identidade nacional
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Revista Aulas. Dossi Cultura Material. Org. Glaydson Jos Silva. V. 02. n 02 Campinas, IFCH, 2008.
UNICAMP www.unicamp.br/~aulas
055 11 985929533
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REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais
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Revista Aulas uma publicao da Linha de Pesquisa em Histria: Subjevidades, Gnero e Cultura Material, alocada no programa de Ps-Graduao em Histria da Unicamp.
Todos os textos so de responsabilidade dos seus autores.
EDITORES Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Margareth Rago IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Adilton Lus Martins
CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Margareth Rago IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Paulo Celso Miceli IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro Prof. Dr. Jos Alves de Freitas Neto IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Glaydson Jos da Silva UNIFESP Conselho Consultivo Prof. Dr. Alcir Pcora IEL/UNICAMP Prof. Dr. Alfredo Jos da Veiga-Neto FACED/UFRGS Prof. Dr. Antonio Carlos Amorim FE/UNICAMP Prof. Dr. Antonio Paulo Benatte Doutor/UNICAMP Prof. Dr. Carlos Jorge Gonalves Soares Fabiao Universidade de Lisboa Profa. Dra. Carmen Lcia Soares FEF/UNICAMP Profa. Dra. Diana Gonalves Vidal FEUSP Profa. Dra. Leila Mezan Algranti IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Lourdes Conde Feitosa Faculdades Integradas de Ja Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta - FAFICH/UFMG Prof. Dr. Luiz Fernando Ferreira da Rosa Ribeiro IFCH/UNICAMP
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior CCHLA/UFRN Prof. Dr. Edson Passetti Faculdade de Cincias Sociais - PUC/SP Profa. Dra. Nri de Barros Almeida IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho ICHS/UFMT Profa. Dra. Patrcia de Santana Pinho SUNY/Albany Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni UFPR Profa. Dra. Tnia Navarro-Swain ICH/UnB Prof. Dr. Elias Thom Saliba FFLCH/USP Profa. Dra. Eliane Moura Silva IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Francisco Ortega Instituto de Medicina Social/UERJ Prof. Dr. Guilherme Amaral Luz INHS/UFU Prof. Dr. Jorge Coli IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Jos Rivair Macedo IFCH/UFRGS Prof. Dr. Leandro Karnal IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho FHDSS/UNESP/Franca Profa. Dra. Maria Stephanou FACED/UFRGS Profa. Dra. Nauk Maria de Jesus - ICSA/UNEMAT Profa. Dra. Thais Nivia de Lima e Fonseca FaE/UFMG
Prof. Adilton Lus Martins
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REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais
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SUMRIO
Apresentao ...................................................................................... 7
Uma Identidade Para A Cidade: A Crnica Jornalstica De Padre
Francisco Martins Dias E A Construo De Belo Horizonte No Final
Do Sculo XIX ..................................................................................... 9
A CONSTRUO DO ESTADO E DA NAO NO BRASIL:
Identidades polticas e imprensa peridica no perodo regencial
(1831-1840) ...................................................................................... 33
Minas No Contexto Da "Acomodao": As Relaes De Poder, As
Prticas Polticas E A Tessitura Das Identidades ............................. 51
Nacionalismo E Arqueologia: O Contexto Poltico Da Nossa Disciplina
.......................................................................................................... 79
Recriando Coerncia Sem Se Reinventar Romanizao ................ 115
Resenha: RAGO, Margareth & VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Figuras
de Foucault. Belo Horizonte, Editora Autntica, 2006. ................... 129
RESENHA: CARVALHO, Jos Murilo de. A formao das almas. O
imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo, Companhia das Letras,
1990 ................................................................................................ 133
RESENHA: GEARY, Patrick J. O mito das naes: a inveno do
nacionalismo. So Paulo, Conrad Editora, 2005 ............................ 141
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REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais
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APRESENTAO
Glaydson Jos da Silva Unifesp Brasil [email protected]
Reavaliando as identidades nacionais:
discurso nacional e diferena cultural na
ps-modernidade1
Este dossi foi organizado com a finalidade de apresentar alguns dos
principais registros que informam o debate contemporneo acerca
das denominadas identidades nacionais. Composto de diferentes
contribuies, portadoras de aproximaes e distanciamentos, o
conjunto de trabalhos aqui apresentado coloca para reflexo a
viabilidade e a operacionalizao de diversos temas e conceitos,
analisados pela tica de representantes de diferentes reas do
conhecimento: Arqueologia, Antropologia, Sociologia, Teologia e
Histria, no sendo estranha a muitas anlises uma abordagem
interdisciplinar no estudo do objeto examinado.
As identidades nacionais e seu status de naturalidade ou
artificialidade constituem importantes aspectos no estudo das
coletividades. Pauta de diferentes estudos, uma conseqncia
imediata evidenciada aos observadores tem sido o enfoque na
necessidade de uma problematizao maior em torno do discurso de
unidade da nao, em prol da valorizao da pluralidade das culturas.
Essa inflexo nas tradies interpretativas traz como corolrio o
imperativo de refletir acerca da suposta desintegrao das
identidades nacionais e, tambm, das relaes que se estabelecem
entre o global e o local. Construdo em torno de referenciais tomados
como absolutos (lngua, territrio, cultura e raa, e.g.), o conceito de
identidade nacional hoje no mais se sustenta sem uma reflexo
terica maior a seu respeito; sua ligao idia de tradies
1 Como citar: Silva, G. J. (2006). "Apresentao." Revista Aulas: Dossi Identidades Nacionais 2(2): 2.
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inventadas (Eric Hobsbawm) e comunidades imaginadas (Benedict
Anderson), importantes balizas no pensamento que lhe concernente
tambm no. A globalizao econmica e a fragmentao cultural
que marcam o mundo contemporneo estabelecem o afastamento de
modelos impostos pelos iderios dos Estados-naes, num contexto
em que o discurso nacional tem de se recolocar face ao
reconhecimento da diversidade dos indivduos e grupos e ao imprio
da subjetividade no bojo das cincias. Identidades nacionais, locais,
hbridas, fluidas, negociveis, imaginadas, enfim, possveis. disso
que tratam as diferentes contribuies aqui apresentadas. Profcua
ser essa iniciativa se puder suscitar desdobramentos e crticas.
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REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais
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UMA IDENTIDADE PARA A CIDADE: A CRNICA
JORNALSTICA DE PADRE FRANCISCO MARTINS
DIAS E A CONSTRUO DE BELO HORIZONTE
NO FINAL DO SCULO XIX2
Fabio Luiz Rigueira Simo UFJF Brasil
Resumo:
No final do sculo XIX, o estado de Minas Gerais vivencia uma experincia marcante: a mudana de sua capital. Analisamos aqui a obra de Padre Francisco Martins Dias, que, inserida neste contexto, pode ser tomada como esforo de construo identitria para uma cidade nascida originalmente de vazios materiais, conflitos scio-econmicos e austeras transformaes. Palavras-chave: Tradio - Modernidade - Harmonia.
Abstract:
In the end of XIX century, Minas Gerais see a very strong experience: the change of its capital. We analyze here the work of priest Francisco Martins Dias, that, inserted in this context, can be taken as effort of identity construction for a city that was born originally in the material emptiness, socioeconomic conflicts and austere transformations. Key words: Tradition - Modernity - Harmony.
2 SIMO, F. L. R. (2006). "Uma Identidade Para A Cidade: A Crnica Jornalstica De Padre Francisco Martins Dias E A Construo De Belo Horizonte No Final Do Sculo Xix." Revista Aulas: Dossi Identidades Nacionais 2(2): 22.
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Em 30 de maro de 1891 reuniu-se na cidade de Ouro Preto uma
Constituinte, em cujos debates um mereceria destaque: a mudana
da capital do Estado. Depois de acirrados debates entre
"mudancistas" e "anti-mudancistas"3, a opo pela mudana imps ao
governo uma outra questo: a escolha da localidade, para onde
rumaria o corpus administrativo do Estado. Cinco regies foram
estudadas por comisses especficas: Parana, Barbacena, Juiz de
Fora, Vrzea do Maral e Curral d'El Rei. A Lei n 3, de 1893, tornara
oficial a escolha por Curral d'El Rei, local j ento conhecido pela
populao como Belo Horizonte. Em menos de dois meses, era
criada a Comisso Construtora da Nova Capital Mineira. Nomeado
engenheiro-chefe da comisso, o politcnico Aaro Reis teve total
liberdade na escolha de sua equipe, compondo-a essencialmente de
mentes como a sua, afeitas racionalidade do urbanismo moderno e
ao positivismo republicano da poca 4 . Iriam comear as obras
(BARRETO, 1936).
O projeto de Belo Horizonte, i.e., a sua planta inicial, forjou-se no
trao dos engenheiros da comisso construtora, mas a cidade
enquanto espao urbano, onde transitam pessoas e idias, prticas e
relaes de poder e propriedade, fez-se dos projetos de seus
habitantes. importante observar que no houve coincidncia de
posies diante do futuro da nova capital entre os grupos que para l
rumaram desde a supostamente feliz ocasio de sua inaugurao.
Textos da poca apontam para essa diversidade de perspectivas. Os
jornais, de cunho notadamente associativista, aparecem como fontes
fundamentais para uma anlise dessa situao de divergncias e
convergncias, mas antesde descontinuidades, observada no interior
dos grupos que iam compondo a cidade.5
Entendemos que as notcias veiculadas nos peridicos materializam
maneiras de se conceber a realidade e informam muitas vezes os
3 Ficaram assim conhecidos os parlamentares que se posicionaram a favor ou contra a mudana da capital (conferir: IGLESIAS, 1987 e LINHARES, 1905). 4 Sobre Aaro Reis e suas convices pessoais e profissionais, conferir: PAIM, 1999 e SALGUEIRO, 2001. 5 Referimo-nos aos operrios, brasileiros e estrangeiros, que rumaram para o arraial desde o incio das obras, a elite ouro-pretana muitas vezes resistente mudana, as novas elites republicanas, e homens e mulheres desapropriados, metidos em cafuas e barraces, agora errantes a no lugar onde nasceram e foram criados.
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comportamentos e as prticas dos diferentes grupos. Com efeito, os
jornais aparecem no como meros veculos de informao, algo
estanque e livre de ideologias, mas como verdadeiros difusores de
idias, prticas e condutas que moldam e representam o espao
urbano, sendo assim produtores do espao; do espao e do
imaginrio da cidade.6
Parece, portanto, importante considerar o primeiro jornal da cidade, o
Bello Horizonte, peridico semanrio de propriedade do Pe. Francisco
Martins Dias, que, alm de vigrio da parquia de Nossa Senhora da
Boa Viagem, era escritor e jornalista. Em 1895, quando tm incio as
obras no curral d'El Rei, Dias funda o jornal com o fim de informar
populao local sobre os trabalhos da comisso. As suas matrias,
em forma de crnicas, foram depois compendiadas e publicadas em
livro, em 1897, com o seguinte ttulo: Traos Histricos e Descriptivos
de Bello Horizonte. O autor est preocupado, como ele prprio
salienta no prembulo de sua obra, em dar uma histria cidade, e o
faz sob a perspectiva (por vezes forada) da continuidade. A proposta
deste artigo analisar a referida obra, tomando-a como testemunho
histrico inserido em uma poca de profundas transformaes. A
nossa hiptese central de que o livro forjou-se a partir de um
objetivo claro: dar uma identidade harmnica cidade de Belo
Horizonte, unindo passado e presente, tradio e modernidade, em
um s continuum histrico.
Belo Horizonte foi concebida inicialmente como capital modelo da
Repblica. Segundo palavras de Joo Pinheiro, tratava-se da "filha
primognita das realizaes materiais da Repblica". As referncias
em jornais da poca, bem como os relatos de jornalistas vindos da
capital federal, como Artur Azevedo e Olavo Bilac, por ocasio da
inaugurao da cidade, registram a satisfao e a ufania com que se 6 Os jornais so diversos: polticos, publicitrios, humorsticos e literrios, associativos e operrios; representantes de grupos estrangeiros, como italianos, rabes e alemes; peridicos manifestamente catlicos ou protestantes, folhas espritas, estudantis e universitrias; reclames publicitrios e at folhas carnavalescas como o anurio Matakins (LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerrio da imprensa de Belo Horizonte: 1895-1954. 1995. Belo Horizonte, Fundao Joo Pinheiro).
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recebe a nova capital mineira. De novo na observao de Joo
Pinheiro: "A nova capital, a mais famosa cidade brasileira,
conquistou-nos o corao. Dir- se-ia a NOIVA DO TRABALHO
ansiando pela realizao de seus destinos, ponto de convergncia
que deve ser de nossos esforos, centro de impulso que ser da
nossa atividade (...)".7
Muitos testemunhos da poca apontam para essa mesma direo:
brindar nova capital e modernidade que a acompanhava. Alfredo
Camarate, sob o pseudnimo Alfredo Riancho, publicou no jornal
Minas Gerais de Ouro Preto as seguintes palavras:
"Construmos, verdade, uma capital para
os filhos do Estado de Minas (...); filhos do
sculo das luzes ou, talvez antes, do sculo
XX, que se lhe segue; a criao de uma
capital nova traz, portanto, pesadssimos
encargos para os mineiros e refiro-me aos
encargos morais e no aos econmicos
(...). Fitam os olhos sobre ns, no s todos
os brasileiros como todos os povos do
mundo".8
Camarate era engenheiro tcnico da comisso chefiada por Aaro
Reis. A sua fala , pois, a de um construtor, havendo nas palavras
uma espcie de sensao de compromisso com o sucesso e a
projeo da nova cidade. Essa caracterstica de ufanar a capital,
vendo nela o depositrio de novos tempos mais prsperos e felizes,
est presente em muitos relatos da poca, e o est de maneira
exemplar em Pe. Francisco Martins Dias, que, como quem ouve o
apelo do conviva Riancho, entrega-se tarefa de sustentar a
grandeza moral que a bela cidade deve inspirar. Uma passagem
muito citada do texto de Dias faz forte referncia substituio do
antigo pelo novo, da tradio pela modernidade:
7 Apud MELLO, Ciro Flvio Bandeira de. "A noiva do trabalho - uma capital para a Repblica". In: DUTRA, Eliana de Freitas. BH: Horizontes Histricos. 1996. Belo Horizonte, C/Arte, pp. 11-45, p. 45. 8 MINAS GERAIS, Ouro Preto, 21 out. 1894, p. 2.
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"E foi assim que nos ltimos dias da
monarchia, foram aqui levantados em plena
rua os sediciosos gritos de - Viva a
Repblica! - e no h muito trocado o
antigo nome de Curral D'El Rei pelo de Belo
Horizonte, para apagar de vez tudo o que a
trono cheirasse ou a rei se referisse".9
razovel concluir a partir do trecho acima que se trate de manifesta
negao ao passado colonial, apontando para os pressupostos do
urbanismo reformador da poca. Entretanto, como observaremos, h
na obra de Dias uma intricada relao harmnica entre o novo e o
velho no espao da cidade. O autor, ao contrrio do que possa
parecer, no um visionrio radical, adepto sem embargo fria
jacobina de republicanos por vezes annimos que impunham sua
presena na novacapital. 10 O seu discurso parece casar-se sem
maiores problemas aos de Alfredo Camarate e outros, mas visto de
perto ele pode nos revelar outra perspectiva. Veremos que autor e
obra so referenciais de um pensamento conciliador, que quer
receber da melhor maneira possvel o novo, mas sem deixar com isso
que o velho desaparea, pelo menos em memria.
Em sua apresentao, "Ao Leitor", Dias fala de seu objetivo principal
para com a obra: "(...) deixarmos lanada a primeira pedrinha para o
alicerce do edifcio da historia do logar escolhido para a nova capital
9 DIAS, Francisco Martins. Traos Histricos e Descriptivos de Bello Horizonte. 1897, p.18. 10 Estamos falando de homens pblicos, mas tambm de particulares a quem o sucesso da cidade interessava j que isso coincidia com o seu prprio sucesso enquanto "cidado". H aqui um exemplo interessante narrado por Arthur Azevedo: "Tinham-me dito que em Minas, bero da Repblica, havia muitos monarquistas (...) Pode ser que os haja noutros pontos do Estado, em Belo Horizonte so fruta rara, rarssima. Verifiquei, pelo contrrio, que ali quase toda a gente florianista, mas de um florianismo ardente e exaltado. H l uma vasta associao que tem por fim glorificar todos os anos a luminosa memria do Marechal de Ferro. Passando por uma das ruas principais da cidade, avistei na fachada de um prdio (...) o busto de Floriano Peixoto fazendo 'pendant' ao da Repblica. Supus que fosse um edifcio do Estado: era uma casa particular" (AZEVEDO, Artur. Um Passeio a Minas - VI. Minas Gerais, Belo Horizonte, 11 dez. 1901, p. 2, grifos nossos).
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do Estado, desde sua primitiva origem, e dado o primeiro passo para
os annaes da fundao da nova cidade mineira".11 Esse trecho j nos
avisa sobre as verdadeiras concepes de Dias: ele acredita na
relevncia e na importncia forosa de se escrever a histria de
Curral, fazendo-o em estreita correlao com os primeiros passos da
nova cidade. Neste sentido, a obra se pretende um liame entre o
passado da velha Curral e os novos tempos anunciados pela
construo de Belo Horizonte.
De sada importante salientar que o pensamento de Dias segue
uma cadncia fundamental, a saber: Curral d'El Rei, lugar afvel e de
ares acalentadores, tem origem briosa e lancinante12, caminha na
prosperidade e chega decadncia nos anos finais da monarquia,
justamente quando aparecem dois novos atores histricos: A
Repblica e a nova capital. Assim escreve no captulo IV,
"Fundao":
"Constituindo em freguezia em 1750, o
Curral d'El-Rei, sempre de augmento em
augmento, de progresso em progresso,
chegou a dominar em 1815 a uma area de
quasi 18 mil habitantes (...) De ento para
c tem decrescido sensivelmente sua
populao, em virtude dos
desmembramentos (...) Contudo podia
ainda este logar crescer e prosperar, com
tantos e to bellos elementos naturaes de
vitalidade, de grandeza e de prosperidade;
mas no cresceu e nem prosperou;
porque?"13
O captulo seguinte, "Causas da Decadencia", observa os principais
entraves ao progresso de Curral. A citao acima esclarece que no
11 DIAS, Op. Cit. p. II.
12 Dias, em "Origem", mostra que Curral descoberta nas trilhas dos caadores de metais preciosos, sendo um stio de grande valor por sua proximidade em relao residncia dos primeiros exploradores daquelas terras promissoras de riqueza margem do Rio das Velhas (DIAS, Op. Cit. p. 11). 13 DIAS, Op. Cit. p. 12-13, grifos nossos.
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se trata da natureza do lugar. Segundo Dias so quatro os grandes
responsveis pelo atraso: a) a presena de homens de m ndole,
"(...) cujo nico fito era impor sua vontade ao povo"; b) a desunio da
populao e os desencontros de suas idias; c) imprio de uma
politicagem desmedida e exaltada; e, por ltimo, d) "o mal dos males,
o mais terrvel escolho ao desenvolvimento physico, intelectual e
moral dos filhos deste logar": o casamento entre parentes!
Com efeito, o que o autor faz responsabilizar os homens e no a
natureza pelo atraso de Curral. Assim, em um lugar de natureza
exuberante e relevo equilibrado, a desunio entre as pessoas e a m
ndole de alguns, somados ao escolho do incesto, abre frestas para
uma crise econmica e de valores sem precedentes. A
bancarrota,considerando os desmembramentos, causa da diminuio
populacional, acontece em 1870, quando Venda Nova eleva-se
categoria de freguesia, libertando-se dos cuidados de Curral.
Diante desse quadro impe-se Repblica a tarefa de trazer grandes
e boas transformaes. isso fundamentalmente que reclama o
nosso autor, e justo nesse momento do texto que se coloca a
passagem clebre que induz-nos a compreendermos a obra na
perspectiva do rompimento e no da continuidade.
"Esse ardor [Dias refere-se a contendas
polticas e outros desentendimentos entre a
populao], porem, foi se arrefecendo com
o correr dos tempos e ao passo que o povo
foi conhecendo o mal que o mesmo lhe
causava; contudo no se extinguiu de todo,
e foi assim que nos ltimos dias da
monarchia, foram aqui levantados em plena
rua os sediciosos gritos de - Viva a
Repblica! - e no h muito trocado o
antigo nome de Curral D 'El Rei pelo de
Belo Horizonte, para apagar de vez tudo o
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que a trono cheirasse ou a rei se referisse". 14
Apagar tudo o que a trono cheirasse e a rei se referisse no
significava absolutamente apagar a velha Curral. Dias um desafeto
da monarquia, e do jugo colonial. O autor ataca veementemente os
"ferrenhos vnculos, que nos pendiam aos ps do throno de Portugal
(...) [e o] systema de exclusivismo e centralisao do regime passado,
porque eram esses males communs".15 Mas disso inferir que Curral
fosse um lugar condenado aos males terrveis de tempos obscuros,
sendo ento bem-vinda a sua extino, h uma distncia abissal. Em
sua obra, Dias demonstrar profunda preocupao com o arraial,
tratando-se a chegada de Belo Horizonte de verdadeiro ato de
salvao para um lugar de futuro j prometido, mas perdido em sua
caminhada em direo ao progresso.
A Repblica viria, pois, como instrumento de transformao; como um
reduto de guas mornas a lavar os males da boa, conquanto doente,
Curral. O novo regime haveria de assumir o compromisso (a que Dias
tambm se prope em sua obra) de devolver ao velho arraial a
longevidade dos tempos ureos. Assim, o novo e o arcaico no
operam como elementos de ruptura, mas de continuidade. A
Repblica e Belo Horizonte seriam prenncios de uma nova fase de
Curral, uma fase promissora, que evocasse o progresso na cifra da
unio, que devolvesse ao pequeno lugarejo os ares tranqilos de sua
origem.
Em seu captulo VIII, "ndole e trabalho", Dias faz sensveis
apreciaes tradio curralense, lamentando a sua disperso junto
com os velhos habitantes. Ele no mede palavras para reverenciar o
carter simplrio e dado ao trabalho daquela populao:
"Era este um povo fraco, hospitaleiro e
affavel para com os seus hospedes.
Julgava-se feliz, vivendo sem grandezas,
mas com independencia; sem riquezas,
mas com fartura (...) Era (digo era porque
hoje a populacao se baralhou com a onda
14 Ibid. p. 18, grifos nossos. 15 Ibid. p. 17.
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18
do povo recemchegado para os servicos da
nova capital, como uma gotta de vinho se
confunde no oceano, ou se dispersou para
os arrabaldes da freguezia; era um povo
laborioso e trabalhador)".16
Note-se aqui o aspecto mesmo nostlgico do pensamento do autor.
Ele v na antiga Curral traos sublimes de uma cultura que se foi,
mas que pode ser recuperada com a chegada da nova capital. Mas
h tambm neste trecho uma contradio: considera-se a disperso
da populao original e a sua mistura a outros povos fatores
decisivos de dissoluo da tradio local. Ora, ambos os fatores so
correlatos da mudana da capital, que Dias v com bons olhos. Como
ento se resolve esse impasse? Ao problema da mistura com outros
indivduos Dias poupa palavras e apenas lamenta o fato de a rala e
pura populao curralense obscurecer-se diante do grande fluxo
populacional para a nova cidade. disperso das famlias para os
arrabaldes, o autor ainda mais categrica:
"Sentimos nos escrinos do corao uma luz
de fagueira esperana (...): aquele povo,
que to desalentado se retirava o centro da
povoao, ia levar alguma vida s inclutas
cercanias do arraial, arroteando os matos e
os campos (... ) os claros deixados no
arraialiam preencher-se pelos prticos
obreiros da nova capital".17
notvel como Dias d onda de desapropriaes, talvez a face
mais traumtica de todo o processo de mudana da capital, um
aspecto de coisa leve e natural. Com mestria, retira-se aos fatos
qualquer trao de conflito, dando-lhes uma aura intrigante de
equilbrio e boa- venturana. O autor sada a civilizao e eleva ao
ltimo escalo de importncia aquela que elege como personagem
central dessa histria: a cidade. Nesse sentido, as populaes se 16 DIAS, Op. Cit. p. 28-29. 17 DIAS, Op. Cit. p. 86, grifos nossos.
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movimentam no espao exclusivamente em funo de uma
providncia maior: o progresso. Numa perspectiva teleolgica,
concebe-se a construo da capital como profunda metamorfose da
antiga Curral, conduzindo-a a novos tempos ureos, lembrando a sua
origem. Assim, no esteio da providncia, os desapropriados so
reduzidos - ou talvez devamos dizer elevados - categoria de
responsveis pela expanso do vilarejo. Essa seria uma tarefa nobre
j que, para o nosso autor, expanso espacial e progresso andam
juntos.
Aaro Reis, como observa o prprio Dias, ordenou que no ficasse
alma sequer no espao urbano e nem no suburbano de sua planta
matriz. As populaes haveriam de habitar a rea rural, vivendo da
terra e da agropecuria de abastecimento. Mas, a despeito disso,
Dias faz um eloqente elogio a Reis, colocando-o como sujeito de
rara complacncia. O autor chama ateno para a no-convenincia
de se usar o termo desapropriao ao que na verdade teria sido uma
feliz relao de compra e venda, "(...) onde o comprador era o Estado
na pessoa do dr. chefe da comisso, e os vendedores os
proprietrios deste logar".18
Nesse clima de harmonia, chegamos aos animados dias de fundao
da cidade. H um esforo incondicional por tornar os acontecimentos
verdadeiros eventos-ddivas, em que concorreram fatores naturais e
humanos para que tudo se desse na mais ordeira paz. Ao narrar o dia
7 de setembro de 1895, quando das cerimnias oficiais de fundao
da cidade, Dias atribui um ar de contentamento geral populao
local e prpria natureza:
"Esplendidas, brilhantes e apparatosas
foram ellas [as festas]. E era de mister que
assim o fossem , para attrahir-se a atteno
dos extranhos e tornarem-se mais
conhecidas as bellezas deste logar e sua
propriedade para ser a metropole de Minas
(...) Por um capricho da natureza, aps
clara e serena aurora que despontou
graciosa no horizonte, seguiram-se alguns
18 Ibid. p. 83.
-
20
momentos de tempo dbio e nebuloso, que
assaltaram com desalento os coraes
festeiros. Mas, dentro em pouco, essas
nuvens se dissiparam e appareceu o cu
azul, sereno e lmpido, evitando-se os
inconvenientes do p, que desappareceu, e
da lama que j no existia, dos raios do sol
que no atravessavam ardentes as
camadas ethereas, e da chuva que no
veiu mais".1719
Como se v, o autor parece evocar foras ocultas para dar a tudo um
tom de harmonia incomum. Isso sempre em consonncia com a
alegria das pessoas (todas, indistintamente!), cujos coraes
mantinham vivas as ligaes com a velha Curral. As pessoas e as
coisas (tanto humanas quanto naturais) ganham na obra status de
pares perfeitos em um processo que, embora intrinsecamente repleto
de descontinuidades e, por isso mesmo, conflituoso, deixa-se parecer
harmnico e de rara coerncia. Um ponto da narrativa que primeira
vista poderia parecer desprezvel ganha ento importncia central:
trata-se da descrio sobre a situao do solo no dia das festividades
de fundao: na letra do autor, como pudemos observar acima, no
h mais p e nem lama. Existe a uma referncia algo sublime e de
um simbolismo intrigante: o p, que se faz do excesso de secura,
cessa ante a chuva que, por sua vez, no persiste e logo se dispersa
em favor de um cu azul que traz o sol que seca a lama, fruto do
excesso de gua. Mas o prprio sol no forte o bastante para gerar
mais poeira, os seus raios "no atravessam ardentes as camadas
etreas". Tudo fica na mais perfeita harmonia, nada de excessos,
apenas equilbrio.
Vrios textos da poca lembram o desconforto gerado pelo p e pela
lama a quem se arriscasse por aquelas terras de Belo Horizonte nos
tempos de sua construo. O coletor Celso Werneck em suas
reminiscncias observava:
19 Ibid. p. 95.
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REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais
21
"A impresso no podia ser boa (...) o p
era medonho! Triturado, vermelho, em
alguns lugares se acumulava em camadas
que atingiam mais de um palmo (... )
tornando obrigatrio o uso das meias-botas
(...) que impermeveis, tambm serviam
para chuva"20.
A lama e o p poderiam muito bem ser desconsiderados por Dias, j
que eram o maior estorvo de um lugar que se transformara em
canteiro de obras. Mas Dias insiste em cit-los, negando-os a
existncia naquele momento, por uma oferenda da natureza. Alis,
ele os considera justamente para neg-los, ou antes, para mostrar
como a natureza conspirou para que tudo corresse bem naquele dia
to especial.
Mas precisamos nos deter um tanto mais nessa questo da natureza
e da cultura no arraial, porque, a despeito da maior importncia dada
aos fatores naturais, Dias, como vimos, no desconsidera a cultura
do povo curralense. Beatriz Magalhes, em estudo sobre a
construo e o desenvolvimento de Belo Horizonte, observa que o
grande desafio da comisso construtora era eliminar o carter arcaico
de Curral d'El Rei para dar vez modernidade da nova capital. Isso,
segundo as matrizes mesmas do pensamento da poca, constante da
formao politcnica de Aaro Reis, implicava numa verdadeira
mudana de estgio na cadeia evolutiva preconizada por Comte.
Como escreve Magalhes,
"O projeto da Capital eliminou a idade
mdia do lugar: o metafsico Curral d'El Rei,
com sua igreja pastoreando o casario
tortuoso, para retomar a sua infncia,
descontaminada do cultural, em seu
primitivo estado fetichista - instintivo,
voluntrio, orgnico -, o natural, e, a partir
dele, articular racionalmente a sua idade
20 WERNECK, Celso (s/d). Reminiscncias do Coletor Celso Werneck. Belo Horizonte, Museu Ablio Barreto (mimeo), p. 5.
-
22
moderna, o estado positivo, cientifico,
definitivo".21
tentador tambm estabelecer esse paralelo para a obra de Dias,
mas olhares atentos podem revelar traos de uma complexidade
ainda maior. Na tentativa de salvaguardar alguns elementos do antigo
arraial, casando-os com os auspiciosos ventos de modernidade, Dias
no desconsidera as pessoas, e, por conseguinte, os referenciais
culturais da velha Curral. Assim, voltando ao captulo VIII, "ndole e
Trabalho", flagramos o dia-a-dia de labor e alegria que orquestrava a
vida da populao curralense original:
"(...) de segunda-feira a sabado, as ruas
estavam desertas e ermas (...) porque os
homens estavam entregues s afanosas
lidas da lavoura (... ) Aos domingos, porem,
era outro o aspecto do arraial, que, como
por encanto, se transformava em uma
verdadeira feira local - alegre e animado
que era! (...) noite, [o silncio] era
levemente interrompido pelos ternos e
saudosos sons de uma flauta, e pelas notas
poticas d'algum violo, acompanhando
modinhas, cantadas ao luar por algum filho
da terra".22
Esse cenrio idlio, ordeiro e regular, no se sustenta ante as
transformaes impostas pela mudana da capital. A cidade dos
sonhos de Reis e de outros "visionrios" da modernidade e do
progresso capitalista afasta esse tipo de cotidiano que respeita
lgica do trabalho na lavoura, do comrcio de trocas e das cantorias
"vadias" pelas ruas pequenas e acessveis. O aconchego do lar e da
famlia estendido ao espao pblico de ruas tortuosas e estreitas
conhecer a sua negao nos atos austeros da comisso construtora.
21 MAGALHES, Beatriz de Almeida (1989). Belo Horizonte, um espao para a repblica. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, p. 142. 22 Ibid. p. 29-30
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23
Christian Topalov salienta que dentro de uma proposta de tornar a
sociedade e a cidade objetos da ao racional, engenheiros e
arquitetos promoveram, partir de 1880, polticas urbanas tipicamente
modernas. As resolues de Aaro Reis nos relatrios que
apresentava ao governo confirmam essa observao:
"s ruas fiz dar a largura de 20 m,
necessria para a conveniente arborizao,
a livre circulao dos veculos, o trafego
dos carris e os trabalhos de colocao e
reparaes das canalizaes subterrneas.
s avenidas fixei a largura de 35 m,
suficiente para dar-lhes a beleza e o
conforto".23
O engenheiro-chefe da comisso construtora falava deliberadamente
em medidas que projetam a trade da cidade moderna:
embelezamento, infra-estrutura e racionalizao do espao urbano. A
cidade torna-se um reduto do espetculo barroco, representado pelas
praas e monumentos republicanos, pela arborizao e pelas
imponentes avenidas. Nada receptivo prtica costumeira da antiga
Curral. Algo a que vem em socorro Dias. Ao tratar das festas
religiosas no velho arraial dos tempos ureos, o autor venera o
cotidiano afortunado da populao local, fazendo-o, acreditamos,
numa perspectiva de elogio quilo que no se deveria perder justo
por ser o depositrio de ricas razes:
"Quem acertasse de visitar Curral d'El-Rei
em princpios do mez de agosto, certo que
ficaria agradavelmente impressionado pelo
tom festivo, afvel e alegre de seus
habitantes (...) Todos estao contentes, e
preparam-se para receber e obsequiar s
comadres, aos compadres e aos parentes
que viro assistir s festas (...) Os alfaiates,
os sapateiros, todos, enfim, estao alegres e
23 Apud BARRETO, Ablio (1936). Belo Horizonte, memria histrica e descritiva, histria mdia. Planejamento, estudo, construo e inaugurao da nova capital (1893-1897). Belo Horizonte, Rex, p. 241.
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24
satisfeitos, pela abundancia de
encommendas de factos e calados".2224
No podemos deixar de observar que Dias um clrigo - e o seu
ardor pela cultura catlica fica patente em sua narrativa -, o que o
impele tarefa de dar relevo quilo que mais lhe contenta na tradio
do arraial: a cultura religiosa. Da considerarmos serem o catolicismo
e as prticas e comportamentos ligados a ele o cerne da
preocupao do nosso autor em salvaguardar traos da cultura local.
Mas essa cultura, como dito, aparece coadunada com os referenciais
da modernidade. A viso saudosista da populao curralense haveria
de misturar-se s novas perspectivas trazidas pela inteligncia
construtora e pela elite burocrtica formando uma nica vontade de
ver amadurecer feliz e saudvel o fruto de desejos comuns. Num
momento em que j se observam tendncias claras secularizao
da vida urbana, Pe. Francisco Dias d-se tarefa de adaptar a
tradicional cultura crist catlica moderna cultura urbana que queria
ganhar espao. Eis a mais a face central do esforo por dar aspecto
harmnico s austeras transformaes.
Ao perseguimos evidncias que reforcem essa posio de Dias por
ele mesmo, interessante, por exemplo, observar o avesso de
posies entre o autor, que tanto louva os trabalhos de Aaro Reis, e
a comisso construtora acerca da matriz da Boa Viagem. Para a
comisso a matriz tratava-se de prdio "sem elegancia nehuma no
exterior, acaapada e tosca no systema de sua architetura, toda
portugueza no pesado das propores e incorreces das linhas (...)
monumento de mau gosto".25 Ao que Dias responderia assim: "possui
a freguezia uma slida Matriz, que admira a todos os visitantes (...)
podendo o mesmo competir com qualquer Matriz de muitas cidades
populosas e adeantadas"26. Adiante Dias ainda observa:
24 DIAS, Op. Cit. p. 52. 25 Comisso Constructora da Nova Capita - Revista Geral dos Trabalhos, 1895, vol I. pp. 11-15. 26 DIAS, Op. Cit. p. 140.
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25
"Espritos fracos, restos da idade media,
dir alguem; mas, espiritos fracos,
respondemos ns, que gozavam de mais
paz e felicidade do que os orgulhosos
chamados espiritos fortes da idade
moderna e da contemporanea, que, sem
paz, sem crencas, sem rumo e sem guia,
vivem no trovelinho das perplexidades e
das incertezas, como leve palha levada
pelo tufo".27
No entanto, ao mesmo tempo em que acusa a imponderao de
crticos austeros do antigo em favor do novo, Dias louva o progresso
trazido pelos novos tempos. No esteio de uma teleologia, ele fala de
uma propenso do homem ao progresso, mas intercede em favor da
manuteno de traos fundamentais do passado tradicional. assim
que todo um processo de transformaes obedece a uma dialtica
peculiar, cuja sntese a nova cidade moderna e civilizada que une
os povos em torno da religio e da honestidade, devolvendo-lhes o
acalanto dos tempos ureos, e eliminando a doena, na fonte
inesgotvel de natureza benevolente e agradvel. Dessa maneira, o
novo bem vindo, porque:
"(...) h sempre de acompanhar aos antigos
habitantes do Curral d'El Rei, ou Bello
Horizonte, eterna e saudosa lembrana de
seu simples e modesto, mas pictoresco e
poetico arraial, to rapidamente
methamorphoseado em primeira cidade do
Estado".28
Alis noo de metamorfose ponto nevrlgico do raciocnio de
sntese harmnica que identificamos em Dias. Aquilo que
metamorfoseia pressupe permanncia em alguma instncia: h um
processo latente de transformao, mas o essencial permanece.
Assim, a nova capital no se faz revelia do velho arraial, tampouco
em detrimento dele, mas nele e a partir dele. A natureza e a
27 Ibid. p. 39. 28 Ibid. p. 34.
-
26
tradicional cultura local somam-se perfeitamente aos elementos da
modernidade, concorrendo todos para o casamento perfeito entre
presente e passado.
A cidade, personagem central da trama, encarnaria, pois, esse perfil
do equilbrio e da conciliao, e a magia que provm de arrumaes
da natureza reproduz-se entre os homens. Os habitantes da cidade
passam a ser todos movidos pelo mesmo intento e pela mesma
satisfao. Ao transcorrerem-se as cerimnias de sagrao das
pedras fundamentais,
"(...) ao som do hymno nacional, (...) um
exemplar da constituio federal, idem da
estadoal, jornaes do dia, moedas e outros
objectos que alguns circundantes
offereceram (...) foram collocados em linda
caixa de veludo azul celeste pelo exm.
Presidente do Estado, e nella fechados pelo
exm. chefe da comisso. Metida essa caixa
em outra de madeira tosca, foi tudo assim
lanado na cavidade quadrangular da pedra
[fundamental] para esse fim preparada e
disposta. Rodada sobre esta, outra, que
devia servir de tampo, foram ambas
cosidas argamassa e depois selladas em
cruz com gua benta por ns, como
parocho da frequezia".29
Essa passagem sugere que os sonhos e os objetivos de arquitetos,
engenheiros e autoridades pblicas misturavam-se sem o menor
disparate aos de homens e mulheres dali e d'alhures. A cidade na
letra de Dias tornara-se fruto de um projeto nico, decorrncia do
desejo daqueles que a projetaram, mas tambm, e na mesma
medida, daqueles que foram expulsos do centro do arraial e que
serviram para levantar os prdios e abrir as avenidas.
29 Ibid. p. 102.
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27
Neste mesmo sentido Dias encerra a sua obra afanando a
metamorfose material que foi o processo de construo da nova
capital, fazendo votos para que a mesma se desse no mbito social e
moral:
"Belo Horizonte hoje um contraste de
velharias e novidades (...). no diria mal
quem [a] comparasse com o firmamento
semeado de muitas estrelas, que vao se
apagando e desaparecendo ante o brilho
das de maior grandeza (...) nada mais
belo, mais potico e mais recreativo do que
a observao atenciosa desta sublime
metamorfose material. Praza aos cus que
sublime, potica e bela seja tambm a
metamorfose social e moral! (...) Quem
pensaria (...) que o velho, pobre, humilde e
decadente Curral d'El Rei havia de, em tao
rpido voo, elevar-se altura em que hoje o
vemos (...) tendo diante de si um futuro tao
risonho e brilhante".30
Essas duas passagens do captulo XXX, "Concluso", so ilustrativas
de tudo que falamos at aqui. Dias se mostra preocupado com o
futuro cultural da cidade e a entende como um desdobramento da
histria de Curral, que sai triunfante da decadncia, lanando-se na
direo de novos tempos ureos.
Outros textos da poca apontam para o carter contraditrio daquela
realidade, em que os projetos de modernidade, necessariamente
pautados no discurso da igualdade e da justia social, prprios de um
regime republicano e democrtico, se debatem a todo o momento
com vazios e sofrimento.
30 Ibid. p. 102.
-
28
"Em 1897 a coisa era bem diferente. Lembro-me perfeitamente da
minha chegada o ingnuo 'farwest' de Curral d'El Rei. Eu vinha da
corte pacfica de Ouro Preto, como os meus bas e a minha jovem
esposa, envolvido na 'pousse' burocrtica. Custei a me acostumar
com a febre diurna das derrubadas e construes, e a zueira noturna
das brigas entremeadas de furtos que o 'sheriff' major Lopes punia
severamente. Eu vagava pelas ruas em ainda virgens de casas
procura de um caf inencontrvel, enquanto italianos suarentos se
comprimiam porta da farmcia do meu mestre Tefilo Lage,
disputando limonadas purgantes que, quanto mais se fabricavam,
mais se vendiam".31
Esse depoimento reproduz claramente a fala de um membro da elite
burocrtica ouro-pretana injuriada pela mudana (forada) para a
nova capital, da compreendermos o seu esforo por deturpar a
imagem do lugar. Mas justamente esse tipo de discurso, muito
diverso do de Dias, que vem confirmar o carter diverso da prpria
cidade, e da realidade mesma do local, que no parece to
harmnica como colocada pelo reverendo.
Monteiro Lobato, em visita cidade dos primeiros tempos certa vez
escreveu: "Existe uma escassez de gente pelas ruas largussimas, a
cidade semi-construda, quase que apenas desenhada a tijolo, no
cho, um prdio aqui outro l, tudo semi-feito - e a tudo envolver um
p finssimo e finissimamente irritante (...)" (apud JULIO, 1996: 62-
63). E, de modo a corroborar a observao de Lobato, o cronista
Joo do Fbio Luiz Rigueira SIMO
Uma identidade para a cidade: A crnica jornalstica de Padre
Francisco Martins Dias e a construo de Belo Horizonte no final do
sculo XIX Curral, no mesmo Dirio de Minas lembrava o antigo
apelido da promissora Belo Horizonte: Poeirpolis!32
31 DIARIO DE MINAS, Belo Horizonte, 1927, 11 dez, p. 1. 32 CURRAL, Joo do. A propsito do aniversrio da Capital. Dirio de Minas, Belo Horizonte, 13 dez. 1927, p. 1, apud MAGALHES, 1989:85.
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29
Ora, como deve ter ficado claro, no acreditamos absolutamente que
a construo da nova capital tenha se dado sem amargura e sem
conflito. A coexistncia de entusiasmos e consternaes constituem o
caracterstico intrnseco da sinuosa e ousada empreitada de Aaro
Reis e seus tcnicos. Mas a existncia de textos como o de Dias, que
tentam dar sentido s coisas obscurecendo essa complexidade,
sintomtica. Lembre-se que a obra fora publicada primeiramente no
peridico Bello Horizonte, na forma de folhetinescos. Dessa maneira
a podemos considerar uma difusora de representaes sobre a
cidade que de uma maneira ou de outra circulou entre o pblico da
poca. Que leituras se fizeram dela e a que grupos ela interessava?
Como essas representaes, que forjam uma verdadeira identidade
para a cidade, repercutem e mesmo refletem as aes dos cidados?
Uma grande preocupao de Chartier ao tratar da histria cultural
com a estreita relao existente entre prtica e representao.
Citando Mauss, Chartier salienta: "mesmo as representaes
coletivas mais elevadas s tm uma existncia, isto , s o so
verdadeiramente a partir do momento em que comandam atos"
(CHARTIER, 1990: 17). Da indagarmos centralmente sobre o lugar
histrico de um discurso como o de Padre Francisco Martins Dias na
constituio do espao urbano e das relaes de trabalho e poder.
Em seu estudo sobre a cultura das ruas do Rio de Janeiro, Mnica
Velloso trabalha com cronistas e caricaturistas, tomando-os como
olhares sensveis e ao mesmo tempo participantes de seu tempo e de
sua cidade. Como escreve a autora, "as representaes [difundidas,
seno muitas vezes at moldadas e construdas mesmo pelo trabalho
dos cronistas e caricaturistas] no refiguram apenas o mundo social,
mas o constituem enquanto tal [por isso] (...) a crnica constitui-se em
fonte indispensvel para a reflexo historiogrfica" (VELLOSO, 2004:
17). Dias pode ser aproximado da imagem do cronista de Velloso na
exata medida em que se constitui em sujeito histrico do processo de
construo da cidade de Belo Horizonte, preocupado com a
construo de traos identitrios que dessem uma histria e um
sentido para a nova cidade e para o seu povo. Como os cronistas
fluminenses, Dias criou representaes reveladoras de um perodo
complexo e contraditrio, mas cuidou, como insistimos mais de uma
-
30
vez, para que as ambivalncias se tornassem amlgamas leves do
equilbrio e da harmonia.
No entendemos que esse nosso enfoque seja o mais importante
para a anlise do espao urbano, e sabemos das nossas limitaes
quando optamos por privilegiar certos preceitos tericos e
metodolgicos. claro que damos aqui um tratamento cultural ao
nosso objeto, e a prpria trajetria desse estudo, somada opo por
determinados recortes na obra de Dias so a marca de nossa
circunscrio. Bernard Lepetit lembra-nos que a cidade um objeto
complexo que, conforme a natureza intricada das relaes prticas e
simblicas que travam os seus habitantes, demanda
necessariamente a interdisciplinaridade (LEPETIT, 2001). Dessa
maneira esperamos que esse artigo se justifique pelas outras
questes que possa suscitar, e pelas outras possibilidades de anlise
e interpretao que possa permitir, dentro dos domnios da histria e
fora dele.
Referncias Bibliogrficas:
CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e
representaes. 1990. Lisboa, Difel.
DIAS, Francisco Martins. Traos Histricos e Descriptivos de Bello
Horizonte. 1897. Belo Horizonte.
DUTRA, Eliana de Freitas. BH: Horizontes Histricos. 1996. Belo
Horizonte, C/Arte.
LEPETIT, Bernard. Por uma nova histria urbana. 2001. So Paulo,
EDUSP.
MAGALHES, Beatriz de Almeida. Belo Horizonte, um espao para a
repblica. 1989. Belo Horizonte, Ed. UFMG.
TOPALOV, Christian. Da questo social aos problemas urbanos: os
reformadores e a populao das metrpoles em princpios do sculo
XX. In: RIBEIRO, Luiz Csar de Queiroz e PECHMAN, Robert.
-
REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais
31
Cidade, povo e nao: gnese do urbanismo moderno. 1996. Rio de
Janeiro, Civilizao Brasileira.
VELLOSO, Mnica Pimenta. A cultura das ruas no Rio de Janeiro
(1900 1930): mediaes, linguagens e espao. 2004. Rio de Janeiro,
Edies Casa de Rui Barbosa.
Recebido em agosto/2006. Aprovado em setembro/2006.
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32
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33
A CONSTRUO DO ESTADO E DA
NAO NO BRASIL: IDENTIDADES POLTICAS
E IMPRENSA PERIDICA NO PERODO REGENCIAL
(1831-1840)
Ariel Feldman UFPR - Brasil
Resumo:
O objetivo deste artigo analisar as relaes entre a formao do Estado e a construo da identidade nacional brasileira durante as regncias (1831-1840), sendo que a fonte utilizada foi o jornal O Carapuceiro, publicado no Recife entre 1832 e 1842. Visto que a identidade nacional no estava consolidada na dcada de 1830, observou- se como, em dois contextos distintos, ocorreu a consolidao desta. Primeiramente, empreendeu-se a anlise dos anos subseqentes abdicao de D. Pedro I (1831), quando a identidade brasileira esteve contraposta lusitana. Em seguida, foram analisados os anos finais do perodo regencial, momento em que identidades regionalizadas pareciam se sobrepor nacional. Palavras-chave: Identidade nacional brasileira - Perodo Regencial - impressa peridica.
Abstract:
The scope of this article is to analise the relathionship between the formation of the State and the construction of the Brazilian national identity during the regencies (1831-1840). The documentation used was the periodic O Carapuceiro, published in Recife between 1832 and 1842. Accepted that a national identity wasn't consolidated in the decade of 1830, we investigate how, in two different contextures, took place this consolidation. First, we analise the subsequent years of the imperator's abdication (1831), when a Brazilian identity was put against a Lusitanian. Second, we examine the last years of the regencial period, when regional identities menace to superpose the national. Key-words: Brazilian national identity - Regencial Period - periodic press
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34
Introduo
Este artigo tem como objetivo analisar as relaes entre a formao
do Estado e a construo da identidade nacional brasileira durante o
perodo das regncias (1831-1840). Trata-se de uma poca que foi
crucial para a configurao do Brasil como Estado nacional.
Demonstraremos como a identidade nacional brasileira ainda no
estava consolidada na dcada de 1830, e que o processo de sua
consolidao se deu paralelamente afirmao poltica do Estado
imperial unitrio, que ento corria srios riscos de fragmentao. A
fonte utilizada foi o jornal O Carapuceiro, publicado no Recife entre
1832 e 1842. Como era comum na poca, era um jornal de autor.
Apenas uma pessoa o escrevia: o Padre Miguel do Sacramento
Lopes Gama. E o fato de ter durado dez anos, indica que O
Carapuceiro foi um sucesso de pblico. Nos anos que sucederam a
independncia, a maioria dos peridicos durava algumas semanas,
alguns meses talvez. Rarssimas gazetas completavam um ano de
existncia. E por que O Carapuceiro durou tanto? Por que O
Carapuceiro caiu assim nas graas do leitor?
Era um jornal bem humorado, escrito em linguagem coloquial. Na
dcada de 1830, todos os jornais versavam sobre poltica e eram
panfletrios, doutrinrios. Muitos tinham uma linguagem violenta e
agrediam verbalmente os opositores. (SODR, 1966: 139-141). O
Carapuceiro fez uma outra proposta: no falaria de poltica, mas de
costumes. O subttulo do jornal era "Peridico sempre moral, e s per
accidens poltico". Lopes Gama pretendia criticar os costumes que
considerava nocivos. Criticou os gamenhos, que eram aqueles que
passavam o dia inteiro se embonecando para namorar (O
Carapuceiro n.11, 7/71832). Criticou os exageros da dana popular
"Bumba meu boi", dizendo que era uma dana brbara, que no era
uma dana prpria de uma civilizao adiantada (O Carapuceiro n. 2,
11/1/1840). Criticou os exageros gastronmicos da poca, como o
costume de fazer feijoada (MELLO A., 1996: 312-316). Suas crticas
eram abertas, para todas as pessoas. Mas s vestia a carapua
quem queria.
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35
Na primeira pgina do jornal havia um desenho de uma loja de
chapeis, no qual um vendedor (provavelmente a representao do
prprio Lopes Gama) oferecia carapuas de todos os tipos para um
cliente. Logo abaixo deste desenho, O Carapuceiro ostentou a frase
do poeta romano Marcial: "Guardarei nessa folha as regras boas, que
dos vcios falar, no das pessoas". Lopes Gama, depois do sucesso
de seu jornal, passou a ser chamado Padre Carapuceiro. E esse
apelido ficou para a histria, pois existe hoje, no Recife, a Rua Padre
Carapuceiro.
E, durante cerca de mais de 100 anos, folcloristas e historiadores
consideraram Lopes Gama um grande crtico de costumes. Cmara
Cascudo, por exemplo, disse que Lopes Gama foi um grande
estudioso do folclore brasileiro da primeira metade do sculo XIX
(CASCUDO, 2003[1943]: 186-187). Podemos citar outro exemplo,
mais recente. Evaldo Cabral de Mello publicou uma coletnea de
artigos do jornal O Carapuceiro, em 1996. Mas, na coletnea s
foram contemplados artigos de feitio "costumbrista", isto , que
tratavam de costumes. Evaldo Cabral de Mello acredita que esta a
caracterstica mais marcante dessa documentao (MELLO E.,
1996:7-26).
Para este artigo, criticamos este enfoque e propomos uma
abordagem diferenciada: enxergar O Carapuceiro como um peridico
poltico. Lopes Gama, ao escrever este clebre jornal, estava repleto
de intenes polticas. At a crtica de costumes tinha uma inteno
poltica, pois foi capaz de tornar O Carapuceiro um jornal popular. A
stira e o bom humor tornaram esta uma das gazetas mais lidas em
Pernambuco durante a dcada de 1830. Lopes Gama afirmava que
seu peridico era Moral, pois criticava os maus costumes, e exaltava
os bons costumes. Os demais peridicos no eram morais, pois
tratavam de poltica, e externavam os interesses pessoais e polticos
dos prprios redatores. Dessa forma o Padre Carapuceiro angariou
para si um pblico cativo e colocou seu jornal num nvel superior aos
demais. Tratava-se de um peridico moral, no poltico (FELDMAN,
2006a).
Cabe pontuar que Lopes Gama viveu de 1793 a 1852. Ele vivenciou o
perodo em que o Brasil se consolidou como Estado e como nao.
Ele foi um ator que observou, participou e emitiu sua opinio acerca
-
36
deste processo. Cabe, pois, refletir brevemente sobre estes dois
conceitos. Nao um conceito moderno. S possvel pensar em
naes e nacionalismos a partir do sculo XIX, poca em que
emergiram as naes europias e americanas, inclusive a brasileira.
Para Hobsbawm, os nacionalismos que deram origem formao
dos Estados nacionais, ou seja, o sentimento nacional anterior
nao como corpo poltico. (HOBSBAWM, 1990: 17-19). No entanto,
este processo se deu no Brasil de maneira singular. No havia uma
"comunidade politicamente imaginada" no momento da
independncia (ANDERSON, 1999: 14). O vocbulo ptria, para os
deputados brasileiros presentes nas cortes constituintes de Lisboa
(1821-22), era seu lugar de origem. Este no era o Brasil, e sim a
comunidade que os elegeu - a Provncia. A nao da qual esses
deputados se sentiam parte seria a portuguesa. O Brasil se
enquadraria, no discurso desses deputados s vsperas da
independncia, apenas no conceito de pas. Assim, So Paulo e
Bahia seriam suas ptrias. O Brasil seu pas. Portugal sua nao
(BERBEL, 1999:193). No era possvel pensar nem em um Estado,
nem em uma nao brasileira poca da independncia (JANCS;
PIMENTA, 2000). As estruturas polticas do imprio tiveram que se
consolidar internamente, at atravs da fora, para ento se poder
pensar em uma possvel conscincia nacional. Os movimentos
polticos desencadeados na primeira metade do sculo XIX so
sintomticos, e demonstram como o processo de construo da
nao foi lento e desigual no Brasil.
Sendo assim, a historiografia brasileira contempornea tende a
enxergar a primeira metade do sculo XIX como o perodo da difcil
consolidao do Estado e, conseqentemente, da nao brasileira.
Tal consolidao se constituiu, pois, num processo altamente
complexo, no qual identidades polticas se entrelaaram e
coexistiram. Analisaremos, neste artigo, dois momentos distintos da
dcada de 1830. No incio da dcada, em 1831, D. Pedro I abdica de
seu trono e retorna para Portugal, iniciando ali uma intensa batalha
pela sucesso dinstica contra seu irmo D. Miguel. O Brasil, neste
contexto, passa por um processo de nacionalizao dos quadros
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37
dirigentes do Estado e a identidade brasileira , assim, contraposta e
polarizada identidade lusitana, visto que a restaurao do ex-
imperador - mais do que nunca vinculado a grupos lusos - ainda era
um projeto altamente vivel. Analisaremos as peculiaridades do
discurso de Lopes Gama neste perodo crucial para a nacionalizao
do Estado brasileiro.
No final da dcada, D. Pedro I j havia falecido, e outras eram as
ameaas soberania nacional. Revoltas localizadas em diversas
provncias faziam com que a integridade do imprio fosse algo
incerto: a Sabinada em Salvador (1837-38), a Cabanagem no Par
(1834-40), a Revoluo Farroupilha no extremo sul (1835-45) e a
Balaiada no Maranho (1838-41). Identidades polticas regionais se
chocavam, dessa forma, com uma identidade mais ampla, a
identidade nacional. Verificaremos de que forma O Carapuceiro
procurou reforar a segunda em relao primeira.
"A sagrada causa da liberdade brasileira"
J em fins de 1831, um levante que pretendia restaurar o trono de D.
Pedro I ocorrera no serto cearense, afetando tambm regies do
interior de Pernambuco. Seu lder era Joaquim Pinto Madeira, um
proeminente chefe militar da vila do Jardim, serto do Cear, numa
regio denominada Cariri. Durante a Confederao do Equador
(1824) ajudou as foras imperiais, derrotando os revolucionrios da
vila de Crato, cidade vizinha e rival. Aps esse ato de bravura, foi
agraciado pelo Imperador e promovido ao posto de Coronel, alm de
ter sido nomeado Comandante Geral das Armas do Crato e do
Jardim, por ato assinado em novembro de 1824. Assim, a adeso ao
projeto de D. Pedro I e Jos Bonifcio rendeu a Pinto Madeira o
poder poltico da Regio do Cariri, e uma intensa rivalidade com
grandes senhores de terra da vila do Crato foi gestada. Pinto Madeira
foi um dos membros da Coluna do Trono e do Altar em pleno serto
cearense, sociedade secreta absolutista fundada em fins da dcada
de 1820 (alguns dizem que por D. Pedro I) que tinha como objetivo
central fazer o Imperador governar sem o trambolho, ou seja, a
constituio. Aps a abdicao de D. Pedro I, no entanto, ele perdeu
todas as honrarias concedidas pelo Imperador.
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38
As rivalidades locais se reacenderam, e iniciaram-se embates no
Cariri. Com a ajuda do Padre Antonio Manuel de Souza, figura
extremamente carismtica, ele mobilizou uma milcia de sertanejos e
dominou grande parte do serto cearense em fins de 1831. O Padre
Antonio Manuel de Souza ficou conhecido como "benze-cacetes",
porque benzia os porretes daqueles pobres soldados camponeses
que no tinham armas melhores (BRITO, 1985: 27-36).
Misto de querelas entre grandes senhores locais, pobreza rural,
fanatismo religioso e questes polticas mais abrangentes, a rebelio
de Pinto Madeira se imbuiu de ideais restauradoras e chegou a
adentrar pelo serto pernambucano. O medo de um levante dos
colunas, como era chamados os membros da Coluna do Trono e do
Altar, ficou ainda maior no Recife. Vrias medidas institucionais foram
tomadas ao longo de todo o ano de 1831 e no incio de 1832, com o
intuito de enfraquecer as possveis aspiraes restauradoras em
Pernambuco. Sem falar no envio de tropas ao serto cearense para
ajudar no combate contra as milcias armadas com cacetes benzidos.
Em novembro de 1831, ocorreu um motim no Recife que ficou
conhecido como a Novembrada. Os rebeldes, que foram sitiados no
forte das Cinco Pontas e acabaram se rendendo, exigiam a
exonerao de todas as pessoas de origem lusitana das altas
patentes governativas (ANDRADE, 1971).
Mas, mesmo com todas as medidas preventivas, rebentou uma
ofensiva dos colunas sobre a cidade do Recife no dia 14 de abril de
1832: a Abrilada. Os lderes do levante eram trs oficiais do exrcito
depostos aps a abdicao do Imperador, ocorrida um ano antes.
Recife foi tomada durante trs dias. Aps ser debelada a rebelio
restauradora na capital, os lderes escaparam para o interior,
iniciando um combate de guerrilha que durou at a morte de D. Pedro
I, em 1835. Trata-se da Guerra dos Cabanos. A situao da Provncia
antes da Abrilada j era de alerta. Muitos suspeitavam de um contra-
ataque absolutista. Armamentos de pessoas vinculadas aos colunas
foram apreendidos. Casas de colunas foram revistadas. Pessoas
suspeitas foram retidas na capital sob vigilncia. Mas, segundo
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Manoel Correia de Andrade, "estas medidas preventivas, ao invs de
impedirem a ecloso do movimento restaurador, provocaram a
antecipao do mesmo, que rebentou em 14 de abril, no bairro do
Recife e repercutiu, logo aps, em Santo Anto". (ANDRADE, s.d.:
29-45; MOSHER, 2000a: 43-45)
E O Carapuceiro foi um dos peridicos, dentre muitos outros, que
militaram contra as empreitadas restauradoras. Os trs primeiros
anos de publicao desse jornal, 1832, 1833 e 1834, foram repletos
de artigos que pregaram contra o absolutismo. Se para Pinto Madeira
os "malvados liberais" eram os inimigos dos "bons fiis brasileiros",
para o Padre Carapuceiro as palavras "absolutismo", "colunas" e
"despotismo" se constituram nos plos negativos de seu discurso. As
pginas de O Carapuceiro formularam a idia de que "ser coluna
ser um mau brasileiro, ser um mau cidado". Lopes Gama realizou,
dessa maneira, um discurso que defendeu a completa nacionalizao
do Estado brasileiro. (O Carapuceiro, n. 19, 29/08/1832).
Deveria, assim, ser rigorosa e inclemente a punio daqueles que
compuseram os quadros da sociedade Colunas do Trono e do Altar:
"Nada de devassas tiradas por certos Desembargadores, to colunas,
to colunas e lusitanos quanto os outros" (Carapuceiro n. 3,
20/04/1832). Sua crtica se dirigiu dominao das altas
magistraturas exercida por membros ligados sociedade secreta
absolutista. Desde fins da dcada de 1820, grande parte dos
desembargadores do Tribunal da Relao de Pernambuco eram
colunas (CARVALHO, 2005). Lopes Gama escreveu, em maio de
1832, um artigo intitulado "No me quero comprometer". Ao no
acatar de prontido, durante a Novembrada, uma das exigncias dos
rebeldes sitiados no Forte das Cinco Pontas - a deposio imediata
de todos os portugueses de cargos governativos, inclusive a de
alguns desembargadores -, o governo da Provncia tomou uma das
atitudes mais reprovveis que poderia ter tomado: no se
comprometer. Lendo nas entrelinhas, captando o no-dito do
discurso, percebe-se qual era o comprometimento ao qual O
Carapuceiro estava se referindo: a nacionalizao do Estado. Ironizou
o Padre Carapuceiro dizendo que "h heri to ladino que fazendo
alguns servios de vaza coberta em favor dos Liberais, no deixa de
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os prestar da mesma forma aos colunistas, como navio que procura
segurar-se em duas amarras". E continuou:
"Outro funcionrio pblico; aparece uma ocasio de perigo: pede-
se-lhe que faa uma proclamao para animar os Povos, torce-se o
sujeitinho, entra a mastigar, e engolir em seco, pretexta a sua falta de
luzes (melhor fora dizer, de carter), est com muitas dores de
cabea; e assim vai-se moscando, l consigo, ou com alguma pessoa
muito da sua confiana, descobre, descobre o verdadeiro motivo, que
vem ser a fatal mxima "Eu no quero me comprometer"" (O
Carapuceiro n. 6, 02/06/1832).
No calor dos acontecimentos, o teor de sua crtica aos colunas
incorporou um vocabulrio agressivo e radical. No terceiro nmero de
O Carapuceiro, uma semana depois da Abrilada, o Padre
Carapuceiro dotou suas palavras de um tom enrgico: "Apesar de ter
dedicado este meu pequeno peridico to somente Moral; todavia
como disse, que per accidens trataria de Poltica, no devo passar
por alto o horrvel atentado da faco mais insolente que tem
aparecido no Brasil, quero dizer, a rebelio dos ingratos colunas".
Nesse nmero, escrito depois que o levante j havia sido debelado,
chamou D. Pedro I de tirano repetidas vezes. Tambm criticou a
fraqueza das medidas preventivas tomadas pelo governo provincial.
Por fim, contou a histria de um dos lderes da Abrilada, Jos Martins,
que fugiu para a Inglaterra "depois da tresloucada abdicao de D.
Pedro" e, voltando a Pernambuco, "meteu- se nos matos e comeou
a ganhar partido, dizendo com grande empavonamento a uns, a
outros com lbia e mil embustes, que o ex- Imperador o encarregara
de revoltar Pernambuco, e reintegr-lo a ele D. Pedro, no Trono do
Brasil". Em seguida, fez uma narrativa cmica da Abrilada,
comparando ironicamente seus lderes a grandes figuras militares da
histria. O "martinzinho", que seria um estrategista melhor do que
Napoleo, entraria pelo leste. Pinto Madeira, um "Gengisco dos
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Cariris", entraria pelo centro. E, por fim, D. Pedro, "pela barra dentro,
como ns por nossas casas" (O Carapuceiro n. 3, 20/4/1832).33
Alis, no foi s nas pginas de O Carapuceiro que Lopes Gama
ironizou os colunas. Fazer chacota de tal faco poltica foi atividade
constante de sua vida em 1832, ano em que publicou "A Columeida -
poema heri-cmico em quatro cantos". Trata-se de uma stira,
ridicularizando os absolutistas pernambucanos, que ficaram
desamparados aps a abdicao. Houve at uma resposta escrita por
um coluna, o Padre Marinho Falco, intitulada "Migueleida", em
aluso ao primeiro nome do Padre Carapuceiro. (DELGADO, 1958:
97-100; COSTA, 1981: 725).
Ao lado da ironia, um dos traos mais marcantes de O Carapuceiro, a
agressividade muitas vezes esteve presente nas crticas direcionadas
aos colunas, o que comprova que a linguagem empregada por Lopes
Gama, apesar de peculiar, no estava desvinculada do estilo hostil
comumente empregado pelos jornalistas do perodo. Anlises
relacionam a violncia verbal dos peridicos no incio das regncias
com a violncia das lutas polticas do tempo, e, como podemos
perceber, o peridico aqui em analise no esteve alheio a esse
contexto. Frases encontradas em O Carapuceiro referindo-se aos
colunas como "os malditos preparavam-se para o rompimento" ou "os
infames foram batidos e destroados em menos de 24 horas"
exemplificam essa linguagem agressiva que caracterizou a imprensa
de incio da dcada de 1830 (SODR, 1966: 143-144). Ainda falando
sobre a Abrilada, Lopes Gama diz:
"A generosidade mal assente do Governo, a desassisada tolerncia
dos liberais no foram capazes de desarmar o dio desses perversos
escravos da Sagrada Causa da Liberdade Brasileira. Inimigos desta
no tempo do poderio do Dspota, que felizmente deixou-nos,
conjurados para volver-nos ao jugo do absolutismo Portugus, a
queda do Tirano, o desbarato de suas tentativas no foram bastantes
a quebrantar-lhes os nimos, e porfiosos continuaro em seus planos
infernais, at que desmascararam-se de todo, e deram o grito da
33 Francisco Jos Martins foi um Coronel deposto de seu cargo logo
aps a abdicao e um dos lderes da Abrilada.
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revolta na noite do dia 14 do corrente ms de Abril" (O Carapuceiro n.
3, 20/04/1832).
Outro aspecto deve ser ressaltado no discurso do Padre
Carapuceiro: elementos antilusitanos. A historiografia recente tem-se
debruado muito pouco neste aspecto que teve enorme relevncia na
consolidao do Estado-nao no Brasil. Note-se que as
manifestaes lusofbicas tm uma temporalidade precisa e sempre
vieram articuladas a interesses polticos bem definidos. Mosher, ao
analisar a lusofobia em Pernambuco no sculo XIX, periodiza sua
pesquisa entre 1822 e 1850. No entanto, em sua anlise, no h
provas contundentes que demonstrem o aparecimento do fenmeno
antilusitano de forma significativa entre 1824 e 1830, entre a
Confederao do Equador e agravamento da crise do primeiro
reinado. Esse autor acabou, ento, por dar nfase apenas ao perodo
da Revoluo Praieira (1848). Porm, o perodo ps-abdicao em
Pernambuco frtil para o estudo de tal tema. E, assim como o
antilusitanismo presente na Revoluo Praieira esteve diretamente
associado aos interesses polticos dos liberais praieiros, como bem
demonstra Mosher, impossvel dissociar o antilusitanismo do incio
das regncias do processo de nacionalizao do Estado, quando
vrias pessoas tachadas de lusitanas foram bruscamente substitudas
por nacionais nos quadros dirigentes da provncia (MOSHER, 2000b),
Disse Lopes Gama em abril de 1832:
"Esses Quixotes so frteis em recursos. Quem poder pintar o
entusiasmo, o ar autoritrio que tomaram os nossos Lusitanos! De
balde escritores liberais, e neste nmero estou eu, como notrio, h
muito se esforam por aplacar a rivalidade entre brasileiros natos e
adotivos: de balde temos bradado a estes, que se no metam com
Brasileiros degenerados, ou colunas, que tratem de seus negcios,
de ganhar a vida, e nada mais: de balde o Governo do Brasil, mais
humano que acautelado, continuou dar soldo e ordenado a essa
gente depois do que fizeram durante a tirania de D. Pedro: de balde
em fim at lhes confiou armas para a defesa comum; os ingratos tm-
nos um rancor implacvel, nada os move, nada os convence, nada os
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irmana conosco. Se castigamos a sua ousadia, humildam-se
exteriormente, escondem-se; mas no cessam de aborrecer-nos; se
os abraamos, julgam-nos fracos, atrevem-se nos e querem
suplantar-nos. No h fora moral que tire do estpido bestunto, que
ns, filhos do Brasil, somos meros colonos do caduco Portugal, que
isto por c muito seu e a eles cabe governar-nos per omnia saecula
saeculorum" (O Carapuceiro n. 3, 20/04/1832).
Em seguida, fez uma ressalva: existiam brasileiros adotivos
extremamente honrados causa da Ptria. Mas, logo aps, sua fala
novamente refluiu: "porm o nmero destes mui diminuto
comparativamente ao grande todo". Percebe-se nessa fala a
elaborao de categorias sociais: "brasileiros natos", "brasileiros
adotivos",
"brasileiros degenerados" ou simplesmente "lusos". Essas
diferenciaes so deveras pertinentes para compreender de que
maneira essas rivalidades influenciaram de fato as relaes sociais e
polticas. Frei Caneca procurou, em 1822, amainar as rivalidades que
se acirravam entre os pernambucanos de nascimento e os europeus
que fixaram residncia na provncia, defendendo que todos eram
cidados da mesma ptria, mesmo existindo categorias as mais
diversas. Era uma tentativa de unificar uma identidade ainda
inexistente e criar um sentimento de pertencimento, algo
indispensvel para a construo de um Estado (LYRA, 1998; SILVA,
2005). Nos idos de 1832, Lopes Gama fez diferente, pois procurou
distinguir os "brasileiro adotivos" dos "degenerados". Sua inteno
no era, tal qual a de Caneca, apagar o incndio dessa "rivalidade
entre portugueses europeus e os lusos indgenas do mesmo Brasil"
que "vai minando e solapando, quanto pode, as bases da sociedade".
Queria ele adicionar mais combustvel a essa fogueira.
"No posso ser indiferente ao esprito de concrdia",- disse Lopes
Gama - "que se difundiu por todos os brasileiros. Todos se
abraaram, esqueceram as rivalidades, no houveram mais
moderados, nem exaltados; tudo um s sentimento, tudo
brasileiro, tudo quer salvar a Ptria, defender a Liberdade, acabar
com os infames colunistas". Uma "causa nacional", como tambm
uma identidade, eram reivindicadas (O Carapuceiro n. 3, 20/04/1832).
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A abdicao demarcou o inicio de um processo de nacionalizao do
Estado brasileiro. Esse processo, porm, no se deu de forma
pacfica, e lutas ocorreram em vrias esferas: na militar, na poltica e
no "reino da opinio" (MOREL, 2005: 200-222). A nacionalizao do
exrcito e a criao da Guarda Nacional foram aspectos centrais
nesse processo (RODRIGUES, 2006; CASTRO, 1977: 16-26), bem
como a nacionalizao dos cargos dentro do executivo, do judicirio e
do legislativo. E a palavra impressa foi um elemento que esteve
altamente vinculado a toda essa transformao dentro das
instituies brasileiras.
A identidade nacional contra "bairrismo"
No incio das regncias, Lopes Gama colocou num primeiro plano a
defesa da soberania da nao, e relegou a defesa da soberania
monrquica e da lealdade dinstica a um plano secundrio. A
conjuntura da primeira metade da dcada de 1830 no permitia que a
defesa do princpio monrquico fosse colocada em destaque, pois
Pedro II contava com menos de 10 anos de idade, e, sendo assim,
defender tal princpio poderia colocar em cheque a soberania da
nao. Elaborar um discurso monarquista nesse perodo significaria
uma associao imediata com o grupo restaurador. E esta
associao, no entender do Padre Carapuceiro, era oposta
"sagrada causa da liberdade" brasileira.
Nos anos finais do Perodo Regencial, no entanto, j era possvel
colocar esses dois princpios em um mesmo plano, ou seja, conferir a
mesma importncia defesa da soberania da nao em relao
defesa da soberania monrquica. E esse foi o tom do discurso de
Lopes Gama na poca do reaparecimento de O Carapuceiro a partir
de 1837. Defendeu a soberania da nao nos seguintes termos: o
Imprio uno e indivisvel. J a defesa da soberania monrquica e da
lealdade dinstica foi empreendida na medida em que o nico
sistema considerado capaz de promover a manuteno da unidade
da nao era a monarquia constitucional.
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Mas a monarquia no era o nico elemento que, para Lopes Gama,
poderia assegurar a integridade do Imprio. Em um artigo de maio de
1839, "O Bairrismo", elaborou vrias propostas que poderiam auxiliar
na manuteno da unidade. Nesse artigo dissertou sobre um
vocbulo que no era contemplado pelos dicionrios, mas que todos
sabiam o que significava. Definiu o "bairrismo" como "o excessivo
amor, a indiscreta predileo pelas cousas, e pessoas da localidade,
em que nascemos". Para ele, o "bairrismo" era um "vcio, que nos
pode levar s mais terrveis desgraas":
"Esta paixo vil, baixa, e ignominiosa no deve ser confundida com o
nobre amor da Ptria, amor, que quando bem regulado, o
manancial das mais hericas virtudes. A nossa Ptria pois o Brasil,
e todos os Brasileiros constituem uma s, e a mesma famlia" (O
Carapuceiro n. 20, 30/05/1839).
Esse trecho demonstra muito bem alguns aspectos que j foram aqui
tratados. Lopes Gama criticava a antiga "ptria" e o "patriotismo" da
poca da independncia, e redefinia essas noes. O vocbulo
"ptria" e a qualidade de ser "patriota" eram referncias ao Brasil, e
no ao local de nascimento, ou seja, s provncias. Lopes Gama
evocou, assim, uma identidade nacional, caracterizando-a como o
"manancial das hericas virtudes". O contrrio disso, o "bairrismo",
era um vcio. O Carapuceiro, sempre qualificou a Confederao do
Equador como uma "quixotada", e construiu, dessa forma, uma
memria que valorizava a unidade do Imprio, fazendo um
contraponto a uma memria de carter regionalista que poderia
mitificar a rebeldia pernambucana frente ao Imperador (FELDMAN,
2006b). Quando caracterizou o "bairrismo" como uma "paixo vil",
novamente se voltou contra a exacerbao das identidades regionais.
Formulou, assim, uma identidade brasileira que deveria estar sempre
em destaque, sempre em um primeiro plano, sempre em evidncia. A
identidade nacional deveria se sobrepor identidade regional, o
"amor ptria" deveria se sobrepor ao "infernal bairrismo", para no
desunir a "Grande Famlia Brasileira".
Mas ele no defendeu a unidade do Imprio apenas atravs de um
discurso que transitava no abstrato campo das identidades. No
mesmo artigo, props algumas medidas polticas concretas que
poderiam auxiliar na unio da "Grande Famlia Brasileira". Criticou a
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idia, sempre em voga, que propugnava que os no nascidos em
Pernambuco deveriam ser proibidos de exercer alguns direitos
polticos nessa provncia, mesmo sendo domicilirios desta e ali
vivendo casados. Frei Caneca j defendera semelhante proposio.
Estava Lopes Gama se referindo ao direito de ser nomeado pelo
governo provincial para o exerccio de um emprego pblico e ao
direito de participar das eleies populares. Questionou Lopes Gama:
"por que motivo ho de ser excludos, se o brasileiro em qualquer
Provncia do Brasil, em que habite, est em sua ptria?" Pretendia
com isso acabar com as "rivalidades, que de dia em dia vo tomando
galga entre as Provncias do Imprio". Props tambm que, para
"conservar a to precisa unio entre as Provncias, e para melhor
desempenho das funes pblicas convinha, que na escolha dos
Presidentes se revezassem os Brasileiros das diferentes Provncias,
isto ; que o Baiano viesse ser Presidente em Pernambuco, o
Pernambucano fosse para a Bahia; o Maranhense para a Paraba, o
Paraibano para o Maranho, etc. etc." (O Carapuceiro n. 20,
30/05/1839).
Observe-se que esta proposta, feita por Lopes Gama, foi colocada
em prtica a partir do segundo reinado, e que Jos Murilo de
Carvalho, tentando elucidar quais foram as condies que permitiram
a construo do Imprio unitrio, conferiu a essa prtica um peso
relevante. Para Carvalho, a circulao dos membros da elite imperial
por todo o territrio do Brasil foi um dos fatores determinantes para a
manuteno da unidade. Analisando a carreira dos polticos no
interior desta elite, e verificando qual foi a trajetria daqueles que
galgaram at os cargos mais altos da burocracia imperial, como, por
exemplo, uma pasta ministerial ou uma cadeira dentro do Conselho
de Estado, ele constatou que a funo de Presidente de Provncia foi
um dos inevitveis degraus que deveriam ser ultrapassados para se
obter esta ascenso poltica. E, na maioria das vezes, a carreira
desses polticos foi marcada pelo exerccio de vrias presidncias,
nas mais diversas provncias. Era uma prtica semelhante adotada
pela coroa portuguesa nos tempos coloniais, quando os magistrados
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circulavam por todo o Imprio - na frica, na Amrica, na sia e
tambm no Reino (CARVALHO, 1996b: 107-127).
A grande lacuna na anlise desse socilogo , no entanto, a falta de
uma periodizao precisa. Ele no indica a partir de quando comeou
a ocorrer essa intensa circulao entre os presidentes de provncia.
E, como leva a crer o tom do discurso de Lopes Gama, essa prtica
ainda no era recorrente durante o perodo das regncias. Em
Pernambuco, durante o perodo das regncias, muitos presidentes
eram nascidos na prpria provncia. Caberia empreender uma anlise
que tivesse como eixo periodizar esta prtica e tambm verificar se
ela realmente ainda no era levada a cabo durante as regncias.
Seria interessante verificar quais foram os formuladores desta prtica.
Ser que o discurso de Lopes Gama exerceu alguma influncia na
consolidao deste fenmeno? De que maneira, onde e quando
essas idias foram discutidas? Ser que o Padre Carapuceiro,
quando Deputado Geral entre 1840 e 1841, foi um agente atuante no
seio desse processo?34
* * *
Observamos, neste breve artigo, que inexistia uma identidade
nacional brasileira de tipo poltico poca da independncia. Esta
identidade teve que ser construda, junto com o Estado imperial, e
este processo esteve repleto de disputas e peculiaridades. No
contexto ps-abdicao, a soberania nacional brasileira esteve
seriamente ameaada pelas intenes restauradoras. A afirmao e a
exaltao da identidade brasileira, em oposio identidade lusitana,
foi elemento crucial no processo de nacionalizao do Estado. No fim
do perodo das regncias, a unidade da nao estava duramente
ameaada, e as identidades regionais ainda se sobrepunham, em
alguns casos, identidade nacional. Era preciso reverter essa
proeminncia do regional sobre o nacional. E, numa poca sem
internet, televiso e rdio, a imprensa peridica era o meio mais
efetivo de divulgar idias e construir novas identidades polticas.
34 A anlise de Carlos Humberto P. Corra (2004) baseada em dados quantitativos acerca da prtica da presidncia de provncia durante todo o Imprio, mas tambm no responde s questes aqui levantadas. CORRA, Carlos Humberto P. A presidncia de provncia no Imprio. In Anais da XXIV reunio da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica. 2004. Curitiba: SBPH.
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