neoflâneur se perde em meio à saturação de imagens, dentro desse tempo tão
acelerado. O passante sente a necessidade de reflexão, mas a cidade não lhe oferece
brechas para pensar as imagens que ela lhe oferece. É necessário, então, que ele
desloque o seu olhar para que haja a contemplação. É preciso dilatar e contrair o tempo,
se ater a imagens que correm diante dos seus olhos. Correr e contemplar. Deixar passar
e pausar.
Belo Horizonte e o vestígio como imagem: Holmes e Watson
Em Você conhece meu método - texto reproduzido em O signo de três de
Umberto Eco e Thomas A. Sebeok - Marcelo Truzzi transcreve um trecho de um
diálogo protagonizado por Sherlock Holmes e seu amigo e colega, o Dr. John H.
Watson:
“Você parece ter visto nela uma série de coisas que permaneceram invisíveis para mim”, foi meu comentário. “Não invisíveis, mas despercebidas, Watson. Você não sabia para onde olhar e por isso perdeu tudo que era importante. Eu nunca consigo fazer você perceber a importância das mangas das roupas, o caráter sugestivo das unhas dos polegares ou as grandes pistas que estão atadas aos cadarços de uma bota. Agora, o que você conseguiu perceber daquela mulher? Descreva.”
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“Bem, ela tinha um chapéu de palha de aba larga, de um azul-acinzentado, com uma pluma de cor vermelho-tijolo. Sua jaqueta era preta, bordada com contas negras e com uma franja de delicados ornamentos negros. Seu vestido era marrom, mais escuro do que cor de café, com detalhes em pelúcia púrpura na gola e nas mangas. Suas luvas eram acinzentadas e estavam gastas na ponta do dedo indicador direito. Não observei suas botas. Ela usava um pequeno pingente de ouro redondo nas orelhas e um certo ar de estar razoavelmente bem para ir levando uma vida vulgar, confortável, despreocupada.” Sherlock Holmes estalou as mãos em um aplauso suave e riu furtivamente. “Palavra de honra, Watson, você está se saindo muito bem. Fez um ótimo trabalho de fato. É bem verdade que deixou escapar todas as coisas importantes, mas você acertou no método e, ademais, tem um olho clínico para as cores. Nunca confie nas impressões gerais, mas concentre-se nos pormenores, meu caro. Eu sempre lanço o olhar, primeiramente, nas mangas de uma mulher. Em um homem, talvez seja melhor considerar primeiro a parte dos joelhos das calças. Como você observou, a mulher tinha pelúcia em suas mangas, o que é um material muito útil para mostrar pistas. A linha dupla um pouco acima do punho no exato lugar que a datilógrafa pressiona contra a mesa, estava maravilhosamente definida. Uma máquina de costura, de tipo manual, deixa marca semelhante, mas apenas no braço esquerdo, e na parte que é mais distante do polegar, ao contrário desta marca que mostra o vinco em quase toda a extensão. Então, dei uma olhada no seu rosto e, observando a mancha deixada por um pince-nez de ambos os lados do nariz, aventurei um comentário sobre vista curta e datilografia, o que a deixou surpresa.” “Isso também me surpreende!” “Mas, certamente, era óbvio. Naquele momento, eu estava interessado em, observar que, embora as botas que ela estava usando não fossem muito diferentes, uma da outra, não pertenciam ao mesmo par: uma possuía uma biqueira levemente decorada, e a outra, lisa. Uma trazia atados apenas dois botões, os inferiores, de um total de cinco; a outra, o primeiro, o terceiro e o quinto botões. Ora, quando você vê uma jovem senhora, em tudo vestida com esmero, mas que saiu de casa com botas desemparelhadas, meio desabotoadas, não é grande dedução dizer que ela saiu às pressas.” “E, que mais?”, perguntei... “Notei, de passagem, que ela escreveu um bilhete antes de sair, mas só após estar totalmente vestida. Você observou bem que sua luva direita estava furada no dedo indicador mas, aparentemente, não percebeu que tanto a luva quanto o dedo estavam manchados de tinta violeta. Ela estava escrevendo com pressa e enfiou a caneta muito fundo no tinteiro. Isso deve ter sido esta manhã ou a mancha no dedo não estaria tão evidente. Tudo isto é divertido, mas extremamente elementar...” (TRUZZI, In: ECO; SEBEOK, 1983, p. 26).
O longo trecho acima exibe, antes mesmo de uma habilidade investigativa
notória por parte do detetive, uma diferença sensível no olhar de Sherlock Holmes em
relação ao olhar de seu companheiro, Watson. Ambos os personagens, criados pelo
médico e escritor britânico Sir Arthur Conan Doyle, ao final do século XIX, servirão
neste momento, ainda que curiosamente, para pensar o olhar do homem na
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contemporaneidade do século XXI ou, além disso, reivindicar um olhar a este homem
contemporâneo.
Cinema, vídeo e Belo Horizonte
Em páginas anteriores, se propuseram estabelecer duas idéias polarizadas de
cidades. Determinadas pelos modos de ver que tais cidades negociam junto a seus
respectivos moradores, ou pelo modo como estas cidades se configuram como imagem,
som e movimento; a cidade pensada por meio de uma reflexão propriamente
audiovisual.
Cidade-cinema. Vídeocidade. Duas relações extremas entre a cidade – com seus
espaços, seus traçados, suas pessoas e seus objetos - e respectivos paralelos
representados por um suporte audiovisual – com suas especificidades técnicas e de
linguagem. Extremas por tratarem de teóricas cidades ideais quanto às suas
características frente a este cruzamento com os devidos suportes citados e,
necessariamente, propostos. Obviamente, ambas as definições, seja a cidade-cinema,
moderna; seja a Vídeocidade, hipermoderna; se apegam a uma observação
compartimentada, centrada naquilo que pareça mais singular ou único a cada um destes
suportes, além de invariavelmente necessária a uma possível teorização daquilo que se é
concebido. A necessidade de polarizar tal discussão por meio destes dois extremos -
vídeo e cinema - vem em função de permitir pensar, ainda e fundamentalmente, o que
está no “entre”.
Belo Horizonte, como cidade objeto deste estudo, é uma escolha fundamentada
além da simples conveniência de distância ou custo. É sabido que há certa peculiaridade
na cidade, é verdade que com caráter de senso comum, que a coloca como uma cidade
grande com aspectos interioranos, por exemplo. Uma cidade que estaria deslocada e
navegaria entre perfis aparentemente opostos, ambíguos. Obviamente, aqui se pretende
transpor o simples ideal ordinário sobre tal hibridismo presente na capital mineira.
Pretende-se aqui pensar a possível complexidade necessária ao olhar em uma cidade, a
primeira vista, bem distante dos pólos definidos e comentados anteriormente – isto, é
certo, sob a mesma perspectiva audiovisual aplicada em outros momentos. O que a
cidade de Belo Horizonte apresenta nos dias de hoje, ou melhor, como se vê e como ver
pela Belo Horizonte contemporânea?
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O olhar do detetive
“O próprio Freud nos responde: a proposição de um método interpretativo, baseado na apreensão de detalhes marginais e irrelevantes enquanto chaves reveladoras. Segundo esse método, minúcias em geral consideradas triviais e sem importância, aquém da atenção, fornecem a chave para as maiores conquistas do gênio humano.” (GINZBURG, In: ECO; SEBEOK, 1983, p. 96).
Ginzburg expõe, em Chaves do mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes,
uma tripla relação entre os nomes já citados no título de seu texto. Haveria em cada um
deles a prática de um método comum, ainda que destinado às suas diferentes ambições e
atividades. Este método, como clareia a citação anterior, estaria intrinsecamente ligado a
uma capacidade de percepção, de interpretação e de apreensão aguçadas, direcionadas a
detalhes em geral despercebidos, ignorados ou marginalizados. Essencialmente, um
método de olhar diferenciado. Ambos partem do pressuposto de um raciocínio em
função do encontro de uma verdade. De toda forma, esta discussão se apegará às
especificidades do procedimento compartilhado pelos três personagens anteriormente
citados, em especial Sherlock Holmes.
Giovanni Morelli, italiano e estudioso de arte, tem seu nome atribuído por
Ginzburg ao desenvolvimento de tal método, por volta do final do século XIX.
Propunha o método Morelli verificar a autenticidade de uma obra de arte, mais
especificamente de uma pintura, não naquilo que pareça mais importante ou que esteja
em nítido destaque, mas em pormenores que anteriormente pareceriam não notados,
como o traço das orelhas ou dos dedos. Aí estaria o gesto do artista:
“Para que isso possa ser feito, continua Morelli, não deveríamos concentrar a atenção nas características mais óbvias da pintura, pois estas poderiam ser facilmente imitadas – por exemplo, tomar-se as figuras centrais de Perugino, com os olhos caracteristicamente voltados para os céus, ou, então, os sorrisos das mulheres de Leonardo. Ao invés disso, deveríamos nos concentrar nos detalhes menores, em especial aqueles que apresentam menos significância no estilo típico da própria escola do pintor: lóbulos de orelha, unhas dos dedos, formato das mãos e dos pés.” (GINZBURG, In: ECO; SEBEOK, 1983, p. 90).
Sigmund Freud, por sua vez, comenta rapidamente em artigo próprio a
proximidade entre o método Morelli e as técnicas da psicanálise, traçando um paralelo
relativo à busca destes pontos menosprezados:
“A meu ver, esse seu método de averiguação encontra-se estreitamente relacionado à técnica da psicanálise. Também esta está acostumada a conjecturar coisas secretas ou encobertas a partir de traços menosprezados ou
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inadvertidos, do refugo, por assim dizer, de nossas observações.” (FREUD, n.d., p. 222).
No entanto, aqui se acolherá em maior parte o terceiro desta analogia. Sherlock
Holmes, como no trecho transcrito por Truzzi há algumas páginas, carrega consigo
fluência em lidar com as pequenas pistas como método para solucionar cada um de seus
casos. Ginzburg ilustra por diversas vezes os procedimentos escolhidos por Holmes em
função de seus mistérios, e traça um paralelo claro entre o detetive de Baker Street e o
italiano Morelli:
“O especialista em arte e o detetive podem muito bem merecer uma comparação, cada qual fazendo descobertas a partir de pistas, despercebidas por outros: o autor, casos relacionados a crime; o outro, pinturas. Os exemplos de habilidade de Sherlock Holmes de interpretar pegadas, cinzas de cigarros e outros por menores são incontáveis e muito bem conhecidos”. (GINZBURG, In: ECO; SEBEOK, 1983, p. 92).
Percebe-se; Morelli faz uso de caracteres distintivos e minuciosos nas pinturas
para responder qual é seu autor. Freud, por meio dos pequenos gestos e comportamentos
de seus pacientes, determina quais seriam os prováveis diagnósticos. Holmes, com seu
olhar particularizado, vê nas pequenas pistas e nos mínimos detalhes a solução para
encontrar o autor de um crime. Desta forma, o que se estabelece é que o evento pontual,
específico, pequeno e despercebido, carrega em seu íntimo toda a resposta para um
processo – basta vê-lo.
Aqui se pretende fazer uma apropriação do método compartilhado por Morelli,
Freud e, principalmente, por Holmes, como possibilidade na elaboração de uma
discussão relativa à Belo Horizonte e à sua complexidade audiovisual. Neste sentido,
seriam os pequenos eventos, o acontecimento corriqueiro ou a paisagem ignorada desta
cidade, capazes de trazer, como os pormenores de Holmes, uma revelação daquilo que
ela é ou exibe em sua plenitude. Cada um destes vestígios, partículas perdidas pelas
diversas ruas de Belo Horizonte, responderiam às formas de ver que a cidade define e ao
olhar que lhe cabe neste momento, como outrora se determinaram modos de ver nas
propostas compartimentadas e polarizadas de cidade-cinema e Vídeocidade. Ainda, não
basta apenas estabelecer os pormenores como possibilidade de encontro de tal contexto
belo-horizontino. Se aqui se propõe uma investigação a fundo de um possível caráter
complexo e de um posicionamento híbrido ou ambíguo da cidade de Belo Horizonte,
deve-se pensar de que forma encontrar este próprio deslocamento – como ele se
apresenta nestes vestígios capazes de revelar a cidade.
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Recorre-se a Sherlock Holmes.
Buscando novamente o diálogo transcrito por Truzzi entre Holmes e seu
companheiro Watson, tem-se uma conversa relativa à percepção de cada um deles sobre
a mulher com a qual se encontraram. Holmes, ao questionar Watson sobre o que ele
haveria percebido no encontro, tem como resposta uma descrição esclarecidamente
detalhada da mulher e de suas roupas, atenta às cores; de algumas de suas jóias e até
mesmo de seu estado de espírito aparente, por meio de uma análise por Watson de sua
expressão. Ora, aparentemente, Watson tem uma percepção respeitável de pormenores e
pequenos detalhes; descreve plumas, bordados e franjas. Ainda, Holmes expõe o que
falta no discurso de seu amigo Watson, ao tratar de demonstrar sua própria descrição do
que percebeu. Diz o detetive, entre outras coisas, ter se atentado às pequenas dobras e
amassados na manga direita da mulher, ao discreto borrão próximo ao nariz, ao número
não coincidente de botões em cada uma de suas botas, à luva e o dedo manchados de
tinta. Holmes é minucioso, claro, mas vai além. Diferentemente de Watson, percebe os
pequenos detalhes naquilo que lhe sugere alguma tensão; que se mostra deslocado, fora
de ordem. As dobras e amassados na manga, os borrões, a luva com a pequena mancha
de tinta, tudo isso indica uma espécie de desarmonia, um jogo que ali ocorreu e que traz
a ele uma possível resposta ao mistério.
Em paralelo, ao pensar na cidade, devem os vestígios – tais eventos
despercebidos, as paisagens ignoradas, o acontecimento corriqueiro – trazer este aspecto
tenso relacionado por Holmes. Se aqui se concebe uma reflexão de Belo Horizonte
como uma cidade peculiarmente complexa, que está no “entre” de imagens
cinematográficas e videográficas - como se propõe nas discussões anteriores - há de se
encontrar este “entre” nas tensões daquilo que se definiu como vestigial, ou indicial, em
seu cenário. Deve este vestígio configurar-se não só como método, por meio do desfiar
que dele se partirá, mas como imagem, capaz de conter em si toda uma perspectiva
ímpar à qual a cidade submete seus habitantes e respectivos olhares, desde que haja este
olhar pormenorizado. É aí, neste pequeno e pontual evento, nestas cenas vestigiais belo-
horizontinas, que se encontrarão as tensões entre aspectos relacionados ao vídeo (e a
uma vídeocidade) e ao cinema (e a uma cidade-cinema). Repete-se, Holmes, com seu
olhar particularizado, vê nas pequenas pistas e nos mínimos detalhes as tensões e os
deslocamentos que lhe permitem ir além da simples percepção pormenorizada, e
formular hipóteses para encontrar a solução de um crime. Ainda, é parte do próprio
olhar de Holmes esta percepção apegada ao híbrido e ao vestigial. A complexidade dos
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fenômenos se estabelece ao olhar do detetive em sua capacidade de perceber nas pistas,
ou nos vestígios, as múltiplas relações, os fios e suas camadas - temporais, espaciais,
situacionais ou afetivas – que trazem à própria observação esta dinâmica híbrida, jamais
lisa ou homogênea em seu ser. Se parece homogêneo apenas ao olhar por demais
pragmático para se ater a tal complexidade. Belo Horizonte, se percebida por seus
pequenos e aparentemente corriqueiros eventos e, tendo estes vestígios, como imagem,
suas tensões cinema-vídeo expostas, revela-se como um todo em sua peculiaridade de
som, imagem e movimento. Uma cidade pós-moderna – e aqui se aplica o termo - que
não se posiciona em nenhum dos pólos relacionados como cidade-cinema, cidade
moderna ou vídeocidade, cidade hipermoderna, mas antes, navega por entre eles e espia
com cada uma de suas possibilidades, somando-os ou, ainda mais apropriado,
tencionando-as.
Cinema-vídeo-cidade
Pensar em trânsito, o de automóveis, carrega uma óbvia e imediata impressão de
velocidade, de deslocamento. A rapidez do automóvel lhe traz um aspecto videográfico,
é a pura idéia do fluxo, do atravessar, do não permanecer ou não durar. Se há no carro
um propósito fundamental, este é não ficar parado. A avenida Prudente de Moraes, ao
sul de Belo Horizonte, é apenas mais uma das muitas presentes na cidade. E, como
todas as outras, convive com o fluxo quase ininterrupto de automóveis por suas duas
pistas para ir, e duas pistas para voltar, todas ligeiramente estreitas. Aos olhos do
pedestre, paralelamente postado em relação à avenida, trata-se de quatro camadas,
frequentemente cortadas pelo zumbido característico da ultrapassagem e pelo borrão
quase indistinguível - por vezes mais curto, por vezes mais longo, dependendo da
velocidade ao carro imposta. É parte da história desta avenida - e isso é declaradamente
presenciado e conhecido pelos freqüentadores e moradores da região - a passagem em
romaria pelas pistas da avenida de um número considerável de pequenos burros, jegues
ou mulas.
Há neste momento um fenômeno curioso e interessante, que aqui pode clarear o
que esta discussão pretende. A invasão dos animais às pistas da avenida interrompe ou
ao menos desordena o fluxo ali presente de automóveis. Propõe-se pensar este evento
pela perspectiva do olhar audiovisual. Há um choque de tempos diferidos, de dualidades
extremas e estranhas umas às outras. Aos olhos do mesmo pedestre, ainda postado
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paralelamente à avenida, aquilo que a cidade lhe exibe, lhe enquadra, transforma-se de
súbito. O que antes era puro traço, que invadia e sumia em seguida, sofre da
interferência de uma outra cadência, de um outro ritmo, e agora negocia naquele novo
espaço configurado diante dos olhos do observador externo. Brigam os carros e os
burros por um lugar na pista. Em momento algum, porém, algum deles o conquista em
definitivo. O automóvel, em todo seu apelo videográfico, vê-se trespassado por uma
velocidade alheia, própria dos animais, e próxima de uma temporalidade
cinematográfica. Ainda, não se desfazem suas particularidades. A lentidão provocada
pela invasão silenciosa dos burros e das mulas é inundada pelas buzinas de automóveis
que antes se limitavam, como som, ao zumbido da velocidade. E assim se prolonga uma
constante negociação entre carros e burros, ou entre uma vídeocidade e uma cidade-
cinema. Há neste pequeno e de certa forma singelo evento uma complexidade
audiovisual, que não se interrompe nela, mas diz da própria complexidade existente nos
movimentos desta cidade, seja no convívio do velho e do novo, na negociação do
orgânico com o mecânico, na relação do veloz com o vagaroso.
A tentativa da experimentação Ao passante é, através de um olhar
pormenorizado, exaltar ou tencionar tais negociações. Seja em uma via engarrafada ou
em uma travessia aparentemente corriqueira, buscou-se um modo de ver que escapasse
à percepção homogênea, mas que se dedicasse à dinâmica híbrida que pontua cada um
dos movimentos de uma cidade como Belo Horizonte.
Em meio a um engarrafamento ao final do expediente de trabalho, comum à
rotina dos habitantes de qualquer grande cidade, se dispõe a câmera lateralmente.
Contrariando o olhar ansioso por cada centímetro de avanço pelas avenidas, o que se
buscou está no enquadramento perpendicular - um choque ao fluxo de carros, pessoas,
ônibus e motocicletas. Há neste evento uma temporalidade quase imposta pela cidade.
Não se avança enquanto não abrem os sinais ou avançam os carros à sua frente, como
não se pode parar em meio à obrigatoriedade de avanço advinda da pressão de quem
está atrás. A câmera, lateralmente posicionada em relação a todo este processo,
acompanha a dinâmica própria de espaço e tempo que a envolve. Cada instante de
parada revela um pequeno acontecimento, uma curta cena que, ainda que envolta por
todo o movimento exterior, carrega uma pílula de contemplação, uma dose
cinematográfica. Cada um destes curtos instantes, mesmo dotados desta possibilidade de
durar, está sempre à mercê do eminente atravessar de um automóvel, ou da requisição
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de se avançar imposta pelo ambiente. O que se revela no engarrafamento é a negociação
constante entre movimento e parada, indissociáveis. Durar e avançar.
Assim se dá cada um dos eventos retratados na experimentação audiovisual.
Engarrafamentos e travessias. É este jogo, entre automóveis e indivíduos - pela
ocupação do espaço e pelo avançar – o próprio jogo do audiovisual contemporâneo, pela
duração e pelo corte.
Imagem vestígio: conclusões
Olhar a metrópole que se converge através da lente. Recortar um quadro dentre
infinitos outros que se estendem diante dos nossos olhos, tão acostumados a uma
velocidade instaurada pelo senso comum. Enquadrar, na saturação imagética da cidade,
o detalhe que passa, sem registro. Perceber o vestígio, a sobra visual que se espreme
entre formas tão diferentes de conceber o tempo.
A cidade contemporânea tenta demarcar um tempo próprio, acelerado, mas
confronta com imprevistos e diferentes referenciais que se colidem. Um engarrafamento
em uma via de tráfego intenso. Uma travessia dificultada pelo trânsito veloz e
ininterrupto. A experimentação Ao passante busca um resgate da experiência de
contemplação dentro da cidade que flui, afastando o caráter estritamente informativo da
imagem. Neste universo híbrido que, aparentemente tende a uma aceleração, pretendeu-
se resgatar a experiência do nostálgico vagante que contempla a profundidade de campo
e, ao mesmo tempo, possui o controle remoto da realidade urbana. Um cenário que tenta
impor o seu próprio ritmo, mas que se liquefaz diante da câmera, que desloca o olhar do
cidadão. Que dilata ou contrai o tempo, conforme o que se quer fazer ver.
A percepção treinada do homem contemporâneo, atada àquilo que lhe tenha
valor aparente ou lhe traga informação, afasta-o daquilo que aqui se chamou de vestígio.
À primeira vista, o vestígio não apresenta nada, não vale, não informa. Esses restos,
porém, escapam à percepção treinada e excludente e, justamente por dela escaparem,
permitem que se façam recortes mais amplos, que aos olhos do habitante desta cidade se
revelem suas tensões mais peculiares. O olhar da câmera, ou do espectador conduzido
pela câmera, pode revelar esses vestígios, como sinais de um movimento e de uma
dinâmica complexa e mais profunda. É este olhar indiciário - apegado às nuances dos
pormenores e possível em Belo Horizonte – o próprio olhar do audiovisual
contemporâneo que questiona e afirma-se como imagem, se traduz em ser imagem.
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Uma perspectiva necessária para transpor a simples representação de objetos, fatos ou
temas que acaba velando a complexidade de uma dinâmica muito mais heterogênea.
Ainda que existam cidades mais próximas de um caráter videográfico e outras de
um caráter cinematográfico, ou cidades próximas do ideal de cidade-cinema e próximas
do que se estabeleceu como vídeocidade; Belo Horizonte exalta e requer um olhar
complexo. Há uma chance em escapar de uma percepção lisa do fenômeno híbrido, do
olhar pragmático e raso, para a possibilidade de experimentar as pequenas tensões
possíveis em seus vestígios, a negociação dos diversos suportes, das diversas
linguagens, refletidas em um jogo constante da cidade com a experiência audiovisual de
seu observador. Neste sentido, a importância da cidade-cinema e da vídeocidade foi
justamente demonstrar que o híbrido não é de forma alguma homogêneo. Ele é, de fato,
a relação; a complexa interação que não se desfaz das diferenças, mas na realidade lhes
dá novo significado, seja no diálogo, seja na tensão.
Os espectadores destas cidades-modelo, o flâneur da modernidade e o homem
cercado pela vídeocidade, não deixam de existir. Apenas não existem separados, mas
sim numa negociação ininterrupta de um para o outro, e de seus modos de ver. A
duração e a velocidade, o ponto de fuga e o deslocamento, a atenção e a difusão. Tudo
se altera e se atravessa no movimento próprio que aqui se traduz pelo audiovisual
contemporâneo. Existe em Belo Horizonte uma cidade-cinema e uma vídeocidade,
nunca em sua plenitude, e nunca livre uma da outra, e aí está a complexidade de um
processo próprio não só da cidade, do observador, do olhar ou do audiovisual, mas do
todo contemporâneo.
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