idosos trabalhadores

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367 Idosos trabalhadores: perdas e ganhos nas relações intergeracionais Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n. 2, p. 367-390, maio/ago. 2006 IDOSOS TRABALHADORES: perdas e ganhos nas relações intergeracionais Rosa Maria da Exaltação Coutrim * Resumo: Este artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa realizada com idosos de baixa renda que trabalham informalmente nas ruas de Belo Horizonte. As condições de escassez material fazem com que a coabitação seja recorrente entre estes indivíduos, contudo, esta estratégia para diminuir o impacto da pobreza permite às famílias estabelecer também trocas intergeracionais. Se, de um lado, existe o conflito devido à intensa convivência entre várias gerações, de outro, existe a solidariedade e o amparo mútuo dos familiares. Os idosos trabalhadores ocupam papel econômico central na vida das famílias em que os mais jovens estão desempregados ou subempregados, e, assumindo o papel de provedores do domicílio, os idosos mantêm o poder de negociação com as demais gerações com que convivem. Palavras-chave: idosos, trabalho, família, relações intergera- cionais. Introdução A cada dia novas pesquisas revelam que uma parcela considerável dos idosos e idosas 1 possui condições de trabalhar e efetivamente o fazem. Os idosos aposentados representam um dos segmentos sociais com maior estabilidade, e cresce o número de casos * Doutora em Sociologia e Política, professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Faculdade de Administração de Itabirito (FAI/UNIPAC). Artigo baseado na tese de doutoramento intitulada A velhice invisível: o cotidiano de idosos que trabalham nas ruas de Belo Horizonte, defendida em 2004 na FAFICH/UFMG, e apresentado no XII Congresso Brasileiro de Sociologia – GT Gerações e Sociabilidades, realizado em 2005. Artigo recebido em 5 set 2005; aprovado em 3 maio 2006.

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  • 367Idosos trabalhadores: perdas e ganhos nas relaes intergeracionais

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 367-390, maio/ago. 2006

    IDOSOS TRABALHADORES: perdas e ganhos nas relaes intergeracionais

    Rosa Maria da Exaltao Coutrim*

    Resumo: Este artigo fruto de uma pesquisa qualitativa realizada com idosos de baixa renda que trabalham informalmente nas ruas de Belo Horizonte. As condies de escassez material fazem com que a coabitao seja recorrente entre estes indivduos, contudo, esta estratgia para diminuir o impacto da pobreza permite s famlias estabelecer tambm trocas intergeracionais. Se, de um lado, existe o conito devido intensa convivncia entre vrias geraes, de outro, existe a solidariedade e o amparo mtuo dos familiares. Os idosos trabalhadores ocupam papel econmico central na vida das famlias em que os mais jovens esto desempregados ou subempregados, e, assumindo o papel de provedores do domiclio, os idosos mantm o poder de negociao com as demais geraes com que convivem.

    Palavras-chave: idosos, trabalho, famlia, relaes intergera- cionais.

    Introduo

    A cada dia novas pesquisas revelam que uma parcela considervel dos idosos e idosas1 possui condies de trabalhar e efetivamente o fazem. Os idosos aposentados representam um dos segmentos sociais com maior estabilidade, e cresce o nmero de casos

    * Doutora em Sociologia e Poltica, professora do Departamento de Educao da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Faculdade de Administrao de Itabirito (FAI/UNIPAC).

    Artigo baseado na tese de doutoramento intitulada A velhice invisvel: o cotidiano de idosos que trabalham nas ruas de Belo Horizonte, defendida em 2004 na FAFICH/UFMG, e apresentado no XII Congresso Brasileiro de Sociologia GT Geraes e Sociabilidades, realizado em 2005.

    Artigo recebido em 5 set 2005; aprovado em 3 maio 2006.

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    em que estes se responsabilizam pela manuteno de suas famlias. Mantendo-se com boa sade at idades mais avanadas, os pobres recorrem ao trabalho informal, que, apesar dos baixos rendimentos, tambm proporciona ganhos imensurveis, como amizades, poder dentro do domiclio e certa liberdade nanceira. Alm disso, sua identidade predominante no a de aposentado, mas de trabalhador, o que lhes confere o poder e o status de provedor, estando totalmente inseridos na vida familiar e, portanto, longe da segregao.

    A aposentadoria possibilitou ao idoso uma segurana maior de renda. Embora sujeita a gastos imprevistos com remdios e demais tratamentos de sade, esta parcela da populao possui hoje melhores condies nanceiras do que os mais jovens. Barros, Mendona e Santos (1999) concluem que, embora a renda do indivduo decaia aps os 60 anos (quando ocorre a aposentadoria), a pobreza entre esta parcela da populao diminuiu (50% entre 1983 e 1998).2 Houve uma redistribuio intergeracional da renda do idoso. Assim, possvel observar que famlias pobres ou que se aproximam da linha de pobreza que convivem com seus idosos, dependem diretamente da renda destes para obterem melhores condies econmicas.

    Devido aos altos ndices de desemprego, nascimento de lhos fora do casamento, divrcios, etc., os lhos tm permanecido ou retornado para a casa dos pais, mantendo-se assim o idoso ou a idosa como chefe de famlia e com novos encargos que at duas dcadas atrs no eram to expressivos.

    Esta necessidade econmica de coabitao, mesmo sem condies de cuidado adequado do idoso ou relao satisfatria de afetividade entre os familiares, apontada pelo relatrio da ONU como um fenmeno regional:

    Dado que la gran mayoria de los hogares multigeneracionales de Amrica Latina y el Caribe se ubica en los estratos socioeconmicos bajos, es probable que muchas modalidades de corresidencia no sean una consecuencia del afecto familiar sino de una necesidad

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    econmica. Los escasos estudios existentes sealan que, a raz de las iniquidades sociales imperantes en la regin, la mayora de las personas de edad que residen en hogares multigeneracionales viven en situacin de pobreza.3 (ONU, 1997a, p. 21)

    Assim, percebe-se que, permanecendo como chefe de domiclio, seja devido ao desemprego dos lhos ou insucincia da penso ou aposentadoria para arcar com o oramento domstico, os idosos tm buscado no mercado informal (porque enquanto aposentados raramente so admitidos no mercado formal) uma forma de complementar os ganhos.4

    Os apontamentos ora apresentados so fruto de uma pesquisa qualitativa sobre o cotidiano de trabalhadores informais com idades que variaram entre 60 e 78 anos. Em Belo Horizonte, no universo constitudo por engraxates, catadores de material reciclvel, vendedores de bilhete de loteria, camels, entre outros, foram selecionados 23 informantes. Homens e mulheres idosos deram seus depoimentos a respeito de sua relao com o trabalho, a famlia e os amigos.

    Vivendo em uma realidade de pobreza, estas pessoas constituem-se em importantes, quando no os nicos, colaboradores do oramento domstico; alm disso, na maioria absoluta dos casos, os entrevistados so os proprietrios das residncias em que vivem e cedem espao na moradia ou no lote para seus lhos e netos. O maior poder econmico dos idosos no domiclio reete-se nas relaes intergeracionais e isto ca claro nas falas dos entrevistados.

    Independentemente de sua situao previdenciria, o idoso trabalhador assume uma identidade diferente da de aposentado e possui poder de deciso no domiclio. Os entrevistados tm orgulho do trabalho e fazem questo de se autodenominar chefes do domiclio. Conseqentemente, fazem questo de no serem excludos das decises familiares. Os lhos, por sua vez, reconhecem que os idosos so referncia para os mais jovens que coabitam a mesma residncia.

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    O idoso provedor

    O idoso trabalhador das ruas reconhece-se excludo duplamente do mercado formal de trabalho: devido idade, j est aposentado em muitos casos (portanto, aposentadoria tambm funcionando como elemento de excluso) e por no ter qualicao para o atual mercado de trabalho.

    A pesquisa de campo desenvolvida nas ruas de Belo Horizonte demonstrou que o trabalho tem se congurado para os idosos enquanto fonte de renda, de distrao e de poder domstico. O trabalho tambm foi considerado fonte de orgulho:

    Pra te ser franco eu no gosto, eu adoro (...) s vezes chove em cima de mim, eu quero trabalhar aqui. Eu sou engraxate com o maior orgulho, eu tenho o maior orgulho de chegar e falar: eu sou en-gra-xa-te. Igual no dia da reunio, os caras falaram assim: Eu sou engraxate h 40 anos. Eu falei: Voc no engraxate h 40 anos, eu sou engraxate h 48 anos. Engraxate aquele que s engraxa, eu no vendo cadaro, no tenho salto e no fao nada, eu s engraxo. A pessoa chega, deso o sapato, engraxo e pronto, entendeu? (Maluco, engraxate, 75 anos, 48 anos nas ruas).

    Neste estudo limitado aos trabalhadores informais, no foi possvel perceber a grande oposio trabalhador/no-trabalhador que Zaluar (1994) assinalou em sua pesquisa sobre a periferia do Rio de Janeiro. Segundo a autora, a identidade de trabalhador surge na fala dos entrevistados do sexo masculino e feminino com respeito e valor moral elevado e sempre em oposio ao vagabundo, bbado, malandro e bandido. Esta valorizao moral do trabalho esteve presente nos discursos, assim como a importncia do papel de provedor de sua famlia; contudo, esta exaltao do valor moral do trabalho se distancia do valor dado pelos puritanos no surgimento do capitalismo.5 Zaluar ressalta que os trabalhadores percebem sua atividade de forma ambgua. Se por um lado existe a concepo de trabalho como valor moral, mantido pelos pais e mes, por outro lado, o labor percebido como atividade escravizadora do indivduo. Sem o valor moral religioso que aponta o trabalho asctico

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    como caminho para a salvao do esprito, a atividade laborativa remunerada associa-se fortemente moral terrena e objetiva de ser o ganha-po do grupo domstico. Importante para o esprito, porm mais importante ainda para a manuteno da famlia. Em sntese, no a tica do trabalho, mas sim a tica do provedor que faz com que o empregado pobre acredite em sua redeno moral (Zaluar, 1994, p. 121).

    Sarti (1996), que, tal como Zaluar, investiga famlias pobres, tambm aponta a moral do trabalho como grande fora estruturadora da identidade do trabalhador. Salienta que so os atributos morais, como disposio para o trabalho e honestidade, que auxiliaro os trabalhadores a vencer na vida, o que no signica necessariamente ascender socialmente, mas se armar seguindo o valor positivo do trabalho. A respeito do valor moral positivo que o trabalho traz s camadas populares, a autora analisa que, mesmo se percebendo como pobre no mundo social, o trabalhador no se considera pobre de esprito porque se julga possuidor dos valores morais que o auxiliam a levantar-se quando ocorrem as crises, e o trabalho que possibilita tanto a fora como tambm a disposio para superar os maus momentos: dessa forma, o valor moral atribudo ao trabalho que compensa as desigualdades socialmente dadas, na medida em que construdo dentro de outro referencial simblico, diferente daquele que o desqualica socialmente (Sarti, 1996, p. 67).

    Contudo, Sarti discorda de Zaluar quanto contraposio das ticas do provedor e do trabalho. Segundo a autora, ambas so uma coisa s e a tica do provedor no est restrita valorizao do labor puramente enquanto ganha-po. Para ela, h uma articulao entre os valores morais e econmicos pautados no na tica protestante, mas na catlica que prega Deus como o absoluto provedor do mundo, o maior trabalhador do universo, que no apenas operou para criar as criaturas, mas continua seu esforo incansvel na renovao da natureza e das aes humanas. Conseqentemente, o trabalho torna-se a grande obrigao moral de todos. Dessa forma, o sentido do trabalho de viabilizar a existncia dos pobres provendo as famlias, caminha juntamente com o sentido moral do exerccio da atividade e, portanto, da tica do trabalho.

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    Este valor dado atividade laborativa, mencionado por ambas as autoras, foi encontrado na fala dos entrevistados, que mantm a identidade de trabalhadores e no a de aposentados e que, como bem colocou Guedes (1997), esto cansados de trabalhar. A alegao recorrente de que o trabalho fonte de prazer, em muitos casos demonstrou o desejo de se conservar em atividade e, apesar do cansao que proporciona, o trabalho compensa porque o que confere poder:

    Se eu car em casa eu adoeo. Eu j no t bem de sade, mas se eu car em casa, eu adoeo. Porque isso aqui pra mim... eu t conversando com a senhora, t distraindo. Chega uma pessoa conversa, fala, s vezes vem um e faz raiva, s vezes vem dez me d alegria. E o homem nasceu pra trabalhar. A casa mais feita pra mulher. Que minha mulher nunca trabalhou, no deixava ela trabalhar. Nem no nosso tempo de casado eu no deixava ela trabalhar, num deixava no. O trabalho dela era olh os meninos, zel da casa e zel da me dela doente, j era um compromisso que passava alm do limite. Eu falava com ela, v faz o seguinte, se voc for trabalhar, vou ca a dobr a carga do meu horrio. Ao invs de eu trabalhar s de dia, v passar a trabalhar de noite. Oc num precisa trabalhar em servio nenhum. O seu servio, a casa j demais. Pra mim, pensei, o dom do homem o trabalho. O homem tem que trabalhar, a casa do homem o trabalho... (Delvi, camel, 64 anos, 39 anos nas ruas).

    O depoimento acima deixa claro o entendimento do informante sobre os diferentes papis dos cnjuges. Ao homem reservado o esforo cotidiano para obter em troca o dinheiro para sustentar a famlia. Sua importncia est em trazer o sustento. Para a mulher reservado o papel da dona-de-casa cuidadora das crianas. O espao da casa o santurio privado ocupado pela mulher e distinto da vida pblica. J o espao do trabalho pblico. Nota-se que a identidade de homem confunde-se com a de trabalhador, tornando clara a observao de Guedes (1997) de que, para as camadas populares, ser homem ser trabalhador. Por isso, o trabalho da mulher pode constituir-se, no mximo, em ajuda em tempos de crise (Zaluar, 1994; Sarti, 1996; Guedes, 1997). Compreendendo a lgica do papel de provedor, torna-se mais fcil interpretar o recado

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    ameaador do senhor Delvi sua esposa quando a mesma se diz disposta a trabalhar, isto , ao sair de casa para o trabalho, a mulher no poderia mais contar com o marido, que buscaria no trabalho extra uma forma de continuar sendo o principal provedor, alm de priv-la da sua companhia e da diviso dos afazeres domsticos.

    De todos os entrevistados, apenas trs alegaram que as responsabilidades nanceiras e organizacionais da casa (mas no dos servios domsticos) so divididas com o companheiro(a) e/ou lhos. Os demais intitularam-se os chefes do domiclio. No caso das mulheres, muitas so vivas, separadas ou tm o marido doente. Apesar de apenas uma informante no viver com os lhos, todas so as principais provedoras do lar, conforme coloca dona Maria Jos reportando-se imagem masculina para designar-se o provedor principal.

    Eu sou o chefo da famlia, sou o chefo da famlia, graas a Deus, sou o chefo. (Maria Jos, camel, 68 anos, 42 anos trabalhando nas ruas).

    O papel de provedor se intensica na infncia dos lhos. nesta fase da vida familiar que a esposa luta para que seu companheiro mantenha-se longe dos apelos que podem desvi-lo do caminho, ou seja, da responsabilidade para com a mulher e seus lhos ainda pequenos, para buscar o prprio sustento. Estes apelos negativos so os vcios e a vida de bandido. durante a formao da famlia que, o homem precisa sair do conito entre a bebida e as obrigaes familiares (Zaluar, 1994, p.122). A idia de que o trabalho um sacrifcio necessrio, mas que s vale a pena se tem como propsito o sustento da famlia, tambm foi compreendida por Sarti (1996, p. 72) como um ponto de fortalecimento da identidade e auto-estima do trabalhador, pois, na moral masculina, ser forte para trabalhar representa uma condio necessria, mas no suciente para a armao de sua virilidade: um homem, para ser homem, precisa tambm de uma famlia. A categoria pai de famlia complementa a auto-imagem masculina.

    Percebe-se, ento, que o trabalho signica mais do que fazer e mais do que lutar diariamente. Ele representa o provimento

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    das necessidades de outros indivduos, considerados incapazes ou detentores de outros papis distintos, porm importantes para o equilbrio da famlia (como o caso das donas-de-casa). O dinheiro ganho com o trabalho honesto deve, portanto, ser destinado ao seu m que no outro seno a famlia. Da o valor que as esposas e mes do aos homens que no bebem e no jogam.

    No caso especco dos avs que trabalham para auxiliar na manuteno de seus dependentes, a situao difere pouco. A moral de provedor se faz presente quando homens e mulheres idosos falam de seus netos, que representam os lhos pequenos indefesos e que no tm culpa se seus pais no conseguem manter-se como provedores de seus lares. No por culpa deles, mas de alguma fora maior que provoca o desemprego e penaliza os pobres. Em ltima instncia, por culpa do governo. Os netos ocupam um lugar importante nos discursos masculino e feminino, e o desejo maior destes idosos provedores fazer por eles o que no puderam fazer pelos seus lhos, enquanto eram crianas.

    Se me pedir no ca sem ganhar mesmo no, s se no tiver, porque se eu tiver eu dou um jeitinho e arrumo. Num tem jeito no. Porque quando eu criei os meus, eu num tive oportunidade de d nada do que eles pediam, sabe. s vezes saa com eles pra levar no mdico nessa poca meu marido ainda tava vivo e eu lavava roupa para os outros, mas era uma trouxa, duas, num dava pra interar saa com eles, eu falava com eles em casa: meu o, num precisa pedir nada que eu num tenho dinheiro no. Eles iam e voltavam sem chupar uma bala. Agora, hoje em dia eu posso ajudar. Eu tenho condies, eu no vou? (Zilda, torera, 60 anos, 12 anos trabalhando nas ruas).

    Os avs atuam neste contexto como aqueles que oferecem s crianas e aos jovens netos oportunidades de estudo, de passeios ou mesmo de aquisio de bens, como roupas, doces e demais alimentos que os pais esto impossibilitados de oferecer. a ajuda que complementa o salrio dos pais ou mesmo o supre em situaes crticas, como, por exemplo, se esto desempregados.

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    Todos reconhecem a responsabilidade que tm e mesmo quando alegam cansao das atividades dirias, gostam do que fazem. Este o caso da dona Luzia, que trabalha desde jovem na informalidade e tambm trabalhou com registro em carteira em uma fbrica. Hoje, com o marido doente e acamado, continua nas ruas do hipercentro de Belo Horizonte.

    Nossa! Eu adoro! Adoro! Quando eu venho pra c, pra mim... eu l vou pra fazer um passeio maravilhoso! (risos). Eu gosto muito de vir pra c, que aqui eu convivo com o povo, eu brinco, eu cao. Se o rdio toca, eu t cantando, t lidando, vou brincando. Eu s feliz aqui, muito feliz. (Luzia, camel, 68 anos, mais de 30 anos nas ruas).

    Os discursos dos informantes e dos autores utilizados na confeco deste trabalho apontaram para uma realidade diferente da dos idosos aposentados que gozam o perodo do no-trabalho em suas vidas. Apesar de toda a diculdade que enfrentam no seu dia-a-dia, os entrevistados so testemunhas e atores no contexto de transformao por que passa a sociedade brasileira, na qual o desemprego assume propores nunca antes observadas.

    Estes idosos e idosas experimentam em seus domiclios situaes difceis no convvio dirio com lhos e netos adultos que vivenciam a instabilidade do mercado do trabalho. Falando dos netos com carinho, estas pessoas usufruem um perodo da vida contrrio situao de isolamento, porm se confrontam no dia-a-dia com o cansao, as preocupaes, os afazeres de casa e o cuidado da famlia. O trabalho neste contexto torna-se uma distrao e at mesmo uma fuga de uma realidade de diculdades de vrias ordens, constituindo-se em uma forma bastante peculiar de passar o tempo.

    A diviso do espao da moradia: uma tendncia mundial?

    A grande maioria dos entrevistados mora em casa prpria. O padro das moradias varia. A maior parte constituda de casas pequenas de bairros da periferia ou mesmo em favelas e muitos se

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    referem sua casa como barraco. Outros possuem casas maiores com varanda e terrao e h ainda uma camel que tem duas casas, sendo uma destinada ao aluguel.

    Conforme mencionado, quase a totalidade dos entrevistados possui lhos e netos vivendo na mesma moradia e/ou lote e os arranjos so variados, porm o que prevalece o de lhas ou lhos com netos (sem o cnjuge) vivendo na mesma casa, e, na maioria dos casos, so as lhas solteiras ou separadas que vivem com seus lhos e sem o companheiro na casa dos pais.

    Um recurso muito utilizado pelos entrevistados a construo de outros barraces no mesmo lote para a instalao das famlias de seus lhos. No muito raro, os idosos entrevistados criam netos cujos pais no vivem com eles, e mais de uma vez foi encontrada a situao em que os netos casam-se e mantm-se no mesmo lote dos avs com suas famlias.

    A realidade destes idosos no foge congurao da famlia pobre.6 Assim, no se pode deixar de reforar o que j foi revelado por outros pesquisadores de que a idia da dependncia do idoso, na maioria dos casos, uma falcia. Estudos estatsticos com base na PNAD revelam que famlias com idosos esto em melhores condies econmicas do que as que no possuem idosos (Camarano, 2002). Conforme mencionado anteriormente, os idosos trabalhadores possuem moradia prpria e, na maioria dos casos, uma renda assegurada oriunda da previdncia social. Alm disso, os rendimentos provenientes do trabalho tambm auxiliam na manuteno da famlia em momentos de diculdades dos lhos, quando se encontram em situao de desemprego ou quando no possuem recursos sucientes para pagar aluguel ou construir sua prpria casa.

    Ao ressaltar a alterao de papis nas famlias, Goldani (2002) revela que estas vm se mostrando como novos atores na sociedade e que continuam subsistindo, embora com conguraes bastante diferentes daquelas predominantes h dcadas atrs (casal com lhos e o homem como provedor e chefe). Alm das mulheres,

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    idosos e crianas tm tido um crescente papel no oramento familiar. A participao dos idosos vai alm da renda direta e, ao cederem espao na sua moradia para lhos e netos com os respectivos cnjuges, diminuem os encargos das famlias mais jovens. Esta constatao indica que, para as famlias de baixa renda, pelo menos em momentos de depresso no mercado de trabalho, no se pode armar que a crise do ninho vazio comum.

    Camarano e El Ghaouri (2003) realizaram estudos com base nos dados das PNADs e do censo demogrco brasileiro e descobriram mudanas ao longo do tempo nas famlias com idosos e nas famlias cheadas por idosos.7 Ao comparar tais resultados a outros oriundos de diversas partes do mundo, as autoras descobriram que lanar mo de arranjos familiares que possibilitem atravessar crises econmicas no uma caracterstica unicamente brasileira. No Brasil nota-se que houve mudanas signicativas no grupo de famlias com idosos e de famlias cheadas por idosos com o passar do tempo. Os idosos pertencentes s famlias com idosos so mais velhos e da dcada de 80 para a dcada de 90 ocorreu o aumento da idade mdia destes. Este dado, embora seja reexo da maior expectativa de vida do brasileiro, signica que os idosos que vivem na casa de algum membro da famlia tm maior probabilidade de apresentar j algum tipo de limitao fsica e/ou psicolgica. Infelizmente no possvel descobrir nesta pesquisa feita pelas autoras quais os fatores que levam os idosos a morarem com seus lhos, como, por exemplo, problemas de sade fsica e mental, falta de recursos materiais, solido ou outros.

    importante ressaltar tambm que tem havido o aumento do nmero de mulheres idosas cheando o domiclio (o que ocorre tambm com as no idosas), demonstrando que as mulheres, tradicionalmente levadas a viver com os lhos, principalmente em situaes de viuvez e separao, tm se mantido em sua prpria residncia, e mais, consideram-se chefes de domiclio.

    Outro dado importante revelado pelas pesquisadoras foi a distino da renda per capita entre os dois grupos de famlias.

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    As famlias de idosos possuem renda per capita maior do que as famlias com idosos. A renda familiar que depende do idoso subiu de 59,1% para 65,7% de 1981 para 1999.

    O signicativo aumento destes percentuais dos anos 80 para os anos 90 demonstra que a dependncia da famlia em relao ao idoso sofreu inuncia de diversos fatores, entre eles esto as crises econmicas que assolaram o pas na poca e impossibilitaram os mais jovens de conquistar sua independncia nanceira. Tal observao tem sido feita por diversos autores nacionais e estrangeiros (Debert, 1992; Giddens, 2000; Hareven, Vinovskis 1978; Cabral, 1998, entre outros) que apontam a exibilizao das conguraes familiares como fruto do aumento da expectativa de vida, do poder decisrio dos idosos, da situao socioeconmica e das modicaes das relaes familiares.

    Em uma reviso da literatura das ltimas dcadas sobre envelhecimento, Debert (1992) demonstra a tendncia dos idosos a viverem sozinhos em seus domiclios, em pases como Estados Unidos, Dinamarca e outros pases europeus. Segundo as pesquisas mencionadas pela autora, a tendncia decrescente de se encontrar idosos vivendo na casa dos lhos no revela necessariamente o enfraquecimento das relaes familiares, mas uma escolha individual destes idosos que, em muitos casos, vivem em residncias prximas de seus descendentes. Estes estudos demonstram que o bem-estar na velhice no est diretamente relacionado com a intensidade das relaes familiares, principalmente se os idosos e seus lhos possuem um grau de autonomia fsica e econmica que possibilite a manuteno da privacidade de ambos os lados.

    O crescimento da individualizao da sociedade contem- pornea tem relao direta com este ideal de liberdade para fazer escolhas. o processo que Elias (1987) classica como mudana da identidade ns-eu. Na medida em que o ns vai sendo reduzido e o eu se sobrepe, marcando a predominncia da individualizao na sociedade, os laos familiares vo se tornando mais permeveis mudana.

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    Certamente as negociaes e acordos que garantem a convivncia tambm tornam-se mais exveis nesta sociedade, porm, Goldani (1989, apud Bilac, 2000) aponta para um fator importante a ser considerado, que a desigualdade de poder individual existente dentro do domiclio. O poder de escolha e negociao do idoso, da criana e da mulher no so igualitrios, bem como o do homem adulto considerado o chefe do domiclio. Assim, tal liberdade limitada pela capacidade de negociao que cada papel domstico representa.

    Com a insero da mulher no mercado de trabalho, bem como o trabalho dos jovens e mesmo dos idosos, as relaes de poder nas famlias tornam-se mais sujeitas a transformaes. Tal idia da liberdade de escolha na famlia pode ser compreendida com base na obra de Giddens (2000) que, ao observar as relaes familiares contemporneas luz de estudos sobre a democracia, reetiu a respeito da ampliao do dilogo, da igualdade de direitos e da aceitao das diferenas presentes nas famlias.

    Supondo que houvesse uma nica famlia tradicional (e sabemos que no havia), esta era patriarcal, baseada na discriminao afetiva entre a sexualidade masculina e a sexualidade feminina, bem como num sistema de autoridade no qual as crianas tinham poucos direitos. As mudanas ocorridas nessas reas so parte essencial dos processos de democratizao na vida pessoal pela primeira vez, homens e mulheres em princpio se tratam como iguais, e as crianas tm seus direitos. (Giddens, 2000, p.90)

    O autor v a famlia como um reduto da tradio. Contudo, pode-se perceber no texto exposto acima que, para Giddens, esta instituio no est estagnada, pelo contrrio, est aberta s mudanas da sociedade globalizada. Embora ele no se rera diretamente aos idosos, possvel aplicar sua proposio terica de ampliao da democracia e do dilogo ao que Debert (1992) denominou de liberdade de escolha dos mais velhos que optam por viverem sozinhos, com os lhos ou mesmo em grupos geracionais.

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    A ampliao do dilogo na famlia implica o questionamento a respeito dos papis exercidos no grupo. Segundo Hareven (1987), no apenas a famlia que est mudando, mas os parmetros de anlise dos pesquisadores esto mais voltados para o processo decisrio na famlia e a imposio das decises a seus membros. A idia de que a famlia moderna predominantemente nuclear j no hegemnica entre os pesquisadores porque gradualmente est sendo demonstrado que a organizao familiar no uma unidade monoltica. Por isso, necessrio observar que existem diversos papis e posies dos diferentes membros que fazem parte dela.

    Certamente a organizao familiar interfere na sociedade, bem como sofre inuncias diretas de seu tempo; contudo, os autores referidos demonstram que existe a criao de um esteretipo de famlia para cada poca. A extensa famlia patriarcal ainda tem sido vista como o nico modelo existente no perodo pr-capitalista, assim como a famlia nuclear ainda tem sido associada sociedade industrial moderna. O que as pesquisas mostram que tm havido modicaes nos arranjos familiares, pois estes esto inseridos em um processo de exibilizao do modelo tradicional e idealizado de famlia. Tais conguraes contemporneas da organizao familiar expressam, em ltima instncia, as rpidas mudanas sofridas nos modos de vida da sociedade moderna. Alm disso, o aumento da expectativa de vida possibilitou a convivncia maior entre pais, lhos e netos (Cabral, 1998, p. 52).

    A coabitao como estratgia de sobrevivncia e apoio mtuo entre geraes no caracterstica unicamente da sociedade industrial. Segundo Quadagno (1987, p. 53), quando as condies socioeconmicas eram instveis na sociedade europia pr-industrial, os membros das famlias lanavam mo de recursos para sobreviver e nem sempre os idosos eram acolhidos na casa de seus lhos. Entre os vrios arranjos familiares, era comum encontrar netos morando com avs, lhas que retornaram com seus lhos ilegtimos para a casa dos pais e at lhos vivos com suas crianas que foram acolhidos pelos avs. Dessa forma, o gerenciamento da casa e dos gastos era dividido entre vrias geraes e os idosos tinham companhia em momentos de maior debilidade fsica.

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 367-390, maio/ago. 2006

    Hareven e Vinovskis (1978) tambm realizaram estudos histricos sobre a famlia e encontraram diversas formaes familiares. Os autores armam que, apesar dos limites dos censos realizados nas sociedades pr-capitalistas, as famlias nucleares e monoparentais no so conseqncia do capitalismo, pois registros histricos provam que este tipo de arranjo familiar existe h pelo menos 300 anos nos Estados Unidos. A famlia nuclear estava presente nos meados do sculo XIX na maioria dos domiclios norte-americanos (entre 75% e 80%). Mesmo nessa poca, era comum a pessoa mais velha morar s ou oferecer penso a migrantes, pois esta atividade constitua-se em uma fonte de renda. Fennell, Phillipson e Evers (1989, p. 30), bem como Laslett (1977), compactuam com as autoras ao relatar dados de pesquisas inglesas em sociologia histrica que comprovam o interesse dos idosos em manter uma intimidade distncia com seus lhos j no sculo XVII.

    Na investigao sobre os idosos trabalhadores informais, percebe-se que a presena dos lhos na residncia de seus pais tem uma forte conotao econmica, pois se constitui na alternativa mais concreta para aqueles jovens que no conseguem emprego ou esto sujeitos instabilidade do mercado de trabalho. Contudo, ao comparar a vida dos entrevistados com a de seus pais que tambm tiveram histrias marcadas pela pobreza, nota-se que o m da vida dos antepassados foi na casa dos lhos e no vice-versa. Uma hiptese para este fenmeno de que ao atingir idades mais avanadas estes idosos tenham sado de seus domiclios para a casa de seus lhos (principalmente lhas) que, j adultos, conseguiram construir seus imveis.

    A terceira gerao, por seu turno, tem adiado a sada da casa dos pais, ou mesmo retornado a esta aps enfrentarem problemas como a gravidez precoce, o m do casamento ou o desemprego, como o caso do senhor Bruno que tem sete lhos e quase todos vivem ou j viveram em construes erguidas em seu lote. Este pipoqueiro quase octogenrio no lamenta a situao e acha que obrigao moral dos pais auxiliar seus lhos nos momentos difceis.

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    C tambm deve ter famlia, c tem que ajudar sua famlia! Que as condies tambm no so boas, no, mas tem que ajudar, u! O que ganha tem que ajudar... Tenho sete lhos. Todos eles vo pra l e eu aceito. Porque no interesse meu deix-los a na rua, se eles no tm condies de pagar. Quando melhora, torna voltar pr trs, pros aluguel pra onde que eles quiserem, mas se estiverem endividados no papel deles, no que eu puder eu ajudo.

    Ento vrios lhos j tiveram que voltar pra sua casa ou seu lote?

    Pra voc ver como que , n? T difcil pra dan. (Bruno, pipoqueiro, 62 anos, 40 anos trabalhando nas ruas).

    Percebe-se, ento, que ao ceder o espao de sua moradia ou lote para os lhos, os pais idosos lanam mo de uma estratgia de sobrevivncia e manuteno das geraes mais novas. Estes arranjos familiares utilizados pelos chefes de domiclio de baixa renda exigem negociao e dilogo entre as vrias geraes que convivem no mesmo espao.

    Analisando a realidade encontrada entre os idosos trabalha- dores de Belo Horizonte, com base nos autores referidos, pode-se dizer que os arranjos familiares adotados por essas famlias so fruto da escassez de condies materiais de vida, mas s se tornam possveis devido ao exerccio de uma forma mais democrtica de organizao familiar.

    A condio de trabalho dos lhos

    raro encontrar, entre os entrevistados, os que no possuem lhos e/ou lhas desempregados(as) morando na mesma casa ou lote dos pais. Dos 23 entrevistados, cinco no se enquadram nesse perl. Nos depoimentos cou claro que o desemprego algo que preocupa as famlias e aumenta a responsabilidade do idoso provedor. No caso do senhor Sodr, a preocupao est no futuro de seus lhos quando no houver ningum que exera este papel:

    Seus lhos esto trabalhando tambm?

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 367-390, maio/ago. 2006

    No, no to, no. Esto desempregados e isso que est me incomodando, porque amanh eu posso no estar vivo e eles vo passar mais diculdades que j passam hoje.

    Os trs lhos?

    So duas mulheres e um rapaz de dezessete anos. Esse eu no estou apelando com ele, ainda no. (Sodr, 60 anos, engraxate, 42 anos trabalhando nas ruas).

    Nota-se na fala do informante que a maior preocupao com o trabalho recai sobre as lhas, que j so maiores de idade, j tm lhos e vivem com os pais. Estas no possuem um provedor para suas famlias e no cumprem o dever tico/moral de substituir o homem neste papel sendo, por isso, cobradas. Quanto ao rapaz, a presso ainda no to grande porque o mesmo no atingiu a maioridade. Nota-se nas falas dos entrevistados, que os lhos e lhas menores de 18 anos no sofrem muita cobrana para iniciar sua vida de trabalhador, porque so considerados em idade escolar.8

    Isto ca claro quando dona Lurdes, ao ser questionada se deixaria seu trabalho por um emprego com registro em carteira, aproveita a oportunidade para pedir pelas lhas e neto. Para ela a proposta no boa, porque no trocaria o trabalho de catadora de material reciclvel exercido durante dcadas por nenhum outro, mas caria feliz se este emprego fosse oferecido s suas lhas ou a seu neto que, aos 18 anos, precisa de um servicinho e, por mrito prprio (e no por presso dos familiares), tirou carteira de motorista aos 18 anos.

    No aceitaria outro trabalho. S se eu arrumasse pras minhas meninas. Porque minhas meninas, s falar assim, eu vou, e no meu lugar car com minhas meninas e um neto de 18 anos que t doido pra arrumar um servicinho, tadinho, chega at chorar: me, arruma um servio pr mim! Ele tirou at carteira de motorista com 18 anos (Lurdes, 66 anos, catadora de reciclvel, mais de 40 anos trabalhando nas ruas).

    No caso das jovens sem lhos, a cobrana familiar pela procura do emprego menor porque as mesmas exercem papis estratgicos no cuidado da casa e das crianas menores.

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    Com exceo de uma informante que possui uma lha universitria, o nvel de escolaridade dos demais , no mximo, o segundo grau. Chama a ateno a incidncia de vrios casos em que as lhas dos depoentes fazem o curso tcnico em enfermagem, mas nem todas exercem a prosso. No foi encontrado nenhum homem com esta habilitao e pouqussimos possuem outro curso tcnico. Com baixos nveis de instruo, os lhos dos entrevistados esto mais sujeitos instabilidade do mercado e so levados a exercer trabalhos temporrios, os to comuns bicos.

    Vo quando tm servio, agora eles to trabalhando, n. Quando arruma um servio trabalha, quando no tem tambm ca parado. Agora to todos dois trabalhando, graas a Deus, mas caram muito tempo em casa, mas agora to trabalhando todos dois. Ela trabalha de faxineira n, chada na faxina e ele trabalha de armador. Todos dois to trabalhando, graas a Deus (Nair, torera, 75 anos, 36 anos trabalhando nas ruas).

    Uma rede de solidariedade tecida entre estas famlias que enfrentam juntas as diculdades causadas por problemas familiares caractersticos da sociedade contempornea, como a gravidez das jovens solteiras, as separaes, o desemprego, os baixos salrios e outros. Estes problemas se agravam quando h escassez de recursos materiais que garantam a estabilidade nanceira e a independncia das famlias. Certamente estes fatores impossibilitam ao idoso a escolha de viver como e com quem quiser, como apontaram os autores mencionados. Alm disso, lhos, pais e netos convivem em um mesmo espao (ou como preferem assegurar os entrevistados, em casas separadas no mesmo lote) e, aparentemente, demonstram uma relao de mo-nica, na qual o idoso que possui uma estabilidade nanceira maior que os lhos, cede seu espao e oferece o suporte nanceiro para os perodos de carncia econmica das famlias de seus lhos.

    Contudo, observando-se esta realidade por um outro ngulo, possvel perceber que a coabitao representa no apenas uma forma de poupana ou estratgia de sobrevivncia das geraes mais novas. Ela signica uma troca intergeracional que s ca mais

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    visvel medida que os seres humanos tornam-se mais longevos. H nesta relao uma troca de apoios mtuos e o convvio mais ou menos harmnico entre trs ou quatro geraes, que oferecem uns aos outros segurana e amparo em momentos de crise (incluindo-se a o apoio durante a debilidade causada pelo envelhecimento do corpo).

    Situaes de conito so constantes. A ocupao de um nico espao por diversas geraes, a proximidade das residncias e as carncias materiais fazem com que ocorram momentos de tenso, porm, a grande maioria destes problemas so resolvidos a curto prazo, e, na grande maioria dos casos, no so sucientes para provocar rupturas nos relacionamentos.

    Concluso

    Os idosos entrevistados nesta pesquisa revelaram uma realidade bastante distinta daquela mostrada pela mdia na qual a condio de abandono se contrape s novidades da terceira idade, sob a qual os indivduos desfrutam o tempo livre por meio do lazer e demais atividades criadas pelo mercado especialmente para este segmento.

    Os idosos trabalhadores informais se mantm na ativa executando trabalhos estafantes durante seis dias na semana e jor- nadas que variam de 8 a 12 horas dirias. So catadores de reciclveis, engraxates, camels, entre outros que passam despercebidos pelos transeuntes, mas que carregam histrias de vida que se misturam com a histria da cidade. So pessoas pobres, mas que trabalham para ajudar, e mesmo manter, o oramento de geraes que surgem ainda mais pobres: seus lhos e netos.

    Donos da prpria moradia, os idosos entrevistados possuem autonomia fsica e nanceira e cedem espao para a famlia que cresce ao invs de diminuir em casos de separaes, mes solteiras, desemprego ou mesmo para diminuir a despesa do aluguel.

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    A coabitao no uma idia original dos pases em desenvolvimento, pois j na Europa e Estados Unidos, no perodo colonial, as famlias se uniam em momentos de crise e os mais velhos ofereciam suporte aos mais jovens em momentos de depresso econmica. No Brasil percebe-se que as famlias pobres vo encontrando a cada dia novas estratgias de sobrevivncia e lanando mo de outros modelos mais antigos de famlias extensas.

    Os arranjos familiares, portanto, no so novidade e muito menos tm previso para acabar. Se coabitao traz perda da privacidade, aumento dos gastos e momentos de desentendimento para os membros da famlia, traz tambm apoio, solidariedade e segurana para aqueles que no possuem recursos para gerir sua famlia e/ou sua velhice.

    Se, por um lado, os idosos encontram motivao para viver e continuar em atividade, pois sabem que algum depende deles, a famlia, por seu turno, encontra no idoso o apoio para os momentos de crise, que podem durar anos. As lhas solteiras e as que tiveram lhos fora do casamento encontram na casa paterna e/ou materna o apoio necessrio para a criao das crianas, assim como os lhos e lhas separados ou que assumiram uma nova unio e deixaram os lhos do primeiro casamento com os avs.

    Certamente estes homens e mulheres que j passaram dos 60 possuem um status familiar muito maior do que o do idoso que contribui com o oramento familiar, mas que no o principal provedor. Lutando contra o isolamento, esto perfeitamente integrados na vida familiar e conquistaram respeito e aceitao por parte dos mais jovens, que prevem um futuro de muito trabalho para alcanarem o que seus avs conquistaram, qui, uma aposentadoria.

    Dessa forma, este artigo pretendeu mostrar que os idosos pesquisados encontraram nas ruas mais do que um rendimento complementar aposentadoria ou penso, encontraram uma forma de socializao e de manter o poder familiar em uma relao de troca intergeracional. Contudo, esta situao no esconde a precarizao

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 367-390, maio/ago. 2006

    da vida do idoso que, em muitos casos, busca no trabalho o apoio e a aceitao que no recebe em casa. No esconde tambm a situao de empobrecimento destas famlias que tm do ganho dos mais velhos um recurso indispensvel para a reproduo de suas vidas.

    Notas

    1 A denio etria de idoso imprecisa e est se modicando constantemente, porm para efeito de pesquisas defronta-se com dois marcos. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), seguindo os parmetros internacionais, estabelece o limite mnimo de 65 anos para a classicao do indivduo como idoso. Nesta pesquisa foi adotada a idade mnima de 60 anos, seguindo os modelos classicatrios das Naes Unidas para pases em desenvolvimento, do Estatuto do Idoso e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio (PNAD).

    2 considerado pobre todo aquele que possui renda domiciliar per capita inferior da linha de pobreza. No caso desta pesquisa, utilizou-se o valor de R$ 62,00 para a Regio Sudeste baseado nos dados do IBGE constantes na PNAD de 1997, conforme relatado por Barros, Mendona e Santos (1999).

    3 Chudacoff e Hareven (1978) apontam em uma outra direo. Segundo os autores, o papel dos idosos era importante nos laos de solidariedade intergeracional na Amrica Colonial. Os idosos permaneciam como chefes de famlia e nas situaes de crise a casa dos pais ainda representava segurana para os lhos casados.

    4 Em 1997, quase a metade dos homens idosos trabalhadores exerciam atividades rurais. Para as mulheres, os servios pessoais eram predominantes. Hoje, o trabalho por conta prpria est aumentando. Entre os idosos do grupo de 60-64 anos esta atividade exercida por cerca de 50% dos homens trabalhadores. Com o aumento da idade, cresce o percentual dos que exercem esta atividade. Entre o grupo de 75-79 anos, o trabalho por conta prpria exercido por mais de 60% dos idosos trabalhadores (Wajnman; Oliveira; Oliveira, 1999, p. 190).

    5 A respeito da tica protestante e do valor divino do trabalho, consultar Weber (1981).

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    6 Segundo Albuquerque (1993, p. 74), a pobreza est associada fortemente estagnao econmica e existem oito caractersticas comuns mais relevantes das famlias pobres: elas tendem a ser mais numerosas; as rendas familiares dependem mais dos ganhos dos chefes de famlia; os chefes de famlia so mais jovens (51,3% tm menos de 40 anos); h maior proporo de famlias cheadas por mulheres; os chefes de famlia se declaram de cor preta; estes so mais submetidos a relaes de trabalho informais; as suas atividades econmicas se concentram nos setores de baixa produtividade; seus nveis educacionais so baixos.

    7 A respeito dos diversos arranjos familiares brasileiros consultar Berqu, Oliveira e Canevaghi (1990); e sobre a interferncia da vida urbana na coeso familiar, consultar Guimares (1998).

    8 Guedes (1997) faz um estudo interessante a respeito das diferentes fases de cobrana dos pais operrios sobre os lhos para que estes arranjem emprego. Segundo a autora, o servio militar para os rapazes o rito de passagem que delimita o m da infncia, cujo maior compromisso com o estudo, e o incio da fase adulta que traz maiores responsabilidades e, portanto, a assuno da identidade de trabalhador.

    The elderly workers: prots and losses in intergenerational relationships

    Abstract: This article is a result of a qualitative research conducted with low-income elderlies who work informally on the streets of Belo Horizonte. Material scarcity leads them to a recurrent practice, the cohabitation. This strategy used to diminish the poverty impact also establishes intergenerational exchanges. On the one hand, there is a conict due to intensive companionship among generations; on the other hand, there is sympathy and mutual help from the family. The elderly workers play a central economic role in the life of their families, in which youths are unemployed or underemployed, and, as home providers, elder people maintain the power of negotiation with the generations that live with them.

    Key words: elderly people, job, family, intergenerational relationships.

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    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 2, p. 367-390, maio/ago. 2006

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