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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA
ARIANNE PEREIRA ALVES
IMAGEM E MÚSICA: EDUCAÇÃO MUSICAL EM ATENAS E SUAS SIGNIFICÂNCIAS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA.
São Luís
2013
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ARIANNE PEREIRA ALVES
IMAGEM E MÚSICA: EDUCAÇÃO MUSICAL EM ATENAS E SUAS SIGNIFICÂNCIAS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA.
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, para obtenção de Grau em História Licenciatura.
Orientadora: Profª. Drª. Ana Livia Bomfim Vieira
São Luis
2013
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ARIANNE PEREIRA ALVES
IMAGEM E MÚSICA: EDUCAÇÃO MUSICAL EM ATENAS E SUAS SIGNIFICÂNCIAS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA.
Aprovado em: _____/______/______
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profª. Drª. Ana Livia Bomfim Vieira (orientadora)
Universidade Estadual do Maranhão
___________________________________________________
1ºExaminador (a)
Universidade Estadual do Maranhão
___________________________________________________
2º Examinador (a)
Universidade Estadual do Maranhão
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus pela oportunidade de realizar um dos meus
grandes sonhos e primeiro passo na caminhada do conhecimento com esta graduação.
Aos meus familiares, principalmente a minha mãe por me trazer a este mundo e
me apoiar em tudo até seu último fôlego e aos meus amados irmãos Adriano e Pablo por
sempre estarem ao meu lado mesmo ao tomar as mais impensadas decisões.
À minha companheira Rafaella que mesmo com as dificuldades no percalço e a
exaustão dos rotineiros dias de trabalho sempre me incentiva a buscar meus sonhos por
mais distantes que eles aparentam estar.
A todos que de alguma maneira fizeram parte desta “História” como todos os
professores do Curso, diretores e secretários sempre tão dispostos a dar a mão a seus
alunos e mostrar o caminho a seguir.
Em especial, minha orientadora Ana Livia pela exemplar e inspiradora trajetória
acadêmica, pelo incansável desejo de me ver progredir e pelos conselhos, paciência e
convívio.
Aos eternos amigos da turma 2008.2, principalmente minhas amigas Emilly,
Priscila, Lycia, Camila, presentes em todo o percurso das noites mal dormidas,
inúmeras resenhas, artigos infindáveis, livros emprestados e xerox tiradas.
Aos amigos pertencentes a outros períodos que também sempre me agraciavam
com palavras de incentivo e carinho.
Enfim, agradeço a todos os contribuintes, mesmo na forma mais singela, da
realização deste sonho.
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RESUMO
A educação hoje tem papel fundamental na formação dos indivíduos que compunham quaisquer sociedades e no mundo antigo não era diferente, porém a importância dada aos elementos formadores de ensino era supervalorizada em comparação ao que temos hoje. Atenas é uma importante cidade grega que segue esse elevado padrão educacional e é pensando na música como elemento educador-moralizante dos cidadãos na sociedade grega, mas precisamente ateniense, que montamos este estudo com base nos trabalhos atuais sobre o assunto e também explorando outra linguística: a imagética da época. Para construir esta interpretação partimos de três pontos principais: a música enquanto moralizador; o profissional apto a desenvolver o conhecimento musical e as relações estabelecidas nos ambientes de ensino.
Palavras-chave: Educação. Atenas. Música. Paideia. Cidadão
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ABSTRACT
Education nowadays plays a key role in the formation of individuals composing any societies, and the ancient world it was not different, but the importance given to the educators as teaching elements was overvalued compared to what we have today. Athens is an important Greek city following this high educational standard and it is thinking of music as an educator-moralizing tool of citizen in Greek society, precisely the Athenian citizen that we set up this study based on the current work on the subject and also exploring other language: the imagery of that epoch. To build up this interpretation we set three main points: the music while moralizing, the professional able to develop musical knowledge and established relationships in learning environments.
Keywords: Education. Athens. Music. Paideia. Citizen
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“Depois do silêncio, o que mais se
aproxima de expressar o inexprimível é a
música.”
Aldous Huxley
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10
2. CAPÍTULO I - PAIDEIA E MOUSIKÊ NA FORMAÇÃO DO CARÁTER CÍVICO DO ATENIENSE ....................................................................... 13
3. CAPÍTULO II - OS KITHARISTÉS E SUAS REPRESENTAÇÕES: COMO SE VÊ E COMO ERA VISTO ..................................................... 22
4. CAPÍTULO III - A EVIDÊNCIA DOS ESPAÇOS NA ÉIKON: DAS SALAS DAS SALAS DE AULA ÀS RUAS .............................................. 34
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 47
ANEXOS.................................................................................................... 50
REFERÊNCIAS .......................................................................................... 57
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1. INTRODUÇÃO
Após mais de dois mil anos a civilização grega e sua cultura nos é intrigante,
misteriosa, confusa e estas são apenas algumas palavras que mostram a complexidade
de se entender este povo e que costumeiramente aparecem em nossa mente ao tentarmos
entendê-lo usando do nosso olhar moderno sobre valores tidos como tão exógenos,
principalmente com as intensas transmutações sofridas pelos nossos próprios valores
morais ao longo desses dois mil anos já citados.
Mesmo passado tanto tempo, é possível notar as significâncias dadas à educação em
ambos os tempos. Para os gregos há algumas particularidades encontradas no campo
educacional bastante próprias incluídas na paideia grega1 tendo esta a responsável
missão de formar seus cidadãos e a música se encontra atrelada a este conceito, uma vez
que esta missão educativa converge com a missão identitária.
A Paidéia grega, citada anteriormente, não pretende dar conta apenas da formação
intelectual de seus cidadãos, representação limitada que se teve da mesma durante muito
tempo, mas pretende também a instrução do que diz respeito ao caráter, a personalidade
e a honra desse indivíduo que aos poucos vai se construindo em cima dos valores de sua
sociedade, valores esses cuidadosamente enraizados em seu ser desde a infância.
Paideía - termo grego que pode significar “educação, cultura”, comumente traduzida
por educação e relacionada, intimamente, à identidade, conduta que todo cidadão
deveria respeitar e seguir para ser considerado honrado e virtuoso perante a
comunidade. Segundo Claude Mossé2, é um conceito muito mais amplo que
compreende todas as atividades educacionais e culturais e que se desenvolveram a partir
da segunda metade do século V.
Este conceito abrange todo o processo educacional ateniense, consistindo em
práticas intelectuais (como escrita e leitura), práticas físicas (esportes, caça), militares
(efebia), além dos valores éticos que eram necessários a convivência na pólis (MOSSÉ,
2004, p.107-108). Paideia, neste sentido, serve como um delimitador de fronteiras que
traria ao futuro cidadão os pré-requisitos necessários para a vida políade.
O mundo grego é uma inexplicável rede simbólica, dentro da compreensão de
cultura enquanto sistema de comunicação sendo a todo instante representada nos
1 Durante todo o estudo o conceito de Paideia será baseado na interpretação adotada pelo JAEGER em seu trabalho Paidéia: a formação do homem grego de 1994. 2 Mossé em O que é preciso para ser um cidadão? de 2000.
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métodos que o homem formador desse mundo se dispõe para viver, pois em todo o
percurso da vida de um grego ele deve buscar significados, onde todos os seus atos
estão conectados de alguma maneira a vontades superiores, possuindo reflexos nas
gerações que virão.
Se entendendo dessa forma e com essa visibilidade da sua própria existência é
que o homem grego se registra, sendo possível identificar nesses registros todos esses
sentimentos que envolvem o verdadeiro grego. Os gregos, assim como os povos que
vieram antes deles, deixaram sua marca de várias formas, e seu legado é inquestionável
nos âmbitos políticos, sociais e culturais, mas há muito ainda a se descobrir.
Dessa forma, as imagens nos revelam algo muito importante que avança a nossa
compreensão desse povo, pois nos mostra como eles se viam e como deveriam se ver,
questões por vezes distintas, sendo assim podemos entender esse campo imagético
como uma infinita gama de possibilidades e não como representações da realidade
concreta, e por isso ela não é apenas uma representação com traços emprestados da
linguagem e sim uma mescla do imaginado e concreto de quem a produz e de quem a
reconhece.
O objetivo fundamental da paideía era a formação do homem individual como kaloi
kagathoí3. A partir do século V, exige-se algo a mais da paideía: além de formar o
homem, ela deve ainda formar o cidadão. A antiga instrução, baseada na ginástica e na
gramática deixa de ser suficiente e percebe-se a valorização do ensino musical como
propulsor de valores cívicos. É então que o ideal educativo grego aparece como paideía
enquanto formação geral que tem por tarefa construir o homem como o todo, como
pólis (JAEGER, 1995, p.147).
Todos os conceitos, termos e valores levados em consideração nesse estudo foram
extraídos do grande conceito Paideia, formalmente estabelecido pelas leis escritas e
difundido pelo imaginário e que durante muito tempo regeu a vida de todo cidadão
grego, ou que pelo menos deveria ser assim.
A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no seu destino exterior como na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual; e, uma vez que o desenvolvimento social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história da educação está essencialmente condicionada pelos valores válidos para cada sociedade. (JAEGER, 1994, p. 5)
3 O modelo kaloi kagathoí seria o cidadão apto a realizar tarefas públicas, ou seja, bom nas Letras e na política e também um bom soldado (ginástica) com base na beleza e bondade por JAEGER, 1994.
12
O que tentamos contrapor aqui é que outras formas de expressão da cultura grega
como as artes, por exemplo, elucidam a vida dos indivíduos à época, nos fazendo pensar
até que ponto esta Paideia controla e limita a vida deste indivíduo, mas especificamente
o ateniense do período clássico.
Começamos então a perceber uma personagem bastante emblemática dentro deste
processo: o músico. Este era um sujeito que adentrava todos os contextos da vida social
em Atenas e facilmente circulava entre estes meios, uma vez que a música enquanto
pilar da dita paideia circundava as relações sociais fossem elas no âmbito político, no
ritualístico, no religioso, no sentimental.
Aos poucos se começou a perceber que o músico era sujeito ativo em todos estes
espaços e mesmo sendo visivelmente importante tinha, em sua grande maioria, sua
figura associada ao mundo sexual, da perversão, o que para os gregos era tido como
submundo.
Para tanto, o trabalho encontra-se dividido em três capítulos. No primeiro temos
um apanhado bibliográfico sobre a Paideia e como a música encontra-se inserida nesse
processo, tendo como base a obra principal do Werner Jaeger e também de outros
autores que desenvolveram seus estudos posteriormente a obra do mesmo.
No segundo capítulo apresentamos o grande responsável pela educação musical
e suas representações, ou seja, como foi construída a imagem pública do músico
enquanto profissional na Atenas Clássica.
E por fim, no terceiro e último capítulo traremos a discussão os ambientes
educacionais e como as relações eram estabelecidas a partir desses ambientes.
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2. CAPÍTULO I - PAIDEIA E MOUSIKÊ NA FORMAÇÃO DO CARÁTER
CÍVICO DO ATENIENSE.
A educação ateniense tornou-se um dos frutos da racionalização de sua
sociedade, isto porque a paideia passa a significar, a partir de meados do século V, a
formação completa do indivíduo buscando a integralidade de suas aptidões,
transformando a razão como ponto de partida ao conhecimento sem abandonar sua
carga simbólica proveniente do simples fato de nascer em Atenas.
Contudo, temos sua principal diferenciação da educação atual ao fato de não se
ter uma preocupação em formar profissionais ou preparar seus alunos ao mundo de
negócios, pois o intuito baseava-se na constituição cívica do caráter.
Essa preocupação de civilidade está atrelada ao modelo dualista de homem
formado pelo físico e o mental, tendo dessa conjuntura o resultado perfeito de formação
das virtudes exigidas em um “cidadão bom” apontado por Platão:
Nas minhas idas e vindas pela cidade, não faço outra coisa se não persuadir-vos, novos e velhos, a que vos preocupeis mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para a tornardes a melhor possível, dizendo-vos ‘A virtude (aretê) não vem da riqueza, mas sim a riqueza da virtude, bem como tudo que é bom para o homem, na vida particular ou pública. (PLATÃO, 320 a.C, apud Jaeger, 1994, p. 358).
A palavra aretê, com tradução aparente “virtude”, nos faz pensar que, para os
atenienses, o significado de tê-la, até então, representava possuir o primeiro ideal
pedagógico criado pelos gregos, como podemos observar através de Homero com a
caracterização da virtude nas representações de Aquiles e Ulisses4. Nessas
representações, teremos a confirmação da pedagogia baseado no exemplo, seja ele vivo
ou mítico, o que acaba virando a pedagogia do paradigma5.
Essas representações de virtude estariam ligadas ao ideal entre o físico e o
mental carregado de características como a bravura, eloquência, persuasão, beleza e
4 Aquiles e Ulisses, heróis da Ilíada e Odisseia respectivamente, são os exemplos de heroicidade e qualificação de atributos virtuosos durante todo o período arcaico. Basicamente teremos a difusão do desejo por esses atributos através da oralidade, já que grande parte da população não era letrada. (JAEGER, 1994, p. 23). 5 Esta sistematização pedagógica defendida por Platão e trazida por Jaeger faz parte do processo pedagógico de Atenas mesmo após a difusão da paideia, sendo assim podemos observar algumas continuidades através dos três períodos pedagógicos.
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coragem, destacando a força dos heróis, o que acaba sendo delimitado no vocábulo
heroicidade:
Homero é, entre todos os poetas gregos, considerado o maior e, a crer nos testemunhos, a opinião corrente ao tempo indica-o também, como o educador de toda Grécia. De fato a tradição homérica e o ideal educativo que nela se propõe, são transmitidos oralmente de geração em geração.[...]o espírito pan-helênico atingiu a unidade da consciência nacional. (JAEGER, 1994, p.77)
Seguindo a linha pedagógica, após o ideal do aretê, teremos o princípio da
kalokagathia6 no qual se buscam os atributos primordiais: a beleza e a bondade e é
segundo estes atributos que o ateniense passa a viver, aspirando excelência tanto no
plano físico quanto no plano moral.
Esse novo programa, aliado à sabedoria, propunha dar ao homem o completo
domínio de si desenvolvendo a temperança e livrando-se de sentimentos instintivos
como os vícios e as paixões, dando lugar ao planejamento de seus atos implicados na
racionalização. A ginástica viria a engradecer e aperfeiçoar o corpo, já a música teria o
papel de domar o espírito.
Sendo assim, teríamos de um lado a ginástica praticada nos ginásios e ensinada
pelo “pedotriba” ou “paidotriba”, estes eram os responsáveis pelo ensinamento dos
esportes e do heroísmo, bravura e atributos geralmente dados aos guerreiros. Já nas
aulas de música, tínhamos o citarista responsável pelos ensinamentos não só das
composições, harmonia e melodia como também inicialmente das Letras, uma vez que o
didáscalo7 – responsável pelo ensino da gramática e cálculos menores – é posterior.
Mesmo neste modelo de educação mais tradicionalista, podemos perceber o peso
aparente em relação à educação musical, pois é a partir desta que se pode moldar o
pensamento do indivíduo devido a seu início logo na infância:
elogios e encômios da valentia dos antigos, afim de que a criança se encha de emulação, os imite e se esforce por ser igual a eles. [...] Depois de saberem tocar, aprendem as obras dos grandes poetas líricos. Assim, obrigam os ritmos e as harmonias a penetrar na alma das crianças, de modo a civilizá-las, e, tornando-as mais sensíveis ao ritmo e a harmonia, adestram-nas na palavra e na ação. Toda a vida humana carece de ritmo e harmonia. (PLATÃO, 325 – 326 a.C, apud: PEREIRA, 1971, p, 397)
6 Essa dualidade existente no princípio do kalokagathia também se encontra no princípio da aretê e no princípio padeistico. (CERQUEIRA, 2010, p. 43). 7 Mesmo com o surgimento do profissional das Letras conhecido como didáscalo, a grande maioria dos professores de música deu continuidade à inserção dos alunos na alfabetização e poética. Durante muito tempo não foi possível fazer uma distinção concreta entre o aprendizado lírico feito por um professor de música e por um professor de Letras. (JAGER, 1994, p.133)
15
Faz-se importante destacar que essa educação, mesmo parecendo restrita ao
ambiente escolar era algo explícito nos demais cenários como nas reuniões políticas,
administrativas, religiosas, nos jogos e nas artes. O próprio teatro além do divertimento
tinha um caráter pedagógico, onde as representações dramáticas poderiam servir como
modelo a ser seguido ou a ser eliminado. (ANDRADE, 2002, p, 168)
Desta maneira, o conjunto do aparato educacional serviria para dois fins: formar
um homem capaz de dominar completamente seu espírito e possuir real domínio sobre
si e consequentemente criar um cidadão rigidamente fiel ao Estado, por isso o cidadão
só o é por servir ao Estado e habitar a polis, sem ela de nada adiantaria, pois somente ela
tem o caráter regulamentador da educação.
Como esse modelo pregava o ideal da cidadania8 e a submissão deste cidadão ao
Estado, começa-se a perceber uma emergente necessidade de formar legisladores, em
geral homens públicos que se mostrassem capazes de dominar a fala e a eloquência.
Fica evidente o quanto o homem é um ser político e para tanto precisa apresentar as
qualidades de bom líder, surgindo na educação novas exigências sociais.
Os homens do Estado, e os dirigentes da vida pública, necessitavam de novas
ferramentas para atingir o êxito político, por isso precisavam falar bem, saber construir
discursos persuasivos repletos de bons argumentos que justificassem suas posições
através da oratória e da retórica.
Já em meados do século V, e início do século IV, teremos como transformação
no campo educacional a dita Paideia acompanhando também as transformações
econômicas advindas com o apogeu do comércio. Nesse novo modelo vemos a
formação de uma cultura mais crítica e, principalmente, uma maior participação dos
indivíduos nos assuntos do Estado.
Sendo assim, a paideia viria dar conta da formação geral do homem de acordo
com a natureza humana e a partir da ideia. A pedagogia passa do autônomo ao
sistemático, onde a educação pública passa a ser retirada da família e do santuário e se
liga à palavra e à escrita9, almejando criar um cidadão com persuasão e capacidade de
liderança. Este deve ser cultivador dos aspectos naturais do próprio homem em cada 8 Nesse caso, cidadania era relativa aos deveres dos cidadãos: homens livres acima dos 18 anos, de pais e mães e ele próprio nascido em Atenas. A cidadania também não alcançava a mulheres e estrangeiros. Porém, mesmo com o ideal de formação do bom cidadão, acreditamos que a educação, principalmente a musical, conseguia se expandir mesmo entre os tidos como não-cidadãos, através do ensinamento de pai para filho (JAEGER, 1994, p 35). 9 É só com o advento do modelo ideal da paideia que as Letras passam a ser parâmetro educacional. Até então os únicos ensinamentos baseados na gramática eram as composições poéticas e melódicas do ensino musical. (CERQUEIRA, 2010, p. 44).
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indivíduo até o alcance da excelência, sendo alcançada apenas através do estudo e
empenho.
O termo paideia vai além da formação dos meninos, se alarga e culmina no
produto deste tipo de educação e o estudo de seus significados numa das mais
importantes cidades-estados da época está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento e
influência de Atenas do século V até as invasões romanas.
Dentro desse novo padrão, começa-se a criar as noções de homens públicos e o
período de formação vai desde a infância a juventude e a pedagogia musical se
intensifica pelo fato de somente ela ser capaz de trazer ao indivíduo as virtudes
políticas.
Tanto no caso de Atenas, quanto em Tebas10, podemos perceber que, mesmo em
meio às transformações ocorridas desde os tempos homéricos ao clássico, a utilização
da música ainda é considerada um aparato tradicional, pois esteve presente em todos os
três momentos da educação sistemática – aretê, princípio da kalokagathia e na paideia.
O empenho em ensinar-lhes a música era equivalente ou maior que o adestramento das
palavras. (CERQUEIRA, Ensaios sobre Plutarco: educação musical, identidade e
tradição cultural grega, 2010. p. 102).
Quanto aos generais e políticos dos séculos V e IV, tanto atenienses quanto
tebanos, podemos observar um sistema regular do ensino musical, devido à
consolidação do processo deste em Atenas, mas não necessariamente escolarizado, já
que essa aprendizagem, por vezes, não se realizava nas escolas.
Tratando enquanto atividade comum, o simples fato de tocar a lýra11 ou a aulós
12
não significava a presença daquele jovem na escola, pois os próprios pais poderiam
passar os ensinamentos musicais, contanto que estes tivessem recebido uma educação
formal.
O ensinamento passado de pai para filho fluía ainda mais carregado de
tradicionalidade e significância, pois nesta circunstância, a máxima do ensino musical,
sem dúvida, seria seguida: a preocupação quanto à natureza do aprendizado era voltada
10 Atenas e Tebas eram as principais cidades que se utilizavam do ensino musical na formação de legisladores. Sob esta ótica, a grande maioria de seus líderes recebeu a educação tida como formal devido o equilíbrio e controle emocional que a educação musical proporciona. (JAEGER, 1994, p. 266). 11 A lýra era o principal instrumento em Atenas e na grande maioria das cidades. Inventada por Hermes e entregue a Apolo em troca do seu gado, era constituída por cordas tangidas e fixadas em um casco de tartaruga (CERQUEIRA, 2010, p. 106) 12 A aulós era o principal instrumento de Tebas e na maioria de suas representações imagéticas é representada de forma dupla (diaulós). Tem aparência de uma flauta e a similaridade de seu som seria o mais próximo de um clarinete.
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apenas ao amadorismo13, descartando a profissionalização e com isso o objetivo de
ensino seria alcançado: a promoção das virtudes.
Como exemplo de homens públicos, formados por esta educação musical clássica,
podemos citar Péricles (499-429 a.C) e Nícias (470-413 a.C), ambos influenciados por
sua sólida formação musical, e também pela influência política de seus mestres de
música (kitharistés) nas reuniões administrativas do Estado, assim como nas cenas
sociais cotidianas ( CERQUEIRA, 2010, p. 104).
Através da educação da música, se constitui um modelo cultural com virtudes
políticas específicas, onde se permitem variáveis, porém é na frequentação do ensino
musical consolidado na juventude onde temos o caminho mais eficaz na busca desse
padrão.
Prova disto é o questionamento frequente da ausência da boa educação musical na
vida dos ditos homens públicos, mas o contrário não procede. Não temos críticas em
relação aos discursos, retórica e comportamento daqueles que receberam esse tipo de
educação, com isso podemos afirmar que o ensino musical passa a ser prerrogativa de
uma formação ideal, assim como a manutenção das virtudes morais e políticas durante a
vida. Em outras palavras, possuir uma boa educação musical passa a ser condição sine
qua non de um bom cidadão. (CERQUEIRA, 2010, p.110).
Toda esta estima dada a educação musical é facilmente explicada se consideramos
o valor agregado à própria música pelos antigos, sendo esta vinculada a todas as
manifestações culturais, religiosas, políticas e sociais e por, dentre as artes, ser
considerada a mais relevante.
Aos gregos, o valor dado à música era tão universal que, por vez, este é
comparado ao valor dado ao idioma, e não podemos esquecer que o idioma era um
importante elemento determinante na civilidade do indivíduo, uma vez que, todos
aqueles que não falavam grego eram tidos como bárbaros14.
13 Os alunos eram ensinados para formação de caráter e não para se transformarem em kitharistaí (professor de música). O amadorismo estava baseado na ideia de seguir a risca a notação padrão sem mostrar quaisquer aperfeiçoamentos melódicos ou notas esticadas tanto na lýra, quanto na cítara (JAEGER, 1994, p. 345) 14
A historiografia clássica é a grande responsável pela difusão desse conceito. Aqui não levamos em conta o conteúdo pejorativo do termo “bárbaro” amplamente difundido pelos primeiros estudos sobre a relação dos gregos com os outros do ocidente e a carga desse simbolismo presente até hoje em materiais mais superficiais como aqueles utilizados nas escolas. (VERNANT, 1992, p. 22).
18
Seu grau de importância chega a ser comparado aos graus de relevância da Ética e
Política15, responsáveis por ditar como o cidadão deveria seguir sua vida, porém, sem os
atributos alcançados através da música como a temperança, de nada adiantaria o
domínio dessas ciências.
Todo esse poder estava associado a sua eficácia em influenciar e modificar a
natureza moral do homem e, consequentemente, sua influência de transformação da
pólis, pois não há como transmutar os modos musicais sem ao mesmo tempo alterar as
leis fundamentais do Estado16.
A música consiste em um dos princípios de organização da pólis, pois ao
incentivar o indivíduo a criar as virtudes exigidas, ela colabora no funcionamento do
Estado e manutenção dos cidadãos de maneira fiel sob a tutela dos controles da vida
políade. É ela a responsável pela criação de uma conduta baseada na moralidade,
dignidade, simplicidade e equilíbrio, conceitos estes estritamente ligados à significância
de ordem.
Quanto aos princípios éticos da educação musical, inúmeros filósofos se
aventuraram nesta discussão de como deveria ser feita e de como o Estado deveria
intervir nessa formação, e entre todos eles Platão foi quem mais dedicou seu tempo à
arguição do assunto em República.
Para ele, o ensino musical era fundamental devido a explicação dada à música.
Ela seria a materialização expressa das movimentações da alma e por isso todo o poder
que ela possui sobre o caráter do indivíduo, portanto, nada mais justo que se utilizar
deste poderio musical sobre a mente humana para se moldar o imaginário acerca do
controle estatal.
Além da incumbência de instrução da moral, a música também traria um
progresso quanto ao conhecimento na formação de um conjunto harmônico, de forma
mais clara, é somente com o estudo musical que o indivíduo consegue equilibrar tudo o
que lhe é ensinado e a estrutura mental, por isso para alguns pesquisadores atuais, o
ensino musical seria uma representação do ensino tradicional 17ateniense.
15 A Ética e a Política se enquadravam nas ciências das palavras tão defendidas pelos gregos já a música estava mais envolta no mundo da tecnicidade, contudo a estima dada a ela faz com que ela entre em grau de comparação com valores tão únicos para os gregos e defendidos principalmente pelos grandes filósofos da época, em destaque, Aristóteles e Platão (JAEGER, 1994, p, 56). 16 Quantos às Leis fundamentais do Estado, pouco se restringem a comentar as práticas músicas, porém a música aparece como elemento legitimador, como podemos observar com mais atenção Nas Leis de Platão. 17 Como podemos perceber ao longo da arguição de como se monta um sistema pedagógico em Atenas, fica clara a participação da música em todas as etapas educacionais. Dessa forma, limitá-la apenas ao momento tradicional da educação com a figura de Homero seria um equívoco bastante grave se levarmos em consideração a evolução pedagógica que marca esta cidade. (PLATÃO, 2002, p. 67).
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Para os gregos, todas as manifestações culturais dignas do cidadão deveriam
respeitar as leis de concordância e proporção baseadas na ética e na estética e a música
apresentava ambos os princípios, se levarmos em conta a preocupação das expressões
rítmicas, harmônicas e melódicas enquanto elementos constitutivos da canção18.
Baseado na ideia de proporção pensava-se que a educação musical tinha em si as
ferramentas de estruturação do indivíduo e do Estado e sua prática representa condição
suficiente na determinação das normas de conduta moral, prova dessa harmonia é que,
para os gregos, a palavra nómos podia designar, ao mesmo tempo, melodia tradicional
ou leis morais.
Para tanto, pregava-se uma correlação natural entre sons musicais executados e
processos naturais de ordem humana, influenciando, ações, conduta, reações e
temperamentos do homem.
A força dinâmica da música encontrava-se nos nómos – unidades estruturais
melódicas – que em conjunto formavam as melodias mínimas tradicionais até as mais
extensas seguindo a teoria do ethos. Na doutrina musical, o ethos expressa a ordenação
dos elementos rítmicos, melódicos e poéticos.
Essa concepção do ethos, associado ao equilíbrio advindo da música, justifica o
porquê de ela ter o papel de destaque não só na educação formal, como também na
formação do cidadão pertencente à pólis.
Na sincronização desses elementos, temos a música influenciadora do caráter
humano, modificando categoricamente os estados de espírito 19do indivíduo, podendo
induzir uma ação, como ir de encontro ao inimigo; enfraquecer o equilíbrio mental
diante de uma guerra, ou até gerar um estado de inconsciência onde se ausenta o
domínio próprio individual.
Dessa maneira, enquanto influência musical no ânimo do homem termos: o
ethos praktikón, podendo induzir a ação; ethikón, com a manifestação da força; ethos
malakón, visando o enfraquecimento do espírito e o ethos enthousiastikón, onde se
poderia ausentar temporariamente as faculdades volitivas do indivíduo, gerando um
estado de inconsciência. Este último era adotado principalmente nas reuniões 18 Entendia-se por canção o conjunto entre a harmonia, melodia e ritmo. A harmonia enquanto elemento principal faria a perfeita junção da melodia ao ritmo; a melodia faria referente ao poético e o ritmo aos intervalos da notação. É somente o conjunto harmônico desses elementos que davam a música seu poder na mentalidade política de formação do cidadão (CERQUEIRA, 2010 p, 34). 19 Essa mudança no estado de espírito estava relacionada ao tipo musical: se a composição apresentasse intervalos mais curtos e poeticamente fosse encorajador, parece óbvio que a canção faz menção a efebia. Por outro lado, se os intervalos rítmicos fossem mais curtos e lirismo estivesse marcado por uma fluidez tranquilizante, ficava claro as intenções de apaziguamento do espírito. (PLATÃO, 2012, p, 59).
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dionisíacas na provocação dos delírios. Assim, Platão defendia o ensino cuidadoso da
música, pois esta poderia se mostrar fantástica e perniciosa (PLATÃO, 2002, p. 67-9).
Sob o ethos as qualidade místico-religiosas da música estariam sob controle e
seriam substituídas pela busca das qualidades morais, prova disto é a frequente
ressuscitação das obras homéricas e do seu discurso quanto à educação musical, visando
o reavivamento das tradições do passado e manutenção das tendências musicais.
Desde a Arcádia o Estado regulamentava a educação musical da infância à
juventude e principalmente em Atenas, os cidadãos deveriam aprender a manusear os
instrumentos assim como participar dos cantos corais. Essa atitude mostrava a
civilidade e o interesse em participar da vida pública.
Na apresentação dos corais eram narradas os feitos históricos dos antepassados,
a glória de sua cultura e louvores aos deuses, na tentativa de reafirmar o quão bom era o
modelo educacional a partir do envolvimento musical na formação da conduta moral.
Nesse sentido de glorificar a cultura e quanto ao efeito moralizante apenas a lýra
e a aulós teriam sido dotados por Apolo das qualidades éticas devido ao seu caráter
timbrístico bem específico, alcançando através da doutrina do ethos o poder existente no
nómos enquanto elemento mínimo da estrutura musical.
Desse modo, o tonos, ou projeção vocal; a afinação dos instrumentos
executantes e conteúdo poético-melódico deveriam se harmonizar entre si e se utilizar
do poder expressivo encontrado na música através do equilíbrio desses elementos.
Não podemos deixar de considerar também a relação da música com as
divindades, já que a própria palavra música vem de mousikê, a arte das Musas. Essa
relação com o divino faz com que a música de uma maneira geral esteja submetida à
padronização de notas e acordes, sendo a notação ocidental de hoje fruto desta primeira.
Essa padronização foi construída envolta de uma intensa rede simbólica que envolvia os
deuses e a perfeição do cosmos, ou seja, adequação aos constituintes íntimos do
universo.
Com isto, a música só alcançava seu intuito se, a sonoridade chegada aos
ouvidos fosse boa e se esta sonoridade fosse atingida com a execução exata dos acordes,
caso contrário, o indivíduo estaria reduzindo a música apenas ao físico e a diminuindo
21
numa ação mundana. É só no casamento entre boa sonoridade e seguimento da notação
que se poderia elevar-se a música a excelência20.
A violação de suas regras poderia desencadear um processo de desvalorização
dos cantos tradicionais e da sociedade como um todo, pois ao acrescentar ou subtrair
uma nota de um canto tradicional, a profanação do conteúdo divino da música estaria
feito.
Dada sua origem divina, a música acompanha o cidadão em todos os períodos de
sua vida, subsidiando outras formas de arte, seja na educação durante a infância e
juventude, seja no decorrer de sua vida madura em suas obrigações cívicas.
Após a relevância da música exposta em sua gigantesca teia de significações, é
totalmente compreensível o porquê de o ensino musical ser parte integral da percepção
de como o homem grego se via e como projetava esse modelo ideal de cidadão aos
outros povos, isso porque a compreensão sobre cultura e o papel a ser desempenhado
pelo indivíduo na construção da pólis era um conceito fundamental e de caráter público.
Os antigos, principalmente gregos, estabelecem as bases da estruturação musical
do Ocidente e os estudos desenvolvidos sobre o assunto buscam mais significâncias da
música na vida cotidiana desse povo. Fosse ela exposta em qualquer das tipologias
musicais com os líricos corais em casamentos através dos epitalâmios; em funerais com
as trenodias; ditirambos nas festividades em homenagem ao Dionísio ou nos epínicos
para os vencedores de jovens, todas essas expressões musicais faziam parte da estrutura
mental e moral durante muito tempo construída e difundida entre os gregos.
20 A excelência musical neste sentido não estaria relacionada ao virtuosismo, aos espetáculos e multiplicação de notas sobre o instrumento, mas seguimento rígido das regras e notação tradicional. (CERQUEIRA, 2010, p, 45).
22
3. CAPÍTULO II - OS KITHARISTÉS E SUAS REPRESENTAÇÕES:
COMO SE VIA E COMO ERA VISTO
As escolas de música na Grécia são anteriores ao período arcaico e, portanto
desde muito cedo se tem conhecimento sobre esse tipo de ensino em todo território, mas
houve lugares onde essa prática se destacou como no caso das cidades de Lesbos21,
Tebas e principalmente Atenas.
Claro que, em alguns contextos, o ensino da música não era realizado na escola,
principalmente quando se tratava de filhos de reis ou tiranos, ocorrendo, portanto
através da contratação de um professor, como foi o caso de Alexandre no século IV.
Tivemos alguns professores notáveis nestas cidades como Alceu e Safo, Mírtis e
Escorpelinos, assim como Píndaro e Corina. Estes foram kitharistés22 de grandes
homens dentro da Grécia e podemos aqui elencar algumas diferenças destes
profissionais, pois todos estes trabalhavam fora de Atenas e eram provenientes da elite
de suas respectivas cidades, sendo assim é notório que até meados do século VI não
havia preconceito relativo à profissionalização desse tipo de trabalho.
Já em Atenas o quadro era bem diferente, uma vez que estes profissionais não
vinham da camada mais rica, sendo em sua grande maioria estrangeiros e que viam em
Atenas melhores oportunidades de trabalho, tendo como primeira referência deste tipo
de profissional na época de Sólon.
Enquanto legislador Sólon defendia as práticas de ofícios assalariados que
amenizassem as dificuldades das camadas mais baixas da população, como atividades
manuais relacionadas ao artesanato assim como o ensino nos dons das Musas.
Mesmo não sendo fruto da elite local o kitharistés desenvolvia intensas relações
com os chefes políticos e isso é facilmente afirmado já que a grande maioria dos líderes
atenienses teve um professor de música em algum momento da juventude ou, por vezes,
da vida adulta.
Na paideia, ao contrário dos dois princípios educacionais anteriores, já teremos
uma complexa rede de ensino transmutada no decorrer do tempo, com o aumento das
autoridades educativas onde o jovem vê sua submissão até se tornar um cidadão: temos 21
Para alguns pesquisadores Lesbos é o local onde teria surgido o sistema pedagógico e as primeiras teorias sobre educação. O desenvolvimento do ensino musical é tão diversificado e difundido sendo comparado à própria Atenas. (JAEGER, 1994, p 18). 22 Kitharistés ou kitharistaí era o nome dado aos mestres da música e seus valores são ambíguos principalmente na cidade de Atenas, devido essa preocupação hegemônica da pólis. (CERQUEIRA, 2010, p. 34).
23
o paidagogos, geralmente de origem escrava seria como o primeiro tutor com dever de
levar a criança a escola, ajudar em suas lições e fazer com que a qualidade de ensino
exigida fosse mantida; grammatistés, era o professor responsável pelas Letras através
dos discursos poéticos, lirismo e conhecimentos sobre as legislações e estatutos do
Estado; paidotribés, era o professor responsável pela ginástica e seus ensinamentos iam
além do físico pois deveria inflamar nos jovens a luta e as virtudes de um bom
guerreiro; geômetra, como era chamado o professor de matemática e aritmética e
kosmetés responsável pelos ensinamentos de guerra e estratégias de guerrilha, além
claro do kitharistés, responsável pelo ensino musical e domínio do gênio por vezes
arredio dos jovens.
Voltando ao musical, a finalidade de seu ensino estava na formação espiritual
dos jovens sendo automaticamente afastada do domínio técnico da execução musical,
sendo assim esse objetivo da perfeição sonora estaria reservado apenas aos que
almejavam a profissionalização enquanto kitharistés, porém não era permitido aos
professores que incentivassem esse tipo de desejo em seus alunos.
A música deve dar ao jovem a sabedoria e desviá-lo do mal, portanto no
aprendizado de seu instrumento, ele se utiliza da lýra para reprodução dos poetas líricos
e suas belas obras, assimilando seu conteúdo educador e expondo sua alma na influência
do ritmo e harmonia para se tornarem aptos à fala e à ação.
Devido a todo esse poder dado a música e consequentemente ao profissional que
a executa, deveria se controlar o tempo voltado às aulas de música, não podendo durar
mais que três anos, mesmo que o jovem demonstrasse imenso talento, dedicação
vontade de seguir adiante com os estudos.
O kitharistés deve ser capaz de ensinar ao aluno a completa harmonização23
entre a fala e a música sem contrapor a canção da melodia, sendo somente assim capaz
de compreender o real significado da música na educação.
A sonorização da lýra deveria mostrar clareza em cada nota e proveito de cada
som exprimido dela, para que a voz pudesse fazer o acompanhamento perfeito do som.
Dessa forma, era motivo de banimento da escola quaisquer comportamentos que
23
A harmonização entre voz e sonoridade era algo muito importante, pois dessa forma temos a música em sua função integral: lírico repassando a tradicionalidade e melódico aperfeiçoando o espírito. Assim, instrumentos que não permitiam o uso da fala como a aulós era proibido em algumas cidades gregas como no caso de Creta. (CERQUEIRA, 2010, p. 76).
24
revelassem por parte do aluno ou professor práticas associadas ao virtuosismo24
musical, como multiplicação de notas e ritmos sobre os instrumentos ou diferença
abrupta entre os intervalos realizando sons lentos e rápidos quase simultâneos.
Essa prática deveria ser condenada pelo professor, pois seria destinado apenas ao
tékné, ou seja, ao professor, ligado ao mundo do trabalho, da lógica assalariada
circunscrito no mundo da necessidade. As pessoas que acabavam fazendo fortuna nesse
tipo de trabalho eram estrangeiras e fica claro que a dignidade na música é propiciada
pelo amadorismo e por isso não se deveria ensinar coisas difíceis.
Essa intensa preocupação em controlar o que era ensinado no campo musical nos
faz pensar acerca da satisfação por parte do professor em ensinar o amadorismo, mesmo
que ele tivesse uma habilidade musical ímpar ainda sim não poderia ensinar aos alunos
e isso pode gerar certa frustação, não só no sentido de ele mesmo não poder elevar a
qualidade de seus ensinos como também de não poder formar novos professores, por
vezes, dispensando alunos poucos talentosos.
A grande questão de não se permitir esse virtuosismo nas salas de aula nada
mais é que uma forma do próprio Estado de barrar a disseminação de profissionais da
música dentro de Atenas. A entrada dos profissionais da área de outras cidades sempre
satisfez a demanda da população ateniense, portanto deveria se formar legisladores, não
professores.
Para além da discussão acerca do poder da música no moldar da juventude,
também devemos levar em consideração que é graças ao kitharistés que os cidadãos
conseguem mostrar capacitação musical necessária nas mais diversas situações
cotidianas fossem elas na esfera particular – como nos banquetes – ou na esfera pública
– coros e rituais religiosos.
Durante muito tempo esse desempenho razoável nas situações corriqueiras nas
quais a música era indispensável foi completamente para regozijo dos filósofos que
viam a música apenas com esse caráter apaziguador, moralizante.
Mesmo assim, nos séculos posteriores ao IV a.C. começamos a perceber uma
certa desvalorização ao ensino musical e consequentemente do próprio professor. Havia
dois professores de ginásticas e dois de gramática e o professor de música foi reduzido a
um no novo sistema educacional, tendo o jovem apenas dois anos de aula dedicados à
24
O virtuosismo era constantemente criticado pelo fato de ir de encontro à teoria musical tradicional, que difundia a simplicidade e o seguimento rígido das notas. Qualquer atitude que fosse de encontro a esse padrão deveria ser repreendido. (PLATÃO, 2002, p. 39).
25
música. Em Atenas, apenas os jovens aspirantes à efebia25 passam a ter acesso ao ensino
musical e a técnica ganha espaço nas salas de aula. (MARROU, 1966. p.208).
O que acaba contribuindo a essa diminuição da importância do valor musical é
justamente essa contraposição entre a sofisticação da técnica e o arcaico apego cultural
ao simplismo. Por um lado, surge essa necessidade de desenvolvimento das técnicas em
nome de uma modernização da música no período helênico e do outro, temos o
enraizamento da tradicional forma simplista de se ensinar música em Atenas altamente
defendida pelos pedagogos e filósofos.
No campo musical esse tímido progresso referente à técnica acaba gerando uma
especialização, indo de encontro à cultura comum e da tradicional forma de ensino da
música. Na era clássica temos um equilíbrio aparente na sociedade ateniense entre a arte
musical mais simples e a educação justificando a importância da presença da música na
educação e como ela deve ser apresentada aos jovens.
Com a quebra desse equilíbrio, rapidamente podemos observar o
desenvolvimento da cultura musical ateniense a partir de uma alta complexidade e
maestria das técnicas, escapando ao comum dos amadores.
Tendo sido dada em meados do século IV essa evolução na aprendizagem
quanto à música passa a exigir maiores esforços por parte dos alunos, mesmo com as
amargas críticas à corrupção ao gosto.
Claro que essa evolução acontece de forma gradual e só tem seu total divórcio
com o ensino que prega o amadorismo no auge do período helenístico e passa a entregar
a prática musical ao mundo do profissionalismo como um todo com a figura do
tekhnítai – músico profissional – que acaba se tornando um ofício itinerante
manipulador das artes em geral e causador por consequência do desvio na participação
dos cidadãos a meros espectadores (CERQUEIRA, 2010, p. 124).
Com isso uma importante manifestação da cidadania, como participar dos coros
nas festividades, acaba sendo atingida e por vezes diminui os simbolismos de pertença à
vida políade. Com o tempo os amadores diletantes que de bom grado participavam dos
coros nessas ocasiões, gradualmente foram sendo substituídos por músicos profissionais
que também poderiam exercer a função de professor, porém tanto sua qualificação
quanto remuneração eram muito superiores ao período clássico.
25
A efebia neste contexto pode ser entendida como o conjunto de ensinamentos militares, sendo assim todo e qualquer aprendizado quanto a estratégias de guerra e valores heroicos de seus ancestrais estariam inclusos no conceito de efebia, e para isso a música era fundamental, uma vez que no campo de batalha havia o músico profissional especial para essas ocasiões de conflito. (MARROU, 1966, P. 209-11).
26
Essa melhora quanto à técnica e as críticas quanto à forma eficaz de se ensinar
música acaba separando os efeitos nobres advindos com a educação musical, gerando
algumas dúvidas de qual caminho a educação formal deveria seguir. De forma mais
clara, o aluno fica no impasse de exigir por uma formação ligada ao amadorismo ou
competir com os profissionais, pois estes aperfeiçoamentos técnicos acabavam
distanciando a música de seus preceitos da antiga tradição.
As altas remunerações dos festivais e audições advindas com o aperfeiçoamento
da técnica, a utilização da música-arte em detrimento da música-pedagógica explicam a
diminuição pelo interesse da pedagogia musical. A música passa de um elemento
tradicional para um produto de consumo cultural.
Com isso teremos uma separação real entre o profissional e o espectador, uma
vez que não há mais espaço para a performance de amadores em detrimento do modelo
clássico, onde a simples extração de alguns acordes na lýra era entendido como sinal de
boa educação.
O espaço antes pertencente aos amadores é ocupado pelos bem remunerados
virtuosi como eram chamados os mais talentosos músicos profissionais, pois a medida
que os atenienses passam a ser apreciadores da boa música, a formação musical que cria
o amador se torna defasada.
Atenas passa a ser a cidade dos bons ouvintes de esplendorosas audições e a
tímida apresentação de um amador perante a tecnicidade dos profissionais causava-lhes
desprezo. Passaram a admirar os instrumentistas exímios não por sua pertença social,
mas pelo seu trabalho.
Sendo assim, observamos uma cissiparidade dentro do ideológico do músico
profissional, pois são admirados pelo trabalho desenvolvido, principalmente devido a
maioria da população ter recebido uma educação musical razoável, mas por outro lado,
não fazem parte de lugar algum, são tido como nômades sem pertencer a uma classe ou
meio social, pela ausência de conhecimento de sua proveniência, assim como por
desenvolver uma atividade mercantil, pois são apenas pessoas de ofício, um simples
bánausoi26
(MARROU, 1966, p.212).
Ao pensar o músico profissional o ideário tido sobre ele é geralmente
contaminado pelos elementos mentais que acompanham os conceitos de determinadas
26
Bánausoi era o termo utilizado para delimitar o indivíduo pertencente a cruel lógica do mundo do trabalho e do salário, generalizando em um único termo diversas classes de trabalhadores, não evidenciado a pluralidade dessas classes. (MARROU, 1966, p.212-13).
27
atividades e, por isso, a opinião corrente sobre o músico está extremamente atrelada a
sua participação nas experiências cotidianas como um todo a partir da compreensão
circundante da música na vida ateniense.
Às claras, isso significa o aprisionamento do profissional da música a certas
dimensões sociais principalmente a do mundo do trabalho e da técnica e com o
submundo dos vícios e consequentemente da prostituição.
Para além do profissional das salas de aula temos também outros músicos que se
aventuram em diversos âmbitos como o concertista, também conhecido como virtuosi e
participante das competições musicais; o compositor por vezes visto como poeta, porém
compunha e executava suas canções; já num campo social distinto, as hetairai e pornai,
profissionais contratadas para alegrar os simpósios e algumas vezes também
participavam dos enlaces amorosos do ambiente, assim como os jovens citaristas dito
como efeminados que também se envolviam com homens adultos nestes encontros e por
fim, os aulotai participantes dos sacrifícios religiosos e das colheitas, representando o
músico em um âmbito mais rural.
Mesmo com todas as mudanças sofridas em Atenas não podemos deixar de
considerar a figura dos músicos amadores caracterizados pelo cidadão que na idade
regular recebeu o ensino musical para aprender a distinguir o belo e no decorrer de sua
vida se tornava um coralista amador, garantindo mais um traço no modelo ideal de
cidadão ao realizar essa obrigação cívica. Estes por sua vez acabam perdendo seu
espaço para as futuras corporações de músicos da era helenística que passam a exercer o
papel de coralistas profissionais.
Temos também os fabricantes de instrumentos musicais conhecidos como
aulopoios pertencentes ao mundo do trabalho manual ou artesanal; os tocadores de
trombeta (salpinx) responsáveis pelos anúncios do exército e os auletes cujo
instrumento lembra castanholas (krotala), estes acompanhavam as apresentações dos
atores nas peças e tinham papel fundamental no teatro.
A grande maioria destes supracitados não era considerada músico profissional,
mas permeia os ambientes onde a música de alguma maneira era considerada elemento
relevante, porém falando da profissionalização do ofício não podem ser levados em
consideração, pois somente aqueles que se utilizavam da música como forma servil de
sustento recebia o título de profissional e é em cima deste indivíduo que se torna
possível criar uma imagem (ou imagens) de quem era esse músico.
28
Em relação a todos estes profissionais é inegável que, de todos eles, a
personagem que talvez sofresse menos represália por parte da aristocracia era o
kitharistés, pois seu trabalho era fundamental, por mais que não se incentivassem os
jovens a seguir esta mesma carreira, tinha-se consciência da relevância do professor de
música, uma vez que para o padrão clássico e segundo a tradição aristocrática o jovem
deveria dedicar anos de sua juventude ao ensino musical, cumprindo seu papel de
cidadão ao completar todas as etapas de sua formação básica.
Mesmo com esse tímido reconhecimento do trabalho, a opinião geral não só dos
filósofos como também de grande parte da elite é que a prática musical deve ser um
luxo permitido apenas aos jovens, deixando de fazer parte da vida adulta. O próprio
Aristóteles não se inibe em chamá-los de vulgares, obscenos e acusá-los de uma eterna
busca pela perfeição das execuções (ARISTÓTELES, ed 1997, p. 89).
Esse tipo de declaração nos faz pensar sobre a existência de duas realidades: a da
música e a do músico. A realidade da música encontra-se baseada no enaltecimento de
suas responsabilidades para com a juventude e de seus efeitos moralizantes no cidadão e
por isso ganhava lugar de destaque na estrutura mental da sociedade grega.
Em contraposição, a realidade do músico era completamente diferente julgados
por realizarem tarefas medíocres medindo esforços em objetos inúteis, não
desconsiderando o valor da música, mas questionando as dificuldades do profissional,
ou seja, para a elite ensinar música não é um ofício demasiado difícil e por isso o
músico enquanto produto desta sociedade era execrado por ela.
Podemos comparar essa estranha contradição fazendo um paralelismo com as
atividades manufatureiras, que assim como o ofício do músico, tem relativa diferença
entre o valor do produto e do produtor27: pode-se admirar algo feito sem
necessariamente o querer fazê-lo, como por exemplo, os perfumes e os tecidos de
púrpura. Estes são produtos que agradam a grande maioria da aristocracia, em
contrapartida os ofícios de tintureiro e perfumista são indignos e possuem caráter servil
aos olhos do bom cidadão.
Pode-se afirmar a partir dessa interpretação o lugar definido não só às atividades
manufatureiras e artesanais como do próprio músico incluídas numa ideologia de causa
final, uma vez que não existe uma tentativa de absorção social do produtor, apenas do
27 A lógica do produto e produtor enquadra-se numa forma de pensamento em relação ao mundo do trabalho amplamente difundida pela elite de Atenas: a ideologia da causa final que justifica a existência do produtor baseada na necessidade do cliente. (MARROU, 1966, p. 215).
29
produto. Dessa maneira, o produto final do ensino musical é o “adestramento” dos
jovens sem grandes preocupações com indivíduo responsável por ela. Nessa linha de
pensamento, o produtor de atividades tidas como secundárias – músico ou artesão – não
era valorizado.
Dentro desta lógica a existência do produtor, assim como sua obra, são meros
frutos da necessidade do usuário, pois o ideal do homem livre é ser universalmente
usuário, nunca produtor. Sendo desta maneira, o músico sempre é pensado enquanto
sujeito sigiloso cuja existência resumia-se a necessidade de seu ofício e caso viesse se
destacar dos demais isso se refletiria no seu produto ou em quem financia a produção,
não no músico indivíduo.
Mesmo com todo o valor dado a educação musical não há uma transferência
desse valor ao sujeito que a executa e, portanto, é graças a essa ideologia da causa final
que o músico não desfruta de reconhecimento social pelo tipo de trabalho desenvolvido.
Na Atenas Clássica receber a educação formal baseada na música era uma boa
referência social e isso é incontestável, mesmo assim se destacar como músico
profissional não era garantia de reconhecimento ou melhoria social, mesmo que este
conseguisse fazer riqueza e alcançasse um patamar econômico melhor, ainda assim não
era digno de prestígio social. A riqueza angariada com salário levava o estigma da
servilidade28.
Com isso, a distinção aparente entre o valor da música e o valor do profissional
que a utiliza está intrinsecamente ligado às estruturas mentais depreciadoras do trabalho
manual e assalariado, tendo nesse sentido o desprezo dado ao produtor e valorização do
produto como forma de delimitação social daquele sujeito ligado ao trabalho e do outro
lado o sujeito livre deste fardo.
Para os antigos, principalmente os gregos, era muito lógica a separação entre
ciência e prática, pois o objetivo da ciência antiga era o saber e não o fazer e por isso, a
curiosidade por conteúdos práticos e de origem técnica definiam um profundo mau
gosto.
28 Nesse contexto o termo servilidade não está ligado ao desenvolvimento da mão-de-obra servil, mas ao fato de servir outrem, e isso só acontecia devido a necessidade do músico de extrair seu sustento a partir do salário. Esse estigma exprimia tanto preconceito que, por vezes, era comparado ao próprio trabalho escravo. (VERNANT, 1992, p. 93).
30
Se houvesse algum interesse ao estudo da teoria29 musical sem leva-la à prática
era permitido e considerado como ação apta ao homem livre, pois da mesma forma a
música enquanto teoria propiciaria o aperfeiçoamento do espírito, isso porque o estudo
da música enquanto aprofundamento teórico também treinaria o espírito, a moral e
elevação da música como disciplina.
Por outro lado, quando essa dedicação se mostrava excessiva, automaticamente,
seria associada à servilidade e por isso não mais recomendada a um cidadão, pois essa
prática musical ligada à profissionalização atingia o espírito moral de várias maneiras:
por sua ligação a uma atividade assalariada, devido ao esforço técnico e manual
empenhado e principalmente pela não diferenciação dos tipos de músico, o que faz com
que todos sejam associados ao mundo dos vícios, embriaguez e efeminação na qual a
grande maioria dos músicos era acusada.
Essa visão vastamente difundida acerca do músico em Atenas é produto do
conceito pré-estabelecido sobre o trabalho no imaginário grego. Teremos, portanto, duas
ideias antagônicas marcantes neste tipo de pensamento: a liberdade e a necessidade. A
liberdade estaria caracterizada nos cidadãos que, devido sua origem, não precisavam
desenvolver um ofício e poderiam desfrutar do cultivo integral de seu ócio, em outras
palavras, a civilidade era posta como ofício. Já aqueles ligados à necessidade
desempenhavam os ofícios manuais e técnicos, mesmo que o modelo ideal pregasse a
indignidade dessas ações.
A prática musical assim como o artesanato não se encontravam no mesmo
patamar das demais invenções gregas, pois estas, por sua vez, encontravam-se seguras
no universo das palavras como a História, a Política, as Ciências, a Retórica e a
Filosofia. Dessa maneira, essa sociedade da palavra, sempre mostrou um estranhamento
quanto às atividades manuais e técnicas, fazendo com que os indivíduos submetidos a
estas funções se encontrassem em segundo plano.
À medida que o trabalho assalariado nada tinha de belo e em nada se
assemelhava ao Bem, no imaginário grego qualquer tipo de atividade onde se
empregava o tempo para ganhar a vida era sórdido, e degredaria o espírito, pois ao visar
um salário, não havia preocupação com os valores morais. O assalariado30 se equipara
29
A teoria musical abordada está ligada ao equilíbrio da notação, acordes e melodias tradicionais. Não refere assim, a elevação de técnica ou estilização. (PLATÃO, 2002, p. 68). 30 O assalariado é comparado ao escravo pelo fato de servir alguém, como se o seu objetivo fosse trazer felicidade de outro. Não eram visto no mesmo patamar social e tampouco eram equivalentes, mas a
31
ao escravo: ao realizar suas tarefas a terceiros, não é ele mesmo; só voltando a ter
controle sobre si ao retornar pra casa ao anoitecer.
O músico, inserido no mundo assalariado ao vender seu trabalho, participava de
bom grado da servilidade do artesão e dentro deste contexto de repulsa podemos
compreender o quanto o trabalho do músico profissional era desvalorizado.
Essa desvalorização ligada à nova exigência de tecnicidade faz com que muitos
instrumentos sejam proibidos em Atenas como o bárbitos, o heptágono e o triângulo,
devido a exagerada dificuldade de suas execuções. Eram considerados instrumentos de
muitas cordas e acusados de atingir todas as harmonias, ou seja, demasiado técnico.
Basicamente os instrumentos permitidos a um professor eram a lýra, e a aulós
(esta era carregada de simbolismos e em algumas escolas de Atenas seu ensino era
proibido devido sua forma fálica). Ainda sim não era permitido ao kitharistés incentivar
aos alunos o aperfeiçoamento da técnica, caso contrário haveria uma contaminação dos
jovens pela techné.
Nesse sentido torna-se completamente compreensível quando Filipe repreende
seu filho ainda pequeno, o jovem Alexandre, afirmando que este deveria sentir vergonha
de tocar a lýra tão bem, demonstrando tamanho talento e perfeição, pois para um rei não
era de bom tom mostrar grande habilidade musical como um virtuosi.
Já o músico profissional, ao realizar seu trabalho, não estaria preocupado com o
louvor às Musas31 e tão pouco com as qualidades morais a serem percebidas na
harmonia e melodia. Esta beleza natural proveniente da música era automaticamente
apagada com a incompatibilidade sórdida do salário, sendo apenas um subalterno a
serviço do prazer alheio.
Desta maneira, a confusão encontrada nas representações do trabalho assalariado
arrasta o músico junto com todos os preconceitos participantes deste mundo, mesmo
com toda estima que se tivesse pela música. Nem o professor de música, qual o trabalho
era muito estimado em toda Grécia, se via livre das depreciações feitas aos profissionais
do mundo servil.
Podemos então supor a existência de certa ambiguidade que se tinha em relação
a essa personagem, pois ora o professor é visto como o responsável da inserção dos
jovens ao culto às Musas e instigador de um modelo moral proveniente da capacidade
comparação serve para percebermos o desprezo dado ao salário, assim como a atividade que o almeje. (MARROU, 1966, p. 205). 31
Para Aristóteles e Platão, a profissionalização do músico faz com que o estudo da música perca sua funcionalidade já que a aproximação entre a música e o divino são corrompidos. (JAEGER, 1994, p. 58).
32
musical de trazer na juventude os atributos cívicos ao espírito, e ora ele é desprezado em
meio sua servilidade e necessidade do salário para seu sustento.
Uma questão interessante seria se todos em Atenas seguiriam esta forma de
pensamento acerca da figura do músico. Esses julgamentos filosóficos estariam
presentes em todas as camadas sociais.
Saliento-me a dizer que não. Todos estes conceitos ligados ao imaginário social
foram originados pelas elites econômicas e políticas, se mantendo válido por períodos
posteriores, criando um perfil ao indivíduo envolto no mundo salarial, porém mesmo
sendo uma ideia sustentada pela elite não significa seus compartilhamento por todos.
Isso porque os indivíduos tidos como participantes ativos no mundo do trabalho
não levavam essa ideologia da causa final em relevância, pois o passar dos dias com a
rotina em suas oficinas ou vendas, ou nas salas de aula para o professor, não permitiam
essa maior construção sobre o seu trabalho no imaginário do produtor, contudo, isso não
impedia sua percepção da elite quanto a seu ofício.
Pode-se até criar uma nova versão contraposta à ideologia da causa final, um
pensamento que engradecia o trabalhador manual e técnico, onde uma visão do
dominado, valorizaria as profissões que exigiam um maior esforço e seus saberes, pelo
simples fato de que eram os organizadores da cidade e os indivíduos capazes de
satisfazer a maioria das necessidades da elite.
Essa visão do dominado baseava-se no conceito há muito difundido em Atenas e
na grande maioria das cidades gregas, conhecido como métis, onde numa tradução bem
literal seria a malícia da inteligência. Daria conta da exímia habilidade de certos
indivíduos referente ao trabalho manual como o artesão e oleiros na fabricação dos
vasos, ao músico capaz de extrair das cordas de um instrumento inúmeras sonoridades,
do jovem soldado criador da estratégia de uma emboscada.
Todas estas personagens seriam dotadas de uma métis enquanto astúcia
conjugada entre as mãos e a inteligência, e como essa forma de pensamento acaba por
valorizar o mundo assalariado, indo de encontro à forma de pensar das elites, é uma
ideologia tipicamente difundida de maneira mais popular.
Com todo o exposto e mesmo em meio a tantos preconceitos a historiografia
clássica nos mostra o sucesso obtido por alguns professores de música que tiveram seu
trabalho reconhecido por seus contemporâneos como o talentoso Arion de Tebas e o
professor ateniense Estratonicos são provas da proeminência social diante de seus
virtuosos talentos. É preciso deixar bem claro que, os músicos reconhecidos como estes,
33
eram essencialmente professores, não deixando espaço ao mesmo tipo de tratamento
dados aos virtuosi.
A remuneração superior de um professor de música em relação ao professor de
Letras e ginástica elucida essa calada valorização do profissional. Em muitas escolas em
plena era clássica onde a educação musical era supervalorizada, temos a presença de um
único professor de música em comparação a dois ou três professores das outras áreas de
ensino. Isso é explicado pelo alto salário exigido por parte do professor,
proporcionalmente ao crescimento da especialização e da técnica.
Esse avanço em relação à valorização do profissional da música encontra-se
intimamente atrelada a formação das corporações de músicos profissionais, revelando a
nós um tímido processo de sindicalização dos mesmos, sendo observada por duas vias
de justificação deste trabalho: primeiro, o crescimento da adesão por parte dos
atenienses neste tipo de trabalho e segundo, a concordância da comunidade com a
oneração dos cofres públicos com as dispendiosas remunerações dos músicos.
Sendo assim, é possível perceber que a ideologia dominante não se mostra como
empecilho total a admiração desses profissionais, principalmente daqueles que
reconhecidamente são tidos como muito talentosos.
34
4. CAPÍTULO III - A EVIDÊNCIA DOS ESPAÇOS NA ÉIKON: DA SALA
DE AULA ÀS RUAS
No quadro educativo, as imagens nos revelam não só o local onde as práticas sociais
eram desenvolvidas, mas quem eram os privilegiados a participarem dela e de que
forma se desenvolviam essas práticas.
A eikón – imagem em grego – tem o seu papel na educação de forma tão destacada
que os signos utilizados na maioria das imagens, assim como sua significância são
rapidamente reconhecidos e decodificados por seus leitores da sociedade grega à época,
sendo assim, supõe-se que os elementos necessários nesse tipo de leitura são passados
desde a infância.
Outro parecer importante é que mesmo em meio a tantas situações opostas, as
práticas musicais e o ideal a respeito delas funcionavam harmonicamente no imaginário
da época. Tudo era envolto na grande rede social construída por eles e trabalhavam em
perfeito equilíbrio. A figura do professor de música na imagética32 é sempre a mesma:
um homem adulto evidenciado pela barba encontrado sempre numa posição de destaque
em relação aos demais dispostos na cena, em algumas situações representando certa
hierarquia com o acréscimo do encosto das cadeiras onde repousam (as cadeiras
referentes aos alunos sempre é mais simples, como uma espécie de banco).
32
Na imagética não se faz possível detectar os preconceitos associados ao músico e difundidos pela aristocracia. É possível uma maior percepção a cerca dos músicos que trabalhavam nos ambientes tidos como indignos e nem sempre os profissionais faziam parte das orgias, estando ali apenas para executar seu instrumento. (CERQUEIRA, 2010, p. 56).
35
Figura 1. Esta cena é a mais famosa das que englobam o universo escolar. Trata-se de
uma sala de aula com figura central no professor à direita (kitharistés) e podemos
elencá-lo como tal, pois a presença de barba e o encosto da cadeira nos passam a ideia
de maturidade e hierarquia, respectivamente. Os outros participantes da cena são
estudantes e isso nos é evidenciado por sua juventude e ausência de pêlos no rosto. O
vaso é uma produção da região ática de aproximadamente 460 a.C. e encontra-se
inserido no contexto de vasos cerâmicos de figuras vermelhas. Os assentos
representados trazem à tona a hierarquia existente no ambiente escolar, onde o professor
era visto como um mestre e por isso sua cadeira é mais complexa tendo assento e
encosto da coluna, no caso dos estudantes era composto apenas pela parte do assento.
As posições que as personagens foram apresentadas nos fala um pouco sobre a interação
do espectador, pois se dispõem na vertical de perfil e isso significa que o observador da
imagética não é convidado a participar da ação e, portanto, trata-se de um local fechado,
particular.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_da_Gr%C3%A9cia_Antiga
No Livro VII, Platão dedica especial atenção ao processo pedagógico de sua pólis
perfeita e a primeira característica que salta aos olhos é a justa medida. Como dito pelo
filósofo, a instrução ideal deveria proporcionar benefícios ao corpo e a alma tendo como
objetivo a beleza e a excelência. Concordando com Platão, temos um grande conjunto
de imagens trazendo a institucionalização da música, mostrando representações dos
ambientes e dos envolvidos. Faz-se importante destacar que o desprezo direcionado ao
profissional da música não é aparente na grande maioria das imagens.
As representações do professor acabam se enquadrando num padrão típico, onde o
kitharistés apresenta-se na figura de um ancião, sempre bem vestido (jamais é
representado nu, ao contrário dos jovens) sempre em posições respeitosas em relação ao
aluno, principalmente levando em consideração a pureza da infância.
Para os filósofos, aspirar esta excelência significava ocupar a criança desde pequena
com atividades pedagógicas que moldariam a criança naquilo que a sociedade
futuramente esperaria dela. Por isso, não é de se estranhar que a instrução não só para
Platão, mas para Aristóteles comece muito cedo, por volta dos sete anos de idade.
A boa educação se revela na capacidade de proporcionar ao corpo - sómata – e à alma – psikhás – toda a beleza - kállista – e excelências – areté - possíveis.
36
Eis um princípio que se me afigura muito bem fundamentado (PLATÃO. Leis. VII, 788 c-d.)
Tanto Platão como Aristóteles concordam da importância da ginástica, mas
discordam quanto ao papel da música. Diz Platão:
O fim da educação é duplo, por assim dizer: ginástica para o corpo e a música para o benefício da alma. A ginástica por sua vez se subdivide em dança e luta. Uma das partes da dança visa a imitar as palavras das Musas, (...); a outra promove os bons hábitos, agilidade e beleza dos membros e demais partes do corpo... (PLATÃO. Leis.VII, 795 e).
A tipologia musical também pode nos dizer bastante sobre tais práticas, pois cada
lugar era digno de um determinado som, ligado a uma determinada simbologia, onde se
percebe através dos trajes dos profissionais da música, os diferentes ambientes nos quais
esse profissional desenvolve suas funções, sendo assim o músico que trabalha na frente
da batalha, não é visto da mesma maneira que um músico a desenvolver o tocar em
reuniões íntimas como os banquetes - sejam eles públicos ou privados - por exemplo.
Figura 2. Medalhão ateniense por volta do ano de 490 a.C. com representação de um
simpósio. Temos na representação duas personagens: à esquerda um rapaz tocando uma
duaulós e à direita uma mulher tocando krotalas. Estes últimos são instrumentos pouco
conhecidos até então, suas aparições restringem-se a algumas imagens do meio
orgiástico e no mundo do teatro, funcionando como uma espécie de castanhola que
geralmente acompanharia outro instrumento ou a própria fala no caso dos atores. A
vestimenta utilizada pela mulher no evidencia sua posição dentro do banquete, pois a
37
associação feita à pele de leopardo é naturalmente feita a Dionísio e às festas realizadas
em louvor a ele. Esta mulher provavelmente trata-se de uma hetairai que seria uma
musicista participante dos momentos íntimos da elite e isso não necessariamente a faz
participante ativa dos enlaces amorosos ocorrentes desse ambiente, uma vez que temos
profissionais específicas para este tipo de trabalho que seriam as pornais. Mesmo com
essa diferenciação, as musicistas participantes destes ambientes geralmente eram vistas
com certo desprezo por sua servilidade, ligação ao mundo do trabalho e associação ao
submundo, evidenciado na imagem pela nudez dos seios. Já o rapaz se utiliza de um
instrumento mais tradicional com auxílio da palheta – espécie de mordaça que prende o
instrumento à cabeça lhe possibilitando maiores movimentos – a diaulós comumente
chamada de aulós dupla tinha em si um peso negativo em sua utilização já que
impossibilitava ao músico o poder da fala, fazendo com que este perdesse a habilidade
musical de conjugar voz – harmônico – e instrumento – lírico – além da associação
pejorativa de sua forma fálica. Por esse motivo, o instrumento foi proibido em algumas
cidades no território grego. Porém, neste tipo de ambiente essas significâncias não eram
levadas em consideração. Novamente temos a postura das personagens de perfil nos
evidenciando a interação do receptor e mais uma vez trata-se de um ambiente fechado.
Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/educacao_atenas3.htm
O interessante da educação musical é que ela é muito bem vista como mero
adicional de uma educação da elite, ou seja, é um conhecimento que deve ser utilizado
apenas para o deleite e não para se institucionalizar profissionalmente.
A ideia da educação musical criando cissiparidade entre as camadas sociais é
levantada devido à formação elitista do sistema educacional ateniense, não significa,
portanto, que os indivíduos formadores das demais classes sociais fossem apáticos à
música e que não tivessem nenhum conhecimento sobre ela.
Segundo essa ideia, a educação dita tradicional baseada na Paidéia pode ser vista
como elemento de distinção dentro da Atenas, pois nem todos chegavam a garantir toda
sua formação, e os valores dados à música vão se transmutando dentro das gerações. O
contraditório faz-se presente a partir do momento em que esse músico ligado à
38
promiscuidade33 pelos ricos é o contratado para animar estes banquetes que em sua
maioria são oferecidas por estes mesmos ricos que os desprezam.
Quanto à representação dos alunos encontramos algumas variáveis: na grande
maioria das imagens temos a nudez dos jovens em contraponto da minoria que
apresenta os jovens vestidos, essa vestimenta geralmente é simples e resume-se a uma
manta de um ombro. Na totalidade das imagens o jovem apresenta-se sem barba, pois
esta seria um sinal de que ele teria atingido a maturidade34 e, portanto, deveria
abandonar os estudos musicais.
Com toda essa diferenciação dos profissionais da área, continua-se durante um
longo período essa estrutura educacional em Atenas, claro que, não podemos ignorar as
transformações que cada pilar educacional vai aderindo com o tempo, mas as mudanças
nesses valores não são tão visíveis em curto prazo.
Percebe-se, portanto, dentro da própria educação algumas das contradições
existentes no campo social, e assim como todas que vieram antes dela e as que surgiram
depois, tentam de todas as formas camuflar essas diferenças, mas se adentrarmos nos
aspectos culturais, rapidamente essas contradições são perceptíveis.
A pouca representatividade do meio rural em meio às pinturas nos elucida um
pouco de como a Atenas clássica queria ser vista, pois ela enquanto dominante e
cosmopolita jamais permitiria que ficasse vista como uma pólis rural, preferindo ser
vinculada às imagens que rememoram os espaços urbanos e que envolvem
principalmente a política. Contudo, não devemos deixar de admitir que a área rural
desempenhasse um importante papel na vida ática, pois é do campo que vem o sustento
para a vida citadina.
Os registros que dispomos quanto ao meio rural basicamente desenvolvem duas
atividades econômicas: a agricultura e o pastoreio. Na agricultura as figuras se destacam
pela viticultura, onde humanos e figuras mitológicas são representadas nas vindimas, já
no caso do pastoreio, as representações fazem alusão apenas à presença do pastor em
seu contexto social. Devido a todo esse silêncio, a análise depende de comparações com
a vida músico-rural de outras regiões, assim como do imaginário mitológico.
33
Como já vimos anteriormente havia músicos específicos que trabalhavam nessas ocasiões, porém isso não era empecilho à classe dominante de associar o mestre de música a tais conceitos de impureza. (CERQUEIRA, 2010, p. 99). 34
O estudo musical era abandonado na maturidade por vários motivos entre eles o medo de que o jovem se interessasse pela profissionalização; a ineficácia da música em domar um espírito adulto; ao temor de que o cidadão na sua vida adulta se aproximasse dos estigmas, principalmente em relação ao mundo sexual, carregados pelo profissional da música. (PLATÃO, 2002, p. 78).
39
As imagens que trazem representações do campo e que envolvem práticas
musicais são poucas, mas relevantes por trazer alguns traços próprios da vida
campestre: 35a tradicionalidade envolta nas práticas musicais baseada na maior
dedicação de preparação dos cenários; uma maior participação das mulheres enquanto
musicistas, sem necessariamente estar ligada ao mundo sexual (no campo, as musicistas
seriam mais uma indicação dos poderes divinos das Musas sobre a música); os trajes
tipicamente campestres, onde tanto mulheres quanto homens apresentam-se vestidos e
os cenários sempre abertos, fossem reuniões menores ou festividades da colheita.
A lýra é um dos instrumentos que se destacam mediante ao meio pastoril e sua
criação recebe uma explicação mitológica36, onde Hermes a teria fabricado a partir da
carapaça de uma tartaruga que encontra em seu caminho ao voltar do roubo do rebanho
de Apolo. Segundo algumas narrativas, Hermes teria dado o instrumento a alguns heróis
e teria lhes ensinado a tocar, estabelecendo muitos laços amorosos do gênero professor-
aluno, que para muitos autores seria uma representação da pederastia, tão comum na
iconografia clássica. Esta é apenas uma das versões sobre a criação do instrumento.
Muitos autores não consideram essa cultura musical proveniente do campo,
porque geralmente os pastores aprendiam a tocar seus instrumentos, fossem aulós ou
syrinx, sem precisar de nenhum professor, por isso tais instrumentos eram considerados
banais. A ausência de professores na vida rural não pode ser explicada pela falta de
necessidade de seu ofício, mas pela diferenciação de conceitos dado a educação musical
no meio rural do meio urbano.
Quase todos os indivíduos que viviam no campo dominavam algum instrumento,
porém esta aprendizagem não era adquirida da mesma forma que um cidadão que vive
na cidade. Geralmente, os ensinamentos musicais no campo são feitos por alguma
pessoa da família próxima ao jovem e, portanto, esse músico não estaria envolto no
mundo assalariado e nem trazia consigo os preconceitos atrelados a este profissional.
Para além da forma de como era aprendida, havia também uma grande diferença
em sua significância, devido ao afastamento do espaço físico e simbólico da cidade,
onde eram difundidas as ideologias da classe dominante, nesse caso, da aristocracia
ateniense. A música repleta de simbolismos morais e de caráter formador das virtudes
35 Na vida campestre se percebe uma participação da música de modo mais fluído, ao contrário do que acontece na cidade. Neste ambiente a referência feita é sempre às Musas e não ao valor educacional contido nela. (VERNANT, 1992, p. 47). 36
Essa explicação mitológica teria recebido várias versões e foi amplamente difundida pelas obras tradicionais, estando presente também nas obras homéricas. (JAEGER, 1994, p. 53).
40
da cidade entra em confronto com a música campestre mais relacionada ao divino e sua
carga ritualística.
Há também uma diferenciação entre a Atenas referente à cidade (espaço urbano)
e o Estado (pólis – espaço representativo), assim sendo percebemos uma linha tênue
entre essa divisão mental, pois ambos se tratavam do mesmo espaço físico onde se
desenvolviam o cotidiano propriamente dito: modelos sociais, paradigmas da vida
política, concepções imagéticas sobre o homem livre e o cidadão sendo elementos
fundamentais nas interações sociais e definições de status.
Essa diferenciação, ainda que tímida, entre espaço urbano e espaço
representativo nos revela a manutenção do status quo, onde dentro da sociedade existe
uma minoria considerada cidadão enquadrada no perfil como tal, e participa ativamente
das decisões políticas do Estado, porém os indivíduos constituintes da grande maioria
populacional encontram-se fora desse espaço de representação à medida que seus
esforços diários estão voltados ao seu próprio sustento através do trabalho, e por isso,
não podem despender seu tempo em assuntos reservados ao Estado.
Há uma ligação íntima entre a construção de experiência do cotidiano e as
representações dos espaços sociais, mesmo que os líderes da pólis ateniense tentem nos
mostrar que essa separação era bastante definida. Podemos perceber que a linha
limítrofe entre esses dois âmbitos era quase que inexistente na prática, pois as redes
sociais se transformavam em um emaranhado de práticas, valores e condutas dentro de
suas interações quase impossíveis de se desarticular.
Verifica-se a real existência de uma estilização do cotidiano ateniense, isso
porque somente a experiência cotidiana por si só, não seria capaz de abarcar todos os
valores morais que deveriam ser transmitidos, já que grande parte desses valores era
transmutada nas práticas cotidianas. É totalmente compreensível de se entender essa
estilização se pensarmos na almeja da Atenas do período clássico em ser representada
desta maneira, devido ao desejo de manutenção de status e hegemonia política diante
das demais póleis no período em questão. (CERTEAU, 1994. p. 101).
O crescimento evidente das oficinas de artesanato e do número de oleiros
especializados nos vasos gráficos torna-se uma consequência visível mediante essa
estilização do cotidiano, e pensando no aumento das exportações pelas demais cidades
próximas não só no território grego, nos fazem pensar como esses indivíduos, que se
encontravam fora do contexto ateniense, acabavam importando essa idealização do
cotidiano de Atenas, importando não só um vaso, mais um modo de vida.
41
Pensando a música nesse processo, ela é mais um elemento legitimador do modo
de vida grego, principalmente enquanto paradigma educacional, criando uma esfera de
especialidade no caso grego em relação aos demais povos da antiguidade. Prova disto,
temos a continuação ao estudo da música pelos romanos segundo os preceitos da
educação helena37.
Nesse contexto temos no jovem a personagem mais influenciada e produto do
sistema educacional de Atenas. Mesmo sendo o professor a figura a sofrer devido aos
estigmas ruins associados à figura do músico profissional, é o jovem a ser moldado
pelos parâmetros da educação formal e por isso ele é a figura que mais se transforma
mediante esse processo.
Quanto à educação musical, sabemos que seu aprendizado poderia ser realizado
no âmbito escolar ou nas casas dos clientes, sendo a escola o espaço mais comum. Nela
o jovem mantinha relações com pessoas fora de sua família, mas que compunham o
mesmo patamar social, sendo assim a escola para além de um local de ensino, era um
local de interatividade.
Inserido na esfera dos desportos, o jovem entrava em contato com outros jovens
de sua idade e mais velhos. Nesta mesma fase, outra etapa também de grande
importância no processo educacional ateniense ocorria: a pederastia como parte da
instrução.
A prática que unia dois homens, um mais velho e um mais novo, na busca de
uma maior preparação deste último ficou caracterizada enquanto prática pedagógica.
Segundo Marrou, para o homem grego, a paideia também residia nas relações
profundas e estreitas que uniam, pessoalmente, um espírito jovem (erómenos) a um
mais velho (erastés). Esse homem mais velho seria seu guia, seu modelo, seu ideal e seu
iniciador, tanto do conhecimento, quanto da vida pública.
A ligação amorosa homoerótica acompanha-se de um trabalho de formação e de
maturação, aonde o erómenos era iniciado lentamente nas atividades sociais do erastés:
a assembléia, o ginásio, o banquete, a agorá (MARROU, 1966, p.58-59). Esta prática
estava atrelada à construção do ideal de masculinidade, ligado diretamente ao de
cidadão. A melhor escolha de seu parceiro configuraria uma melhor iniciação e
formação como homem.
37 Não cabe aqui neste estudo fazer um apanhado sobre a experiência educacional romana, porém é de bom tom comentar sobre a opinião que Plutarco desenvolve acerca da educação helena. Para ele este modelo é tido como o mais abrangente e integralista forma de ensinar e os romanos adotam os três parâmetros educacionais gregos: Letras, Ginástica e Música. (PLUTARCO, Vidas paralelas, trad. 1914).
42
Uma das referências primeiras e mais conhecidas de relações homoeróticas que
encontramos na sociedade helênica é a relação entre Zeus e Ganimedes. Segundo o
mito, Zeus apaixonou-se por Ganimedes, da estirpe dos reis de Tróia e considerado “o
mais belo entre os mortais”. Quando o jovem pastoreava os rebanhos do pai no Monte
Ida, Zeus o raptou-o levando-o para o Olimpo. Lá se tornou o copeiro dos deuses e para
compensar o pai, Zeus o presenteou com cavalos divinos. A relação entre os dois é tema
de diversas cerâmicas áticas, e assim converteu-se num dos primeiros canais de
propagação da pederastia como modelo.
Figura 3. Na figura temos alguns motivos (signos) no assento nos indicando que a data
provável da imagem é de meados do século V, trazendo duas das personagens mais
representadas nos vasos áticos. À esquerda temos a figura de Zeus enquanto ancião e
deus dos deuses representado pelo cajado, barba, assento imponente e o corvo. Podemos
perceber também certa anomalia no tamanho das personagens, onde Zeus é bem maior
em relação ao jovem Ganimedes. Este encontra-se à direita de seu protetor,
apresentando a nudez e a tão cobiçada beleza. Conta a lenda que Ganimedes era o mais
bonito rapaz de sua época e portanto, não havia possibilidade de outro deus conquista-lo
pondo em risco a soberania de Zeus. Há uma exagerada preocupação do artista em
retratar as vestimentas do deus, mostrando inúmeras quantidades de tecidos e dobras,
43
representando sua impenetrabilidade. Ganimedes tem em suas mãos uma cânfora, vaso
utilizado para verter líquidos e na imagem ele unta um objeto segurado por Zeus. Todas
as imagens que representam estas duas figuras trazem a intimidade dividida entre os
dois e isso explica a divinização à posteriori do Ganimedes por ser um mero “copeiro”
do deus dos deuses. A representação do amor de Zeus por Ganimedes e seus
ensinamentos funciona como uma justificativa de se usar o modelo pederasta de ensino.
Fonte:http://arturjotaef-numancia.blogspot.com.br/2013/04/ganimedes-um-deus-
menino-da-pederastia.html
A pederastia enquanto sistema pedagógico entre os atenienses poderia ser aceita
e valorizada, quando esta relação estivesse voltada para a educação do jovem,
principalmente aristocrata. Dessa maneira, a questão educacional envolta é fundamental,
já que o erómenos ainda não possui seu status completo de cidadão, ele deveria
aprender a se tornar um de pleno direito. Isto porque, embora ele já nascesse pertencente
a um determinado grupo social, ele não era considerado, imediatamente após o
nascimento, como membro completo propriamente dito daquele grupo.
A cerâmica ática fornece indícios abundantes de como era a abordagem típica do
homem mais velho ao jovem: conversas íntimas, presentes, manipulação do corpo do
erómenos (em especial, as genitálias) e por fim, a cúpula, quase sempre entre as coxas38.
As posições de passivo e ativo, na cerâmica, também eram representadas por outros
indícios, tais como a ereção do erástes, nunca do erómenos.
Como nas relações entre homens e mulheres em Atenas, costumava-se olhar
com certo desprezo ao jovem que cedesse aos avanços do erástes, mas aplaudia-se
naturalmente ao homem que conseguisse conquistar o erómenos.
As relações homoeróticas podem ter sido uma exclusividade dos mais ricos e
ociosos do que de um grego que lutava para arrancar da terra seu sustento.
Possivelmente também, era limitada a fases definidas do ciclo de vida masculino.
Teoricamente, quando se começava a crescer os primeiros pêlos no corpo do jovem, a
relação deveria terminar, já que configurava que o erómenos estava se tornando um
38
Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, as relações sexuais envoltas na pederastia não eram puníveis se feitas de acordo com o permitido. O sexo interfêmural era, ou seja, feito entre as coxas do erómenos não era proibido e muito menos vulgarizado, pois seria apenas mais um ensinamento passado pelo erástes, contanto que tais práticas fossem abandonadas na vida adulta, pois visam apenas a formação do mais jovem e em nada se associa a afeminação do aprendiz. (PLUTARCO, Vidas paralelas, trad. 1914).
44
adulto. Acreditamos que essa etapa da paideia ática era de extrema importância para a
inserção do futuro cidadão nas práticas correntes na pólis.
Na realidade havia uma grande diferença entre as funções políticas da pólis pelas
quais se esperava a realização e a vivência diária, uma vez que, como exposto
anteriormente, é perceptível que os ideais culturais não condizem com as práticas
sociais. É importante destacarmos isso porque ao longo da escrita da história da
antiguidade, principalmente grega, havia muito desse apego ao respeito pelos valores
políticos que se tentava difundir, e isso fazia com que às vezes se esqueça a pólis39
enquanto cidade, onde acontecem práticas corriqueiras de um espaço habitado, ou seja,
durante muito tempo se desconsiderou o maior sujeito dentro dessa história: o povo.
Nesse sentido teríamos a produção desse espaço como forma de linguagem
concreta das relações sociais, entendendo dentro do paradigma linguístico, que espaço é
prática, dessa forma traria a população como peça central, mesmo quando a discussão
envolve o espaço cívico, dentro da lógica de um imaginário político (ANDRADE, 2002,
p. 42).
Esse tipo de discurso nos obriga a pensar num descolamento entre os indivíduos
comuns e a cidade em si, uma vez que as abordagens sobre a mesma são feitas baseadas
apenas nos indivíduos políticos, perdendo a totalidade da trama social.
Isso nos é evidenciado nas representações áticas entre pessoas comuns e
gestores, onde na maioria das vezes se tem elementos sociais representantes do povo
envolvidos nas situações degradativas pelas quais um gestor não se deixaria representar.
A questão é: apenas a camada considerada não cidadã se envolvia em práticas que
abandonavam os padrões sociais?
A resposta é não. Não há uma lógica nas representações entre as práticas sociais
e políticas. A diferenciação era plausível sim, nos registros oficiais e leis que tratavam a
conduta social – os Códigos de Conduta - mas na prática não era tão clara assim entre os
paradigmas políticos e o cotidiano que envolvia os habitantes de Atenas.
Acontece que a compreensão de cotidiano para eles era um tanto deturpada, uma
vez que esse vivido era algo restrito ao lar, ao fazer da família ao abordar as classes não
cidadãs, e sendo assim, era algo muito pequeno e não deveria ser tratado por um
legislador. O que podemos perceber é justamente o contrário, pois é dentro desse quadro
39 Esse esquecimento da pólis enquanto cidade está atrelada principalmente a estilização do modo de vida dentro dela. Está mais que comprovado que as práticas sociais em Atenas não correspondiam a toda essa perfeição geralmente posta na historiografia tradicional. Precisamos pensá-la enquanto local de interações sociais, não cenário de reproduções idênticas aos modelos sociais (ANDRADE, 2002, p. 33)
45
cotidiano que encontramos os caracteres mais relevantes da sociedade ateniense e é
dentro desta perspectiva que a análise se torna relevante.
Enquanto no campo essas imagens representavam basicamente os homens
desempenhando suas funções de próprio sustento, na cidade essas produções iam além
do habitual desenvolvimento econômico. Traziam como temáticas as guerras, o
administrativo, assim como o particular, o secreto, como era o caso de grande parte dos
vasos que elucidam comportamentos nas festas orgiásticas comumente realizadas pela
elite ateniense, a mesma que condenava tudo que de alguma maneira ligasse esse
indivíduo ao que foi denominado por eles como submundo.
O submundo40 era o universo que abarcava todas as atividades tidas como
indesejáveis ao cidadão, atividades essas que geralmente lhe levariam aos caminhos da
prostituição e dos vícios. Nesse universo simbólico-mental geralmente era a mulher
quem recebia toda a carga negativa de preconceitos e titulações, porém isso não foi
suficiente para garantir que os homens também não estivessem dentro desse processo de
construção de estigmas do impuro, do imundo.
A força de controle do Estado sobre as casas de prostituição assim como de
quaisquer indivíduos ligados a esse dito submundo é um reflexo da visão de impureza
forjada mentalmente nos ditos cidadãos de bem e da necessidade estatal de regulamentar
as atividades ditas “clandestinas”. Essa necessidade nos evidencia uma das grandes
contradições desse contexto, pois, a elite que condena tais ações é a mesma que
patrocina e gerencia as práticas assim como os profissionais que circundam esse mundo
obscuro.
A banalização da figura feminina, o consumo desenfreado do vinho, assim como
a embriaguez são práticas comumente representadas nas imagens urbanas e a ativa
presença do músico nessas ações o associam ao indigno. Essa associação corrobora com
sua relação depreciativa ao mundo assalariado, de tal maneira que o único fator que
melhora a visão sobre ele é a valorizada instituição da educação musical. Podemos
assim, construir apenas uma experiência do cotidiano em sua ligação mais íntima com
as representações do espaço social, onde o espaço é vetor das mais diversas formas de
sociabilidade, onde a estilização do cotidiano pregada em Atenas naturalmente produz
40 O submundo seria a representação de um espaço mental, onde seriam desenvolvidas as práticas de cunho sexual, envolvendo as relações homoeróticas, a embriaguez e todas as ações que depreciavam a moralidade do espírito. No conceito estaria presente a ambiguidade de definição entre o público e o privado, pois o lugar físico encontrava-se envolto nas práticas tidas como particular, porém o que legitimava tais práticas e os gêneros presentes fosse masculino ou feminino era o imaginário mental, ou seja, o público. (ANDRADE, 2002, p. 93).
46
representações do espaço urbano como espaço vivido e dessa forma faz-se
compreensível o papel dado à estrutura política enquanto pólis e os indivíduos enquanto
produto da mesma.
47
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação formal surge na Grécia Antiga, mas há muito ainda a se estudar
sobre isso. Vimos aqui uma interpretação a cerca da evolução da educação em Atenas e
muitos são os valores perpassados por ela como: criação dos valores humanos,
descoberta do homem a si mesmo e da infinidade de caráter, o predomínio da razão
sobre o cognitivo-dogmático, intelecto crítico em detrimento do autoritarismo religioso,
a formação da cidadania, vida cívica e organização política, a dualidade entre vida
pública e a vida privada, legislações que permeiem este convívio, reconhecimento do
valor educacional na vida do homem seja ela política ou individual, considerando sua
influência na integridade física, psíquica, intelectual e ética.
A educação grega visa à formação integral – físico e espírito – voltada a
preparação guerreira e ao debate intelectual, isso após o surgimento da pólis e da
necessidade do indivíduo de ocupar papel de destaque na sociedade. A pólis não é nada
sem seus cidadãos, assim como estes não são nada sem sua cidade.
O que faz a Grécia criar um sistema pedagógico único é sua diferenciação
organizacional, onde a cidade-estado regulamenta a vida integral do cidadão e faz com
que este se desenvolva mesmo submisso ao Estado, pois como explicado no imaginário,
o Estado só existe pelo povo.
A música não poderia estar de fora dessa justificação, pois de todas as artes ela
era a de maior prestígio, igualando até mesmo sua importância social ao do próprio
idioma. A educação musical era bastante estimada na formação dos jovens cidadãos
devido seu caráter moralizante.
Perpassamos pelo profissional responsável por esse ensino e suas dificuldades
neste percalço, discutindo as inúmeras visões e preconceitos envoltos neste ofício.
Também pensamos naquele que paga esse profissional, o cliente que necessita da
instrução para se encaixar no padrão educacional imposto pela pólis.
O professor de música sempre se encontrava no centro de uma ambiguidade
conceitual, ora como o profissional liberal de fundamental importância na formação dos
jovens, ora como o indivíduo pertencente à lógica cruel do mundo do trabalho
assalariado e da necessidade.
48
Soma-se a sua dependência do salário e ao esforço físico os inúmeros valores
depreciativos que comumente são associados ao músico profissional, ligada ao mundo
dos vícios e das paixões, da embriaguez e prostituição.
Em contrapartida, o músico amador participante dos coros e que não se
aventurava em execuções musicais difíceis e extremamente técnicas, estaria marcando
pontos em mais um traço de civilidade com louvores às Musas e mostrando como o alto
valor da formação básica na composição de um bom cidadão.
A dedicação à teoria musical não era condenada, mas geralmente era seguida
apenas pelos professores e o simples fato deste encontrasse inserido no mundo do
trabalho assalariado automaticamente seria associado às depreciações trazidas com o
salário.
Como vimos a supervalorização dada pelos gregos em relação à música desde os
tempos homéricos não foi suficiente para transferir esse valor ao profissional que tão
habilmente se empenha em desenvolvê-la. O que acaba por dividir a sociedade
ateniense entre aqueles cujo valor se agrega a ideologia difundida pelas elites e aos
demais que preferem avaliar o trabalho do músico enquanto artista, fora da esfera do
mundo assalariado.
Marrou exprime essa ambivalência diante da figura dos músicos:
Eles são, com certeza, admirados por seu talento, e não se hesitará jamais em pagar seus serviços por bons preços, mas ao mesmo tempo são desdenhados; não pertecem normalmente ao meio social onde são recrutadas as pessoas cultas; seus hábitos, sem dúvida, não tão suspeitos como aqueles dos pantomimos; no entanto, o caráter mercantil de sua atividade basta para os desqualificar. (MARROU, 1998, p. 212).
Nessa confusão onde o músico encontrava-se como peça central, percebemos no
conjunto de julgamentos feitos a ele, que “tudo é mais ou menos verdadeiro”, onde
propor questões de como era a real visão que se tinha acerca do músico é irrelevante.
Faz-se completamente compreensível os preconceitos criados sobre os
profissionais que se utilizavam da prostituição institucionalizada como meio de
sustento, sendo assim hetairai e pornai enquanto peças fundamentais nos simposoi
foram eternamente depreciadas pelos contratantes.
Já no caso de professores, concertistas e compositores, pessoas não maltrapilhas
e coniventes com a elite durante a maior parte de sua vida, gozam de certo conforto
entre os cidadãos pela eficácia e projeção social de seu trabalho, mas ainda sim não
escapam das associações ao salário e do “servir a outrem”.
49
À guisa de conclusão, a relevância não está ligada ao descobrimento do
vencedor nesta ambiguidade, se o desprezo ou a admiração, pois ambas as respostas
estariam corretas se levadas em consideração quem é o opinante e em qual situação a
exprime.
Vimos também a existência de diferenças simbólicas em ser um músico no
campo e um música na cidade, e como o espaço físico acaba mudando por completo as
relações servis, nos levando a por em cheque que talvez essa relevância dada à música
seja também um fator delimitador dos espaços, uma vez que, a música só é posta em
alta conta devido a valorização dada a ela pelos formadores da elite e participantes
ativos nas decisões do Estado.
Assim como o termo paideia, os conceitos de educação e cultura se fundem, pois
na pólis, não se educava apenas no seio das famílias ou nas escolas, era
responsabilidade do Estado dar continuidade na educação através das atividades
coletivas atingidas pela esfera pública, fossem elas nos jogos, nas reuniões políticas, nas
representações dramáticas. A todo o momento, modelos sociais estavam sendo criados e
difundidos e cabia ao cidadão perceber e aspirar sua adequação a um desses perfis.
Por fim, é a nova forma de organização de Atenas e a concepção de Estado
responsáveis pelo surgimento da figura do cidadão e o conceito de coletividade rega
todos os meandros da discussão. A música, a pólis e a educação são elementos
fundamentais na construção destes indivíduos enquanto peças coletivas da sociedade.
50
ANEXOS
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Figura 4. Jovens assistindo um adulto tocando lýra. Provavelmente trata-se de um lugar
fechado devido à presença de colunas e o lyrista pode ser considerado adulto devido à
presença de barba. Os motivos geométricos são comuns ao século V.
Fonte:http://romulogondim.com.br/reconstituicao-mostra-musica-era-tocada-ha-1-800-anos-
grecia-antiga/
Figura 5. Cena de fonte, muito comum nas representações áticas. Motivos típicos do
século V, temos alguns rapazes nus representados em um ambiente aberto. A nudez não
representa o desenvolvimento de situações íntimas na cena, e sim a naturalidade e
beleza do corpo masculino. Jovem ao meio é mostrado bárbitos.
Fonte:http://virtualiaomanifesto.blogspot.com.br/2009/05/os-amantes-dos-deuses-e-herois.html
52
Figura 6. Cena mitológica onde homem tenta apaziguar os vícios entre os sátiros com o som
da lýra. Estes também são mostrados como sujeitos ativos na cena com as krotalas à mão.
Fonte: http://letraseprozac.blogspot.com.br/2011/09/como.html
Figura 7. Perfil de jovem tocando uma duaulós. Esse tipo de instrumento era proibido
em algumas cidades por apresentar uma forma fálica e por impedir uma harmonização
entre a sonoridade do instrumento e a voz lírica.
Fonte: http://inconcertam.blogspot.com.br/2012/10/musica-na-grecia-antiga.html
53
Figura 8. Jovem com a aulós de palheta. Provavelmente a cena representa uma situação ao ar
livre. (Reprodução com ampliação para melhor visualização da palheta).
Fonte: http://classicaunirio.blogspot.com.br/2012/04/musica-grega-antiga-1-o-aulos.html
Figura 9. Jovem tocando lýra. Juventude denunciada pela ausência de pelos faciais e
formas do cabelo.
Fonte: http://historiafaccamp.blogspot.com.br
54
Figura 10. Orbe musical representando uma sala de aula e o ensinamento da lýra. O ancião é o
professor (bengala e barba) e temos tanto a lýra quanto a aulós representadas.
Fonte: http://www.brasilescola.com/curiosidades/a-origem-das-notas-musicais.htm
Figura 11. Cena cotidiana com jovem executando a lýra.
Fonte: http://www.uniblog.com.br/miradacriadora_pre_antig/
55
Figura 12. Cena de um simpósio, onde um homem adulto aprecia a execução do jovem na
aulós.
Fonte: http://nerdalternativo.blogspot.com.br/2010/11/o-que-define-uma-boa-musica.html
Figura 13. Orbe musical com a presença de um único homem e demais participantes da cena
são mulheres, uma tocando a aulós e as demais dançando. O mais provável é que seja uma cena
ritualística.
Fonte:http://www.epochtimes.com.br/conheca-arte-cultura-egeia-provenientes-grecia-
antiga/#.UpZFPtKkqN0
56
Figura 14. Sístro arcaico. Era o instrumento mais comum no meio rural, suas divisórias tonais
funcionavam de forma parecida ao xilofone atual.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki
Figura 15. Jovem se prepara para prática de sexo interfemoral com erástes. A sacola em sua
mão provavelmente apresenta um presente oferecido pelo seu pederasta. Podemos observar
também a ereção do erástes, que apalpa o jovem.
Fonte: http://historiapratodomundo.wordpress.com/2013/05/14/a-vida-na-antiga-grecia/
REFERÊNCIAS
57
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59 f.:il.
Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2013.
Orientador: Profa. Dra. Ana Lívia Bonfim Vieira
1.Educação. 2.Música. 3.Atenas. 4.Paideia. 5.Cidadão. I.Título
CDU: 94(38):78