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LINGÜÍSTICA III IARA BEMQUERER COSTA 2.ª edição 2009 Esse material é parte integrante do Videoaulas on-line do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.videoaulasonline.com.br

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lingÜística iii

IARA BEMQUERER COSTA

2.ª edição2009

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

© 2008-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Júpiter Images / DPI Images

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C872Lv.3

Costa, Iara Bemquerer.Lingüística III. / Iara Bemquerer Costa. – Curitiba, PR: IESDE, 2009.256 p.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-387-0778-3

1. Socioingüística. 2. Fala. 3. Conversação. I. Inteligência Educacional e Siste-mas de Ensino. II. Título.

09-4215. CDD: 401.9CDU: 81’42

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Doutora em Ciências (Lingüística) pela Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp). Mestre em Lingüística pela Unicamp. Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Iara Bemquerer Costa

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Sumário

Análise da fala e da conversação ........................................ 15

A conversação como objeto de estudo ............................................................................. 15

Propriedades definidoras da conversação ....................................................................... 16

Algumas modalidades de conversação ............................................................................ 19

Transcrição da fala..................................................................................................................... 22

Conclusão ..................................................................................................................................... 27

Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação ............................................ 35

A especificidade da conversação ......................................................................................... 35

Os turnos de fala ........................................................................................................................ 36

Tópico conversacional ............................................................................................................. 40

Pares adjacentes ........................................................................................................................ 43

A hesitação .................................................................................................................................. 47

Conclusão ..................................................................................................................................... 48

Estratégias de organização do diálogo ............................ 57

A paráfrase ................................................................................................................................... 57

A correção .................................................................................................................................... 60

A repetição ................................................................................................................................... 62

Os marcadores conversacionais ........................................................................................... 63

Conclusão ..................................................................................................................................... 68

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A aquisição da linguagem ..................................................... 75

Teorias de aquisição da linguagem .................................................................................... 76

A aquisição da fonologia ........................................................................................................ 83

Observações sobre a aquisição da escrita ........................................................................ 86

Conclusão ..................................................................................................................................... 87

Análise retórica da argumentação ..................................... 95

A Retórica Clássica e sua revitalização na Nova Retórica ............................................ 95

Conceitos fundamentais da Nova Retórica ....................................................................100

O ethos: imagem do autor projetada no discurso .......................................................107

Conclusão ...................................................................................................................................108

A teoria da argumentação na língua ...............................117

A contribuição de Oswald Ducrot para o estudo da argumentação ....................117

A pressuposição .......................................................................................................................120

O subentendido .......................................................................................................................122

Os operadores argumentativos .........................................................................................123

Conclusão ...................................................................................................................................127

Teoria da informação ............................................................133

Informação X redundância ..................................................................................................133

Contribuições da teoria da informação para o estudo das línguas ......................136

A informatividade como fator de textualidade ............................................................138

Fontes de expectativa para a avaliação da informatividade ...................................142

Conclusão ...................................................................................................................................143

Teoria dos atos de fala ..........................................................151

O conceito de atos de fala: origem, contribuições para a Lingüística e limites ......................................................152

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As enunciações performativas ...........................................................................................155

Tipos de atos de fala ...............................................................................................................156

Conclusão ...................................................................................................................................159

As máximas conversacionais ..............................................169

As relações entre a lógica e a conversação segundo J.P. Grice ...............................169

Princípios organizadores da conversação ......................................................................171

Implicatura conversacional ..................................................................................................178

Conclusão ...................................................................................................................................179

Conceitos básicos da Análise do Discurso ....................187

Surgimento e consolidação da Análise do Discurso...................................................188

Formação ideológica e formação discursiva .................................................................191

O conceito de discurso ..........................................................................................................192

Discurso e interdiscurso ........................................................................................................194

Conclusão ...................................................................................................................................196

O sujeito na Análise do Discurso ......................................203

Condições de produção e jogo de imagens ..................................................................203

O conceito de sujeito na Análise do Discurso ...............................................................208

Sentido e efeito de sentido ..................................................................................................210

Conclusão ...................................................................................................................................211

Exemplos de Análises do Discurso ...................................221

Exemplo 1: A linguagem politicamente correta e a Análise do Discurso ...........221

Exemplo 2: O mito de informatividade, imparcialidade e objetividade em funcionamento nos comentários telejornalísticos ................226

Conclusão ...................................................................................................................................229

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Gabarito .....................................................................................237

Referências ................................................................................247

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Apresentação

A Lingüística – ciência que tem como objeto o estudo da linguagem – foi criada e se consolidou a partir da obra genial de Ferdinand de Saussure, especialmente do seu Curso de Lingüística Geral, publicado em 1916. Alguns pressupostos assumidos por ele foram fundamentais para a delimitação do objeto de estudo da Lingüística e do método adotado para a análise das questões incluídas no campo de estudo circunscrito para a nova ciência. Para o estruturalismo, que caracteriza a Lingüística da primeira metade do século XX, a língua é concebida como um sistema de signos, e analisada a partir das relações de semelhança e diferença entre os elementos nos diversos níveis desse sistema: na fonologia, na morfologia, na sintaxe.

A definição do objeto e do método de análise formulados pelo estruturalismo alavancou os estudos da linguagem e permitiu avanços consideráveis na análise tanto das línguas já estudadas há séculos – as européias, por exemplo – como de numerosas línguas americanas e africanas, que não contavam com descrições pré-vias nem dispunham de sistemas de escrita. No entanto, a definição do objeto pela Lingüística estrutural deixa fora do campo de estudo uma série de questões rele-vantes sobre a organização e funcionamento das línguas naturais. O estruturalismo parte da oposição entre língua (sistema de signos) e fala (uso da língua) e define a primeira como seu objeto de estudo. Conseqüentemente, ficam de fora todas as questões que envolvem a relação do falante com a linguagem, a ligação entre os fatos sociais e o uso da língua, as unidades lingüísticas maiores que a sentença.

Este livro focaliza uma série de formulações teóricas e metodológicas poste-riores ao estruturalismo e que têm em comum a revisão dos limites do estudo da linguagem estabelecidos por uma concepção formalista. Algumas dessas refor-mulações são motivadas pela observação de propriedades das línguas naturais que uma abordagem formalista não capta. Exemplos dessas reformulações são: os estudos da argumentação na língua, que mostram que as expressões lingüísti-cas têm intrinsecamente uma carga argumentativa; a teoria dos atos de fala, que coloca em evidência a existência de ações que são realizadas pela produção de enunciados lingüísticos.

Outras reformulações são motivadas pela incorporação de questões relevantes antes excluídas dos estudos lingüísticos, como o funcionamento da fala. A Análise da Conversação procura desenvolver uma metodologia adequada para a identifi-cação dos princípios que regem a interação entre os falantes quando fazem o uso mais trivial de sua língua: conversam no dia-a-dia sobre qualquer tema.

Há também ampliações significativas dos estudos da linguagem motivadas pelo diálogo entre a Lingüística e outras áreas do conhecimento que também tratam de questões que têm reflexos no uso da linguagem. O diálogo com a Psi-cologia e as teorias de aquisição da linguagem formuladas por psicólogos como

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Jean Piaget foi fundamental para o desenvolvimento da Psicolingüística. A revita-lização da Retórica – a partir da releitura da Retórica Clássica – produziu uma série de estudos da argumentação. As contribuições da Sociologia, a partir dos estudos da ideologia, e da Psicanálise, que fornece elementos para uma compreensão do sujeito, alavancam o surgimento de uma área dos estudos lingüísticos muito pro-dutiva atualmente, a Análise do Discurso. A teoria da informação contribuiu para a compreensão do funcionamento dos textos.

Nas 12 unidades deste volume, são apresentados os conceitos mais relevan-tes de cada uma dessas áreas, com o uso de exemplos que possam facilitar o seu entendimento e indicações de fontes às quais o estudante pode recorrer para o aprofundamento do estudo nas áreas que lhe despertarem maior interesse.

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Este capítulo tem como tema uma das abordagens da argumentação no texto: a análise retórica. Inicialmente, vamos apresentar algumas infor-mações sobre a história da retórica para destacar sua origem, suas preocu-pações originais, seu declínio e revitalização. A seguir, daremos ênfase aos conceitos nucleares da retórica e ao seu uso como um instrumento para a análise de textos.

A Retórica Clássica teve origem na Grécia, no século VI a.C. Considera-da um dos pilares da educação clássica, estava presente principalmente nos tribunais e nas atividades políticas. Foi posterior men te incorporada ao discurso religioso na Idade Média. Seu declínio ocorreu com o human-ismo do século XVI. Após esse período, a visão predominante da retórica torna-se negativa, pois ela passa a ser considerada a arte de criar discur-sos vazios e enganadores.

Após séculos de esquecimento, a retórica teve uma revitalização na metade do século XX, sobretudo a partir dos trabalhos de Chaïn Perel-man. Esse ressurgimento, chamado de Nova Retórica, produziu um deslo-camento nos objetivos dessa área: a principal contribuição da retórica at-ualmente é de fornecer instrumentos para a análise dos diversos discursos argumentativos com que nos deparamos. A retórica auxilia na análise dos discursos publicitários, políticos, religiosos, enfim, de todos os discursos que buscam a adesão a uma causa, uma idéia, um produto.

Vamos enfatizar aqui a contribuição da Nova Retórica para a interpre-tação de textos. Para isso, a apresentação dos conceitos retóricos será feita através da análise de um texto de opinião publicado na revista Veja.

A Retórica Clássica e sua revitalização na Nova Retórica

O surgimento da retórica se deu na Sicília grega entre os anos 480 a.C. e 399 a.C., depois que os tiranos, ou seja, os dominadores, foram ex-

Análise retórica da argumentação

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Lingüística III

pulsos e que se constituiu um novo estado, organizado a partir de princípios democráticos. Com o fim do regime autoritário, os cidadãos reclamavam seus bens, dos quais haviam sido despojados pelos antigos mandatários. As recla-mações eram feitas na presença de um juiz e diante de um público ouvinte. As técnicas desenvolvidas para a organização argumentativa desses discursos deram origem à retórica.

Atenas, centro da cultura na época, incorporou a técnica retórica dos habi-tantes sicilianos aos seus processos jurídicos. Assim, a retórica nasceu em vir-tude de uma necessidade prática e foi difundida primeiramente como retórica judiciária. Os gregos sicilianos não tinham advogados, por isso os litigantes tinham que redigir suas queixas e lê-las perante os tribunos. Como ficou evi-dente que as causas dos discursos melhor redigidos eram mais bem-sucedidas, surgiu uma classe de logógrafos profissionais que ouviam e redigiam as queix-as dos cidadãos. Ao mesmo tempo, surgiram retores, logógrafos ou não, que ensinavam técnicas que se baseavam nas maneiras de comprovar o verossímil. Foram os antigos retores que inventaram a disposição do discurso em quatro partes: invenção (heurésis – escolha dos argumentos), disposição (taxis – ordem em que os argumentos aparecem no discurso), elocução (lexis – estilo em que um discurso é apresentado – fase em que o discurso é escrito e que inclui as figu-ras de estilo), ação (hypocrisis – proferição do discurso, com ênfase nos gestos usados na apresentação diante do público).

Na história da Retórica Clássica, é importante destacar a contribuição de Gór-gias, que impressionou o mundo helênico com a beleza de sua retórica. Antes dos discursos de Górgias só a poesia era entendida como literatura. Com ele a prosa retórica assume estatuto literário. A arte da retórica exige que seu cultor vença os certames não só pela convicção racional que cria em seu auditório através de um discurso que faça sentido, mas também pela persuasão que im-plica num engajamento emocional da parte do seu público ouvinte. Ou seja, o uso frutífero da retórica deve conquistar os corações da mesma forma que as mentes do auditório.

Aristóteles, que viveu entre 384 a.C. a 322 a.C., escreveu um grande número de obras sobre vários assuntos, inclusive um texto que hoje se conhece pelo nome de Retórica. A marca registrada e inovadora de Aristóteles foi imprimir ao estudo da retórica duas características próprias do gênio grego: a observação e o espírito de sistema.

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Análise retórica da argumentação

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A retórica é, para Aristóteles, uma ferramenta que pode ser útil no mundo jurídico, na prosa literária, na filosofia e no ensino, mas que, em si mesma, é in-diferente: pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Segundo ele, a retórica é algo bom, como a força, a saúde ou a riqueza, mas que pode ser usada para o proveito ou a ruína dos seres humanos. Considera o ensino da retórica im-portante, por proporcionar ao cidadão que se sinta lesado ou agredido, ou que deseje expor suas idéias sobre qualquer assunto, um método que lhe permite argumentar em defesa de seu ponto de vista na presença de qualquer público. Segundo pensamento aristotélico, a retórica é um instrumento imprescindível para a formação do homem universal.

A retórica teve grande prestígio e importância na cultura clássica, tanto entre os gregos quanto entre os romanos. Mesmo depois da queda do Império Romano do Ocidente, ela continuou a ser cultivada dentro da Igreja, como um método importante para a produção de textos para captar e manter a adesão dos fiéis aos princípios religiosos. A tradição de elaboração dos sermões, por ex-emplo, sempre se beneficiou da contribuição da retórica.

É só com o humanismo do século XVI que, de fato, começa o declínio da retóri-ca. A partir dos séculos XVII e XVIII, a retórica foi, ao que parece, excluída das ciên-cias naturais, da matemática e da filosofia. O treinamento em retórica continuou ainda servindo, até o século XIX, aos debates jurídicos, à política e à pregação.

Em meados do século XX, observa-se o ressurgimento dos estudos retóri-cos, sobretudo a partir dos trabalhos de Chaïm Perelman. A revitalização desse estudo é marcada por algumas diferenças em relação à Retórica Clássica. Seu objetivo principal não é mais produzir discursos, mas interpretá-los. Os estu-dos retóricos passaram a se ocupar de formas modernas de discurso persuasivo tais como a linguagem da propaganda e as produções não-verbais. É com base nesta versão renovada da retórica que vamos mostrar como ela pode servir de instrumento para uma leitura não-ingênua de textos de opinião. Para isso, pro-curaremos destacar os conceitos que constituem os pilares da Nova Retórica e, ao mesmo tempo, usá-los como auxiliares na leitura.

Para expor de forma clara e aplicada os conceitos usados pela Nova Retórica para a análise de textos, vamos começar com a apresentação de um exemplo. Trata-se de um artigo de opinião publicado na revista Veja. Leia inicialmente o artigo, pois ele servirá de referência para a discussão dos conceitos de tese, au-ditório, acordo, para a identificação de algumas técnicas argumentativas e de alguns tipos de argumentos.

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Lingüística III

O ano da saúde e os desmancha-prazeresOu damos tudo a uns poucos ou oferecemos a todos apenas

os cuidados médicos necessários simples

(CASTRO, 1997, p. 134)

A Constituição de 1988 não deixa por menos: os serviços de saúde serão oferecidos de forma universal, integral e gratuita. Aos pobres cabe agradecer tamanha generosidade.

Mas os economistas somos espíritos de porco por profissão, temos a mania de desmanchar prazeres. Com a ajuda de André Medici – mais sabido do que eu em saúde –, desembainhamos as calculadoras para exercer nossa triste sina.

Quando era elixir paregórico da cintura para baixo, aspirina para cima e extrema-unção quando não dava certo, a promessa da universalidade, gra-tuidade e integralidade do serviço de saúde era viável, pois era barato. Mas a tecnologia complicou tudo em um país onde o estado gasta 90 reais por habitante. Um dia em um bom centro de terapia intensiva custa 1.500 reais (ou seja, a cota anual de 16 brasileiros). Uma ponte de safena custa 30.000 reais (equivalente ao gasto médio de 300 pessoas), quase o mesmo que um ano de internamento psiquiátrico de boa qualidade.

Antes de remexer nas continhas, notemos que nenhum país da Europa ou da América do Norte ousou ser tão generoso quanto nossa Constituição. Nos Estados Unidos, o tratamento nem é universal nem gratuito e todos os planos têm exclusões. Na Europa e no Canadá é universal, nem sempre gra-tuito e altamente limitado o elenco de serviços oferecidos a todos. Em Cuba é gratuito, mas os tratamentos caros são só para os turistas (pagantes).

Quanto custaria implementar a Constituição? Tomemos um plano gener-oso como o proporcionado pelo Banco do Brasil aos seus funcionários (1.310 dólares por ano). Se oferecido a todos os brasileiros, faria o custo da saúde subir a 37% da renda nacional. O custo médio da Golden Cross universal-izado para o país comeria 42%. Isso é quatro vezes mais do que gastam os países mais perdulários em saúde.

A promessa de oferecer tudo não é apenas uma lantejoula a mais es-voaçando no mundo da fantasia, mas um monumental fator de injustiça.

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Análise retórica da argumentação

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Como pela regra constitucional todos têm direito a tudo, capturam a parte do leão os mais sabidos, os mais poderosos e os mais próximos dos cen-tros de decisão, bem como os grandes hospitais oferecendo tratamentos sofisticados. Tratamentos que a Europa não tem recursos para oferecer, o nosso sistema não pode negar pela Constituição. As cortes de Justiça dão ganho de causa a quem pedir 120.000 reais para fazer um tratamento quase inútil nos Estados Unidos. Sobra pouco para os outros. Como se fixam pri-oridades? É de quem chegar primeiro, ficando os pobres, a saúde pública e a prevenção de mãos abanando.

Mas bem sabemos que é no atendimento básico onde se alteram as es-tatísticas de saúde. Por isso temos estatísticas de mortalidade infantil de país miserável (45 por 1.000), mas gastamos como país de renda média (220 dólares). No Chile, que gasta 183 dólares por habitante, a mortalidade infan-til é de 12 por 1 000.

Daí que a verdadeira reforma de saúde tem de começar com um exercício simples, mas desagradável: para cada real gasto, quais as intervenções que salvam mais vidas? Quanto temos para gastar? (ou quanto poderemos ter fazendo uma forcinha?) Ordenemos, pois, o custo global de cada interven-ção por ordem decrescente de ganhos sobre a saúde, até que se acabem os recursos. Essas contas já foram feitas e sabemos onde são maiores os impac-tos: prevenção, atendimento materno-infantil, moléstias infectocontagiosas, endemias, atendimento ambulatorial, nutrição, água e esgoto. Se nossos recursos fossem canalizados para esses gastos, a saúde do brasileiro mel-horaria dramaticamente. Só que sobrariam menos recursos públicos para as intervenções mais caras.

Nossas calculadoras trazem um recado desagradável: ou damos tudo a uns poucos ou oferecemos a todos apenas os cuidados médicos necessários simples. Mas há uma boa notícia – são esses cuidados que têm maior im-pacto sobre a saúde de um povo.

Como leitores da revista em que este artigo de opinião foi publicado, certa-mente fazemos uma leitura sem a preocupação de analisá-lo a partir dos con-ceitos fornecidos pela retórica. Um leitor comum vai identificar o ponto de vista do autor, reconhecer os argumentos usados para sustentar esse ponto de vista e vai assumir uma posição diante do que leu: concordar, discordar, elogiar, criticar etc. Vejamos como a retórica pode mudar a qualidade dessa leitura.

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Lingüística III

Conceitos fundamentais da Nova RetóricaPara o estudo das diversas manifestações argumentativas, Perelman e Ol-

brechts-Tyteca (1996) destacam algumas questões anteriores à formulação de uma teoria da argumentação. Segundo eles, é necessário levar em conta que a adesão do interlocutor a uma tese pode ter intensidade variável. Diante dos argumentos apresentados por alguém, podemos concordar totalmente e partir para a defesa do mesmo ponto de vista, mas podemos também concordar par-cialmente com a opinião que essa pessoa nos apresenta. Daí a necessidade de distinguir de um lado os raciocínios e procedimentos discursivos relativos à ar-gumentação, de outro os que se referem à demonstração e à dedução. Esses últimos procuram chegar a evidências absolutas, através da apresentação das provas que devem demonstrar determinadas proposições de forma definitiva, de modo que qualquer pessoa razoavelmente inteligente tenha de aceitar a demonstração. Na argumentação é possível observar graus variáveis de aceita-ção de uma tese.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) ressaltam a importância de uma teoria da argumentação como um instrumento para a produção e leitura de textos. Para esses autores, “o objeto dessa teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresen-tam ao assentimento” (grifos no original – p. 4). Essa definição permite deduzir que um dos conceitos centrais na teoria da argumentação é o conceito de “tese”. Portanto, uma questão preliminar ao estudo das técnicas argumentativas empr-egadas em qualquer discurso é a identificação da tese. Isso é importante tanto para a produção de textos quanto na sua interpretação.

Não é qualquer tema que se presta à formulação de teses e ao uso da argu-mentação. Uma afirmação como “a terra é redonda” já foi objeto de polêmica no passado, mas hoje é uma verdade reconhecida, sobre a qual não há necessidade de se tomar posição. Se alguém fizesse uma pergunta como “você acha que a terra é redonda?” seria ridicularizado ou tomado como louco.

Os temas que se prestam à elaboração de discursos argumentativos devem ser polêmicos, sobre os quais circulam opiniões antagônicas. Toda tese se opõe a outras teses concorrentes sobre o mesmo tema. Só faz sentido disputar a adesão de alguém quando essa pessoa pode assumir uma posição diferente. É simples elaborar uma lista de temas polêmicos que levam à polarização de opiniões no Brasil atualmente:

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Análise retórica da argumentação

101

redução da maioridade penal; �

implantação da pena de morte; �

legalização do aborto; �

adoção da eutanásia; �

etc. �

Cada vez que esses temas são discutidos, há grupos que assumem uma posição favorável e outros que se declaram contrários.

Se um professor de matemática demonstra aos alunos que 3 x 5 = 15, todos os que entenderem a demonstração ficarão integralmente convencidos da cor-reção desse cálculo. Mas se o mesmo professor disser que é favorável à proibição do comércio de armas de fogo no Brasil e apresentar um conjunto de razões para fundamentar seu ponto de vista, ele certamente não conseguirá convencer todos os alunos. Alguns vão concordar, outros discordar e alguns vão concordar parcialmente, e considerar a tese aceitável sob certas condições. Essa diversidade de posições que as teses polêmicas suscitam pode ser observada, por exemplo, na seção Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo. O jornal propõe temas polêmicos a especialistas em várias áreas e divide os artigos em três grupos: sim (concorda com a tese), não (discorda), em termos (concorda parcialmente, sob certas condições).

O que é uma tese? É a posição, o ponto de vista do autor diante de um tema polêmico. O ponto de partida para a interpretação de qualquer texto de opinião é a identificação da tese defendida pelo autor, assim como o ponto de partida para a produção de um texto de opinião é ter clareza sobre a tese a ser defendida.

Voltemos ao texto “O Ano da Saúde e os Desmancha-prazeres”. A organiza-ção argumentativa desse texto tem como núcleo a tese do autor, seu ponto de vista sobre os serviços públicos de saúde no Brasil. Essa tese aparece na frase destacada antes do texto: “Ou damos tudo a uns poucos ou oferecemos a todos apenas os cuidados médicos necessários simples”. O ponto de vista de Castro corresponde evidentemente à segunda parte dessa frase. A tese de que os serviços públicos de saúde no Brasil devem se restringir aos pro-cedimentos mais simples é destacada antes do texto e apresentada nos dois parágrafos finais.

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Lingüística III

O auditórioA seleção e organização dos argumentos em um texto levam em conta, em

primeiro lugar, os interlocutores, ou, como destacam Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), o “auditório”, definido como “o conjunto daqueles que o orador pretende influenciar com sua argumentação” (p. 22). Esses autores destacam também que o importante, na argumentação, não é saber o que o próprio orador considera ver-dadeiro ou probatório, mas qual é o parecer daqueles a quem ele se dirige (p. 26).

O autor/falante seleciona seus procedimentos argumentativos a partir de uma representação, uma imagem do seu interlocutor, que pode ser (ou não) construída a partir do conhecimento real do grupo particular de indivíduos que constituem seus leitores/ouvintes reais.

Assim, um segundo passo na interpretação do texto de Castro reproduzido acima envolve a resposta à questão: a quem o autor se dirige nesse texto? Quem ele quer convencer com seus argumentos? Qual é seu auditório?

Uma primeira pista para a identificação do auditório é o veículo em que o texto foi divulgado: a revista Veja. É uma revista que dá ênfase à informação e à forma-ção de opinião destinada a uma faixa ampla de leitores, em especial a uma classe média distribuída por todo o território nacional. Quando se estabelece a relação entre o leitor da revista e a tese proposta pelo autor observa-se um descompasso: a tese de Castro está relacionada à definição de uma política de saúde pública para o Brasil. Poucas pessoas no país poderiam combinar a adesão a essa tese com uma ação efetiva: quem tem o poder de decisão nessas questões são os membros do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde estaduais e municipais.

Por que então publicar o artigo em uma revista de grande circulação em vez de encaminhar as propostas a quem tem poder de decisão, a um auditório qualificado para executar as ações decorrentes da adesão à tese? Uma resposta possível é que Castro pretende formar a opinião dos leitores da revista, que não têm poder de decisão sobre política de saúde, mas seriam afetados diretamente caso a política proposta fosse implementada. Ou seja, o autor não quer que seu auditório implemente as propostas apresentadas, mas que as aceite, caso sejam implantadas. O autor não pretende levar seus leitores a agir, mas a aceitar sem reclamações a perda de direitos garantidos constitucionalmente.

As razões alegadas têm a ver com um conjunto de valores supostamente compartilhados pelos leitores da revista. O conceito de “acordo” refere-se a esses valores.

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Análise retórica da argumentação

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O acordoEm toda construção argumentativa, o autor pressupõe que seus interlocu-

tores concordam com um conjunto de afirmações implícitas (premissas), que são admitidas como um “acordo” prévio, sobre o qual toda a argumentação é construída. Fazem parte desse acordo: fatos, verdades, hierarquias, valores. Na maioria das vezes esses elementos, que sustentam a argumentação, não são apresentados explicitamente, mas apenas pressupostos.

Observando o texto “O Ano da Saúde e os Desmancha-Prazeres” é fácil perce-ber que o autor apela principalmente para a valorização da justiça ao formular seus argumentos. Segundo ele, sua proposta para a saúde pública no Brasil é a mais “justa”. Ou seja, ele pressupõe que seus leitores compartilhem desta valori-zação: a melhor decisão em relação a uma política de saúde é a mais justa, isto é, a que permite um tratamento igualitário à população.

Outro valor presumido no acordo entre o autor e seus leitores é a valorização da vida. A vida está em jogo em todos os exemplos citados, tanto no caso em que alguém pede na justiça “120.000 reais para fazer um tratamento quase inútil nos Estados Unidos” quanto nos casos mais simples, que envolvem nutrição, trata-mento de doenças infectocontagiosas etc. Aí entra em cena um outro acordo, relacionado à quantidade: a melhor política de saúde é a que salva mais vidas.

O autor apresenta ainda no texto todo um conjunto de dados, sejam dados estatísticos, sejam valores referentes a gastos com saúde. Ele não tem a preocu-pação de apontar a fonte onde tais informações foram colhidas, mas supõe que os leitores da revista concordam com a veracidade desses dados.

O conceito de acordo é interessante para a leitura de textos persuasivos, pois leva o leitor a identificar os fatos e valores que o autor supõe serem aceitos pelos interlocutores. Há alguns valores que têm um enorme poder persuasivo e que são usados por partidários de posições distintas para a defesa de teses muito diferentes. Valores como a justiça, a liberdade, a democracia, a preservação do meio ambiente, o direito à vida têm os mais diversos usos. Basta lembrar a cam-panha contra o desarmamento, por ocasião do plebiscito realizado em outubro de 2005, que associou a manutenção do direito de posse de armas de fogo à liberdade individual.

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Lingüística III

Os tipos de argumentosPerelman e Olbrechts-Tyteca (1996) classificam os argumentos usados nos

textos em duas grandes classes: argumentos quase-lógicos e argumentos base-ados na estrutura do real. Os argumentos quase-lógicos procuram se aproxi-mar de raciocínios formais, lógicos ou matemáticos. Não se pode dizer que haja simplesmente uma transposição dos raciocínios formais para a argumentação, trata-se apenas de semelhança, de uma forma de apresentação que dá aos ar-gumentos a aparência de uma demonstração. Estão nesse grupo os argumentos que apelam para relações lógico-matemáticas como a divisão do todo em partes, a comparação, a transitividade, a probabilidade, os cálculos matemáticos.

Observe o uso da argumentação quase-lógica no seguinte fragmento de texto. O apelo a cálculos matemáticos dá uma aparência de demonstração in-contestável à argumentação usada pelo autor para levar os leitores a aceitar sua tese de que “o brasileiro trabalha pouco”.

Muito pouco, para tantosEnquanto no Brasil se discute a causa da inflação galopante procurando-

se academicamente estabelecer se ela é de demanda, de oferta ou – hipó-tese menos verossímil – de origem psicológica, esquece-se algo que está naturalmente na raiz desse processo devorador de nações. Referimo-nos à produtividade da economia brasileira, extremamente baixa, diríamos até es-candalosamente baixa para um país em via de desenvolvimento e que de-veria dedicar-se com maior determinação a produzir riqueza.

Para demonstrar que no Brasil se produz muitíssimo menos do que se poderia produzir, basta recorrer a alguns números extremamente simples, numa conta elementar seguindo um raciocínio lógico. Vejamos: o ano tem 365 dias; desses, 52 são domingos e outros 52, sábados (saliente-se que uma boa parte dos brasileiros não trabalha aos sábados, e quando o faz, geral-mente trabalha apenas meio dia). Contando os feriados e os dias engolidos nos fins de semana, prensados entre um feriado e um sábado, temos aí, por baixo, cerca de 12 dias, nos quais a média do brasileiro que trabalha não comparece ao serviço; a isso acrescenta-se uma média de dez dias nos quais qualquer cidadão, mesmo de boa saúde (o que não é o caso para mais da metade da população do país), falta ao serviço por motivo de doença. Temos portanto um total de 126 dias nos quais normalmente não se trabalha e,

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Análise retórica da argumentação

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portanto, nada se produz. Somemos agora esses 126 dias aos trinta dias de férias que são concedidas, pela legislação, aos trabalhadores. São 156 dias. Basta agora subtrair esses 156 dias dos 356 dias do ano e teremos 209 dias. O brasileiro trabalha, portanto, de um total de 365 dias apenas 209 dias em média, o que quer dizer que, de um ano todo, menos de dois terços dos dias são dedicados à produção, o que corresponde a um dia de folga para pouco mais de um dia de trabalho.

[...]

(FOLhA DE S. PAuLO apud em GERALDI, 1997, p. 100)

É interessante destacar que a argumentação deste texto, mesmo se asse-melhando ao raciocínio matemático, apresenta várias falhas e pode ser facil-mente questionada. Há um problema na correlação estabelecida inicialmente entre inflação e baixa produtividade; outro na correlação entre produtivida de e dias de trabalho. Outros problemas podem ser detectados nos próprios cál-culos apresentados para provar que os brasileiros trabalham menos do que deveriam: o turno parcial dos sábados não é computado (o que reduziria em 26 dias o cálculo dos dias não trabalhados), os sábados e domingos correspon-dentes ao período de férias são descontados duplamente (isso reduziria o cál-culo em 8 dias), o cálculo de faltas por doença também pode estar superdimen-sionado. Mas um exemplo simples como esse mostra que o questionamento de argumentos que se assemelham a raciocínios lógicos exige muitas vezes um raciocínio semelhante.

Já os argumentos baseados na estrutura do real levam em conta questões práticas: exemplos, ilustrações, fatos reais e especulações sobre suas causas e conseqüências, relação entre a história ou a posição social de uma pessoa e seus atos, apelo à autoridade etc. A diferença entre os dois tipos fundamentais de argumentos é explicitada nos seguintes termos:

Enquanto os argumentos quase-lógicos têm pretensão a certa validade em virtude de seu aspecto racional, derivado da relação mais ou menos estreita existente entre eles e certas fórmulas lógicas ou matemáticas, os argumentos fundamentados na estrutura do real valem-se dela para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura promover. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 297)

A maioria dos textos que encontramos na mídia faz uso dos argumentos baseados na estrutura do real.

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Lingüística III

Voltemos ao texto “O Ano da Saúde e os Desmancha-Prazeres” para ob-servar como Castro elabora a argumentação para levar os leitores a aceitar sua tese sobre os serviços de saúde no Brasil. No primeiro parágrafo do texto, ele apresenta o ponto de partida para a tese à qual vai se opor: a afirma-ção de que os serviços de saúde no Brasil devem ser oferecidos de forma universal, integral e gratuita está na constituição em vigor. A argumentação desenvolvida nos seis primeiros parágrafos do texto enfatiza a inviabilidade da proposta constitucional. Para isso, o autor constrói sua argumentação da seguinte forma:

usa um argumento de autoridade: apresenta-se como economista e afir- �ma que os cálculos que vai apresentar no artigo foram elaborados junta-mente com um especialista em saúde;

usa a ironia ao caracterizar um serviço de saúde barato: “Elixir paregórico �da cintura para baixo, aspirina para cima e extrema-unção quando não dava certo.”;

apresenta dados quantitativos correspondentes aos gastos do estado �por habitante e faz a comparação entre esses dados e o custo de alguns tratamentos;

faz a comparação entre o previsto na Constituição brasileira e os serviços �de saúde oferecidos gratuitamente à população em vários países cuja população dispõe de serviços melhores do que o Brasil (países europeus, Estados Unidos, Canadá e Cuba);

faz uma projeção do custo da universalização dos serviços de saúde, a �partir de cálculos matemáticos;

afirma que o que é legal no Brasil (previsto na Constituição) não é justo; �

inicia a defesa de sua tese: através de comparação entre o gasto com a �saúde e os índices de mortalidade, mostra a necessidade de se esta-belecerem prioridades.

os dois parágrafos finais são dedicados à retomada da tese e ao apelo aos �leitores para uma ação.

Esse levantamento mostra que Castro faz uso tanto de argumentos quase-lógicos quanto de argumentos baseados na estrutura do real. Apela para infor-mações reais ao se apresentar com economista, ao escolher países como Estados

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Análise retórica da argumentação

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Unidos, Canadá, Cuba e Chile para fazer comparações com a situação brasileira, ao afirmar que quem se beneficia atualmente dos gastos com a saúde são os mais sabidos, mais poderosos e os grandes hospitais. Mas apela principalmente para o raciocínio lógico-matemático.

É fácil observar que ele dá ênfase ao uso de cálculos e dados estatísticos na argumentação, ou seja, procura apresentar-se diante dos leitores não como alguém que tem uma opinião e que a defende com base na sua percepção da realidade, mas como uma autoridade em economia que faz uma demonstração difícil de ser contestada. A dificuldade que os leitores têm na contestação dos argumentos usados por Castro nesse artigo fica evidente no texto que escol-hemos para as atividades correspondentes a esta unidade: “Da Arte Brasileira de Ler o que não Está Escrito”. Trata-se de um artigo escrito pelo mesmo autor a partir das cartas que a revista recebeu sobre a publicação do artigo que aca-bamos de comentar.

Nesta seção não tivemos a preocupação de explorar de forma sistemática os tipos de argumentos estudados pela Nova Retórica, o que nos levaria a am-pliar demais esta unidade com a inclusão de vários detalhes adicionais. Prefe-rimos enfatizar apenas as duas grandes classes de argumentos apresentados por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996). Esse grau de detalhamento é suficiente para uma indicação de como uma abordagem retórica da argumentação pode ser um instrumento importante na leitura de textos diversos. Escolhemos textos de opinião, mas poderíamos escolher diversos outros materiais, especialmente textos publicitários, que fazem um uso bem particular dos argumentos.

O ethos: imagem do autor projetada no discursoOs elementos destacados nas seções anteriores – auditório, acordo e tipos

de argumentos – colocam em evidência o ouvinte/leitor ou a organização do texto. Mas a retórica aponta também a importância da imagem do autor/orador. Não é difícil nos lembrarmos de situações em que ouvimos/lemos um discurso em que alguém defende um ponto de vista e apresenta seus argumentos, mas só obtém como resposta nosso descrédito: “Não acredito em nada do que esse indivíduo diz”. Essa imagem do autor pode ter sido construída a partir de in-formações prévias ou pode estar apoiada na forma como ele se apresenta no momento em que produz seu discurso. A Retórica Clássica usa o termo ethos para se referir à imagem do orador projetada no discurso. O conceito de ethos é

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Lingüística III

complementado pelo de pathos, que corresponde à imagem que o orador tem do seu auditório, e que o orienta na seleção dos argumentos. Tão importante quanto esses dois conceitos é o logos, que seria o raciocínio, ou seja, o elemento propriamente dialético e argumentativo da retórica (REBOUL, 2000, p. 36). Se-gundo Aristóteles, o ethos seria o caráter, a moral que o orador assume ou o que ele parece ser para inspirar confiança no auditório.

O ethos está ligado à pessoa do orador e é construído tanto a partir de suas escolhas discursivas quanto de informações externas. Entre as escolhas discursivas estão o estilo, o gênero discursivo, as afirmações que indicam a vinculação a uma ou outra posição ideológica. Entre as informações exteri-ores ao discurso estão: o conhecimento prévio sobre o orador e a instituição a partir da qual ele fala, seu modo de se apresentar, de se vestir, seu tom de voz e gestos.

Todos esses elementos contribuem para a construção de uma imagem do orador: honesto, desonesto, simpático, confiável, arrogante, prudente, justo, al-truísta, oportunista etc. O sucesso de um discurso argumentativo está vinculado, entre outras coisas, também ao ethos do autor.

ConclusãoNa rápida apresentação que fizemos de alguns conceitos nucleares da Nova

Retórica, procuramos deixar claro que a visão corrente de que a retórica é a arte do discurso vazio e enganador merece ser revista. Somos alvo de discursos per-suasivos com uma intensidade nunca vista anteriormente: discursos políticos, religiosos e especialmente publicitários. Em vez de usar a expressão do senso comum para desqualificar esses discursos, dizendo que “é tudo retórica”, po-demos tomar a técnica de análise dos discursos persuasivos desenvolvida pela retórica para avaliar a forma de construção desses discursos, posicionar-nos diante deles de forma consciente e dispor de instrumentos para refutar a argu-mentação inconsistente.

Tal como na Grécia Antiga, ainda hoje a retórica pode ser um instrumento fundamental para a formação das pessoas e para o exercício da cidadania.

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Análise retórica da argumentação

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Texto complementar

Um esboço de análise da argumentação na oralidade

(COSTA1; GODOY2, 1997, p. 97-110)

Em entrevistas orais gravadas, os entrevistados são freqüentemente leva-dos a expor seu ponto de vista sobre questões que lhe são propostas pelo entrevistador. Ao fazê-lo, elaboram textos argumentativos, em que expõem sua opinião sobre o tema proposto e reúnem um conjunto de argumentos como evidências para a sustentação das teses defendidas. Um conjunto de técnicas argumentativas são utilizadas de forma recorrente nesses textos. A observação sistemática das mesmas foi o ponto de partida para este estudo. [...]

Um exemploNo texto abaixo, é possível observar algumas questões interessantes

em relação à representação do interlocutor (o auditório, na concepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca) e ao acordo pressuposto entre os interlocu-tores. Trata-se de parte de uma entrevista feita com uma informante de Pato Branco (PR), que trabalha em programas de recuperação de meninos de rua, como membro do Conselho Tutelar da Infância e da Adolescência. No texto, ela faz uma comparação entre as dificuldades encontradas ao atuar junto aos meninos e às meninas, e expõe sua tese de que o trabalho com meninas é mais difícil.

Falante: Agora, é bem mais fácil você trabalhar com meninos do que com meninas.

Entrevistador: Por quê?

Falante: As meninas começam a se prostituir muito cedo. Então pra elas a vida na rua é uma festa.

1 Universidade Federal do Paraná.

2 Mestrado em Letras da Universidade Federal do Paraná.

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Lingüística III

Entrevistador: Com que idade?

Falante: Ah, doze, uns treze. Nós temos menina ali com catorze anos que já tem filho. E elas pegam carona, conhe... Tem meninas aí que conhe-cem o Brasil inteiro, chegam e contam. E você vai, arruma um emprego pra ela, arruma matrícula no colégio, tudo. “Mas quem te pediu isso? Eu estou vivendo a vida que eu quero.” Então, uma das propostas minhas de permanecer no Conselho ainda é pra ver se a gente consegue com alguma igreja, alguma coisa, fazer um trabalho com as meninas. Não querer impor uma coisa de cima pra baixo − né? − mas sim começar a conquistá-las e a reuni-las, ir discutindo problemas delas até ir... ver o quê que elas querem, que de repente elas estão só no oba-oba, né? e amanhã elas...

Entrevistador: Esquece que o tempo passa, né?

Falante: Sim, e esquece o risco que está correndo. E amanhã, depois, o quê que será delas? Então a gente está tentando fazer alguma coisa por elas também. E o menino, não sei se é porque sempre eu trabalhei mais com menino, eu acho que ele é até menos agressivo do que a menina. Que a menina, se precisar brigar, ela briga mesmo. E tem os mesmos vícios dos meninos: cheira cola, fuma maconha, bebe e se prostitui. E os meninos, nem todos eles se prostituem. Então, sei lá, e...a gente brinca que é... O pe ssoal do Conselho chateia: “Olha as tuas rolinhas aqui.” Diz que as meninas são as minhas rolinhas, (riso) que elas só procuram a Loris, só querem falar comigo, né? Achei... Comigo elas jogam limpo, elas contam tudo que acontece. De repente esses tempos veio até... veio uma que estava na prostituição. E ela com a maior cara de pau me falando, diz: “Olha, a gente tem comida, tem roupa, única coisa que a gente faz é de noite beber e dançar. E se quiser transar, vai transar. Tem até piscina lá. Eu vou pedir pro juiz me dar uma ordem pra mim ficar lá, porque eu vou ficar fazendo o quê aqui em casa, hein? Pra mim viver aí eu tenho que trabalhar de bóia-fria, arrancar feijão o dia inteiro, morrer de dor nas costas. E ganha uma miséria. E lá eu ganho o dobro numa noite.” Então me arrependo até. Como é que você vai pôr na cabeça dela que hoje ela está ganhando

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Análise retórica da argumentação

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bem, mas e amanhã, como é que vai ser? É uma coisa bem difícil, bem complexa. (PRPBR12)3

Observando nesse texto a escolha e ordenação das técnicas argumentati-vas, temos o seguinte:

a entrevistada começa pela explicitação de sua tese: “Agora, é bem mais fácil você trabalhar com meninos do que com meninas.” A seguir, apresenta uma proposição que resume a argumentação a ser desenvolvida a seguir: “As me-ninas começam a se prostituir muito cedo. Então para elas a vida na rua é uma festa.”

As técnicas argumentativas utilizadas na sustentação dessas afirmações são:

a) Comparação:

“As meninas começam a se prostituir muito cedo...” [...] “...e os me- �ninos, nem todos eles se prostituem.”

“E o menino [...] eu acho que ele é até menos agressivo do que a �menina.”

“Que a menina, se precisar brigar, ela briga mesmo. E tem os mes- �mos vícios dos meninos: cheira cola, fuma maconha, bebe...”

b) Exemplo real:

“Nós temos menina ali com catorze anos que já tem filho”. �

c) Ilustração real:

“O pessoal do Conselho chateia: ‘Olha as tuas rolinhas aqui’...etc.” �

“De repente esses tempos veio até... veio uma que estava na pros- �tituição... etc.”

A escolha desses recursos argumentativos vem acompanhada de marcas que remetem ao grau de convicção da informante sobre seus enunciados, especialmente a utilização de expressões como “eu acho”, “não sei”, “sei lá”, que modalizam a apresentação dos argumentos, revelando um certo grau

3 As referências às entrevistas são feitas conforme a codificação adotada no Banco de Dados Lingüísticos VARSUL, conforme apresentado em KNIES, Clarice Bohn; COSTA, Iara Bemquerer. Banco de Dados Lingüísticos VARSuL: Manual do usuário. UFRGS/UFSC/UFPR/PUC-RS, 1996. A seqüência PRPBR12 significa: Paraná, Pato Branco, entrevista 12.

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Lingüística III

de insegurança da entrevistada em relação ao que ela mesma enuncia. Esses elementos funcionam como atenuadores das proposições:

“... � eu acho que ele é até menos agressivo do que as meninas.”

“...E o menino, � não sei se é porque eu sempre trabalhei com menino...”

“Então, � sei lá...”

Se forem consideradas as técnicas argumentativas selecionadas, elas são bem escolhidas para os propósitos da falante. Tanto o exemplo real quanto a comparação e a ilustração real escolhidas têm a particularidade de tornar presentes na consciência do interlocutor fatos e depoimentos que têm um poder de persuasão bastante forte. Como explicar, então, as hesitações e ate-nuações presentes no discurso?

Aqui é importante analisar a organização da fala de Lori a partir dos con-ceitos de auditório e acordo formulados por Perelman e Olbrechts-Tyteca. O interlocutor imediato da falante é seu entrevistador; este representa o audi-tório, com quem ela estabelece facilmente um acordo em torno de um con-junto de valores:

a) Os meninos de rua convivem com várias coisas ruins: bebida, drogas e prostituição;

b) A reabilitação dessas crianças se dá mediante seu acesso à educação e ao trabalho;

c) A possibilidade de acesso das crianças à escola e ao trabalho deve le-vá-las a compartilhar dos valores positivos que lhe são apresentados.

O entendimento das hesitações da informante e da própria formulação de sua tese de que o trabalho com meninos é mais fácil do que com meni-nas tem a ver com o auditório e o acordo e não com as técnicas utilizadas na construção da argumentação. Enquanto na sua interação com o entrevis-tador ela consegue selecionar e ordenar os argumentos a partir do acordo em torno de um conjunto de valores, na interação com outro auditório, o das meninas de rua, o acordo não é possível. Para a falante, o auditório que ela gostaria realmente de influenciar com sua argumentação não aceita o acordo em torno dos valores relacionados à educação e ao trabalho, e se contrapõe ao acordo implícito no seu discurso mediante a explicitação de um conjunto alternativo de valores. Daí a consciência que ela revela de que

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Análise retórica da argumentação

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para ter alguma influência sobre esse auditório, seria necessário estabelecer algum acordo inicial: “... começar a conquistá-las e a reuni-las, ir discutindo os problemas delas até ir... ver o quê que elas querem...”

Da arte brasileira de ler o que não está escritoA imaginação criativa de alguns leitores não se detém sobre a lógica do texto.

É a vitória da semiótica sobre a semântica

(CASTRO, 1997, p. 142)

Terminando os poucos anos de escola oferecidos em seu vilarejo nas montanhas do Líbano, o jovem Wadi Haddad foi mandado para Beirute para continuar sua educação. Ao vê-lo ausente de casa por um par de anos, a vizinha aproximou-se cautelosa de sua mãe, jurou sua amizade à família e perguntou se havia algum problema com o rapaz. Se todos os seus colegui-nhas aprenderam a ler, por que ele continuava na escola? Anos depois, Wadi organizou a famosa Conferência de Jontiem, “Educação para Todos”, mas isso é outro assunto. Para a vizinha libanesa, há os que sabem ler e há os que não sabem. Não lhe ocorre que há níveis diferentes de compreensão. Mas infeliz-mente temos todos o vício de subestimar as dificuldades na arte de ler, ou, melhor dito, na arte de entender o que foi lido. Saiu da escola, sabe ler.

O ensaio de hoje é sobre cartas que recebi dos leitores da Veja, algumas generosas, outras iradas. Não tento rebater críticas, pois minhas farpas atin-gem também cartas elogiosas. Falo da arte da leitura. É preocupante ver a liberdade com que alguns leitores interpretam os textos. Muitos se rebelam com o que eu não disse (jamais defendi o sistema de saúde americano). Outros comentam opiniões que não expressei e nem tenho (não sou contra a universidade pública ou a pesquisa). Há os que adivinham as entrelinhas,

Estudos lingüísticos O texto a seguir foi publicado pela Veja seis meses depois da publicação do

artigo de opinião “O Ano da Saúde e os Desmancha-prazeres”. Os dois textos são do mesmo autor e foram publicados na mesma seção da revista. Neste segundo texto, Cláudio de Moura e Castro faz uma discussão a propósito das cartas que a revista recebeu depois da publicação do primeiro.

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ignorando as linhas. Indignam-se com o que acham que eu quis dizer, e não com o que eu disse. Alguns decretam que o autor é um horrendo neoliberal e decidem que ele pensa assim ou assado sobre o assunto, mesmo que o texto diga o contrário.

Não generalizo sobre as epístolas recebidas algumas de lógica modelar. Tampouco é errado ou condenável passar a ilações sobre o autor ou sobre as conseqüências do que está dizendo. Mas nada disso pode passar por cima do que está escrito e da sua lógica. Meus ensaios têm colimado assuntos candentes e controvertidos. Sem uma correta participação da opinião pú-blica educada, dificilmente nos encaminharemos para uma solução. Mas a discussão só avança se a lógica não for afogada pela indignação.

Vale a pena ilustrar esse tipo de leitura com os comentários a um ensaio sobre nosso sistema de saúde (abril de 1997). A essência do ensaio era a in-viabilidade econômica e fiscal do sistema preconizado pela Constituição. Lantejoulas e meandros à parte, o ensaio afirmava que a operação de um sistema de saúde gratuito, integral e universal consumiria uma fração do PIB que, de tão alta (até 40%), seria de implantação inverossímil.

Ninguém é obrigado a aceitar essa afirmativa. Mas a lógica impõe quais são as possibilidades de discordar. Para destruir os argumentos, ou se mostra que é viável gastar 40% do PIB com saúde ou é necessário demonstrar que as contas que fiz com André Medici estão erradas. Números equivocados, erros de conta, hipóteses falsas, há muitas fontes possíveis de erro. Mas a lógica do ensaio faz com que só se possa rebatê-lo nos seus próprios termos, isto é, nas contas.

Curiosamente, grande parte das cartas recebidas passou por cima desse imperativo lógico. Fui xingado de malvado e desalmado por uns. Outros fu-zilaram o que inferem ser minha ideologia. Os que gostaram crucificaram as autoridades por negar aos necessitados acesso à saúde (igualmente equivo-cados, pois o ensaio critica as regras e não as inevitáveis conseqüências de sua aplicação).

Meus comentaristas escrevem corretamente, não pecam contra a ortogra-fia, as crases comparecem assiduamente e a sintaxe não é imolada. Contudo, alguns não sabem ler. Sua imaginação criativa não se detém sobre a aborreci-da lógica do texto. É a vitória da semiótica sobre a semântica.

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Análise retórica da argumentação

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1. Identifique a tese defendida por Castro nesse texto.

2. A que auditório Castro se dirige nesse texto?

3. Identifique dois argumentos usados por Castro para a sustentação de sua tese.

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Análise retórica da argumentação1. O autor explicita sua tese tanto na síntese apresentada antes do tex-

to quanto no último parágrafo. A tese poderia ser sintetizada como “alguns leitores dos seus textos publicados na revista Veja não sabem ler”. Saber ler para ele significa compreender a lógica do texto, ou seja, a organização dos seus argumentos e saber que para questionar a tese do autor seria necessário fazer um trabalho de contra-argumentação, de demonstração de que os argumentos são equivocados.

2. Para identificar o auditório temos que procurar marcas no texto que in-diquem quem o autor pretende influenciar com sua argumentação. No texto ele dirige explicitamente aos leitores da revista Veja. A pretensão de Castro é formar a opinião dos leitores. Para conseguir seu propó-sito, é necessário que a leitura seja adequada, ou seja, que os leitores tenham um bom nível de compreensão do texto, que inclui o reconhe-cimento e a adequada avaliação de seus argumentos (a lógica do texto, sua semântica, isto é, seu significado).

3. O autor constrói sua argumentação principalmente a partir das ilustra-ções e exemplos. Alguns dos argumentos que podem ser destacados do texto são:

a narrativa sobre Wadi Haddad apresentada no primeiro parágrafo; �

os vários exemplos de trechos de cartas citados no segundo pará- �grafo;

o apelo à lógica para limitar as formas possíveis de discordar de sua �argumentação apresentada no quinto parágrafo (este é um argu-mento quase-lógico);

os exemplos de trechos de cartas citados no sexto parágrafo. �

Gabarito

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