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1 Ilícito civil, esse desconhecido... _____________________________________________________________ Felipe Peixoto Braga Netto ([email protected] ) Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República) Mestre em Direito Civil pela UFPE Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor da ESDHC Ex-professor de Direito Civil e Consumidor da PUC/MINAS Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais 1. Contextualizando uma homenagem 2. Direito civil: os modelos clássicos de referência 3. O ilícito na teoria geral do direito 4. O ilícito civil na experiência jurídica brasileira 4.1. Lícito e ilícito: um abismo teórico 4.2. A ausência de padrões metodológicos severos 4.3. Ilícitos civis: uma categoria com eficácia única? 4.4. Críticas à concepção da eficácia única 5. Convivendo com as outras eficácias 1. Contextualizando uma homenagem - Esse artigo analisará os ilícitos civis na experiência jurídica nacional. Esse tema – tão interessante e tão ausente na doutrina nacional – nasceu em nosso espírito quando ainda cursávamos a graduação em Direito na Universidade Federal de Alagoas. E nasceu, especificamente, a partir da convivência intelectual com Marcos Bernardes de Mello. De suas aulas, que transbordavam sabedoria humanista e, posteriormente, dos seus livros, que congregam – fenômeno raro, reconheça- se – o mais alto grau de apuro científico aliado à clareza e sistematicidade na exposição. Posso dizer – o leitor nos dê licença para que usemos a primeira pessoa, mais adequada a tais confissões – que possivelmente não me inclinaria aos estudos de direito civil, nem perceberia o notável rigor conceitual da teoria dos fatos jurídicos, se não tivesse tido a benção de conhecer, ainda na graduação, o Mestre Marcos Bernardes de Mello. Mestre com m maiúsculo, no mais belo sentido da palavra – generoso, luminoso, cordialmente severo, sempre pronto a dividir seu amor pela ciência jurídica com aqueles que mal divisavam os primeiros degraus de uma imensa, colossal escadaria.

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Ilícito civil, esse desconhecido... _____________________________________________________________

Felipe Peixoto Braga Netto ([email protected]) Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República)

Mestre em Direito Civil pela UFPE Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor da ESDHC Ex-professor de Direito Civil e Consumidor da PUC/MINAS Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais

1. Contextualizando uma homenagem 2. Direito civil: os modelos clássicos de referência 3. O ilícito na teoria geral do direito 4. O ilícito civil na experiência jurídica brasileira 4.1. Lícito e ilícito: um abismo teórico 4.2. A ausência de padrões metodológicos severos 4.3. Ilícitos civis: uma categoria com eficácia única? 4.4. Críticas à concepção da eficácia única 5. Convivendo com as outras eficácias

1. Contextualizando uma homenagem - Esse artigo analisará os ilícitos civis na

experiência jurídica nacional. Esse tema – tão interessante e tão ausente na doutrina

nacional – nasceu em nosso espírito quando ainda cursávamos a graduação em Direito na

Universidade Federal de Alagoas. E nasceu, especificamente, a partir da convivência

intelectual com Marcos Bernardes de Mello. De suas aulas, que transbordavam sabedoria

humanista e, posteriormente, dos seus livros, que congregam – fenômeno raro, reconheça-

se – o mais alto grau de apuro científico aliado à clareza e sistematicidade na exposição.

Posso dizer – o leitor nos dê licença para que usemos a primeira pessoa, mais

adequada a tais confissões – que possivelmente não me inclinaria aos estudos de direito

civil, nem perceberia o notável rigor conceitual da teoria dos fatos jurídicos, se não tivesse

tido a benção de conhecer, ainda na graduação, o Mestre Marcos Bernardes de Mello.

Mestre com m maiúsculo, no mais belo sentido da palavra – generoso, luminoso,

cordialmente severo, sempre pronto a dividir seu amor pela ciência jurídica com aqueles

que mal divisavam os primeiros degraus de uma imensa, colossal escadaria.

2

Confesso que nunca presenciei Marcos Bernardes de Mello - não obstante a imensa

estatura de seu conhecimento científico – perder a paciência com alunos menos

comprometidos, ou se esquivar de perguntas impertinentes. Marcos sempre apontou para a

necessidade da leitura das boas obras: por sua influência, não apenas eu, mas muitos, de

muitas gerações, se encorajaram à leitura de Pontes de Miranda – jurista cuja obra

ultrapassa qualquer elogio que se lhe possa fazer.

Poderíamos seguir falando sobre Marcos Bernardes de Mello, mas, cientes da

advertência de Machado de Assis – “o louvor e a censura fazem-se com poucas palavras” -,

iniciaremos a parte dogmática, por assim dizer, do presente artigo. Mencionamos acima que

o tema não provoca a consideração que deveria provocar. E realmente assim ocorre. Nosso

interesse pela matéria, surgido na graduação, resultou numa dissertação de mestrado,

orientada, com segurança e lucidez, por Paulo Luiz Netto Lôbo. Tentaremos, nas páginas

seguintes, sintetizar alguns pontos que nos parecem de maior relevância.

A doutrina nacional, em sua amplíssima maioria, identifica ilícito civil com

responsabilidade civil. Imagina, portanto, que ilícitos civis são aqueles previstos no Código

Civil (arts. 186 e 187), cujo efeito é, sempre e apenas, o dever de indenizar (art. 927).

Tentaremos mostrar que tal visão é parcial e não dá conta da realidade do mundo jurídico.

Na verdade, bem vistas as coisas, os ilícitos civis perfazem um rico gênero, variado e

multiforme, cujos contornos não aceitam a tradução dogmática oferecida pela doutrina

clássica, ainda hoje repetida nas novas edições.

Pontes de Miranda, com a antevisão que o distinguia, percebeu, antes de todos, que

os ilícitos civis são um gênero com múltiplas espécies, cada uma delas com requisitos e

efeitos diferenciados. Marcos Bernardes de Mello, em sua Teoria do Fato Jurídico – trilogia

que adquiriu, por seus méritos, lugar entre os clássicos da literatura jurídica nacional -,

sistematizou e problematizou, relativamente aos ilícitos, a obra de Pontes, ocupando a parte

final do primeiro volume – Teoria do Fato Jurídico (Plano da Existência).

3

Nossa contribuição se limitará a contextualizar a discussão dos ilícitos civis no

direito brasileiro, evidenciar (esperamos) a incorreção dos que perfilham uma visão

limitada da categoria e, por fim, propor uma classificação à luz de três critérios distintos

(suporte fático abstrato; relação jurídica violada; efeitos produzidos). O título do artigo,

abertamente provocativo, alude ao hábito, nada raro, de confundir a categoria (ilícitos civis)

com um de seus efeitos (responsabilidade civil).

2. Direito civil: os modelos clássicos de referência - Buscaremos, neste tópico,

contextualizar o direito civil contemporâneo, evidenciando as mudanças que têm redefinido

seu perfil. O direito civil, tradicionalmente, ao longo de sua rica caminhada - na qual muito

se lê da própria história humana -, sempre foi apresentado como o direito por excelência,

aquele ramo que provia os demais com os conceitos essenciais, com as noções e categorias

que, embora forjadas há perdido tempo, permaneciam, com notável vigor, através dos

séculos.

Essa auto-suficiência do direito civil o deixou, durante muito tempo, como que

isolado das demais áreas jurídicas. Havia uma implícita petitio principii: nenhum outro

ramo do direito seria capaz de fornecer as pautas do direito civil. Mais: não importava,

sequer, a constituição política adotada, porquanto o direito civil bastava-se, prescindindo de

achegas de outros ramos jurídicos1.

Foi no século dezenove qual tal crença atingiu o paroxismo. Sob a égide da Escola

da Exegese, o direito civil foi identificado com os códigos civis - ou com o Code de

Napoleão, mais propriamente - e difundiu-se o dogma, até hoje repetido, que direito civil é

o Código Civil, afastando-se, como impossível, qualquer forma de aproximação do direito

civil com outros ramos do saber jurídico, e, a fortiori, qualquer interdisciplinariedade

externa.

Ao direito de então importava sobretudo a forma. Era importante estar codificado,

constar, de alguma maneira, nos repositórios legais existentes, cujos ápices foram

1 Paulo Luiz Netto Lôbo, "Constitucionalização do Direito Civil".Direitos e Deveres, n. 3, jul./dez. Maceió: Imprensa Universitária, 1998, p. 92.

4

induvidosamente os códigos. Havia um endeusamento da atividade legislativa, considerada

sacra e perfeita, em claro detrimento da atividade hermenêutica2.

A idéia de codificação, destarte, tão cara aos séculos dezoito e dezenove, foi

fundamental nesse processo. Os códigos civis representavam a concretização dos ideais de

estabilidade e segurança, próprios às sociedades então existentes. Interessante é que os

códigos refletiam não apenas as relações sociais cuja regulação apresentava-se como

necessária, mas traduziam respeitável esforço analítico, e forcejavam por incluir todo o

arcabouço teórico do direito civil acumulado desde os romanos3.

De toda sorte, a era da codificação correspondeu a um período histórico bem

definido. Se a sociedade, até o século dezenove, poderia ser caracterizada - em linhas

muitos gerais e com a inexatidão intrínseca a semelhantes simplificações - pela constância

das relações, atualmente o prisma é bastante diverso4.

Hoje predomina, de forma bastante caracterizada, a fragmentação das fontes

normativas5, com o surgimento de sistemas parciais, com metodologia e terminologia

próprias, o que não deixa de ser desconcertante para a mentalidade tradicional do jurista.

Não existe mais a fonte; existem uma multiplicidade delas, sem que nenhuma ocupe uma

posição de absoluta proeminência, excludente das demais.

2 Pertinentes as observações de Weinberger: "Nos dias de hoje, sob o influxo das idéias democráticas, ninguém mais crê na sacralidade do direito ou vê na tradição uma justificação suficiente das instituições sociais. Estamos convencidos de que o homem pode modelar e remodelar o seu sistema político e que as disposições jurídicas e as instituições sociais devem ser examinadas criticamente e justificadas sobre a base de análises funcionais e valorativas" (Ota Weinberger, "Politica del diritto e istituzioni". Il diritto come istituzione, Neil MacComick e Ota Weinberger, Milano: Giuffrè, 1990, p. 287). 3 Vale a citação, ainda que longa, de Arnaldo Vasconcelos: "A permanência jurídica se manifesta, em toda sua plenitude, no setor específico das codificações. E, aí, especialmente em matéria de Direito Civil, tido por protótipo do conservadorismo jurídico. O caso de maior representatividade é o do Código Civil francês de 1804, que nasceu num país agrícola e continua servindo a uma potência atômica. Nosso Código Civil já passou dos sessenta e o Comercial festejou seu centenário há vinte e cinco anos. Por isso já se disse, não sem ironia, que em Direito os vivos são regidos pela vontade dos mortos". (Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 144). 4 O século dezenove foi pródigo em generalizações, amplas construções teóricas e esquemas abstratos. (George H. Mead, Movements of thougt in the nineteenth century. Chicago: The University of Chicago Press, 1972). 5 Celso Fernandes Campilongo, “Teoria do Direito e Globalização Econômica”. O Direito na Sociedade Complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 142.

5

O modelo oitocentista de codificação está sendo progressivamente substituído por

sistemáticas relativamente autônomas, que congregam, com sucesso, determinadas

relações, cuja especificidade autoriza normas próprias.

É difícil, atualmente, em termos de direito público e privado, achar algo que não

esteja numa zona cinza6. As influências recíprocas são muito fortes. Tudo, sob certo

aspecto, interpenetra-se. O direito público privatiza-se; o direito privado publiciza-se.

No plano empírico, não há, freqüentemente, espaços estanques. Se, nos grandes

códigos, a separação era um objetivo a ser buscado, existindo monumentos do saber

privado (códigos civis) e monumentos do publicismo (constituições), hoje prepondera a

preocupação prática. Legisla-se, no mundo contemporâneo, sem maiores indagações se a

norma é de direito público ou de direito privado7. Simplesmente legisla-se, buscando

atingir, com eficiência, as finalidades normativas. Há, por certo, referências temáticas

(consumidor, meio-ambiente), mas são referências a aspectos da vida social, e não a ramos

do direito.

Norberto Bobbio constatou que a distinção entre direito público e privado, em si

mesma dinâmica e relativa, não tem nenhuma razão para subsistir, se adotado, como

critério de bipartição, as fontes normativas8.

Atualmente, seduz poucos a ilusão de um código que discipline, com exaustão, a

vida civil. A pretensão de plenitude, traduzida num sistema totalizador de normas

integradas, cedeu espaço para uma nova realidade, demasiadamente complexa para caber

num único instrumento normativo.

6 Celso Fernandes Campilongo, Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 51. 7 Nelson Saldanha: "Isto sem embargo do fato de que o conhecimento do Direito, no plano empírico (incluindo-se aí a leitura direta das normas vigentes), não conduz, pelo menos como resultado imediato, à verificação do caráter 'público' ou 'privado' das regras e dos institutos". (Estudos de Teoria do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 51). 8 Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 84.

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Toda essa gama de fatores contribuiu, em variável medida, para que o direito civil

deixasse de ser, com destacada hegemonia, o definidor das pautas jurídicas. Atualmente o

direito civil submete-se, como os demais ramos, aos ditames constitucionais, não havendo

desníveis hierárquicos senão em relação à Constituição, como instrumento que plasma todo

o sistema jurídico.

O direito civil deixou de ser o fornecedor por excelência do modo de ser jurídico9.

Houve um progressivo deslocamento da órbita do sistema jurídico, cujo centro passou a ser

a Constituição, e seus valores fundamentais. Com esse fenômeno, o direito civil passa a ser

apenas mais um setor, sem status diferenciado, devendo pautar seus institutos, conceitos e

normas pelo crivo dos valores institucionalizados na Constituição10.

Nessa medida, dificilmente teremos, no plano do direito civil, uma conduta

aberrantemente agressora das convicções sociais como conforme ao direito. Há quem

afirme que em face da atual Constituição brasileira, que adotou, entre os princípios

fundamentais da República, a cidadania, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III), e

entre os objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e

solidária (art. 3º, I), qualquer lei injusta será potencialmente inconstitucional11.

Fala-se então em "despatrimonialização", "repersonalização", como questões que

estão na ordem do dia, instando os juristas a reler toda a legislação infra-constitucional com

novos olhos, tendo presentes os valores constitucionalmente prestigiados. Essa redefinição

dos valores do direito civil exige certa humildade epistemológica. É dizer: ao civilista

moderno não é dado isolar-se, manter-se em clausura intelectual, como se no século dezoito

9 Sobre a questão da concepção privatística apresentar-se como sendo o direito, Nelson Saldanha, "Conceituações do direito: tendência privatizante e tendência publicizante". Estudos de teoria do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 44. 10 "Trata-se de uma mudança nos axiomas. Os elementos básicos, estruturantes do sistema, aqueles a partir dos quais se inicia a lógica da inferência no juízo decisório, se encontravam no Código. Agora, percebe-se que estão no Código, na Constituição, nos tratados, no costume, que são as fontes onde encontramos as normas fundamentais" (Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 79). 11 Oscar Vilhena Vieira. "A Constituição como reserva de justiça". Lua Nova - Revista de Cultura Política. n. 42, São Paulo: Cedec, 1997, p. 96.

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estivesse. O direito de hoje exige uma abordagem menos estreita e parcial, que possibilite

visões multi-setorais e portanto mais integrais.

É preciso compreender, quando se fala em crise, que se está diante de um termo que

comporta várias significações12. Crise pode significar não apenas o fim de um modelo ou

concepção, mas também sua transformação. Assim, determinados tipos de sociedade ou de

cultura é que estariam em crise, e não a sociedade ou a cultura13. Traçando um paralelo,

não é o direito civil que está em crise, mas sim uma determinada concepção a seu respeito.

Quando o Código Civil de 1916 foi promulgado, a Constituição então vigente

vedava que os mendigos se habilitassem no processo eleitoral. Tratava-se de norma que

vigeu até a Constituição de 1934. Vedava-se, através dela, a participação como eleitor em

razão de um só critério: a posse (ou sua ausência) de bens materiais.

Se recuarmos ainda mais no tempo, veremos, no direito romano, o direito dos pais à

vida e à morte dos filhos, assim como à sua venda e exposição14. É possível, na evolução

dos institutos, notar uma lenta porém contínua caminhada no sentido da superação dos

valores estritamente argentários, em favor de considerações de ordem ética, que atentam

para a dignidade humana.

Atualmente, verifica-se um crescente esvaziamento das concepções estritamente

baseadas no patrimônio, preponderantes, na sistemática tradicional, até mesmo nas relações

familiares15. Sob o influxo mesmo dos valores trazidos ao sistema pela Constituição, o eixo

temático do direito civil modificou-se, adjetivando-se de constitucional, e recebendo, como

valor fundante do sistema, a pessoa humana, em suas múltiplas dimensões.

12 Não deixa de ser reveladora a origem do vocábulo crise, do grego krísis, que significa, primeiramente, a faculdade de distinguir. As épocas de crise servem, em grande medida, para redimensionamento de perspectivas. Por mais paradoxal que possa parecer, a idéia de crise, que deveria representar um momento de contraste com a normalidade habitual, tornou-se uma constante teórica, sobretudo após a Revolução Francesa. 13 Nelson Saldanha, Ordem e Hermenêutica. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 1. 14 Pontes de Miranda. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928, p. 77. 15 Paulo Luiz Netto Lôbo, O Direito de Família e a Constituição de 1988. Carlos Alberto Bittar (Organizador). São Paulo: Saraiva, 1989.

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Do direito civil pode-se dizer, hoje, que é um sistema em construção16. O curioso -

e, em verdade, interessantíssimo - é que o direito civil parece absorver, da fórmula

constitucional, não só os conteúdos normativos substanciais, como também os modelos

sintáticos, isto é, a forma de veicular normas.

Nesse contexto, o modo clássico de formulação de normas jurídicas, mediante a

interligação sistemática de regras casuístas, está progressivamente esvaziando-se em

importância. Hoje ganham singular relevo os princípios, as normas que veiculam tipos

abertos17. Tais fenômenos conduzem ao questionamento da função prestante das grandes

codificações, cuja pertinência está sendo vivamente questionada. Alude-se à codificação e

contemporaneidade como termos antitéticos. Não haveria, nesse contexto, como adequar o

modelo estático e fechado dos grandes códigos com a surpreendente agilidade da vida

contemporânea, onde tudo, a todo instante, modifica-se18.

Destarte, a grande vantagem da concepção contemporânea, menos rígida,

relativamente àquela dos tipos fechados é, basicamente, sua maior flexibilidade, em

contraste com as grandes codificações dos oitocentos, cujo envelhecimento é fatal, à

medida que nelas se casam a pretensão de plenitude com fórmulas rigidamente

deterministas, sem muito espaço para as potencialidades da atividade hermenêutica19.

A constatação de que o ordenamento jurídico não é só formado por normas (normas,

bem entendido, em sentido estrito, como sinônimo de regras jurídicas, expressão por sinal

muito utilizada no século dezenove), mas também por princípios, alterou, de modo

16 A expressão é de Josaphat Marinho, no Parecer Final que apresentou, como relator, ao Projeto do Código Civil (Projeto de Lei nº 118, de 1984 , posteriormente aprovado como Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), in: Internet, www.senado.gov.br. 17 José Carlos Barbosa Moreira. "Regras de Experiência e Conceitos Indeterminados". Temas de Direito Processual, segunda série. São Paulo: Saraiva, 1996. 18 Observa Antônio Menezes Cordeiro: "As codificações, essencialmente redutoras e simplificadoras, provocam, num primeiro momento, atitudes positivistas. Trata-se de uma conjunção facilmente demonstrada na França pós-1804, na Alemanha pós-1900 e em Portugal pós-1966".("Os dilemas da ciência do direito no final do século XX", prefácio à obra de Claus Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. XIII). "O primeiro pendor dos comentadores é para a exegese literal, ou a distribuição das regras em proposições coerentes, lógicas, que nunca se podem atacar entre si, nem, sequer, premir" (Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 70). 19 Natalino Irti, L'età della decodificazione. Milano: Giuffrè, 1989, p. 8.

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significativo, a própria idéia de sistema jurídico, que teve de abandonar o acentuado timbre

formal, tão presente nas formulações dos séculos passados.

Aliás, é fácil notar que a concepção pandectista, essencialmente lógica e firmada no

raciocínio sistemático-dedutivo, não deixava muito campo à atuação dos princípios. O

ordenamento era formado pela concatenação lógica de regras, que esgotavam as

possibilidades de regramento das condutas. Havia a pretensão de plenitude, própria de uma

sociedade cujas relações sociais ostentavam menos variáveis.

Tal forma de pensar, traduzida, em termos teóricos, pelo conceptualismo, forcejava

por construir, com inegável beleza formal, toda uma cadeia, logicamente relacionada, de

conceitos e categorias que traduziriam, de modo apriorístico e abstrato, os conflitos

concretos existentes.

Essa foi uma visão que dominou, por muito tempo, o pensamento jurídico, e trouxe

inegáveis avanços para a ciência do direito, aprimorando a precisão lógica dos institutos.

Contudo, é algo fora de dúvida que sua persistência, seja como material de explicação do

que ocorre atualmente, seja como contribuição para a formação do direito legislado, é

impertinente e de escassa utilidade.

Os ordenamentos jurídicos contemporâneos, destarte, progressivamente

abandonaram a forma de veicular normas jurídicas apenas através de regras escritas e

específicas. Naturalmente, a própria dinâmica social revelou a incompatibilidade dos fatos

com um sistema estático de regras casuisticamente postas20. De fato, "um modelo de

sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de

limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa -

legalismo - do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os

resultados das regras jurídicas"21.

20 Tecla Mazzarezi, Forme di razionalità delle decisioni giudiciali. Torino: Giappichelli Editore, 1996, p. 90. 21 J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 168.

10

Por longo tempo associou-se "bom direito" a regras escritas, que concretizassem,

minuciosamente, as situações jurídicas protegidas. Essa foi uma visão muito comum no

século dezenove, com largos reflexos no século vinte, que ainda hoje deixa seus vestígios.

Gustavo Tepedino argumente diagnostica: "Insculpiu-se na cultura jurídica, como

conseqüência, a convicção de que sem a regulamentação específica de cada situação

subjetiva, com a definição exata dos poderes do titular, não há bom direito"22.

O direito contemporâneo, dessa forma, parece caminhar no sentido de relativizar o

vínculo entre proteção jurídica e normas com alta densidade semântica, isto é, normas

minuciosamente formuladas. Essas normas, decerto, continuarão a existir, com indiscutível

utilidade, em múltiplas situações. Cabe apenas ressalvar que as fontes normativas, grosso

modo, em especial aquelas situadas no vértice do sistema, passaram a operar com um valor

não absoluto de constância, o que possibilita uma atividade jurídica mais permeável aos

valores23.

Essa viragem em direito em direção a normas de teor semântico menos preciso

prestigia, inegavelmente, a atividade hermenêutica. Aliás, a figura do magistrado neutro,

avesso a qualquer contato com os valores, foi construção, historicamente condicionada, da

Revolução Francesa, que muitos acreditaram traduzir verdade perene, independe de

qualquer contexto social24.

A consagração crescente dos valores, e, por conseguinte, a valorização da

hermenêutica, importa, por certo, numa redução do prestígio da segurança jurídica, valor

por excelência do direito no Estado Liberal. Um sistema que opera com valores e princípios

é certamente menos previsível do que um sistema rigorosamente fechado, silogístico e

formal. 22 "O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa". Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 1/16, p. 2. 23 "Neste contexto, o Direito se torna um regulador de procedimentos cuja função é legitimar decisões de conteúdo indeterminado. Tal indeterminação não significa, no entanto, aleatoriedade. O sistema jurídico recolhe a núcleos de sentido como os valores, as pessoas, os papéis sociais e as ideologias para conferir conteúdo às normas". (Maurício Portugal Ribeiro, "O direito contemporâneo e a metodologia de ensino do direito". Direito Global. Carlos Ari Sundfeld e Oscar Vilhena Vieira (Coordenadores). São Paulo: Max Limonad, 1999, pp. 93/106, p. 96. 24 Michel Miaille, Une Introduction Critique au Droit. Paris: Maspero, 1982, p. 45.

11

A respeito, observa, com lucidez, Francisco Amaral: "Sob o ponto de vista

axiológico, a segurança jurídica perde terreno para os valores do bem comum e da justiça

social. O pensamento jurídico passa a orientar-se mais em função dos valores do que dos

interesses, recorrendo cada vez mais às cláusulas gerais e aos princípios jurídicos,

categorias que não permitem maior rigor no trabalho lógico-dedutivo, ou raciocínio de

subsunção, o que leva a falar-se atualmente em 'perdas de certeza' no pensamento

jurídico"25.

Não há, no entanto, porque lastimar essa perda de certeza, mesmo porque seria

teoricamente ingênuo pretender manter o instrumental metodológico do século dezenove,

cujos valores típicos eram a segurança e a certeza jurídicas, consubstanciados no pacta sunt

servanda, no dogma absoluto da vontade, na regulação exclusivamente através de regras.

De toda sorte, a perda de certeza, que um ordenamento que opera com valores e princípios

traz, não é um juízo de valor; é antes um contexto histórico cujos contornos começam a se

configurar26.

Esse deslocamento da segurança jurídica, como valor máximo do sistema, é

compensado com a progressiva adoção de expedientes normativos que possibilitam uma

integração mais dinâmica do direito com a sociedade27. Os princípios traduzem, no mais

das vezes, pautas temáticas de valor, isto é, incorporam ao sistema jurídico referências a

fins a serem atingidos e a valores a serem protegidos.

25 "Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro". Revista de Direito Civil. São Paulo, nº 63, 1993, pp. 44/56. 26 "O pensamento jurídico parece encontrar-se em situação análoga àquela em que se achava o pensamento econômico no término dos tumultuados anos 20, ou seja: frente ao desafio de encontrar alternativas para a exaustão paradigmática de seus principais modelos teóricos e analíticos, tal a intensidade do impacto gerado por todas essas transformações em seus esquemas conceituais, em seus pressupostos epistemológicos, em seus métodos e procedimentos". (José Eduardo Faria, O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 14). 27 Franz Wieacker assinala as três características que, a seu juízo, apontam para uma evolução no sentido de um Estado Social: a) a relativização dos direitos privados pela sua função social; b) a vinculação ético-social destes direitos; c) o recuo perante o formalismo do sistema de direito privado clássico do século dezenove. (História do Direito Privado moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967, p. 624).

12

A textura aberta dos princípios permite a "respiração" do sistema jurídico, abrindo

janelas para a incorporação jurídica de valores, pautas que dirigem a interpretação jurídica,

indicando caminhos hermenêuticos a serem trilhados. Os princípios, ademais, por conta de

seu caráter aberto, possibilitam a reunificação do sistema jurídico à luz das referências

constitucionais. Os estudos mais modernos têm frisado que uma eficácia puramente política

dos princípios constitucionais traduz postura envelhecida e superada, sem qualquer amparo

na sistemática contemporânea.

A dignidade da pessoa humana, por exemplo, ilumina e condiciona a incidência de

qualquer norma civil. Seria equivocado supor que se trata de norma dirigida apenas ao

legislador. Os princípios atuam, sem intermediários, nas condutas a eles pertinentes,

plasmando-as e tornando lícitos ou ilícitos os comportamentos que afirmam ou contrariam

suas diretrizes de valor.

O STF, a propósito, em julgado recente de sua segunda Turma, chancelou a tese da

aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas (Drittwirkung) - também

chamada de eficácia horizontal dos direitos fundamentais - aplicando as garantias

constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa às associações

privadas (STF, RE 201.819, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes,

j. 11/10/05, p. DJ 27/10/06).

Ponderou, na oportunidade, o STF: “As violações a direitos fundamentais não

ocorrem somente no âmbio das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas

relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim os direitos

fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes

públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes

privados” (STF, RE 201.819, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes,

j. 11/10/05, p. DJ 27/10/06).

Ademais, a proteção adequada aos direitos fundamentais - em especial, no âmbito

civil, aos direitos da personalidade - exige que o intérprete concretize, à luz das variáveis

13

concretas, os princípios constitucionais, otimizando, de forma valorativa, os expedientes de

tutela. É preciso sublinhar que a forma de solução de conflitos entre princípios é a

ponderação, que impõe recíprocas compressões aos princípios em jogo, possibilitando que

do conflito surja uma solução proporcional e razoável, sem esvaziamento completo de

nenhum dos princípios envolvidos.

Isso evidencia - sublinhe-se novamente - a importância extraordinária da atividade

hermenêutica na aplicação dos princípios. Aliás, segundo parcela da doutrina os princípios

se distinguem das regras em razão da função por eles exercida, ou seja, somente no

momento da concretização mediadora é que os princípios adquirem conteúdo e contorno

específicos28.

Nessa trilha, é fácil perceber que não só regras, mas também princípios constituem o

conteúdo normativo diretor de comportamentos. Por conseguinte, lícitos ou lícitos podem

surgir do confronto das condutas com regras ou com princípios. Aliás, seria anedótico, nos

dias que correm, supor ilícita uma violação, com culpa e dano, ao direito de propriedade, e

não entender igualmente ilícita - e ainda mais desprezível sob o aspecto ético - uma conduta

que agride e despreza a dignidade da pessoa humana.

3. O ilícito na teoria geral do direito - Se o inovar por inovar é péssima postura teórica, o

apego demasiado às concepções tradicionais é vício de semelhante gravidade. Não é

possível pretender impor aos novos fatos antigas explicações. Nem lá, nem cá, portanto. A

atitude mais sábia recomenda equilíbrio, afastando posturas radicais. Aquele senso, indica

Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, com demasiado rigor, às convicções

que tem, nem se deixe levar facilmente pela sedução do novo29.

Nesse contexto, é falsa a oposição entre avanços sociais e os recursos técnicos do

direito civil. Repensar sua sistemática, adequando-a aos novos tempos, não pressupõe o

abandono puro e simples da técnica. Os novos conceitos e categorias, desejados e

28 Tereza Negreiros. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 106/108 e 121. 29 Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, t. I, p. 29.

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necessários, hão de firmar-se sobre as bases teóricas legadas, o que os faz nascer

genuinamente novos.

Aliás, como elegantemente disse Souto Maior Borges, "o novo não é sinônimo de

qualidade teórica. O autenticamente novo é um fiel depositário da tradição"30. É

fundamental, mercê do tema em estudo, dimensionar, previamente, os ilícitos, não só no

ambiente social contemporâneo, mas também nos paradigmas científicos clássicos. Não

basta, nesse passo, demonstrar aggiornamento com as novas técnicas, sem passar em

revista as concepções por assim dizer tradicionais.

Nessa trilha, importa saber qual, através dos séculos, a estrutura teórica dos ilícitos,

em suas grandes linhas. Não seria prudente, nem metodologicamente recomendável,

abordar os ilícitos civis sem buscar conhecer, ao menos em seu núcleo conceitual, a

configuração que a teoria geral do direito confere à categoria.

O ilícito é categoria fundamental na ciência do direito. Pode-se mesmo considerá-lo

um conceito fundamental, no sentido que Felix Somlo confere ao termo31. Com efeito, seria

possível imaginar um ordenamento jurídico sem espécies ilícitas? A adaptação social, que o

direito promove, com a especificidade que lhe é própria, seria realizável, sem a ajuda do

conceito de ilicitude?

O ilícito espraia-se por todo o direito, seja este tido em sua dimensão de objeto, sobre

o qual os estudiosos, em meta-linguaguem, emitem proposições, seja o direito estudado em

sua dimensão ciência, como cogitação sobre o fenômeno que se apresenta através de

princípios e normas32. Sua relevância é tamanha que as grandes teorias que intentam

30 Ciência feliz: sobre o mundo jurídico e outros mundos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1994. 31 Felix Somló, Juristische grundlehre, 1927, p. 8/10, Apud. Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 132. 32 Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 129.

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explicar o direito, a exemplo da de Kelsen, engendram todo um sistema a partir do ilícito,

conceituado-o como o pressuposto para a aplicação da sanção33.

O ilícito, portanto, é categoria jurídica que avulta em importância, tanto teórica

quanto prática, sendo elemento necessário para a construção de qualquer sistema jurídico,

não se conhecendo um ramo do direito que possa prescindir das espécies ilícitas, nem um

ordenamento jurídico que juridicize apenas atos lícitos.

Acresce que muitas definições, pertinentes aos ilícitos, são preambulares às nossas

discussões posteriores. Seria operacionalmente inviável discutir a classificação dos atos

ilícitos civis sem se pôr a parte das controvérsias em teoria geral, onde a temperatura das

disputas nem sempre é baixa.

Há, destarte, muitas questões, envolventes do ilícito, que somente em teoria geral do

direito podem ser adequadamente resolvidas. O ilícito integraria, como querem algumas

teorias, a própria estrutura formal da norma jurídica, sendo elemento integrante do próprio

conceito de norma? O ilícito é antijurídico, entendendo-se por tal o ato que não entra no

mundo do direito, que permanece como que à parte do fenômeno jurídico?

As respostas para essas questões, conquanto não tenhamos a pretensão de as dar

definitivas, serão oferecidas ao longo do texto, com as respectivas razões de

convencimento.

A chamada ciência dogmática do direito, ou "ciência dos juristas", ocupa posto

privilegiado no universo das cogitações científicas clássicas a respeito do Direito. É uma

ciência do conteúdo, como exposição sistemática de um sistema jurídico positivo34.

33 Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 121/128. 34 Kelsen, já no primeiro capítulo de sua Teoria Pura do Direito, esclarece que sua teoria é uma teoria do direito positivo em geral, e não de uma ordem jurídica específica. Discutiu-se, em doutrina, se a cada sistema de normas, conceptualmente dado, corresponderia uma exposição sistemática, distinta das demais. Ou seja, se haveria tantas ciências dogmáticas quantos sistemas de direito positivos. (Felix Somlo, Juristische Grundlehre, p. 2/10, Apud. Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 131). Seria a dogmática uma ciência cultural individualizadora, por envolver valores, como quer Radbruch, ou haveria tantas ciências quantos ordenamentos jurídicos houvesse?

16

Sociologicamente, é possível afirmar, sem qualquer juízo de valor, que a dogmática jurídica

tem lugar de destaque, sendo o locus por excelência das discussões a respeito dos conceitos

fundamentais do direito.

Existem, destarte, múltiplas possibilidades de conhecimento jurídico. Por conhecimento

jurídico entenda-se "qualquer espécie de saber que se dirija ao direito com pretensão

cognoscente"35. Cada setor do conhecimento, obviamente, tem suas técnicas de

investigação específicas, com método e tecnologia próprias.

E no cume da ciência dogmática está a teoria geral do direito. É que a divisão do direito

em variados e distintos ramos, para efeitos didáticos e metodológicos, não apaga a unidade

intrínseca do ordenamento jurídico, como vasto conglomerado de princípios e normas

dispostos em forma de sistema. Assim, sob o continuum do universo jurídico traçam-se

setores diferenciados de conhecimento: são as ciências jurídicas dogmáticas. E, sobre todas

elas, arrumando sistematicamente o que está fragmentado em vários sub-campos, está a

teoria geral do direito.

Ela representa como que um campo de intersecção, um lugar onde os problemas

genéricos, comuns a todos os ramos do direito se encontram, e devem receber idêntico

tratamento, porque aqui se trabalha com os conceitos fundamentais, tais como norma

jurídica, incidência, sanção, fato jurídico, relação jurídica, sujeito de direito, efeito jurídico

e outros mais.

Já a teoria geral do direito, não obstante possua notável largueza de vistas, pela

generalidade que lhe é própria, trabalha com aspectos semânticos, não sintáticos. Deve-se

distinguir, desta feita, a generalização formal, que conceitua a lógica jurídica36, da

Pontes de Miranda e Lourival Vilanova acreditam que há uma só ciência, com conceitos e proposições universais, que, "relativamente à matéria empiricamente dada, funcionam como 'conceitos fundamentais'". (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 132) 35 Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 22. 36 Defendendo posição oposta, Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, p. 7.

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generalização material, que, por tratar com os conteúdos, é a que define a teoria geral do

direito37.

Vale consignar, porque pertinente à teoria geral do direito, que se atribui a Kelsen o

mérito da descoberta da diferença entre norma jurídica e proposição jurídica. Esta seria a

produção científica descritiva daquela; uma sob o império da lógica aponfântica, suscetível

dos valores verdade e falsidade, e a outra regida pela lógica deôntica – lógica das normas –

e aferida de acordos com os valores de validade e não-validade.

Na teoria kelseniana inexistem contradições entre as normas jurídicas, pois, a seu sentir,

uma tal hipótese acabaria por comunicar tais contradições à ciência que estuda o direito, o

que destruiria as exigências formais de construção de um sistema científico38. Pontes de

Miranda, nesse passo, afirma, peremptoriamente, que o sistema jurídico é um sistema

lógico, harmônico e isento de contradições. Também a ciência, segundo Pontes,

obviamente também não pode abrigar conceitos antitéticos, não só a ciência jurídica, como

qualquer outra.

Embora Pontes de Miranda não seja expresso, sempre distinguiu ciência jurídica e

direito, este como fenômeno social, e aquela como cogitação sistemática de estudiosos a

respeito do objeto material39.

Para Kelsen, a estrutura lógica da norma de direito é um juízo hipotético que envolve

uma conduta como devida, ajuntando uma conseqüência que deve ser aplicada pelo órgão

jurisdicional. Assevera este jurista que a lógica da ciência jurídica é necessariamente

37 Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 25. 38 Lourival Vilanova. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 127: “i) critérios que permitam decidir se uma dada proposição pertence ou não ao sistema; ii) coerência interna, isto é, compatibilidade entre os elementos proposicionais integrantes do sistema; iii) completude – o sistema contém uma proposição ou a contraditória (segundo R. Blanché, esse requisito meta-sistemático é ‘fondée sur le principe du tiers exclu’; Blanché, L’Axiomatique, pág. 42). No mesmo sentido de Kelsen, V. Radbruch, Introducción a la Ciencia del Derecho, p. 254)”. 39 Nelson Saldanha: “A distinção entre Direito-fenômeno e Direito-doutrina, nem sempre bastante nítida nas páginas do Sistema (apesar de óbvia), torna-se clara no Tratado, mas não propriamente explícita”. (Estudos de Teoria do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 33)

18

distinta daquela que preside o estado de coisas nas chamadas ciências naturais. Haveria,

portanto, dois modos de se ordenar os fatos do universo, um pela causalidade, próprio das

ciências naturais, e outro pela imputação, lidando-se aqui com os conceitos de fato

condicionante e fato condicionado40.

Nasce, assim, na ciência jurídica, a clássica bipartição entre ser e dever-ser, nascida no

neo-kantismo da escola de Baden, com Wildelband e Rickert à frente41. Esse dualismo, que

não nega, o que seria absurdo, a existência do ser, postula entretanto que tal lógica (do ser,

que viera de Aristóteles) revela-se inadequada para explicar a realidade jurídica.

A cisão entre ser e dever ser, que antes de transplantada ao campo jurídico já pertencia

ao patrimônio filosófico, é considerada, por alguns, como um modo de pensamento, a

exemplo do futuro e do passado, e, de tal forma, ineliminável42.

O dever-ser não exprime nenhum juízo de valor social, moral, religioso ou político,

não se refere ao valor intrinsecamente considerado do que deve ser, mas apenas relaciona,

deonticamente, fatos, de jeito que um fato deve ser porque o outro é. “Com o termo

‘norma’ – observa Kelsen – se quer significar que algo deve ser ou acontecer,

especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira”43.

Para Kelsen a norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita,

permitida ou especialmente facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém.

Assim distingue ele a norma do ato de vontade que a constitui. “Na verdade – diz Kelsen –

a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser”44.

40 Para Carlos Cossio, foi Kelsen quem criou a lógica jurídica, entendida esta como a lógica do dever ser: "El descubrimiento de la lógica jurídica es el mérito sin par de Kelsen. Kelsen descubre la lógica jurídica com una amplitud comparable a la de Aristóteles para la lógica del ser". (Teoría Egológica del Decrecho y el Concepto Jurídico de Libertad. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1964, p. 379). 41 Arnaldo Vasconcelos, Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 79. 42 Georg Simmel: “O dever-ser (das Sollen) é uma categoria que, aditada ao significado real duma representação, determina a sua importância relativa para a praxis... Não há qualquer definição do dever-ser... O dever ser é um modo de pensamento como o futuro e o pretérito”. (Apud. Introdução ao Pensamento Jurídico, Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, sem indicação do ano, p. 37). 43 Kelsen, Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 5 44 Kelsen, Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 6.

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A questão da sanção sempre ocupou enorme importância na ciência do direito.

Pode-se mesmo dividir, sob esse aspecto, as concepções jurídicas em sancionistas e não-

sancionistas, como faz Marcos Bernardes de Mello45. O critério de bipartição, nesse caso, é

o da essencialidade. Seria a sanção integrante necessária da estrutura lógica da norma

jurídica? Os não-sancionistas, aduzindo que há inúmeras normas às quais não é relacionada

sanção, dizem que podem haver, em normas jurídicas, sanção, porém não com a nota da

necessariedade. Já os sancionistas entendem que a sanção está sempre presente, compondo

a estrutura lógica da norma, embora advirtam que ela nem sempre se encontra

explicitamente prevista no mesmo dispositivo legal.

Kelsen é o representante, por excelência, dos chamados sancionistas, entendendo

que o direito é uma ordem coativa, ou seja, é um conglomerado de normas que estatuem

atos de coerção46. Seu conceito de direito, portanto, seria o de uma ordem segundo a qual,

sob certas condições ou pressupostos pela ordem jurídica determinados, deve-se executar

um ato de coação, pelo sistema especificado. A norma mais importante, para Kelsen, é a

norma primária, a norma que estabelece a coação, como resultado de um ilícito, sendo a

secundária uma norma não autônoma, porque dependente da norma sancionadora47.

Destarte, a norma somente é jurídica porque estabelece uma sanção. A norma

desprovida de conteúdo coercitivo, tornar-se-ia mero preceito moral, desqualificando-se

como jurídica. O critério que informa essa classificação, vê-se, é a existência, no chamado

preceito, ou prescritor normativo, da sanção, consubstanciada na possibilidade do uso da

coação organizada, por intermédio do órgão jurisdicional, de modo a fazer valer as

determinações prescritas nas normas.

45 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 27. 46 Kelsen, Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 65 47 Um dos aspectos mais criticados da teoria kelseniana talvez tenha sido exatamente essa divisão da norma em primária e secundária, sendo a primária a que estabelece a sanção, esvaziando a importância da norma que estabelece o dever. Norberto Bobbio alterou os termos da questão, reservando para a norma primária a norma que estabelece o que deve e o que não deve ser feito. Também assim Lourival Vilanova. Em obra publicada postumamente (Teoria Geral das Normas), contudo, o próprio Kelsen reviu sua concepção, reformulando os conceitos e empregando o termo norma secundária para aludir à norma sancionadora.

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De acordo com esse entendimento, o papel da norma jurídica cingir-se-ia a definir

as condições para o exercício da sanção estatal. Ficaria o direito, nesse passo, reduzido à

norma sancionadora, de jeito a revelar a presença da coação. A chamada norma secundária,

segundo a terminologia kelseniana originária, onde se revelariam o direito e dever jurídico

correlativos, importaria apenas na medida em que serviria de pressuposto da norma

primária, esta sim, segundo Kelsen, a autêntica norma jurídica, porque sancionadora48.

Já os não-sancionistas, dentre os quais está Pontes de Miranda, defendem que a

norma jurídica está completa quanto contém, apenas, a indicação do suporte fáctico e dos

efeitos a ele correspondentes. É, por conseguinte, irrelevante haver, ou não, uma sanção

para o caso de transgressão. O que é fundamentalmente importante é a existência de uma

proposição completa de juridicidade, que se forma com a previsão abstrata da norma, de um

ou de um grupo de fatos, aos quais o sistema relaciona determinadas conseqüências

jurídicas49.

Na teoria de Pontes de Miranda temos uma proposição jurídica completa (Pontes

não usa tal terminologia) com a previsão de um ou de um grupo de fatos e a conseqüente

ligação de certos efeitos, bastando que os fatos hipoteticamente previstos aconteçam, de

forma a desencadear o mecanismo da incidência.

O que importa, para que se tenha uma norma jurídica completa, segundo esse

modelo teórico, é a descrição de um suporte fáctico e a prescrição dos efeitos jurídicos a ele

especificamente imputados, não importando se consubstanciam eles uma sanção50-51.

48 Lourival Vilanova, “A primeira parte da proposição jurídica completa (que se constitui de norma primária e norma secundária) é composta de hipótese e tese. A hipótese é descritiva de fato de possível ocorrência – o fato jurídico recortado sobre o suporte fáctico (Pontes de Miranda) – mas a tese, normativamente vinculada à hipótese, tem estrutura interna de proposição prescritiva”. (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 54). 49 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 29. Este autor inclui, dentre os “não-sancionistas”, além de Pontes de Miranda, Larenz e Von Tuhr. 50 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 30. 51 Vale dizer que a terminologia para significar os termos componentes da norma jurídica varia enormemente. Lourival Vilanova os designa de hipótese e tese. Geraldo Ataliba adota outro critério e distingue a previsão abstrata, a que chama hipótese de incidência, e fato imponível, que seria a previsão realizada. Não cabe aqui fazer um inventário das nomenclaturas utilizadas. Pontes de Miranda, antes de todos, distingue a previsão abstrata (suporte fáctico abstrato), a previsão acontecida (suporte fáctico concreto), o contato da norma com

21

Os termos suporte fáctico e preceito, ou hipótese e conseqüência, para designar a

previsão e a atribuição de eficácia, desempenham, na estrutura da norma jurídica, a mesma

função da “protáse” e da “apódose” na composição do juízo hipotético segundo os

ensinamentos da lógica clássica52.

A estrutura lógica da norma jurídica é problema dos mais debatidos ao longo da

histórica da ciência jurídica. Qual, em seu esquematismo formal, a organização da norma

de direito? Quais suas notas essenciais? O que, fundamentalmente, a define e a caracteriza?

São questões perenes, que se renovam através dos tempos, sem que se alcance uma unidade

de vistas, o que comprova a relevância científica do assunto.

A questão entra em nosso campo de análise na medida em que determinados autores

inserem o ilícito como nota caracterizante da estrutura jurídica normativa. De acordo com

tais concepções, o ilícito não seria, apenas, um fato jurídico com conteúdo axiologicamente

negativo, mas um componente necessário da norma jurídica, desde que enxergada esta sob

uma perspectiva integral e analítica.

Sabe-se que a teoria egológica, do jurista argentino Carlos Cossio, opõe-se à teoria

pura53 de Kelsen no que refere à estrutura da norma jurídica. Enquanto para Kelsen ela é

um “juízo hipotético”, para Cossio ela assume a forma de um “juízo disjuntivo”. Na teoria

egológica, a norma jurídica completa é composta de duas estruturas proposicionais, a

endonorma e a perinorma. A licitude estaria na endonorma, sob a forma da possibilidade de

os fatos, ao acontecer destes (incidência), o nascimento do ser, no mundo do direito (fato jurídico), e a conseqüente irradiação dos efeitos (relação jurídica), já abstratamente previstos no ordenamento. 52 Paulo de Barros Carvalho, Teoria da Norma Tributária. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 48. 53 Apesar da teoria kelseniana se auto-denominar “pura”, força é constatar que seu conceito de eficácia é um conceito que tem raízes sociológicas, ao vincular a vigência da norma a um mínimo de eficácia: “Como a vigência da norma pertence à ordem do ser, deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos”. (Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 11). No sistema científico de Pontes de Miranda, denomina-se efetividade o que Kelsen chama de eficácia, que seria a reação comunitária, aplicando ou não, as normas que incidiram. É a norma em sua dimensão sociológica, na terminologia de Marcos Bernardes de Mello (Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 14/15).

22

cumprir o devido, e a ilicitude estaria na perinorma, sob a ameaça de sanção tendo em vista

o não cumprimento da prestação (“dado A, deve-ser B, ou dado não-B, deve-ser S”).

Observe-se, contudo, que dissidências internas à parte, em ambas as teorias – pura,

de Kelsen; e egológica, de Cossio – tem-se a ilicitude como integrante da estrutura da

norma de direito. Escolhemos, para ilustrar, essas duas posturas teóricas, ainda que não sem

um pouco de arbítrio, seja pela projeção internacional que têm, seja pela condição de

representatividade do pensamento dominante, salvo uma ou outra variação de pequena

monta.

Com efeito. A doutrina, destarte, de modo geral, secunda a assertiva de que, para

haver norma jurídica, em sua integridade estrutural, tem de haver ilícito. Melhor dizendo:

uma norma jurídica só estará adequadamente descrita, em seu esquematismo formal, se se

prever a possibilidade de sua violação, o que resulta num ilícito.

Mas seria a ilicitude, de fato, componente sempre presente na estrutura da norma

jurídica? Não se pode levar um fato ao mundo do direito – torná-lo jurídico, portanto – sem

se cogitar de um ilícito? E se a resposta a tal indagação for afirmativa, como então

compatibilizá-la com as teorias acima mencionadas?

A concepção de norma jurídica de Pontes de Miranda é mais simples, sem que isso

signifique menor acerto científico. Pontes distingue, como divisão fundamental e básica, o

mundo fáctico e o mundo jurídico, sendo este composto pelos fatos que foram

juridicizados54. O que essencialmente define uma norma jurídica é a incidência, é a

possibilidade de marcar, com a nota do jurídico, um fato, conformando-lhe os efeitos de

acordo com o que se reputou ser socialmente valioso. Assim, de modo conciso, aduz:“À lei

54 Lourival Vilanova: “Podemos conceber a integridade de um sistema de normas de Direito seguindo dois caminhos. Pelo primeiro, o sistema está completo, porque nem tudo entrou em sua órbita e nem tudo entra porque seletivamente o sistema separou o jurídico do não jurídico: o não-jurídico não é a porção complementar de um mesmo universo – assim como o antijurídico é complemento do jurídico, a ilicitude é complemento da licitude. O não-jurídico é o juridicamente inexistente, o que não interessou ao mundo das normas. Então, por essa via, o sistema está completo com a porção de fatos naturais e fatos de conduta que encontram asilo nas hipóteses e nas teses da estrutura da proposição deôntica”. (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 155).

23

é essencial colorir fatos, tornando-os fatos do mundo jurídico, e determinando-lhes os

efeitos (eficácia dela)”55.

Não falta quem diga que Pontes de Miranda, não obstante tenha desenvolvido, com

maestria, uma teoria do fato jurídico, não elaborou uma teoria da norma jurídica, como se

acaso fosse possível cuidar com maestria de fatos sem se aprofundar em normas.

De acordo com esse modelo teórico, a norma se basta com o que prevê e prescreve,

eficacialmente, e com a incidência. Não faz sentido defini-la inserindo, em sua estrutura, a

distinção entre lícito e ilícito. Tal divisão, segundo o sistema de Pontes, é absolutamente

estranha à norma de direito. A norma jurídica, em si mesma considerada, nem mesmo

conhece a distinção entre lícitos e ilícitos. Pode-se muito bem conceituá-la sem a esta

distinção aludir.

O ilícito é fato jurídico, resultado da incidência de algumas normas, não todas. A norma

jurídica, se a despojarmos do supérfluo e ficarmos com o essencial, é a previsão de um fato,

ou de fatos, e a incidência sobre eles, ao seu acontecer. Para defini-la, não há buscar a

divisão, de fatos jurídicos, em lícitos e ilícitos. Isso, a rigor, é posterior a ela, e concerne ao

plano dos fatos juridicizados, ao plano dos fatos jurídicos, e o que a norma faz é exatamente

servir de ponte, através da incidência, entre esses dois mundos, o fáctico e o jurídico.

Existe, no que se refere ao ilícito, três vertentes básicas, que grosseiramente definidas

podem ser classificadas nos seguintes termos:

a) uma reputa inadmissível que um fato antijurídico, que vai de encontro ao ordenamento

possa ser considerado jurídico. É a posição de Caio Mário da Silva Pereira56, Vicente

Ráo57, dentre outros.

55 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 6. 56 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 415. 57 Vicente Ráo, Ato Jurídico. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 30

24

b) outra entende que somente por intermédio do ilícito é que se torna possível uma

conduta penetrar no mundo do direito. Vê-se que deslocou-se radicalmente a questão

para o pólo oposto. É a posição de Kelsen.

c) uma terceira postura entende que apenas tornando um fato jurídico, seja como lícito ou

ilícito, e a ele relacionando efeitos, de acordo com os valores que o sistema recolhe

como dado social, é que se pode disciplinar, juridicamente, o fato. É a posição de

Pontes de Miranda58 e Marcos Bernardes de Mello59.

Não há, destarte, unidade de vistas a respeito da posição da ilicitude, se dentro ou fora

do mundo do direito, nem sobre qual sua “tarefa”, se de agente determinador da

juridicização de fatos, ou se apenas de fato jurídico, ou seja, resultado de incidência

anteriores.

Feita essa breve redução simplificadora, para melhor visualização do problema,

passemos a estudar mais analiticamente o tema, e as posições que ao longo dos debates se

consolidaram.

Para a chamada doutrina clássica, que até hoje possui notável força, sendo representada

notadamente pelos civilistas tradicionais, embora não somente por eles, representa

contradição invencível atribuir o caráter de jurídico a fatos que, sobre não serem queridos,

não geram direitos para quem os praticou.

Tal modo de enxergar a questão está muito bem expressa no raciocínio de Vicente Ráo:

“só de modo impróprio pode, portanto, o delito (civil ou criminal) ser qualificado como

ato jurídico, porque não consiste em ato de exercício da autonomia privada, dispositiva e

preceptiva da vontade, destinado a criar, praticar, alterar, ou extinguir direitos, de

conformidade com o ordenamento jurídico”60.

58 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 184. 59 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 93. 60 Vicente Ráo, Ato Jurídico. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 30.

25

Assim, somente seriam jurídicos aqueles atos nos quais a vontade interviesse,

conformando os resultados queridos. Talvez essa posição encontre explicação e amparo na

definição de ato jurídico do Código Civil de 1916 que, descurando da clássica

recomendação no sentido de evitar definições em lei, definiu ato jurídico, e definiu mal,

pois definiu ato jurídico como o ato jurídico lícito61.

Tal modo de enxergar a ilicitude foi diagnosticado, com lucidez, por Arnaldo

Vasconcelos: “À doutrina clássica repudiava incluir o ilícito no âmbito jurídico, como

coisas que se expeliam e se negavam. O ilícito (jurídico, Direito) e o ilícito (injurídico,

antidireito) eram notas que não convinham ao mesmo ser, porquanto lógica e

ontologicamente uma excluía a outra. Essa impossibilidade de convivência impedia a

caracterização da própria natureza do Direito”62.

Essa postura teórica trata, destarte, o ilícito como entidade à parte, sem idoneidade

para entrar no mundo jurídico. Raciocina-se do seguinte modo: sendo ato jurídico aquilo

que a vontade faz jurídico, o dever que nasce à revelia da vontade não pode, em absoluto,

ser jurídico. Para além do voluntarismo que tal concepção encerra, de há muito afastado dos

estudos mais perspicazes, tal modo de pensar confunde antijuridicidade, que é a negação da

possibilidade de juridicidade, com contrariedade ao direito, que é o juízo de desvalor que o

ordenamento faz a respeito de um fato, o que o torna ilícito, se a incidência vier a

acontecer.

Houve, contudo, movimento pendular, com o advento da doutrina kelseniana.

Kelsen não só incluía o ilícito no mundo do direito, como condicionava toda juridicidade a

ele. Para bem compreender o que propunha o jurista, nesse particular, cumpre recordar a

formulação, em linhas mestras, de sua doutrina.

Opondo-se ao imperativismo de Karl Binding, a norma em Kelsen assume as vestes

de um juízo hipotético, que pode ser assim traduzido: dada a não-prestação, deve ser a

61 Art. 81. “Todo ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico”. 62 Arnaldo Vasconcelos, Teoria da Norma Jurídica. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 35.

26

sanção; dado o fato temporal, deve ser a prestação. Essa formulação, como vimos antes,

comporta ainda o desdobramento em duas normas: a primária, sancionadora, e portanto

jurídica por excelência; e a secundária, condicionada e dependente, e, porque admite a

realização voluntária, não tem interesse para o direito, fenômeno necessariamente

sancionatório.

Nessa visão, somente seria jurídico o que transpusesse o filtro estreito da norma

sancionadora. Segundo tal doutrina, o único modo de uma conduta tornar-se jurídica é por

intermédio da sanção, daí a importância extrema que se dá ao ilícito. Este passa a ser parte

do mundo jurídico, mas de forma estranha e deformada.

Percebe-se que Kelsen, ao contraditar a teoria clássica, foi longe demais. Sobre

afastar a licitude do mundo jurídico, tornou o ilícito, através da sanção, o único componente

do mundo jurídico, afastando, de maneira excludente, os demais fatos jurídicos: “E, então –

aduz Kelsen – mostra-se que o ilícito não é um fato que esteja fora do Direito e contra o

Direito, mas é um fato que está dentro do direito, e é por este determinado, que o Direito,

pela sua própria natureza, se refere precisa e particularmente a ele”63. Assim, na teoria

pura, o “ilícito aparece como um pressuposto (condição) e não como uma negação do

Direito”64.

Pontes de Miranda, embora não fosse o seu propósito, engendrou a síntese. Nem lá

nem cá. Dizemos que não era seu propósito porque sua posição, a respeito dos ilícitos,

decorre de todo seu sistema de ciência, complexo e solidamente formulado, amparado na

incidência e na criação de fatos jurídicos.

Para Pontes, para que possa nascer um fato jurídico, basta que haja incidência de

uma norma jurídica sobre seu suporte fáctico suficiente. Incidência juridicizante. Se lícito

ou ilícito o fato jurídico que nascerá dessa incidência, não importa, no que se refere à

atribuição de juridicidade. O que pauta a entrada no mundo jurídico é a relevância social do

63 Arnaldo Vasconcelos, Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 169/170. 64 Arnaldo Vasconcelos, Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 170.

27

fato ou da conduta, que passa a compor suportes fácticos de regras jurídicas. Assim,

aduz:“Com a incidência da regra jurídica, o suporte fáctico, colorido por ela

(=juridicizado), entra no mundo jurídico. A técnica do direito tem como um dos seus

expedientes fundamentais, e o primeiro de todos, esse, que é o de distinguir, no mundo dos

fatos, os fatos que não interessam ao direito e os fatos jurídicos, que formam o mundo

jurídico; donde dizer-se que, com a incidência da norma jurídica sobre o suporte fáctico,

esse entra no mundo jurídico”65.

Para Pontes de Miranda o mundo jurídico é composto de fatos jurídicos. E para ser

fato jurídico basta que os fatos previstos no suporte fáctico, isto é, no antecedente ou

descritor de uma norma jurídica, aconteçam, o que provoca, necessária e infalivelmente, a

incidência:“Se a regra jurídica diz que o suporte fáctico é suficiente, a regra jurídica dá-

lhe entrada no mundo jurídico: o suporte fáctico juridiciza-se”66.

Pontes jamais distinguiu fatos, como jurídicos ou não jurídicos, tomando por base

seu conteúdo, mas apenas a evidência de, porque socialmente importantes, terem sido

convocados para a disciplina jurídica. A técnica jurídica se traduz pela vinculação, aos

fatos, de efeitos, mais ou menos gravosos, em consonância com a finalidade do regramento

jurídico:“Os atos ilícitos, penais ou civis, são tratados como reprovados e reguladas pelas

regras jurídicas as suas conseqüências. As conseqüências dos atos ilícitos são criações das

regras jurídicas, para os reprovar”67.

Ao tratar da ilicitude, tendo como pano de fundo a rica teoria geral do direito, e

escolhendo dois autores paradigmáticos, buscamos delinear o contexto em que se inserem

os ilícitos civis, porquanto eles, conquanto possuam requisitos conceptuais próprios,

acomodam-se num plano mais vasto, que é o da teoria geral, de onde buscam os conceitos

fundamentais.

65 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 74/75. 66 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 28. Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 70. 67 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. I, p. 88/89.

28

Embora tenhamos nos mantido, o máximo possível, dentro dos limites narrativos,

descrevendo e demarcando as posições doutrinárias, é chegado o momento de, a partir do

que ficou dito, concluir firmando, a respeito de cada ponto discutido, nossa posição, com

clareza e concisão.

O ilícito é um conceito fundamental. Conceito fundamental é aquele sem o qual não

há condição de possibilidade de um sistema jurídico. Sem ilícitos não se constrói um

ordenamento jurídico com conceitos, categorias e institutos corretamente postos e

harmonicamente definidos. Não existe, tampouco, ramo jurídico que possa prescindir dos

ilícitos.

Não nos parece possível tratar qualquer problema jurídico se não se parte da teoria

geral do direito, que é a ciência do direito pensada em bases genéricas e amplas. Destarte,

porque é uma teoria geral, uma conclusão aí obtida pode ser translada a qualquer campo

jurídico, justamente por ser geral. Devido à sua posição do cume da ciência dogmática do

direito, suas descobertas sobre os ilícitos são de aproveitamento compulsório em toda a

seara jurídica, porque toda ela se sobpõe-se à teoria geral do direito.

A questão da estrutura lógica da norma jurídica é dos temas mais complexos e

polêmicos da ciência do direito, e não comporta maiores digressões nesta sede. Fiquemos,

portanto, nos aspectos que mais de perto dizem do nosso tema. A concepção kelseniana, da

norma como um “juízo hipotético”, da norma como expressão do dever ser não nos parece,

com todas as vênias, acertada, porque o que norma cria, ao incidir, forjando relações

jurídicas com conteúdos os mais diversificados, é um ser, distinto, é claro, do ser natural,

mas um ser essencialmente jurídico68.

Tanto Kelsen como Cossio, ao conceituarem, respectivamente, a norma jurídica como

um “juízo hipotético”, e um “juízo disjuntivo”, incluem o ilícito, a chamada “não-

68 Estamos ciente do caráter polêmico da afirmação, e da impossibilidade de desenvolvê-la aqui. De toda sorte, Pontes de Miranda parecia não aceitar a cisão entre ser e do dever ser, no que se refere ao direito: “O direito é ser, no sentido da ciência, e não apenas ideal. Aliás, o próprio ideal é ser, se estudado pela ciência” (Sistema de Ciência Positiva do Direito. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1922, t. I, p. 179).

29

prestação” como componente necessário da estrutura da norma de direito, e com isso

distorcem, a nosso ver, os termos da discussão.

É que pode-se – deve-se, melhor diríamos – conceituar a norma jurídica com

abstração da divisão entre lícita e ilícito. Tal bipartição, conquanto extremamente

relevante69, não tem lugar quando da definição do que seja norma jurídica.

Segundo nossa concepção, forte em Pontes de Miranda, o que categoriza a norma

jurídica é a incidência, isto é, a possibilidade que somente ela tem de, caindo sobre certos

fatos antes previstos, marcá-los, com a cor da juridicidade. Para tanto, basta que tenhamos

uma norma, integrante de um ordenamento jurídico70, com vigência71, e que aqueles fatos

por ela previstos aconteçam, provocando a incidência e desencadeando os efeitos previstos

no conseqüente (ou tese) normativo.

Assim, e por conseguinte, não há espaço para, conceituando norma jurídica, falar

em lícito ou ilícito. Mesmo porque, estruturalmente falando, é impossível estabelecer linha

divisória entre o lícito e o ilícito, porque ambos ostentam a mesma configuração. Existem,

destarte, diferenças semânticas, jamais sintáticas. A contrariedade ao direito é apenas a

valoração – já pertinente ao conteúdo da norma, portanto – com conteúdo axiológico

negativo.

O suporte fáctico do ilícito é um; do lícito é outro. Não é a mesma norma que,

esmiuçada, prevê ambos. Isso não nos parece verdade, nem prática, nem teoricamente. Nem

nos parece pertinente erigir sistema científico tendo por base tal concepção integrada da

norma jurídica. Essa, dissecada, não oferece mais do que a previsão, abstrata, de um fato, e

a promessa, de incidir sobre ele, desde que concretizada a previsão. 69 É, no dizer de Von Tuhr, a primeira classificação a ser feita no direito privado. Teoría General del Derecho Civil Alemán. Trad. Tito Rava. Buenos Ayres: Depalma, 1946, t. II, 1º, p. 118. 70 A doutrina atual é peremptória no sentido de que só existe norma jurídica dentro de um ordenamento jurídico. Nesse sentido: Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: UNB, 1994, p. 15/18. 71 O que para Pontes é existência para Kelsen é validade: “Dizer que uma norma é válida é dizer que pressupomos sua existência ou – o que redunda no mesmo – pressupormos que ela possui ‘força de obrigatoriedade’ para aqueles cuja conduta regula” (Teoria Geral do Direito e do Estado, Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 36).

30

Cavar, na estrutura normativa, a separação entre licitude e ilicitude, dividindo a

norma de direito em duas partes é forçar os fatos às teorias, sob as vestes de um pretenso

rigor lógico. Portanto, segundo cremos, cada norma prevê fatos, que podem já ser fatos

jurídicos72. Se o fato é conforme, ou é contrário ao direito, de acordo com a valoração que

se objetivou na norma, isso não tem nenhum importância para o mecanismo de incidência

ou para a estrutura lógica das normas. A técnica jurídica se perfaz, fundamentalmente, pela

juridicização de fatos e qual a política jurídica a respeito deles, é questão que,

tradicionalmente, a ciência dogmática do direito se furtou de responder.

Aliás, o fenômeno jurídico, no que se refere aos seus conceitos fundamentais, é

formado por estruturas idênticas. Assim, todo ordenamento, pelo menos no mundo

ocidental, exibe, ainda que sob outras denominações semânticas, os mesmos elementos,

como a norma, incidência, fato jurídico, relação jurídica e as demais categorias de eficácia.

Por isso é que Lourival Vilanova diz que o direito possui homogeneidade sintática e

heterogeneidade semântica. As estruturas são iguais. Os conteúdos, não. Isso é, de certa

forma, truísmo, porém de necessária consignação, uma vez que no que concerne aos ilícitos

há uma lamentável difusão de falsos conceitos, o que justifica a repetição de conceitos de

certa forma básicos.

Não há, dessa forma, distinção estrutural entre lícito e ilícito. Ambos são fatos

jurídicos73, provindos da incidência de uma norma sobre seu suporte fáctico suficiente.

Parece-nos impertinente, pois, as distinções “topológicas”, que afirmam, a priori, que uns

estão e outros não, em determinado ponto, que no caso é o mundo jurídico. Cabe anotar,

por fim, que Pontes de Miranda busca um claro paralelismo entre os lícitos e ilícitos,

buscando harmonizar, esquematicamente, as grandes linhas dos fatos jurídicos74.

72 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 40. 73 José de Castro Meira, "O ilícito civil e o ilícito penal". Revista de Informação Legislativa. Brasília, 70:159-174, abril/junho, 1981, p.168. 74 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 186.

31

4. O ilícito civil na experiência jurídica brasileira

4.1. Lícito e ilícito: um abismo teórico - O ilícito não se desenvolveu, gerando

monografias e discussões, como os atos lícitos de ordem civil. Estes atingiram notável grau

de refinamento teórico, suscitando e resolvendo questões que surgiam do aprofundamento

dos debates. Tamanha foi a dimensão do fenômeno, que o nosso Código Civil revogado

definiu ato jurídico como ato lícito, eclipsando, totalmente, a categorias dos ilícitos, com

ato jurídico gerador de efeitos civis.

Construi-se, destarte, em relação aos lícitos, vigorosa doutrina, que perpassou,

durante décadas, a história do direito civil. Baseada, fundamentalmente, na autonomia

privada, estabeleceu que as pessoas tinham uma esfera de condução dos próprios interesses

ao abrigo de ingerências estranhas, e que poderiam, contratando, preencher esse branco

deixado pelas normas.

Trata-se, obviamente, de concepção de forte inspiração liberal, sem falar que a

noção de autonomia privada sofre sérios ataques, com o surgimento de estudos

demonstrando sua inadequação com as relações contratuais contemporâneas, massificadas e

impessoais, que distam, progressivamente, do esquema clássico75.

Mas é significativo sublinhar o exaustivo trabalho havido, de um lado, de

construção de conceitos e categorias tendentes a explicar a realidade dos atos lícitos, e a

praticamente nenhuma preocupação com os atos ilícitos, que, paralelamente aos lícitos,

povoam o mundo civil.

É pertinente, por conseguinte, averbar a profunda diferença entre as duas categorias,

sob o prisma teórico. Com os lícitos, avultam livros, monografias, toda espécie de

comunicação científica tendente a divulgar e discutir os aspectos atinentes ao tema. Assim,

são fartas as menções aos pressupostos dos atos jurídicos lícitos, ao eterno debate entre as

75 Paulo Luiz Netto Lôbo. Do contrato no Estado Social. Maceió: Edufal, 1983, p. 128.

32

teorias da declaração e a da vontade, aos elementos essenciais e acidentais dos atos

jurídicos, à questão da capacidade, da boa-fé, etc.

Os ilícitos sempre se mantiveram à margem, como questão menor, relegados a um

plano secundário, quando muito. Não houve, absolutamente, a construção de um estatuto

teórico, tal como existe com os lícitos, nem uma unidade lógica de pensamento. As

referências, sempre genéricas, em livros também genéricos, limitavam-se, na maioria dos

casos, a repetir os pressupostos do ilícito indenizante, reforçando falsos conceitos, como a

culpa e do dano, que sempre foram erigidos à condição de pressupostos necessários à

definição da ilicitude civil.

4.2. A ausência de padrões metodológicos severos - A análise da jurisprudência não

conduziu a doutrina brasileira a uma teorização acerca dos ilícitos. Sem embargo de quase

um século de vigência do nosso Código Civil de 1916, as análises mantiveram-se

basicamente as mesmas, desde o início do século passado até o início do nosso século. O

panorama teórico dos ilícitos, grosso modo, apresenta-se como uma vasta coleção de fatos

empíricos apenas frouxamente ligados pela teoria.

Sociologicamente, é possível relacionar, não sem apontar o caráter precário e

aproximativo dessas ponderações, a ausência de aprofundamento teórico na matéria com a

definição de ato ilícito, peremptória e supostamente definitiva, do Código Civil de 1916.

Ou seja, a doutrina, em conformidade com os padrões metodológicos então reinantes, não

avançou na análise, guardando, ao revés, uma atitude de profunda reverência com o

conceito legal, como se ele realmente esgotasse a sistemática jurídica pertinente à espécie.

Cabe anotar de passagem – embora não seja possível desenvolver o tema nos limites

deste artigo – que a culpa não comparticipa da ontologia do ilícito, em direito civil. Aliás,

Enneccerus já excelentemente o vira, ao definir como ilícitos civis os atos contrários ao

direito, quase sempre culposos, dos quais resulta ex lege uma consequência desvantajosa

para o seu autor76. Aliás, tal constatação não é propriamente nova. Os direitos da

76 Enneccerus, Tratado de Derecho Civil. v. 1. Barcelona: Bosch, 1955, t. II, p. 128.

33

personalidade, em sua clássica formulação, já independiam de culpa para que sua violação

se perfizesse77. Ou seja, a ofensa à personalidade, em seus múltiplos aspectos, é um ilícito

civil, cuja configuração prescinde de culpa.

Ganha força, destarte, a noção da completa ressarcibilidade do dano causado,

independente de culpa. Há, nesse sentido, uma retomada da trilha do direito germânico,

cuja concepção de responsabilidade extracontratual abstraía do elemento subjetivo78.

Retomando o fio do raciocínio iniciado parágrafos atrás: os tratados e manuais de

direito civil sempre apresentaram os ilícitos como uma categoria sem muito interesse

teórico. A única eficácia possível, na esteira do direito legislado, seria o dever de indenizar.

A casuística se encarregaria de estabelecer os casos passíveis de indenização, desde que, é

claro, estivessem presentes as clássicas notas (culpa e dano).

Houve, portanto, uma paralisação teórica, um ambiente teoricamente morno, sem

discussões significativas. Aliás, a matéria sempre se ressentiu de grave desvio de

perspectiva, consistente em tratar dos ilícito em conjunto com a responsabilidade civil. É

preciso frisar que os temas, pertinentes à responsabilidade, não guardam necessária relação

com os temas relativos aos ilícitos civis79.

Algo semelhante, mutatis mutandis, com o que ocorre no direito inglês, onde a

constatação do tort dá ensejo à ação de indenização. Se a ação ou omissão é reputada ilícita,

pertine a reparação. Não existe, no entanto, uma doutrina sistemática, sendo os casos que

formam a teoria. Aliás, o sistema jurídico inglês é conhecido por não dar muita importância

à teorização, sendo infenso a construções meramente abstratas, sem relações com os casos

reais levados a juízo.

77 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 204. 78 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 170. 79 Mesmo numa perspectiva puramente ressarcitória – e oposta a por nós adotada neste artigo – é possível perceber a tendência ao abandono da categoria clássica do ilícito extracontratual em oposição ao ilícito contratual, em favor de uma nova figura, de maior abrangência, denominada, por Grant Gilmore, de contort (The Death of Contract. Columbus: Ohio State University Press, 1974).

34

É preciso, entretanto, ressaltar que nem todos os casos de indenização decorrem de

ilícitos. Tal ponderação é ponto pacífico em doutrina80. Desde os casos clássicos de

legítima defesa, estado de necessidade e exercício regular de direito, passando por outras

hipóteses, em que a contrariedade ao direito é pré-excluída81, o ilícito não se forma, por

ausência do sinete da contrariedade ao direito, ainda que persista o dever de indenizar.

4.3. Ilícitos civis: uma categoria com eficácia única? - Uma das mais conhecidas

associações, que se faz a respeito dos ilícitos, diz respeito aos efeitos por eles produzidos.

De fato, sempre que se pensa em ilícito civil, relaciona-se, quase que intuitivamente, o

dever de indenizar, como eficácia naturalmente produzida. Essa é uma idéia que nasceu,

muito provavelmente, conforme observamos há pouco, da definição de ilícito do Código

Civil de 1916, que relacionou, de forma peremptória, ilícito ao dever de indenizar, como

eficácia supostamente única: "Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária,

negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a

reparar o dano".

Tal disposição, que praticamente exaure o Título "Dos Atos Ilícitos" do Código

Civil de 1916, sempre foi lida como se esgotasse as possibilidades de ilícitos no campo do

direito civil.

No entanto, a doutrina poderia, investigando o ordenamento, concluir que não

obstante a letra do Código, ilícitos existiam que não participavam daquela definição legal.

Não foi esse, contudo, o procedimento adotado. Houve certa mudez doutrinária,

possivelmente nascida da convicção de que a opção do legislador estaria acertada. Aliás, a

posição doutrinária quanto aos ilícitos civis foi, desde o advento do Código Civil,

80 Expressiva a ponderação de Orizombo Nonato: "Contudo é possível, diante deles, afirmar, como o egrégio Clóvis, que a idéia de dano ressarcível é, em nosso direito, mais ampla do que a de ato ilícito". Apud. Wilson Melo da Silva. Responsabilidade sem culpa. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 69. 81 Pontes de Miranda dá exemplo eloquente, no caso do que vendeu penicilina a ser entregue e, tendo havido grande desastre, a empregou nos feridos, não podendo adimplir, no dia, o contrato. Haveria, em tese, ilícito relativo, pela violação da relação contratual. Na espécie, no entanto, isso não ocorre, porquanto a contrariedade ao direito, essencial ao ilícito, foi pré-excluída pelo estado de necessidade. (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 229).

35

extremamente restritiva, sempre se entendendo que a matéria iniciava-se e findava-se com a

análise do ilícito cujo efeito é a responsabilidade civil (Código Civil de 1916, art. 159).

Bem sintomática dessa crença foi a postura de Clóvis Beviláqua. O ilustre jurista,

quando das discussões para a feitura do nosso Código Civil de 1916, pugnava contra a

inclusão legislativa dos ilícitos num título único, ao argumento que lhes faltava "a

necessária amplitude conceitual"82. Tal posição - que restou vencida quando da redação do

Código - reflete bem a mentalidade dos juristas a respeito da matéria, que não foi sequer

encarada como um problema que merecesse cogitação teórica.

O Código Civil de 2002 se referiu aos atos ilícitos por intermédio de duas cláusulas

gerais. O art. 186 prescreve: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou

imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,

comete ato ilícito” 83.

O art. 187 tem a seguinte redação: “Também comete ato ilícito o titular de um

direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim

econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Consagrou-se, com esse

dispositivo, a teoria do abuso de direito, velha conhecida da jurisprudência, cuja

caracterização como ilícito, todavia, era polêmica.

Em livro que publicamos ainda antes da vigência do Código Civil de 2002

defendemos a contrariedade ao direito de tais atos, aos quais chamamos, todavia, de

“ilícitos funcionais”84. Escrevemos na ocasião: “Atualmente, mercê da força, no direito

atual, das diretrizes constitucionais pertinentes, é algo fora de dúvida que a utilização de

82 Clóvis Beviláqua, O Código Civil comentado. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. 83 De toda sorte, e sem embargo das críticas que se lhe possam ser feitas – no sentido de pretender esgotar o conceito de ilícito civil -, é certo que o art. 159 do Código Civil revogado (inspirador do art. 186 do atual Código Civil) é superior aos modelos legislativos existentes à época de sua edição. Aliás, o próprio BGB, tido como uma codificação tecnicamente escorreita, inseriu o ilícito civil na parte especial, no direito das obrigações, e não na parte geral, como fizeram os códigos civis brasileiros. Outrossim, o BGB optou (§ 823) por uma descrição tarifada dos bens jurídicos que, violados, ensejariam ilícitos, numa técnica inferior àquela adotada pelos códigos civis brasileiros, que se valeram de cláusulas gerais (art. 159, CC/1916; art. 186 e 187, CC/2002). 84 Felipe Peixoto Braga Netto, Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 116/123.

36

um direito não pode se prestar a fins opostos àqueles que orientaram seu nascimento, nem

tampouco podem colidir com princípios maiores, se em choque”.

O art. 187 está informado pela idéia de relatividade dos direitos. Isto é, os direitos

flexibilizam-se mutuamente; não há direito isolado, mas dentro do corpo social, onde outros

direitos convivem. Pontes de Miranda observou que repugna à consciência moderna a

ilimitabilidade no exercício do direito; já não nos servem mais as fórmulas absolutas do

direito romano”85.

O Código Civil, mais adiante, no art. 927, estatui: “Aquele que, por ato ilícito (arts.

186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. É fácil perceber que o

Código Civil de 2002, se interpretado literalmente, conduz à conclusão que a única eficácia

possível, derivada dos ilícitos civil, é a obrigação de indenizar os danos causados.

4.4. Críticas à concepção da eficácia única - Dissemos que o ilícito civil sempre aparece

mesclado com a responsabilidade civil. Nunca, pelo menos ao que nos conste, surgiu a

preocupação, em pesquisas monográficas, de teorizar o tema, como classe autônoma e de

inegável importância de fatos jurídicos. São comuns, destarte, ponderações no sentido da

absoluta indissociabilidade entre os atos ilícitos civis e a responsabilidade civil86.

Nesta concepção - que chamaremos, por brevidade, de clássica - o ilícito é pensado

e tratado, sempre e sem exceção, como um apêndice da responsabilidade civil. Não haveria,

para os que perfilham semelhante concepção, razão maior para diferenciação, porquanto,

segundo raciocinam, o ilícito produz sempre, como eficácia, a responsabilidade civil, de

modo que estudando essa estaremos, com vantagem, estudando aquele, ainda que nem toda

responsabilidade civil advenha de atos ilícitos.

85 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, T. LIII, p. 62. 86 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 417.

37

Talvez a confusão se explique pela identificação entre o gênero - os ilícitos civis - e

uma espécie - o ato ilícito indenizante87. Sempre que se falava no tema, invocava-se essa

espécie, e tudo que fosse característica sua, atribuía-se, em descabida generalização, à

classe, ao gênero ilícito. E como essa espécie é geradora de responsabilidade civil, nasceu

outra identificação: ilícito civil é igual à responsabilidade civil.

No entanto, a experiência jurídica moderna desmente tal identificação entre ilícito e

responsabilidade civil. Não é possível, teoricamente, manter a tradicional associação88.

Primeiro, responsabilidade civil é efeito, não é causa. Seu isolamento temático induz a

certas análises equivocadas, que ofuscam o fato jurídico, lícito ou ilícito, que origina o

dever de indenizar. Depois, uma abordagem restrita à responsabilidade civil

necessariamente oblitera as eficácias não indenizantes dos ilícitos civis.

Seria, mutatis mutandis, o mesmo que confundir uma fábrica, produtora de um largo

espectro de produtos, com apenas uma de suas produções. A nosso sentir, tal postura

empobrece, inexplicavelmente, o contexto dos ilícitos, reduzindo o gênero ao estudo dos

efeitos de uma de suas espécies.

A responsabilidade civil - cabe sempre repetir - é efeito de certos ilícitos civis, não

de todos. Existem, portanto, ilícitos civis que não produzem, como eficácia, o dever de

indenizar. Nada, nestes termos, autoriza uma abordagem conjunta e monolítica, que

obscureça as diferenças significativas existentes.

No direito dos oitocentos, cujo paradigma legislativo foi tão bem traduzido pelo

nosso Código Civil de 1916, os ilícitos já não ostentavam apenas a eficácia indenizante.

87 Pontes de Miranda prefere o termo ato ilícito em sentido estrito, ou delito civil (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 213). Essa expressão, contudo, não nos serve, porquanto abrange, em seus limites conceituais, a culpa e o dano, fatores estranhos à eficácia. 88 Pontes de Miranda, escrevendo em meados do século passado, já consignava: "há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar". (Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 201). Aliás, ainda antes, em 1928, no seu livro Fontes e Evolução do Direito Civil brasileiro, Pontes já intuía que os ilícitos não se esgotavam no dever de indenizar. Assim, ao esboçar a classificação dos fatos jurídicos adotada pelo Código Civil, bipartia os ilícitos em delitos e outros ilícitos, que não fossem delitos (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928, p. 176).

38

Essa foi uma falha de perspectiva advinda do apego ao literalismo do Código. Existiam

então - como ainda hoje existem - ilícitos com efeitos que consistem em autorizações, ou

ilícitos que implicam na perda de direitos em relação a quem os praticou.

Por outro lado, o dever de indenizar pode resultar de ato lícito. O dever de indenizar

resultante de ato praticado em estado de necessidade não importa em resultante de ato

ilícito, porquanto a contrariedade ao direito foi pré-excluída. Assim, "há indenizabilidade -

excepcionalmente, é certo - que não resulta da ilicitude. Reparam-se danos que se

causaram sem que os atos, de que resultaram, sejam ilícitos"89.

O estado de necessidade foi previsto no art. 188 do Código Civil: “Não constituem

atos ilícitos: II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim

de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo

somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os

limites do indispensável para a remoção do perigo”.

Decidiu, a propósito, o STJ: “A empresa cujo preposto, buscando evitar

atropelamento, procede a manobra evasiva que culmina no abalroamento de outro veículo,

causando danos, responde civilmente pela sua reparação, ainda que não se configura, na

espécie, a ilicitude do ato, praticado em estado de necessidade” (STJ, REsp. 124,527, Rel.

Min. Aldir Passarinho Júnior, 4a T., j. 04/05/00, p. DJ 05/06/00). O ato praticado em estado

de necessidade, embora lícito (Código Civil, art. 188, II), obriga a indenizar (Código Civil,

art. 929)90.

Ainda que a maioria dos ilícitos civis importe em dever de indenizar, isso, decerto,

não pode servir como escusa para que se lance as demais espécies para debaixo do tapete.

Se a eficácia indenizante não exaure o espectro das eficácias possíveis dos ilícitos civis,

está evidenciada a inconveniência do critério clássico.

89 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 197. 90 Felipe Peixoto Braga Netto, Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2007 (no prelo). Pedimos licença para remeter o leitor, havendo interesse, para obra onde tratamos, com minúcias, do tema, em capítulo próprio.

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É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação

necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Esse dever, bem vistas as coisas,

representa a eficácia de uma espécie de ilícito - o ilícito indenizante -, sem que possa ser

tido, ademais, como propriedade exclusiva sua, mercê da possibilidade de surgir como

eficácia produzida por um ato lícito.

5. Convivendo com as outras eficácias - A responsabilidade civil é tema cuja relevância

não pode ser posta em dúvida. Experimenta, atualmente, notável evolução, com o

aprofundamento matizado de seu estudo, sendo visível o surgimento, a cada dia, temas

inéditos, a reclamar ponderações e análises. O que nos incomoda, entretanto, é a redução

indevida dos ilícitos civis à responsabilidade civil.

Em outra oportunidade elaboramos divisão dos ilícitos civis a partir de três critérios.

Escrevemos na ocasião: “Se afirmamos, até aqui, que o ilícito civil é uma classe com

várias espécies, compondo um gênero rico e matizado, cabe arrolar as hipóteses, de molde

a propiciar uma visão integral do que se fala. Vale dizer que as três propostas de

classificação que esboçamos (a partir do suporte fáctico abstrato, dos efeitos produzidos e

dos limites subjetivos de eficácia) porque fundadas em critérios de análise distintos, não

são excludentes, isto é, nada impede - antes tudo sugere - que um mesmo fato jurídico seja

categorizado simultaneamente nos três planos” 91.

Contudo, por razões de espaço, nos limitaremos, neste artigo, a uma das

classificações propostas: aquela relativa aos efeitos produzidos. Por isso, pela necessidade

de exaurir os ilícitos civis encontráveis, julgamos imprescindível categorizá-los também

tendo por norte a eficácia, pois somente assim teremos uma visão completa e integral do

problema. Dessa sorte, ou se adota uma classificação com base na eficácia também, ou

restarão sem explicação algumas espécies ilícitas, indevidamente incluídas em

classificações com apoio em outros critérios, os quais acabam sendo ilegitimamente

influenciados pela eficácia.

91 Felipe Peixoto Braga Netto, Teoria dos Ilícitos Civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 89.

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Melhor é, portanto, aceitar que uma classificação com base na eficácia seja

necessária, ainda que não seja a única. Classifique-se, pois, também com esteio na eficácia,

desde que não se abandone os demais critérios de distinção, igualmente importantes. O

fundamental é bem separá-los, para que não se borrem as linhas de classificação.

Nossa proposta é separar a eficácia, com a seguinte pergunta: qual o efeito que esse

ilícito produz? E, com base nisso, traçar um quadro com as modalidades possíveis de

eficácia que podem dimanar de um ilícito civil, de jeito a fornecer um material teórico que

esgote os esquemas de eficácia existentes.

Assim, eficacialmente falando, os atos ilícitos no direito civil podem ser

classificados em:

a) Ilícito indenizante: é todo ilícito cujo efeito é o dever de indenizar. Não importa o ato

que está como pressuposto normativo. Se o efeito é reparar, in natura ou in pecunia, o

ato ilícito praticado, estaremos diante de um ilícito indenizante.

b) Ilícito caducificante: é todo ilícito cujo efeito é a perda de um direito. Também aqui não

importa os dados de fatos aos quais o legislador imputou tal eficácia. Importa, para os

termos presentes, que se tenha a perda de um direito como efeito de um ato ilícito.

Sendo assim, teremos um ilícito caducificante.

c) Ilícito invalidante: é todo ilícito cujo efeito é a invalidade. Se o ordenamento dispôs que

a reação pelo ato ilícito se daria através da negação dos efeitos que o ato normalmente

produziria, em virtude da invalidade, o ato é invalidante, que engloba tanto a nulidade

quanto a anulabilidade.

d) Ilícito autorizante: é todo ilícito cujo efeito é uma autorização. Assim, em razão do ato

ilícito o sistema autoriza que a parte prejudicada pratique determinado ato, geralmente

em detrimento do ofensor.

Importa analisar, menos superficialmente, cada uma das espécies, em ordem a

potencializar-lhes o significado.

41

5.1. Ilícito indenizante - É o ilícito que produz como eficácia o dever de indenizar.

Ressalte-se, porém, que no dever de indenizar pode estar compreendido o dever de

ressarcir, que aliás deve ser priorizado92. Denota, de qualquer sorte, o dever do agressor de

recompor a esfera jurídica do agredido. É tão conhecido e tão comum que nos

dispensaremos de maiores referências a propósito (Código Civil, arts. 186 e 187 c/c art.

927).

Digamos que alguém por negligência (míope, resolveu dirigir mesmo tendo

esquecido os óculos em casa) provoca dano (colide com veículo alheio). Deverá, como

conseqüência, indenizar os prejuízos causados. Haverá, no caso, um ilícito (Código Civil,

art. 186), cuja conseqüência será a responsabilidade civil (Código Civil, art. 927).

5.2. Ilícito caducificante - No ilícito caducificante o sistema relaciona ao ilícito a perda de

um direito. Aliás, mais propriamente, a perda de qualquer categoria eficacial93. Assim,

decorre do ilícito, de modo direito e imediato, a perda de um direito.

Estatui, a propósito, o Código Civil, art. 1.638: “Perderá por ato judicial o poder

familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o filho; II – deixar o filho em

abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV – incidir,

reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente”. Assim, o pai (ou a mãe) que

espanque o filho pode perder o poder familiar. Se Flávia, mãe de recém-nascido, castiga

imoderadamente o filho, poderá perder o poder familiar sobre ele. Trata-se, na espécie, de

um ilícito civil, sem prejuízo do ilícito penal porventura caracterizado (lembremos que se o

efeito – perda do poder familiar – é civil, o fato jurídico que originou esse efeito também o

92 Curioso é que Pontes de Miranda já houvera assentado a existência, no Brasil, do princípio da primazia da reparação in natura. Hoje, por intermédio do art. 461 do Código de Processo Civil e art. 84 do Código do Consumidor, deve ser buscado, em linha de princípio, a tutela específica da obrigação. Não sendo possível, o resultado prático equivalente. Somente em último caso, as perdas e danos. 93 Partido da premissa, forte em Pontes de Miranda, de que a relação jurídica está no plano da eficácia, integrada, no seu esquema integral, por direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e situação de acionado (ação de direito material) e exceção e situação de exceptuado.

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é. Sem prejuízo, repita-se, do fato configurar, simultaneamente, suporte fático de ilícito

penal).

Os ilícitos civis – cabe insistir - podem dar ensejo à perda de direitos ou outras

categorias de eficácia. Apenas para exemplificar, o herdeiro que sonegar bens, não os

levando à colação, perde o direito que sobre eles pudesse ter (Código Civil, art. 1.992: “O

herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam

em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a

que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe

caiba”). Quer dizer, a perda de um direito como efeito de um ilícito civil.

Suponhamos que Alexandre recebeu um apartamento, doado por seu pai. Deverá, no

inventário deste, declarar que recebeu tal doação, levando o bem à colação (para

compensação com os demais irmãos, por exemplo). Se Alexandre se omitir, escondendo o

bem, perderá o direito sobre ele. Trata-se da clássica sanção dos sonegados.

O contraente que pratica ato proibido pelo conteúdo do contrato pode perder certos

direitos, como o direito à resolução, o direito à posse de determinado bem, etc. Tal perda

não decorrerá de um ato inválido, mas apenas de um ilícito ao qual o sistema imputa,

diretamente, a perda de um direito, mercê do ato praticado.

5.3. Ilícito autorizante - São os ilícitos cujo efeito consiste na autorização, facultada pelo

sistema, ao ofendido, para praticar, ou não, a seu critério, determinado ato. No ilícito

autorizante o ordenamento relaciona ao ilícito uma autorização, que sem o ilícito não

existiria. Nasce, destarte, para o ofendido, a possibilidade de praticar certo ato, como efeito

do ato ilícito.

É interessante, portanto, sob o prisma teórico, mostrar que não existe uma relação

necessária entre os ilícitos civis e o dever de indenizar. Apenas para exemplificar, a

ingratidão do donatário é um ilícito civil cujo efeito consiste, exatamente, na possibilidade,

que o ordenamento faculta ao doador, de revogar a doação, se assim lhe aprouver (Código

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Civil, art. 557: “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I – se o donatário

atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; II – se

cometeu contra ele ofensa física; III – se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV – se,

podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”). Trata-se,

portanto, da uma autorização como efeito de um ilícito. Qual o ilícito? A ingratidão do

donatário. Qual o efeito? A possibilidade da revogação da doação.

Imaginemos que Rubens doe uma fazenda para Caio, seu afilhado. Caio, porém, é

ingrato para com Rubens (conceito de ingratidão de acordo com a lei civil). O Código Civil

autoriza Rubens, nesse caso, a revogar, caso deseje, a doação válida e formalizada.

Essa possibilidade de revogar a doação – autorização – só existe porque o ilícito foi

praticado. Sem o ilícito ela inexistiria. É mais uma demonstração de que os efeitos dos

ilícitos civis são múltiplos, não se resumem a uma eficácia única.

Formulemos outra hipótese. Leandro tem seu sítio invadido por desconhecidos.

Poderá, caso queira, expulsar à força os invasores, desde que o faça logo e sem excessos.

Trata-se de um dos poucos casos de exceção ao monopólio estatal no uso da força, ao lado

da legítima defesa. Pontes de Miranda lê tais casos como sendo hipóteses de justiça de

mão-própria.

O Código Civil, no art. 1.210, § 1º, regula a situação descrita: “O possuidor

turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto

que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à

manutenção, ou restituição da posse”. Trata-se, novamente, de uma autorização (expulsar

os invasores) que o Código Civil disponibiliza a quem sofre um ilícito civil (no caso, teve

sua propriedade invadida).

5.4. Ilícito invalidante - A grande questão, que aqui se põe, não é tanto identificar os

inválidos, mas caracterizá-los como lícitos ou ilícitos. A doutrina tradicional, mercê da

identificação do ilícito civil com uma de suas espécies, afastou, sem maiores discussões, os

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inválidos da seara ilícita. Assim, no direito civil, salvo em tópicas manifestações, os

inválidos são considerados lícitos, ainda que por exclusão.

Há autores, contudo, que distam dessa orientação. Pontes de Miranda inclina-se em

enxergar nos inválidos atos ilícitos94. Marcos Bernardes de Mello os tem como

inquestionavelmente ilícitos95. Paulo Luiz Netto Lôbo, de igual modo, também assim os

categoriza96.

De fato, as sanções, em direito civil, não se resumem ao ressarcimento, à reparação

ou à indenização. Desde que se perceba, com clareza, essa realidade, que emerge do próprio

direito legislado, é possível dimensionar, com mais exatidão, os atos inválidos. E, por

conseguinte, verificar-lhes o caráter ilícito.

Os efeitos dos ilícitos civis podem assumir, simplesmente, o caráter negativo. Ou

seja: o sistema inibe o ato de produzir efeitos, ou alguns deles. É preciso, nesse ponto,

firmar uma premissa: invalidade é sanção97. É uma sanção atípica, se nos atermos ao senso

comum de que sanção, em direito civil, corresponde, fundamentalmente, à reparação dos

danos causados, mormente pecuniários.

Não há, de fato, razão jurídica a secundar a peremptória exclusão dos inválidos da

seara dos ilícitos civis. Ou seja, a tese tradicional pugna pela conformidade ao direito de

atos forjados à base de dolo, coação, etc.

Imagine-se que poderoso fazendeiro, desejando obter a terra de modesto colono,

ameaça-lhe (“ou você me vende a terra por tanto, ou sua filha talvez não retorne da escola

esse mês...”). O colono, sentindo-se em perigo, realiza a venda. Estaremos diante de um ato

lícito? Naturalmente que não. Dispõe, a propósito, o Código Civil, art. 151: “A coação,

para viciar a declaração de vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de

94 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 202. 95 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do Fato Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 199. 96 Paulo Luiz Netto Lôbo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 158. 97 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, t. LIII, p. 104.

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dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família ou aos bens”. O artigo seguinte

dispõe: “Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a

saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na

gravidade dela”.

Mais adiante, o Código Civil, no art. 178, dispõe: “É de quatro anos o prazo de

decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado: I – no caso de

coação, do dia em que ela cessar”.

Com efeito, como defender o caráter lícito de um contrato em cujo firmamento um

dos contraentes foi coagido? A coação é causa de anulação do negócio (Código Civil, art.

171, II). Não há razão jurídica para postular a conformidade ao direito de um ato tal. Eles

são contrários ao direito, e como tais ilícitos.

Cabe lembrar que o dualismo lícito/ilícito esgota, sob o prisma da conformidade ou

contrariedade ao direito, as possibilidades de categorização dos atos jurídicos. Destarte, o

que não for lícito será ilícito, e vice-versa. Portanto, os que perfilham a tese de que somente

são ilícitos os atos cujo efeito é a indenização, aceitam, de modo oblíquo, a conformidade

ao direito de atos realizados por pessoas coagidas, ou contratos firmados com objetos

ilícitos, por exemplo.

Os atos inválidos funcionam, por vezes, como uma espécie de rede de segurança,

impedindo a eficácia indesejada pelo sistema jurídico. Nos inválidos apenas ocorre a

negativa da produção dos efeitos do ato ilícito realizado, sem que se perca direito já

integrante do patrimônio jurídico (caducificantes), sem que surja autorização para praticar

um ato (autorizantes), ou sem que surja, necessariamente, o dever de indenizar

(indenizantes).

Concluindo, sendo certo que já superamos o espaço que nos foi dado – e ainda

tendo presente a advertência de Hegel de que o excesso de argumento prejudica a causa - ,

cabe lembrar que todo sistema jurídico tem de lidar com a violação de suas normas.

Estabelecer, juridicamente, padrões de conduta importa em prever, naturalmente, modelos

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de comportamento que distem desses padrões. O ilícito, nesse sentido, é uma reação,

juridicamente organizada, do sistema jurídico contra a conduta que viola seus valores,

princípios e regras.

O ilícito civil, em termos de hoje, deve ser perspectivado não só como representante

do dever de indenizar, mas também, fundamentalmente, como a categoria que possibilita

uma atuação reativa do sistema para evitar a continuação ou a repetição das agressões aos

valores e princípios protegidos pelo direito.

Amplia-se, assim, o espectro dos ilícitos civis, com a possibilidade que eles defluam

da violação a princípios, sem a tipologia fechada que caracteriza o direito penal. Sustenta-

se que os ilícitos civis são abertos, no sentido de que princípios, e não apenas regras, podem

servir de base material para sua configuração.

Defende-se que a responsabilidade civil é efeito de uma espécie de ilícito, e não do

gênero ilícito civil. Postula-se a existência de outras eficácias, igualmente existentes, que

decorrem de ilícitos civis. As sanções civis, desse modo, não se resumem no dever de

indenizar ou ressarcir, podendo também compreender: a) a autorização para a prática de

certos atos pelo ofendido, b) a perda de certas situações jurídicas (direitos, pretensões e

ações) ou c) a neutralização da eficácia jurídica (não produção dos efeitos jurídicos como

sanção).

Essa percepção naturalmente conduz a uma notável ampliação da função dos ilícitos

no sistema jurídico. De fato, um entendimento meramente estático dos ilícitos, a partir de

certas propriedades abstratamente postas, não se concilia com um sistema jurídico fundado

em valores e princípios, cujas bases são essencialmente axiológicas, e não puramente

lógico-formais (Constituição da República, art, 1º, III; art. 3º, I, III).

Os novos padrões de conduta, na esfera civil, são iluminados por valores, tais como

a dignidade da pessoa humana, justiça social, igualdade substancial, solidariedade, entre

outros. Não existe mais uma rígida tipologia de condutas possíveis e condutas vedadas.

Não, pelo menos, na órbita civil. As ações permitidas e as ações repudiadas são definidas

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em razão dos condicionamentos históricos, recebendo substancial influência de outros

setores sociais, que penetram no sistema jurídico através dos princípios, que por sua vez

carecem de concretização mediadora.

O ilícito civil, se perspectivado em termos contemporâneos, ostenta uma

permeabilidade aos valores que é inédita aos olhos clássicos. Possui uma mobilidade que

lhe permite transitar pelo sistema jurídico incorporando referências axiológicas e as

traduzindo em sanções, em ordem a assegurar, de forma aberta e plural, a preponderância

dos valores fundamentais no sistema do direito civil.