identidade nacional

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Dossiê Identidades Nacionais Org. Glaydson José da Silva Revista Aulas. Dossiê Cultura Material. Org. Glaydson José Silva. V. 02. nº 02 Campinas, IFCH, 2008. UNICAMP www.unicamp.br/~aulas 055 11 985929533

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    Revista Aulas. Dossi Cultura Material. Org. Glaydson Jos Silva. V. 02. n 02 Campinas, IFCH, 2008.

    UNICAMP www.unicamp.br/~aulas

    055 11 985929533

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    3

    Revista Aulas uma publicao da Linha de Pesquisa em Histria: Subjevidades, Gnero e Cultura Material, alocada no programa de Ps-Graduao em Histria da Unicamp.

    Todos os textos so de responsabilidade dos seus autores.

    EDITORES Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Margareth Rago IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Adilton Lus Martins

    CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Pedro Paulo Abreu Funari IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Margareth Rago IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Paulo Celso Miceli IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro Prof. Dr. Jos Alves de Freitas Neto IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Glaydson Jos da Silva UNIFESP Conselho Consultivo Prof. Dr. Alcir Pcora IEL/UNICAMP Prof. Dr. Alfredo Jos da Veiga-Neto FACED/UFRGS Prof. Dr. Antonio Carlos Amorim FE/UNICAMP Prof. Dr. Antonio Paulo Benatte Doutor/UNICAMP Prof. Dr. Carlos Jorge Gonalves Soares Fabiao Universidade de Lisboa Profa. Dra. Carmen Lcia Soares FEF/UNICAMP Profa. Dra. Diana Gonalves Vidal FEUSP Profa. Dra. Leila Mezan Algranti IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Lourdes Conde Feitosa Faculdades Integradas de Ja Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta - FAFICH/UFMG Prof. Dr. Luiz Fernando Ferreira da Rosa Ribeiro IFCH/UNICAMP

    Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior CCHLA/UFRN Prof. Dr. Edson Passetti Faculdade de Cincias Sociais - PUC/SP Profa. Dra. Nri de Barros Almeida IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho ICHS/UFMT Profa. Dra. Patrcia de Santana Pinho SUNY/Albany Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni UFPR Profa. Dra. Tnia Navarro-Swain ICH/UnB Prof. Dr. Elias Thom Saliba FFLCH/USP Profa. Dra. Eliane Moura Silva IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Francisco Ortega Instituto de Medicina Social/UERJ Prof. Dr. Guilherme Amaral Luz INHS/UFU Prof. Dr. Jorge Coli IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Jos Rivair Macedo IFCH/UFRGS Prof. Dr. Leandro Karnal IFCH/UNICAMP Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho FHDSS/UNESP/Franca Profa. Dra. Maria Stephanou FACED/UFRGS Profa. Dra. Nauk Maria de Jesus - ICSA/UNEMAT Profa. Dra. Thais Nivia de Lima e Fonseca FaE/UFMG

    Prof. Adilton Lus Martins

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    5

    SUMRIO

    Apresentao ...................................................................................... 7

    Uma Identidade Para A Cidade: A Crnica Jornalstica De Padre

    Francisco Martins Dias E A Construo De Belo Horizonte No Final

    Do Sculo XIX ..................................................................................... 9

    A CONSTRUO DO ESTADO E DA NAO NO BRASIL:

    Identidades polticas e imprensa peridica no perodo regencial

    (1831-1840) ...................................................................................... 33

    Minas No Contexto Da "Acomodao": As Relaes De Poder, As

    Prticas Polticas E A Tessitura Das Identidades ............................. 51

    Nacionalismo E Arqueologia: O Contexto Poltico Da Nossa Disciplina

    .......................................................................................................... 79

    Recriando Coerncia Sem Se Reinventar Romanizao ................ 115

    Resenha: RAGO, Margareth & VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Figuras

    de Foucault. Belo Horizonte, Editora Autntica, 2006. ................... 129

    RESENHA: CARVALHO, Jos Murilo de. A formao das almas. O

    imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo, Companhia das Letras,

    1990 ................................................................................................ 133

    RESENHA: GEARY, Patrick J. O mito das naes: a inveno do

    nacionalismo. So Paulo, Conrad Editora, 2005 ............................ 141

  • 6

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    7

    APRESENTAO

    Glaydson Jos da Silva Unifesp Brasil [email protected]

    Reavaliando as identidades nacionais:

    discurso nacional e diferena cultural na

    ps-modernidade1

    Este dossi foi organizado com a finalidade de apresentar alguns dos

    principais registros que informam o debate contemporneo acerca

    das denominadas identidades nacionais. Composto de diferentes

    contribuies, portadoras de aproximaes e distanciamentos, o

    conjunto de trabalhos aqui apresentado coloca para reflexo a

    viabilidade e a operacionalizao de diversos temas e conceitos,

    analisados pela tica de representantes de diferentes reas do

    conhecimento: Arqueologia, Antropologia, Sociologia, Teologia e

    Histria, no sendo estranha a muitas anlises uma abordagem

    interdisciplinar no estudo do objeto examinado.

    As identidades nacionais e seu status de naturalidade ou

    artificialidade constituem importantes aspectos no estudo das

    coletividades. Pauta de diferentes estudos, uma conseqncia

    imediata evidenciada aos observadores tem sido o enfoque na

    necessidade de uma problematizao maior em torno do discurso de

    unidade da nao, em prol da valorizao da pluralidade das culturas.

    Essa inflexo nas tradies interpretativas traz como corolrio o

    imperativo de refletir acerca da suposta desintegrao das

    identidades nacionais e, tambm, das relaes que se estabelecem

    entre o global e o local. Construdo em torno de referenciais tomados

    como absolutos (lngua, territrio, cultura e raa, e.g.), o conceito de

    identidade nacional hoje no mais se sustenta sem uma reflexo

    terica maior a seu respeito; sua ligao idia de tradies

    1 Como citar: Silva, G. J. (2006). "Apresentao." Revista Aulas: Dossi Identidades Nacionais 2(2): 2.

  • 8

    inventadas (Eric Hobsbawm) e comunidades imaginadas (Benedict

    Anderson), importantes balizas no pensamento que lhe concernente

    tambm no. A globalizao econmica e a fragmentao cultural

    que marcam o mundo contemporneo estabelecem o afastamento de

    modelos impostos pelos iderios dos Estados-naes, num contexto

    em que o discurso nacional tem de se recolocar face ao

    reconhecimento da diversidade dos indivduos e grupos e ao imprio

    da subjetividade no bojo das cincias. Identidades nacionais, locais,

    hbridas, fluidas, negociveis, imaginadas, enfim, possveis. disso

    que tratam as diferentes contribuies aqui apresentadas. Profcua

    ser essa iniciativa se puder suscitar desdobramentos e crticas.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    9

    UMA IDENTIDADE PARA A CIDADE: A CRNICA

    JORNALSTICA DE PADRE FRANCISCO MARTINS

    DIAS E A CONSTRUO DE BELO HORIZONTE

    NO FINAL DO SCULO XIX2

    Fabio Luiz Rigueira Simo UFJF Brasil

    Resumo:

    No final do sculo XIX, o estado de Minas Gerais vivencia uma experincia marcante: a mudana de sua capital. Analisamos aqui a obra de Padre Francisco Martins Dias, que, inserida neste contexto, pode ser tomada como esforo de construo identitria para uma cidade nascida originalmente de vazios materiais, conflitos scio-econmicos e austeras transformaes. Palavras-chave: Tradio - Modernidade - Harmonia.

    Abstract:

    In the end of XIX century, Minas Gerais see a very strong experience: the change of its capital. We analyze here the work of priest Francisco Martins Dias, that, inserted in this context, can be taken as effort of identity construction for a city that was born originally in the material emptiness, socioeconomic conflicts and austere transformations. Key words: Tradition - Modernity - Harmony.

    2 SIMO, F. L. R. (2006). "Uma Identidade Para A Cidade: A Crnica Jornalstica De Padre Francisco Martins Dias E A Construo De Belo Horizonte No Final Do Sculo Xix." Revista Aulas: Dossi Identidades Nacionais 2(2): 22.

  • 10

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    11

    Em 30 de maro de 1891 reuniu-se na cidade de Ouro Preto uma

    Constituinte, em cujos debates um mereceria destaque: a mudana

    da capital do Estado. Depois de acirrados debates entre

    "mudancistas" e "anti-mudancistas"3, a opo pela mudana imps ao

    governo uma outra questo: a escolha da localidade, para onde

    rumaria o corpus administrativo do Estado. Cinco regies foram

    estudadas por comisses especficas: Parana, Barbacena, Juiz de

    Fora, Vrzea do Maral e Curral d'El Rei. A Lei n 3, de 1893, tornara

    oficial a escolha por Curral d'El Rei, local j ento conhecido pela

    populao como Belo Horizonte. Em menos de dois meses, era

    criada a Comisso Construtora da Nova Capital Mineira. Nomeado

    engenheiro-chefe da comisso, o politcnico Aaro Reis teve total

    liberdade na escolha de sua equipe, compondo-a essencialmente de

    mentes como a sua, afeitas racionalidade do urbanismo moderno e

    ao positivismo republicano da poca 4 . Iriam comear as obras

    (BARRETO, 1936).

    O projeto de Belo Horizonte, i.e., a sua planta inicial, forjou-se no

    trao dos engenheiros da comisso construtora, mas a cidade

    enquanto espao urbano, onde transitam pessoas e idias, prticas e

    relaes de poder e propriedade, fez-se dos projetos de seus

    habitantes. importante observar que no houve coincidncia de

    posies diante do futuro da nova capital entre os grupos que para l

    rumaram desde a supostamente feliz ocasio de sua inaugurao.

    Textos da poca apontam para essa diversidade de perspectivas. Os

    jornais, de cunho notadamente associativista, aparecem como fontes

    fundamentais para uma anlise dessa situao de divergncias e

    convergncias, mas antesde descontinuidades, observada no interior

    dos grupos que iam compondo a cidade.5

    Entendemos que as notcias veiculadas nos peridicos materializam

    maneiras de se conceber a realidade e informam muitas vezes os

    3 Ficaram assim conhecidos os parlamentares que se posicionaram a favor ou contra a mudana da capital (conferir: IGLESIAS, 1987 e LINHARES, 1905). 4 Sobre Aaro Reis e suas convices pessoais e profissionais, conferir: PAIM, 1999 e SALGUEIRO, 2001. 5 Referimo-nos aos operrios, brasileiros e estrangeiros, que rumaram para o arraial desde o incio das obras, a elite ouro-pretana muitas vezes resistente mudana, as novas elites republicanas, e homens e mulheres desapropriados, metidos em cafuas e barraces, agora errantes a no lugar onde nasceram e foram criados.

  • 12

    comportamentos e as prticas dos diferentes grupos. Com efeito, os

    jornais aparecem no como meros veculos de informao, algo

    estanque e livre de ideologias, mas como verdadeiros difusores de

    idias, prticas e condutas que moldam e representam o espao

    urbano, sendo assim produtores do espao; do espao e do

    imaginrio da cidade.6

    Parece, portanto, importante considerar o primeiro jornal da cidade, o

    Bello Horizonte, peridico semanrio de propriedade do Pe. Francisco

    Martins Dias, que, alm de vigrio da parquia de Nossa Senhora da

    Boa Viagem, era escritor e jornalista. Em 1895, quando tm incio as

    obras no curral d'El Rei, Dias funda o jornal com o fim de informar

    populao local sobre os trabalhos da comisso. As suas matrias,

    em forma de crnicas, foram depois compendiadas e publicadas em

    livro, em 1897, com o seguinte ttulo: Traos Histricos e Descriptivos

    de Bello Horizonte. O autor est preocupado, como ele prprio

    salienta no prembulo de sua obra, em dar uma histria cidade, e o

    faz sob a perspectiva (por vezes forada) da continuidade. A proposta

    deste artigo analisar a referida obra, tomando-a como testemunho

    histrico inserido em uma poca de profundas transformaes. A

    nossa hiptese central de que o livro forjou-se a partir de um

    objetivo claro: dar uma identidade harmnica cidade de Belo

    Horizonte, unindo passado e presente, tradio e modernidade, em

    um s continuum histrico.

    Belo Horizonte foi concebida inicialmente como capital modelo da

    Repblica. Segundo palavras de Joo Pinheiro, tratava-se da "filha

    primognita das realizaes materiais da Repblica". As referncias

    em jornais da poca, bem como os relatos de jornalistas vindos da

    capital federal, como Artur Azevedo e Olavo Bilac, por ocasio da

    inaugurao da cidade, registram a satisfao e a ufania com que se 6 Os jornais so diversos: polticos, publicitrios, humorsticos e literrios, associativos e operrios; representantes de grupos estrangeiros, como italianos, rabes e alemes; peridicos manifestamente catlicos ou protestantes, folhas espritas, estudantis e universitrias; reclames publicitrios e at folhas carnavalescas como o anurio Matakins (LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerrio da imprensa de Belo Horizonte: 1895-1954. 1995. Belo Horizonte, Fundao Joo Pinheiro).

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    13

    recebe a nova capital mineira. De novo na observao de Joo

    Pinheiro: "A nova capital, a mais famosa cidade brasileira,

    conquistou-nos o corao. Dir- se-ia a NOIVA DO TRABALHO

    ansiando pela realizao de seus destinos, ponto de convergncia

    que deve ser de nossos esforos, centro de impulso que ser da

    nossa atividade (...)".7

    Muitos testemunhos da poca apontam para essa mesma direo:

    brindar nova capital e modernidade que a acompanhava. Alfredo

    Camarate, sob o pseudnimo Alfredo Riancho, publicou no jornal

    Minas Gerais de Ouro Preto as seguintes palavras:

    "Construmos, verdade, uma capital para

    os filhos do Estado de Minas (...); filhos do

    sculo das luzes ou, talvez antes, do sculo

    XX, que se lhe segue; a criao de uma

    capital nova traz, portanto, pesadssimos

    encargos para os mineiros e refiro-me aos

    encargos morais e no aos econmicos

    (...). Fitam os olhos sobre ns, no s todos

    os brasileiros como todos os povos do

    mundo".8

    Camarate era engenheiro tcnico da comisso chefiada por Aaro

    Reis. A sua fala , pois, a de um construtor, havendo nas palavras

    uma espcie de sensao de compromisso com o sucesso e a

    projeo da nova cidade. Essa caracterstica de ufanar a capital,

    vendo nela o depositrio de novos tempos mais prsperos e felizes,

    est presente em muitos relatos da poca, e o est de maneira

    exemplar em Pe. Francisco Martins Dias, que, como quem ouve o

    apelo do conviva Riancho, entrega-se tarefa de sustentar a

    grandeza moral que a bela cidade deve inspirar. Uma passagem

    muito citada do texto de Dias faz forte referncia substituio do

    antigo pelo novo, da tradio pela modernidade:

    7 Apud MELLO, Ciro Flvio Bandeira de. "A noiva do trabalho - uma capital para a Repblica". In: DUTRA, Eliana de Freitas. BH: Horizontes Histricos. 1996. Belo Horizonte, C/Arte, pp. 11-45, p. 45. 8 MINAS GERAIS, Ouro Preto, 21 out. 1894, p. 2.

  • 14

    "E foi assim que nos ltimos dias da

    monarchia, foram aqui levantados em plena

    rua os sediciosos gritos de - Viva a

    Repblica! - e no h muito trocado o

    antigo nome de Curral D'El Rei pelo de Belo

    Horizonte, para apagar de vez tudo o que a

    trono cheirasse ou a rei se referisse".9

    razovel concluir a partir do trecho acima que se trate de manifesta

    negao ao passado colonial, apontando para os pressupostos do

    urbanismo reformador da poca. Entretanto, como observaremos, h

    na obra de Dias uma intricada relao harmnica entre o novo e o

    velho no espao da cidade. O autor, ao contrrio do que possa

    parecer, no um visionrio radical, adepto sem embargo fria

    jacobina de republicanos por vezes annimos que impunham sua

    presena na novacapital. 10 O seu discurso parece casar-se sem

    maiores problemas aos de Alfredo Camarate e outros, mas visto de

    perto ele pode nos revelar outra perspectiva. Veremos que autor e

    obra so referenciais de um pensamento conciliador, que quer

    receber da melhor maneira possvel o novo, mas sem deixar com isso

    que o velho desaparea, pelo menos em memria.

    Em sua apresentao, "Ao Leitor", Dias fala de seu objetivo principal

    para com a obra: "(...) deixarmos lanada a primeira pedrinha para o

    alicerce do edifcio da historia do logar escolhido para a nova capital

    9 DIAS, Francisco Martins. Traos Histricos e Descriptivos de Bello Horizonte. 1897, p.18. 10 Estamos falando de homens pblicos, mas tambm de particulares a quem o sucesso da cidade interessava j que isso coincidia com o seu prprio sucesso enquanto "cidado". H aqui um exemplo interessante narrado por Arthur Azevedo: "Tinham-me dito que em Minas, bero da Repblica, havia muitos monarquistas (...) Pode ser que os haja noutros pontos do Estado, em Belo Horizonte so fruta rara, rarssima. Verifiquei, pelo contrrio, que ali quase toda a gente florianista, mas de um florianismo ardente e exaltado. H l uma vasta associao que tem por fim glorificar todos os anos a luminosa memria do Marechal de Ferro. Passando por uma das ruas principais da cidade, avistei na fachada de um prdio (...) o busto de Floriano Peixoto fazendo 'pendant' ao da Repblica. Supus que fosse um edifcio do Estado: era uma casa particular" (AZEVEDO, Artur. Um Passeio a Minas - VI. Minas Gerais, Belo Horizonte, 11 dez. 1901, p. 2, grifos nossos).

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    15

    do Estado, desde sua primitiva origem, e dado o primeiro passo para

    os annaes da fundao da nova cidade mineira".11 Esse trecho j nos

    avisa sobre as verdadeiras concepes de Dias: ele acredita na

    relevncia e na importncia forosa de se escrever a histria de

    Curral, fazendo-o em estreita correlao com os primeiros passos da

    nova cidade. Neste sentido, a obra se pretende um liame entre o

    passado da velha Curral e os novos tempos anunciados pela

    construo de Belo Horizonte.

    De sada importante salientar que o pensamento de Dias segue

    uma cadncia fundamental, a saber: Curral d'El Rei, lugar afvel e de

    ares acalentadores, tem origem briosa e lancinante12, caminha na

    prosperidade e chega decadncia nos anos finais da monarquia,

    justamente quando aparecem dois novos atores histricos: A

    Repblica e a nova capital. Assim escreve no captulo IV,

    "Fundao":

    "Constituindo em freguezia em 1750, o

    Curral d'El-Rei, sempre de augmento em

    augmento, de progresso em progresso,

    chegou a dominar em 1815 a uma area de

    quasi 18 mil habitantes (...) De ento para

    c tem decrescido sensivelmente sua

    populao, em virtude dos

    desmembramentos (...) Contudo podia

    ainda este logar crescer e prosperar, com

    tantos e to bellos elementos naturaes de

    vitalidade, de grandeza e de prosperidade;

    mas no cresceu e nem prosperou;

    porque?"13

    O captulo seguinte, "Causas da Decadencia", observa os principais

    entraves ao progresso de Curral. A citao acima esclarece que no

    11 DIAS, Op. Cit. p. II.

    12 Dias, em "Origem", mostra que Curral descoberta nas trilhas dos caadores de metais preciosos, sendo um stio de grande valor por sua proximidade em relao residncia dos primeiros exploradores daquelas terras promissoras de riqueza margem do Rio das Velhas (DIAS, Op. Cit. p. 11). 13 DIAS, Op. Cit. p. 12-13, grifos nossos.

  • 16

    se trata da natureza do lugar. Segundo Dias so quatro os grandes

    responsveis pelo atraso: a) a presena de homens de m ndole,

    "(...) cujo nico fito era impor sua vontade ao povo"; b) a desunio da

    populao e os desencontros de suas idias; c) imprio de uma

    politicagem desmedida e exaltada; e, por ltimo, d) "o mal dos males,

    o mais terrvel escolho ao desenvolvimento physico, intelectual e

    moral dos filhos deste logar": o casamento entre parentes!

    Com efeito, o que o autor faz responsabilizar os homens e no a

    natureza pelo atraso de Curral. Assim, em um lugar de natureza

    exuberante e relevo equilibrado, a desunio entre as pessoas e a m

    ndole de alguns, somados ao escolho do incesto, abre frestas para

    uma crise econmica e de valores sem precedentes. A

    bancarrota,considerando os desmembramentos, causa da diminuio

    populacional, acontece em 1870, quando Venda Nova eleva-se

    categoria de freguesia, libertando-se dos cuidados de Curral.

    Diante desse quadro impe-se Repblica a tarefa de trazer grandes

    e boas transformaes. isso fundamentalmente que reclama o

    nosso autor, e justo nesse momento do texto que se coloca a

    passagem clebre que induz-nos a compreendermos a obra na

    perspectiva do rompimento e no da continuidade.

    "Esse ardor [Dias refere-se a contendas

    polticas e outros desentendimentos entre a

    populao], porem, foi se arrefecendo com

    o correr dos tempos e ao passo que o povo

    foi conhecendo o mal que o mesmo lhe

    causava; contudo no se extinguiu de todo,

    e foi assim que nos ltimos dias da

    monarchia, foram aqui levantados em plena

    rua os sediciosos gritos de - Viva a

    Repblica! - e no h muito trocado o

    antigo nome de Curral D 'El Rei pelo de

    Belo Horizonte, para apagar de vez tudo o

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    17

    que a trono cheirasse ou a rei se referisse". 14

    Apagar tudo o que a trono cheirasse e a rei se referisse no

    significava absolutamente apagar a velha Curral. Dias um desafeto

    da monarquia, e do jugo colonial. O autor ataca veementemente os

    "ferrenhos vnculos, que nos pendiam aos ps do throno de Portugal

    (...) [e o] systema de exclusivismo e centralisao do regime passado,

    porque eram esses males communs".15 Mas disso inferir que Curral

    fosse um lugar condenado aos males terrveis de tempos obscuros,

    sendo ento bem-vinda a sua extino, h uma distncia abissal. Em

    sua obra, Dias demonstrar profunda preocupao com o arraial,

    tratando-se a chegada de Belo Horizonte de verdadeiro ato de

    salvao para um lugar de futuro j prometido, mas perdido em sua

    caminhada em direo ao progresso.

    A Repblica viria, pois, como instrumento de transformao; como um

    reduto de guas mornas a lavar os males da boa, conquanto doente,

    Curral. O novo regime haveria de assumir o compromisso (a que Dias

    tambm se prope em sua obra) de devolver ao velho arraial a

    longevidade dos tempos ureos. Assim, o novo e o arcaico no

    operam como elementos de ruptura, mas de continuidade. A

    Repblica e Belo Horizonte seriam prenncios de uma nova fase de

    Curral, uma fase promissora, que evocasse o progresso na cifra da

    unio, que devolvesse ao pequeno lugarejo os ares tranqilos de sua

    origem.

    Em seu captulo VIII, "ndole e trabalho", Dias faz sensveis

    apreciaes tradio curralense, lamentando a sua disperso junto

    com os velhos habitantes. Ele no mede palavras para reverenciar o

    carter simplrio e dado ao trabalho daquela populao:

    "Era este um povo fraco, hospitaleiro e

    affavel para com os seus hospedes.

    Julgava-se feliz, vivendo sem grandezas,

    mas com independencia; sem riquezas,

    mas com fartura (...) Era (digo era porque

    hoje a populacao se baralhou com a onda

    14 Ibid. p. 18, grifos nossos. 15 Ibid. p. 17.

  • 18

    do povo recemchegado para os servicos da

    nova capital, como uma gotta de vinho se

    confunde no oceano, ou se dispersou para

    os arrabaldes da freguezia; era um povo

    laborioso e trabalhador)".16

    Note-se aqui o aspecto mesmo nostlgico do pensamento do autor.

    Ele v na antiga Curral traos sublimes de uma cultura que se foi,

    mas que pode ser recuperada com a chegada da nova capital. Mas

    h tambm neste trecho uma contradio: considera-se a disperso

    da populao original e a sua mistura a outros povos fatores

    decisivos de dissoluo da tradio local. Ora, ambos os fatores so

    correlatos da mudana da capital, que Dias v com bons olhos. Como

    ento se resolve esse impasse? Ao problema da mistura com outros

    indivduos Dias poupa palavras e apenas lamenta o fato de a rala e

    pura populao curralense obscurecer-se diante do grande fluxo

    populacional para a nova cidade. disperso das famlias para os

    arrabaldes, o autor ainda mais categrica:

    "Sentimos nos escrinos do corao uma luz

    de fagueira esperana (...): aquele povo,

    que to desalentado se retirava o centro da

    povoao, ia levar alguma vida s inclutas

    cercanias do arraial, arroteando os matos e

    os campos (... ) os claros deixados no

    arraialiam preencher-se pelos prticos

    obreiros da nova capital".17

    notvel como Dias d onda de desapropriaes, talvez a face

    mais traumtica de todo o processo de mudana da capital, um

    aspecto de coisa leve e natural. Com mestria, retira-se aos fatos

    qualquer trao de conflito, dando-lhes uma aura intrigante de

    equilbrio e boa- venturana. O autor sada a civilizao e eleva ao

    ltimo escalo de importncia aquela que elege como personagem

    central dessa histria: a cidade. Nesse sentido, as populaes se 16 DIAS, Op. Cit. p. 28-29. 17 DIAS, Op. Cit. p. 86, grifos nossos.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    19

    movimentam no espao exclusivamente em funo de uma

    providncia maior: o progresso. Numa perspectiva teleolgica,

    concebe-se a construo da capital como profunda metamorfose da

    antiga Curral, conduzindo-a a novos tempos ureos, lembrando a sua

    origem. Assim, no esteio da providncia, os desapropriados so

    reduzidos - ou talvez devamos dizer elevados - categoria de

    responsveis pela expanso do vilarejo. Essa seria uma tarefa nobre

    j que, para o nosso autor, expanso espacial e progresso andam

    juntos.

    Aaro Reis, como observa o prprio Dias, ordenou que no ficasse

    alma sequer no espao urbano e nem no suburbano de sua planta

    matriz. As populaes haveriam de habitar a rea rural, vivendo da

    terra e da agropecuria de abastecimento. Mas, a despeito disso,

    Dias faz um eloqente elogio a Reis, colocando-o como sujeito de

    rara complacncia. O autor chama ateno para a no-convenincia

    de se usar o termo desapropriao ao que na verdade teria sido uma

    feliz relao de compra e venda, "(...) onde o comprador era o Estado

    na pessoa do dr. chefe da comisso, e os vendedores os

    proprietrios deste logar".18

    Nesse clima de harmonia, chegamos aos animados dias de fundao

    da cidade. H um esforo incondicional por tornar os acontecimentos

    verdadeiros eventos-ddivas, em que concorreram fatores naturais e

    humanos para que tudo se desse na mais ordeira paz. Ao narrar o dia

    7 de setembro de 1895, quando das cerimnias oficiais de fundao

    da cidade, Dias atribui um ar de contentamento geral populao

    local e prpria natureza:

    "Esplendidas, brilhantes e apparatosas

    foram ellas [as festas]. E era de mister que

    assim o fossem , para attrahir-se a atteno

    dos extranhos e tornarem-se mais

    conhecidas as bellezas deste logar e sua

    propriedade para ser a metropole de Minas

    (...) Por um capricho da natureza, aps

    clara e serena aurora que despontou

    graciosa no horizonte, seguiram-se alguns

    18 Ibid. p. 83.

  • 20

    momentos de tempo dbio e nebuloso, que

    assaltaram com desalento os coraes

    festeiros. Mas, dentro em pouco, essas

    nuvens se dissiparam e appareceu o cu

    azul, sereno e lmpido, evitando-se os

    inconvenientes do p, que desappareceu, e

    da lama que j no existia, dos raios do sol

    que no atravessavam ardentes as

    camadas ethereas, e da chuva que no

    veiu mais".1719

    Como se v, o autor parece evocar foras ocultas para dar a tudo um

    tom de harmonia incomum. Isso sempre em consonncia com a

    alegria das pessoas (todas, indistintamente!), cujos coraes

    mantinham vivas as ligaes com a velha Curral. As pessoas e as

    coisas (tanto humanas quanto naturais) ganham na obra status de

    pares perfeitos em um processo que, embora intrinsecamente repleto

    de descontinuidades e, por isso mesmo, conflituoso, deixa-se parecer

    harmnico e de rara coerncia. Um ponto da narrativa que primeira

    vista poderia parecer desprezvel ganha ento importncia central:

    trata-se da descrio sobre a situao do solo no dia das festividades

    de fundao: na letra do autor, como pudemos observar acima, no

    h mais p e nem lama. Existe a uma referncia algo sublime e de

    um simbolismo intrigante: o p, que se faz do excesso de secura,

    cessa ante a chuva que, por sua vez, no persiste e logo se dispersa

    em favor de um cu azul que traz o sol que seca a lama, fruto do

    excesso de gua. Mas o prprio sol no forte o bastante para gerar

    mais poeira, os seus raios "no atravessam ardentes as camadas

    etreas". Tudo fica na mais perfeita harmonia, nada de excessos,

    apenas equilbrio.

    Vrios textos da poca lembram o desconforto gerado pelo p e pela

    lama a quem se arriscasse por aquelas terras de Belo Horizonte nos

    tempos de sua construo. O coletor Celso Werneck em suas

    reminiscncias observava:

    19 Ibid. p. 95.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    21

    "A impresso no podia ser boa (...) o p

    era medonho! Triturado, vermelho, em

    alguns lugares se acumulava em camadas

    que atingiam mais de um palmo (... )

    tornando obrigatrio o uso das meias-botas

    (...) que impermeveis, tambm serviam

    para chuva"20.

    A lama e o p poderiam muito bem ser desconsiderados por Dias, j

    que eram o maior estorvo de um lugar que se transformara em

    canteiro de obras. Mas Dias insiste em cit-los, negando-os a

    existncia naquele momento, por uma oferenda da natureza. Alis,

    ele os considera justamente para neg-los, ou antes, para mostrar

    como a natureza conspirou para que tudo corresse bem naquele dia

    to especial.

    Mas precisamos nos deter um tanto mais nessa questo da natureza

    e da cultura no arraial, porque, a despeito da maior importncia dada

    aos fatores naturais, Dias, como vimos, no desconsidera a cultura

    do povo curralense. Beatriz Magalhes, em estudo sobre a

    construo e o desenvolvimento de Belo Horizonte, observa que o

    grande desafio da comisso construtora era eliminar o carter arcaico

    de Curral d'El Rei para dar vez modernidade da nova capital. Isso,

    segundo as matrizes mesmas do pensamento da poca, constante da

    formao politcnica de Aaro Reis, implicava numa verdadeira

    mudana de estgio na cadeia evolutiva preconizada por Comte.

    Como escreve Magalhes,

    "O projeto da Capital eliminou a idade

    mdia do lugar: o metafsico Curral d'El Rei,

    com sua igreja pastoreando o casario

    tortuoso, para retomar a sua infncia,

    descontaminada do cultural, em seu

    primitivo estado fetichista - instintivo,

    voluntrio, orgnico -, o natural, e, a partir

    dele, articular racionalmente a sua idade

    20 WERNECK, Celso (s/d). Reminiscncias do Coletor Celso Werneck. Belo Horizonte, Museu Ablio Barreto (mimeo), p. 5.

  • 22

    moderna, o estado positivo, cientifico,

    definitivo".21

    tentador tambm estabelecer esse paralelo para a obra de Dias,

    mas olhares atentos podem revelar traos de uma complexidade

    ainda maior. Na tentativa de salvaguardar alguns elementos do antigo

    arraial, casando-os com os auspiciosos ventos de modernidade, Dias

    no desconsidera as pessoas, e, por conseguinte, os referenciais

    culturais da velha Curral. Assim, voltando ao captulo VIII, "ndole e

    Trabalho", flagramos o dia-a-dia de labor e alegria que orquestrava a

    vida da populao curralense original:

    "(...) de segunda-feira a sabado, as ruas

    estavam desertas e ermas (...) porque os

    homens estavam entregues s afanosas

    lidas da lavoura (... ) Aos domingos, porem,

    era outro o aspecto do arraial, que, como

    por encanto, se transformava em uma

    verdadeira feira local - alegre e animado

    que era! (...) noite, [o silncio] era

    levemente interrompido pelos ternos e

    saudosos sons de uma flauta, e pelas notas

    poticas d'algum violo, acompanhando

    modinhas, cantadas ao luar por algum filho

    da terra".22

    Esse cenrio idlio, ordeiro e regular, no se sustenta ante as

    transformaes impostas pela mudana da capital. A cidade dos

    sonhos de Reis e de outros "visionrios" da modernidade e do

    progresso capitalista afasta esse tipo de cotidiano que respeita

    lgica do trabalho na lavoura, do comrcio de trocas e das cantorias

    "vadias" pelas ruas pequenas e acessveis. O aconchego do lar e da

    famlia estendido ao espao pblico de ruas tortuosas e estreitas

    conhecer a sua negao nos atos austeros da comisso construtora.

    21 MAGALHES, Beatriz de Almeida (1989). Belo Horizonte, um espao para a repblica. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, p. 142. 22 Ibid. p. 29-30

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    23

    Christian Topalov salienta que dentro de uma proposta de tornar a

    sociedade e a cidade objetos da ao racional, engenheiros e

    arquitetos promoveram, partir de 1880, polticas urbanas tipicamente

    modernas. As resolues de Aaro Reis nos relatrios que

    apresentava ao governo confirmam essa observao:

    "s ruas fiz dar a largura de 20 m,

    necessria para a conveniente arborizao,

    a livre circulao dos veculos, o trafego

    dos carris e os trabalhos de colocao e

    reparaes das canalizaes subterrneas.

    s avenidas fixei a largura de 35 m,

    suficiente para dar-lhes a beleza e o

    conforto".23

    O engenheiro-chefe da comisso construtora falava deliberadamente

    em medidas que projetam a trade da cidade moderna:

    embelezamento, infra-estrutura e racionalizao do espao urbano. A

    cidade torna-se um reduto do espetculo barroco, representado pelas

    praas e monumentos republicanos, pela arborizao e pelas

    imponentes avenidas. Nada receptivo prtica costumeira da antiga

    Curral. Algo a que vem em socorro Dias. Ao tratar das festas

    religiosas no velho arraial dos tempos ureos, o autor venera o

    cotidiano afortunado da populao local, fazendo-o, acreditamos,

    numa perspectiva de elogio quilo que no se deveria perder justo

    por ser o depositrio de ricas razes:

    "Quem acertasse de visitar Curral d'El-Rei

    em princpios do mez de agosto, certo que

    ficaria agradavelmente impressionado pelo

    tom festivo, afvel e alegre de seus

    habitantes (...) Todos estao contentes, e

    preparam-se para receber e obsequiar s

    comadres, aos compadres e aos parentes

    que viro assistir s festas (...) Os alfaiates,

    os sapateiros, todos, enfim, estao alegres e

    23 Apud BARRETO, Ablio (1936). Belo Horizonte, memria histrica e descritiva, histria mdia. Planejamento, estudo, construo e inaugurao da nova capital (1893-1897). Belo Horizonte, Rex, p. 241.

  • 24

    satisfeitos, pela abundancia de

    encommendas de factos e calados".2224

    No podemos deixar de observar que Dias um clrigo - e o seu

    ardor pela cultura catlica fica patente em sua narrativa -, o que o

    impele tarefa de dar relevo quilo que mais lhe contenta na tradio

    do arraial: a cultura religiosa. Da considerarmos serem o catolicismo

    e as prticas e comportamentos ligados a ele o cerne da

    preocupao do nosso autor em salvaguardar traos da cultura local.

    Mas essa cultura, como dito, aparece coadunada com os referenciais

    da modernidade. A viso saudosista da populao curralense haveria

    de misturar-se s novas perspectivas trazidas pela inteligncia

    construtora e pela elite burocrtica formando uma nica vontade de

    ver amadurecer feliz e saudvel o fruto de desejos comuns. Num

    momento em que j se observam tendncias claras secularizao

    da vida urbana, Pe. Francisco Dias d-se tarefa de adaptar a

    tradicional cultura crist catlica moderna cultura urbana que queria

    ganhar espao. Eis a mais a face central do esforo por dar aspecto

    harmnico s austeras transformaes.

    Ao perseguimos evidncias que reforcem essa posio de Dias por

    ele mesmo, interessante, por exemplo, observar o avesso de

    posies entre o autor, que tanto louva os trabalhos de Aaro Reis, e

    a comisso construtora acerca da matriz da Boa Viagem. Para a

    comisso a matriz tratava-se de prdio "sem elegancia nehuma no

    exterior, acaapada e tosca no systema de sua architetura, toda

    portugueza no pesado das propores e incorreces das linhas (...)

    monumento de mau gosto".25 Ao que Dias responderia assim: "possui

    a freguezia uma slida Matriz, que admira a todos os visitantes (...)

    podendo o mesmo competir com qualquer Matriz de muitas cidades

    populosas e adeantadas"26. Adiante Dias ainda observa:

    24 DIAS, Op. Cit. p. 52. 25 Comisso Constructora da Nova Capita - Revista Geral dos Trabalhos, 1895, vol I. pp. 11-15. 26 DIAS, Op. Cit. p. 140.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    25

    "Espritos fracos, restos da idade media,

    dir alguem; mas, espiritos fracos,

    respondemos ns, que gozavam de mais

    paz e felicidade do que os orgulhosos

    chamados espiritos fortes da idade

    moderna e da contemporanea, que, sem

    paz, sem crencas, sem rumo e sem guia,

    vivem no trovelinho das perplexidades e

    das incertezas, como leve palha levada

    pelo tufo".27

    No entanto, ao mesmo tempo em que acusa a imponderao de

    crticos austeros do antigo em favor do novo, Dias louva o progresso

    trazido pelos novos tempos. No esteio de uma teleologia, ele fala de

    uma propenso do homem ao progresso, mas intercede em favor da

    manuteno de traos fundamentais do passado tradicional. assim

    que todo um processo de transformaes obedece a uma dialtica

    peculiar, cuja sntese a nova cidade moderna e civilizada que une

    os povos em torno da religio e da honestidade, devolvendo-lhes o

    acalanto dos tempos ureos, e eliminando a doena, na fonte

    inesgotvel de natureza benevolente e agradvel. Dessa maneira, o

    novo bem vindo, porque:

    "(...) h sempre de acompanhar aos antigos

    habitantes do Curral d'El Rei, ou Bello

    Horizonte, eterna e saudosa lembrana de

    seu simples e modesto, mas pictoresco e

    poetico arraial, to rapidamente

    methamorphoseado em primeira cidade do

    Estado".28

    Alis noo de metamorfose ponto nevrlgico do raciocnio de

    sntese harmnica que identificamos em Dias. Aquilo que

    metamorfoseia pressupe permanncia em alguma instncia: h um

    processo latente de transformao, mas o essencial permanece.

    Assim, a nova capital no se faz revelia do velho arraial, tampouco

    em detrimento dele, mas nele e a partir dele. A natureza e a

    27 Ibid. p. 39. 28 Ibid. p. 34.

  • 26

    tradicional cultura local somam-se perfeitamente aos elementos da

    modernidade, concorrendo todos para o casamento perfeito entre

    presente e passado.

    A cidade, personagem central da trama, encarnaria, pois, esse perfil

    do equilbrio e da conciliao, e a magia que provm de arrumaes

    da natureza reproduz-se entre os homens. Os habitantes da cidade

    passam a ser todos movidos pelo mesmo intento e pela mesma

    satisfao. Ao transcorrerem-se as cerimnias de sagrao das

    pedras fundamentais,

    "(...) ao som do hymno nacional, (...) um

    exemplar da constituio federal, idem da

    estadoal, jornaes do dia, moedas e outros

    objectos que alguns circundantes

    offereceram (...) foram collocados em linda

    caixa de veludo azul celeste pelo exm.

    Presidente do Estado, e nella fechados pelo

    exm. chefe da comisso. Metida essa caixa

    em outra de madeira tosca, foi tudo assim

    lanado na cavidade quadrangular da pedra

    [fundamental] para esse fim preparada e

    disposta. Rodada sobre esta, outra, que

    devia servir de tampo, foram ambas

    cosidas argamassa e depois selladas em

    cruz com gua benta por ns, como

    parocho da frequezia".29

    Essa passagem sugere que os sonhos e os objetivos de arquitetos,

    engenheiros e autoridades pblicas misturavam-se sem o menor

    disparate aos de homens e mulheres dali e d'alhures. A cidade na

    letra de Dias tornara-se fruto de um projeto nico, decorrncia do

    desejo daqueles que a projetaram, mas tambm, e na mesma

    medida, daqueles que foram expulsos do centro do arraial e que

    serviram para levantar os prdios e abrir as avenidas.

    29 Ibid. p. 102.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    27

    Neste mesmo sentido Dias encerra a sua obra afanando a

    metamorfose material que foi o processo de construo da nova

    capital, fazendo votos para que a mesma se desse no mbito social e

    moral:

    "Belo Horizonte hoje um contraste de

    velharias e novidades (...). no diria mal

    quem [a] comparasse com o firmamento

    semeado de muitas estrelas, que vao se

    apagando e desaparecendo ante o brilho

    das de maior grandeza (...) nada mais

    belo, mais potico e mais recreativo do que

    a observao atenciosa desta sublime

    metamorfose material. Praza aos cus que

    sublime, potica e bela seja tambm a

    metamorfose social e moral! (...) Quem

    pensaria (...) que o velho, pobre, humilde e

    decadente Curral d'El Rei havia de, em tao

    rpido voo, elevar-se altura em que hoje o

    vemos (...) tendo diante de si um futuro tao

    risonho e brilhante".30

    Essas duas passagens do captulo XXX, "Concluso", so ilustrativas

    de tudo que falamos at aqui. Dias se mostra preocupado com o

    futuro cultural da cidade e a entende como um desdobramento da

    histria de Curral, que sai triunfante da decadncia, lanando-se na

    direo de novos tempos ureos.

    Outros textos da poca apontam para o carter contraditrio daquela

    realidade, em que os projetos de modernidade, necessariamente

    pautados no discurso da igualdade e da justia social, prprios de um

    regime republicano e democrtico, se debatem a todo o momento

    com vazios e sofrimento.

    30 Ibid. p. 102.

  • 28

    "Em 1897 a coisa era bem diferente. Lembro-me perfeitamente da

    minha chegada o ingnuo 'farwest' de Curral d'El Rei. Eu vinha da

    corte pacfica de Ouro Preto, como os meus bas e a minha jovem

    esposa, envolvido na 'pousse' burocrtica. Custei a me acostumar

    com a febre diurna das derrubadas e construes, e a zueira noturna

    das brigas entremeadas de furtos que o 'sheriff' major Lopes punia

    severamente. Eu vagava pelas ruas em ainda virgens de casas

    procura de um caf inencontrvel, enquanto italianos suarentos se

    comprimiam porta da farmcia do meu mestre Tefilo Lage,

    disputando limonadas purgantes que, quanto mais se fabricavam,

    mais se vendiam".31

    Esse depoimento reproduz claramente a fala de um membro da elite

    burocrtica ouro-pretana injuriada pela mudana (forada) para a

    nova capital, da compreendermos o seu esforo por deturpar a

    imagem do lugar. Mas justamente esse tipo de discurso, muito

    diverso do de Dias, que vem confirmar o carter diverso da prpria

    cidade, e da realidade mesma do local, que no parece to

    harmnica como colocada pelo reverendo.

    Monteiro Lobato, em visita cidade dos primeiros tempos certa vez

    escreveu: "Existe uma escassez de gente pelas ruas largussimas, a

    cidade semi-construda, quase que apenas desenhada a tijolo, no

    cho, um prdio aqui outro l, tudo semi-feito - e a tudo envolver um

    p finssimo e finissimamente irritante (...)" (apud JULIO, 1996: 62-

    63). E, de modo a corroborar a observao de Lobato, o cronista

    Joo do Fbio Luiz Rigueira SIMO

    Uma identidade para a cidade: A crnica jornalstica de Padre

    Francisco Martins Dias e a construo de Belo Horizonte no final do

    sculo XIX Curral, no mesmo Dirio de Minas lembrava o antigo

    apelido da promissora Belo Horizonte: Poeirpolis!32

    31 DIARIO DE MINAS, Belo Horizonte, 1927, 11 dez, p. 1. 32 CURRAL, Joo do. A propsito do aniversrio da Capital. Dirio de Minas, Belo Horizonte, 13 dez. 1927, p. 1, apud MAGALHES, 1989:85.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    29

    Ora, como deve ter ficado claro, no acreditamos absolutamente que

    a construo da nova capital tenha se dado sem amargura e sem

    conflito. A coexistncia de entusiasmos e consternaes constituem o

    caracterstico intrnseco da sinuosa e ousada empreitada de Aaro

    Reis e seus tcnicos. Mas a existncia de textos como o de Dias, que

    tentam dar sentido s coisas obscurecendo essa complexidade,

    sintomtica. Lembre-se que a obra fora publicada primeiramente no

    peridico Bello Horizonte, na forma de folhetinescos. Dessa maneira

    a podemos considerar uma difusora de representaes sobre a

    cidade que de uma maneira ou de outra circulou entre o pblico da

    poca. Que leituras se fizeram dela e a que grupos ela interessava?

    Como essas representaes, que forjam uma verdadeira identidade

    para a cidade, repercutem e mesmo refletem as aes dos cidados?

    Uma grande preocupao de Chartier ao tratar da histria cultural

    com a estreita relao existente entre prtica e representao.

    Citando Mauss, Chartier salienta: "mesmo as representaes

    coletivas mais elevadas s tm uma existncia, isto , s o so

    verdadeiramente a partir do momento em que comandam atos"

    (CHARTIER, 1990: 17). Da indagarmos centralmente sobre o lugar

    histrico de um discurso como o de Padre Francisco Martins Dias na

    constituio do espao urbano e das relaes de trabalho e poder.

    Em seu estudo sobre a cultura das ruas do Rio de Janeiro, Mnica

    Velloso trabalha com cronistas e caricaturistas, tomando-os como

    olhares sensveis e ao mesmo tempo participantes de seu tempo e de

    sua cidade. Como escreve a autora, "as representaes [difundidas,

    seno muitas vezes at moldadas e construdas mesmo pelo trabalho

    dos cronistas e caricaturistas] no refiguram apenas o mundo social,

    mas o constituem enquanto tal [por isso] (...) a crnica constitui-se em

    fonte indispensvel para a reflexo historiogrfica" (VELLOSO, 2004:

    17). Dias pode ser aproximado da imagem do cronista de Velloso na

    exata medida em que se constitui em sujeito histrico do processo de

    construo da cidade de Belo Horizonte, preocupado com a

    construo de traos identitrios que dessem uma histria e um

    sentido para a nova cidade e para o seu povo. Como os cronistas

    fluminenses, Dias criou representaes reveladoras de um perodo

    complexo e contraditrio, mas cuidou, como insistimos mais de uma

  • 30

    vez, para que as ambivalncias se tornassem amlgamas leves do

    equilbrio e da harmonia.

    No entendemos que esse nosso enfoque seja o mais importante

    para a anlise do espao urbano, e sabemos das nossas limitaes

    quando optamos por privilegiar certos preceitos tericos e

    metodolgicos. claro que damos aqui um tratamento cultural ao

    nosso objeto, e a prpria trajetria desse estudo, somada opo por

    determinados recortes na obra de Dias so a marca de nossa

    circunscrio. Bernard Lepetit lembra-nos que a cidade um objeto

    complexo que, conforme a natureza intricada das relaes prticas e

    simblicas que travam os seus habitantes, demanda

    necessariamente a interdisciplinaridade (LEPETIT, 2001). Dessa

    maneira esperamos que esse artigo se justifique pelas outras

    questes que possa suscitar, e pelas outras possibilidades de anlise

    e interpretao que possa permitir, dentro dos domnios da histria e

    fora dele.

    Referncias Bibliogrficas:

    CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e

    representaes. 1990. Lisboa, Difel.

    DIAS, Francisco Martins. Traos Histricos e Descriptivos de Bello

    Horizonte. 1897. Belo Horizonte.

    DUTRA, Eliana de Freitas. BH: Horizontes Histricos. 1996. Belo

    Horizonte, C/Arte.

    LEPETIT, Bernard. Por uma nova histria urbana. 2001. So Paulo,

    EDUSP.

    MAGALHES, Beatriz de Almeida. Belo Horizonte, um espao para a

    repblica. 1989. Belo Horizonte, Ed. UFMG.

    TOPALOV, Christian. Da questo social aos problemas urbanos: os

    reformadores e a populao das metrpoles em princpios do sculo

    XX. In: RIBEIRO, Luiz Csar de Queiroz e PECHMAN, Robert.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    31

    Cidade, povo e nao: gnese do urbanismo moderno. 1996. Rio de

    Janeiro, Civilizao Brasileira.

    VELLOSO, Mnica Pimenta. A cultura das ruas no Rio de Janeiro

    (1900 1930): mediaes, linguagens e espao. 2004. Rio de Janeiro,

    Edies Casa de Rui Barbosa.

    Recebido em agosto/2006. Aprovado em setembro/2006.

  • 32

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    33

    A CONSTRUO DO ESTADO E DA

    NAO NO BRASIL: IDENTIDADES POLTICAS

    E IMPRENSA PERIDICA NO PERODO REGENCIAL

    (1831-1840)

    Ariel Feldman UFPR - Brasil

    Resumo:

    O objetivo deste artigo analisar as relaes entre a formao do Estado e a construo da identidade nacional brasileira durante as regncias (1831-1840), sendo que a fonte utilizada foi o jornal O Carapuceiro, publicado no Recife entre 1832 e 1842. Visto que a identidade nacional no estava consolidada na dcada de 1830, observou- se como, em dois contextos distintos, ocorreu a consolidao desta. Primeiramente, empreendeu-se a anlise dos anos subseqentes abdicao de D. Pedro I (1831), quando a identidade brasileira esteve contraposta lusitana. Em seguida, foram analisados os anos finais do perodo regencial, momento em que identidades regionalizadas pareciam se sobrepor nacional. Palavras-chave: Identidade nacional brasileira - Perodo Regencial - impressa peridica.

    Abstract:

    The scope of this article is to analise the relathionship between the formation of the State and the construction of the Brazilian national identity during the regencies (1831-1840). The documentation used was the periodic O Carapuceiro, published in Recife between 1832 and 1842. Accepted that a national identity wasn't consolidated in the decade of 1830, we investigate how, in two different contextures, took place this consolidation. First, we analise the subsequent years of the imperator's abdication (1831), when a Brazilian identity was put against a Lusitanian. Second, we examine the last years of the regencial period, when regional identities menace to superpose the national. Key-words: Brazilian national identity - Regencial Period - periodic press

  • 34

    Introduo

    Este artigo tem como objetivo analisar as relaes entre a formao

    do Estado e a construo da identidade nacional brasileira durante o

    perodo das regncias (1831-1840). Trata-se de uma poca que foi

    crucial para a configurao do Brasil como Estado nacional.

    Demonstraremos como a identidade nacional brasileira ainda no

    estava consolidada na dcada de 1830, e que o processo de sua

    consolidao se deu paralelamente afirmao poltica do Estado

    imperial unitrio, que ento corria srios riscos de fragmentao. A

    fonte utilizada foi o jornal O Carapuceiro, publicado no Recife entre

    1832 e 1842. Como era comum na poca, era um jornal de autor.

    Apenas uma pessoa o escrevia: o Padre Miguel do Sacramento

    Lopes Gama. E o fato de ter durado dez anos, indica que O

    Carapuceiro foi um sucesso de pblico. Nos anos que sucederam a

    independncia, a maioria dos peridicos durava algumas semanas,

    alguns meses talvez. Rarssimas gazetas completavam um ano de

    existncia. E por que O Carapuceiro durou tanto? Por que O

    Carapuceiro caiu assim nas graas do leitor?

    Era um jornal bem humorado, escrito em linguagem coloquial. Na

    dcada de 1830, todos os jornais versavam sobre poltica e eram

    panfletrios, doutrinrios. Muitos tinham uma linguagem violenta e

    agrediam verbalmente os opositores. (SODR, 1966: 139-141). O

    Carapuceiro fez uma outra proposta: no falaria de poltica, mas de

    costumes. O subttulo do jornal era "Peridico sempre moral, e s per

    accidens poltico". Lopes Gama pretendia criticar os costumes que

    considerava nocivos. Criticou os gamenhos, que eram aqueles que

    passavam o dia inteiro se embonecando para namorar (O

    Carapuceiro n.11, 7/71832). Criticou os exageros da dana popular

    "Bumba meu boi", dizendo que era uma dana brbara, que no era

    uma dana prpria de uma civilizao adiantada (O Carapuceiro n. 2,

    11/1/1840). Criticou os exageros gastronmicos da poca, como o

    costume de fazer feijoada (MELLO A., 1996: 312-316). Suas crticas

    eram abertas, para todas as pessoas. Mas s vestia a carapua

    quem queria.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    35

    Na primeira pgina do jornal havia um desenho de uma loja de

    chapeis, no qual um vendedor (provavelmente a representao do

    prprio Lopes Gama) oferecia carapuas de todos os tipos para um

    cliente. Logo abaixo deste desenho, O Carapuceiro ostentou a frase

    do poeta romano Marcial: "Guardarei nessa folha as regras boas, que

    dos vcios falar, no das pessoas". Lopes Gama, depois do sucesso

    de seu jornal, passou a ser chamado Padre Carapuceiro. E esse

    apelido ficou para a histria, pois existe hoje, no Recife, a Rua Padre

    Carapuceiro.

    E, durante cerca de mais de 100 anos, folcloristas e historiadores

    consideraram Lopes Gama um grande crtico de costumes. Cmara

    Cascudo, por exemplo, disse que Lopes Gama foi um grande

    estudioso do folclore brasileiro da primeira metade do sculo XIX

    (CASCUDO, 2003[1943]: 186-187). Podemos citar outro exemplo,

    mais recente. Evaldo Cabral de Mello publicou uma coletnea de

    artigos do jornal O Carapuceiro, em 1996. Mas, na coletnea s

    foram contemplados artigos de feitio "costumbrista", isto , que

    tratavam de costumes. Evaldo Cabral de Mello acredita que esta a

    caracterstica mais marcante dessa documentao (MELLO E.,

    1996:7-26).

    Para este artigo, criticamos este enfoque e propomos uma

    abordagem diferenciada: enxergar O Carapuceiro como um peridico

    poltico. Lopes Gama, ao escrever este clebre jornal, estava repleto

    de intenes polticas. At a crtica de costumes tinha uma inteno

    poltica, pois foi capaz de tornar O Carapuceiro um jornal popular. A

    stira e o bom humor tornaram esta uma das gazetas mais lidas em

    Pernambuco durante a dcada de 1830. Lopes Gama afirmava que

    seu peridico era Moral, pois criticava os maus costumes, e exaltava

    os bons costumes. Os demais peridicos no eram morais, pois

    tratavam de poltica, e externavam os interesses pessoais e polticos

    dos prprios redatores. Dessa forma o Padre Carapuceiro angariou

    para si um pblico cativo e colocou seu jornal num nvel superior aos

    demais. Tratava-se de um peridico moral, no poltico (FELDMAN,

    2006a).

    Cabe pontuar que Lopes Gama viveu de 1793 a 1852. Ele vivenciou o

    perodo em que o Brasil se consolidou como Estado e como nao.

    Ele foi um ator que observou, participou e emitiu sua opinio acerca

  • 36

    deste processo. Cabe, pois, refletir brevemente sobre estes dois

    conceitos. Nao um conceito moderno. S possvel pensar em

    naes e nacionalismos a partir do sculo XIX, poca em que

    emergiram as naes europias e americanas, inclusive a brasileira.

    Para Hobsbawm, os nacionalismos que deram origem formao

    dos Estados nacionais, ou seja, o sentimento nacional anterior

    nao como corpo poltico. (HOBSBAWM, 1990: 17-19). No entanto,

    este processo se deu no Brasil de maneira singular. No havia uma

    "comunidade politicamente imaginada" no momento da

    independncia (ANDERSON, 1999: 14). O vocbulo ptria, para os

    deputados brasileiros presentes nas cortes constituintes de Lisboa

    (1821-22), era seu lugar de origem. Este no era o Brasil, e sim a

    comunidade que os elegeu - a Provncia. A nao da qual esses

    deputados se sentiam parte seria a portuguesa. O Brasil se

    enquadraria, no discurso desses deputados s vsperas da

    independncia, apenas no conceito de pas. Assim, So Paulo e

    Bahia seriam suas ptrias. O Brasil seu pas. Portugal sua nao

    (BERBEL, 1999:193). No era possvel pensar nem em um Estado,

    nem em uma nao brasileira poca da independncia (JANCS;

    PIMENTA, 2000). As estruturas polticas do imprio tiveram que se

    consolidar internamente, at atravs da fora, para ento se poder

    pensar em uma possvel conscincia nacional. Os movimentos

    polticos desencadeados na primeira metade do sculo XIX so

    sintomticos, e demonstram como o processo de construo da

    nao foi lento e desigual no Brasil.

    Sendo assim, a historiografia brasileira contempornea tende a

    enxergar a primeira metade do sculo XIX como o perodo da difcil

    consolidao do Estado e, conseqentemente, da nao brasileira.

    Tal consolidao se constituiu, pois, num processo altamente

    complexo, no qual identidades polticas se entrelaaram e

    coexistiram. Analisaremos, neste artigo, dois momentos distintos da

    dcada de 1830. No incio da dcada, em 1831, D. Pedro I abdica de

    seu trono e retorna para Portugal, iniciando ali uma intensa batalha

    pela sucesso dinstica contra seu irmo D. Miguel. O Brasil, neste

    contexto, passa por um processo de nacionalizao dos quadros

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    37

    dirigentes do Estado e a identidade brasileira , assim, contraposta e

    polarizada identidade lusitana, visto que a restaurao do ex-

    imperador - mais do que nunca vinculado a grupos lusos - ainda era

    um projeto altamente vivel. Analisaremos as peculiaridades do

    discurso de Lopes Gama neste perodo crucial para a nacionalizao

    do Estado brasileiro.

    No final da dcada, D. Pedro I j havia falecido, e outras eram as

    ameaas soberania nacional. Revoltas localizadas em diversas

    provncias faziam com que a integridade do imprio fosse algo

    incerto: a Sabinada em Salvador (1837-38), a Cabanagem no Par

    (1834-40), a Revoluo Farroupilha no extremo sul (1835-45) e a

    Balaiada no Maranho (1838-41). Identidades polticas regionais se

    chocavam, dessa forma, com uma identidade mais ampla, a

    identidade nacional. Verificaremos de que forma O Carapuceiro

    procurou reforar a segunda em relao primeira.

    "A sagrada causa da liberdade brasileira"

    J em fins de 1831, um levante que pretendia restaurar o trono de D.

    Pedro I ocorrera no serto cearense, afetando tambm regies do

    interior de Pernambuco. Seu lder era Joaquim Pinto Madeira, um

    proeminente chefe militar da vila do Jardim, serto do Cear, numa

    regio denominada Cariri. Durante a Confederao do Equador

    (1824) ajudou as foras imperiais, derrotando os revolucionrios da

    vila de Crato, cidade vizinha e rival. Aps esse ato de bravura, foi

    agraciado pelo Imperador e promovido ao posto de Coronel, alm de

    ter sido nomeado Comandante Geral das Armas do Crato e do

    Jardim, por ato assinado em novembro de 1824. Assim, a adeso ao

    projeto de D. Pedro I e Jos Bonifcio rendeu a Pinto Madeira o

    poder poltico da Regio do Cariri, e uma intensa rivalidade com

    grandes senhores de terra da vila do Crato foi gestada. Pinto Madeira

    foi um dos membros da Coluna do Trono e do Altar em pleno serto

    cearense, sociedade secreta absolutista fundada em fins da dcada

    de 1820 (alguns dizem que por D. Pedro I) que tinha como objetivo

    central fazer o Imperador governar sem o trambolho, ou seja, a

    constituio. Aps a abdicao de D. Pedro I, no entanto, ele perdeu

    todas as honrarias concedidas pelo Imperador.

  • 38

    As rivalidades locais se reacenderam, e iniciaram-se embates no

    Cariri. Com a ajuda do Padre Antonio Manuel de Souza, figura

    extremamente carismtica, ele mobilizou uma milcia de sertanejos e

    dominou grande parte do serto cearense em fins de 1831. O Padre

    Antonio Manuel de Souza ficou conhecido como "benze-cacetes",

    porque benzia os porretes daqueles pobres soldados camponeses

    que no tinham armas melhores (BRITO, 1985: 27-36).

    Misto de querelas entre grandes senhores locais, pobreza rural,

    fanatismo religioso e questes polticas mais abrangentes, a rebelio

    de Pinto Madeira se imbuiu de ideais restauradoras e chegou a

    adentrar pelo serto pernambucano. O medo de um levante dos

    colunas, como era chamados os membros da Coluna do Trono e do

    Altar, ficou ainda maior no Recife. Vrias medidas institucionais foram

    tomadas ao longo de todo o ano de 1831 e no incio de 1832, com o

    intuito de enfraquecer as possveis aspiraes restauradoras em

    Pernambuco. Sem falar no envio de tropas ao serto cearense para

    ajudar no combate contra as milcias armadas com cacetes benzidos.

    Em novembro de 1831, ocorreu um motim no Recife que ficou

    conhecido como a Novembrada. Os rebeldes, que foram sitiados no

    forte das Cinco Pontas e acabaram se rendendo, exigiam a

    exonerao de todas as pessoas de origem lusitana das altas

    patentes governativas (ANDRADE, 1971).

    Mas, mesmo com todas as medidas preventivas, rebentou uma

    ofensiva dos colunas sobre a cidade do Recife no dia 14 de abril de

    1832: a Abrilada. Os lderes do levante eram trs oficiais do exrcito

    depostos aps a abdicao do Imperador, ocorrida um ano antes.

    Recife foi tomada durante trs dias. Aps ser debelada a rebelio

    restauradora na capital, os lderes escaparam para o interior,

    iniciando um combate de guerrilha que durou at a morte de D. Pedro

    I, em 1835. Trata-se da Guerra dos Cabanos. A situao da Provncia

    antes da Abrilada j era de alerta. Muitos suspeitavam de um contra-

    ataque absolutista. Armamentos de pessoas vinculadas aos colunas

    foram apreendidos. Casas de colunas foram revistadas. Pessoas

    suspeitas foram retidas na capital sob vigilncia. Mas, segundo

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    39

    Manoel Correia de Andrade, "estas medidas preventivas, ao invs de

    impedirem a ecloso do movimento restaurador, provocaram a

    antecipao do mesmo, que rebentou em 14 de abril, no bairro do

    Recife e repercutiu, logo aps, em Santo Anto". (ANDRADE, s.d.:

    29-45; MOSHER, 2000a: 43-45)

    E O Carapuceiro foi um dos peridicos, dentre muitos outros, que

    militaram contra as empreitadas restauradoras. Os trs primeiros

    anos de publicao desse jornal, 1832, 1833 e 1834, foram repletos

    de artigos que pregaram contra o absolutismo. Se para Pinto Madeira

    os "malvados liberais" eram os inimigos dos "bons fiis brasileiros",

    para o Padre Carapuceiro as palavras "absolutismo", "colunas" e

    "despotismo" se constituram nos plos negativos de seu discurso. As

    pginas de O Carapuceiro formularam a idia de que "ser coluna

    ser um mau brasileiro, ser um mau cidado". Lopes Gama realizou,

    dessa maneira, um discurso que defendeu a completa nacionalizao

    do Estado brasileiro. (O Carapuceiro, n. 19, 29/08/1832).

    Deveria, assim, ser rigorosa e inclemente a punio daqueles que

    compuseram os quadros da sociedade Colunas do Trono e do Altar:

    "Nada de devassas tiradas por certos Desembargadores, to colunas,

    to colunas e lusitanos quanto os outros" (Carapuceiro n. 3,

    20/04/1832). Sua crtica se dirigiu dominao das altas

    magistraturas exercida por membros ligados sociedade secreta

    absolutista. Desde fins da dcada de 1820, grande parte dos

    desembargadores do Tribunal da Relao de Pernambuco eram

    colunas (CARVALHO, 2005). Lopes Gama escreveu, em maio de

    1832, um artigo intitulado "No me quero comprometer". Ao no

    acatar de prontido, durante a Novembrada, uma das exigncias dos

    rebeldes sitiados no Forte das Cinco Pontas - a deposio imediata

    de todos os portugueses de cargos governativos, inclusive a de

    alguns desembargadores -, o governo da Provncia tomou uma das

    atitudes mais reprovveis que poderia ter tomado: no se

    comprometer. Lendo nas entrelinhas, captando o no-dito do

    discurso, percebe-se qual era o comprometimento ao qual O

    Carapuceiro estava se referindo: a nacionalizao do Estado. Ironizou

    o Padre Carapuceiro dizendo que "h heri to ladino que fazendo

    alguns servios de vaza coberta em favor dos Liberais, no deixa de

  • 40

    os prestar da mesma forma aos colunistas, como navio que procura

    segurar-se em duas amarras". E continuou:

    "Outro funcionrio pblico; aparece uma ocasio de perigo: pede-

    se-lhe que faa uma proclamao para animar os Povos, torce-se o

    sujeitinho, entra a mastigar, e engolir em seco, pretexta a sua falta de

    luzes (melhor fora dizer, de carter), est com muitas dores de

    cabea; e assim vai-se moscando, l consigo, ou com alguma pessoa

    muito da sua confiana, descobre, descobre o verdadeiro motivo, que

    vem ser a fatal mxima "Eu no quero me comprometer"" (O

    Carapuceiro n. 6, 02/06/1832).

    No calor dos acontecimentos, o teor de sua crtica aos colunas

    incorporou um vocabulrio agressivo e radical. No terceiro nmero de

    O Carapuceiro, uma semana depois da Abrilada, o Padre

    Carapuceiro dotou suas palavras de um tom enrgico: "Apesar de ter

    dedicado este meu pequeno peridico to somente Moral; todavia

    como disse, que per accidens trataria de Poltica, no devo passar

    por alto o horrvel atentado da faco mais insolente que tem

    aparecido no Brasil, quero dizer, a rebelio dos ingratos colunas".

    Nesse nmero, escrito depois que o levante j havia sido debelado,

    chamou D. Pedro I de tirano repetidas vezes. Tambm criticou a

    fraqueza das medidas preventivas tomadas pelo governo provincial.

    Por fim, contou a histria de um dos lderes da Abrilada, Jos Martins,

    que fugiu para a Inglaterra "depois da tresloucada abdicao de D.

    Pedro" e, voltando a Pernambuco, "meteu- se nos matos e comeou

    a ganhar partido, dizendo com grande empavonamento a uns, a

    outros com lbia e mil embustes, que o ex- Imperador o encarregara

    de revoltar Pernambuco, e reintegr-lo a ele D. Pedro, no Trono do

    Brasil". Em seguida, fez uma narrativa cmica da Abrilada,

    comparando ironicamente seus lderes a grandes figuras militares da

    histria. O "martinzinho", que seria um estrategista melhor do que

    Napoleo, entraria pelo leste. Pinto Madeira, um "Gengisco dos

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    41

    Cariris", entraria pelo centro. E, por fim, D. Pedro, "pela barra dentro,

    como ns por nossas casas" (O Carapuceiro n. 3, 20/4/1832).33

    Alis, no foi s nas pginas de O Carapuceiro que Lopes Gama

    ironizou os colunas. Fazer chacota de tal faco poltica foi atividade

    constante de sua vida em 1832, ano em que publicou "A Columeida -

    poema heri-cmico em quatro cantos". Trata-se de uma stira,

    ridicularizando os absolutistas pernambucanos, que ficaram

    desamparados aps a abdicao. Houve at uma resposta escrita por

    um coluna, o Padre Marinho Falco, intitulada "Migueleida", em

    aluso ao primeiro nome do Padre Carapuceiro. (DELGADO, 1958:

    97-100; COSTA, 1981: 725).

    Ao lado da ironia, um dos traos mais marcantes de O Carapuceiro, a

    agressividade muitas vezes esteve presente nas crticas direcionadas

    aos colunas, o que comprova que a linguagem empregada por Lopes

    Gama, apesar de peculiar, no estava desvinculada do estilo hostil

    comumente empregado pelos jornalistas do perodo. Anlises

    relacionam a violncia verbal dos peridicos no incio das regncias

    com a violncia das lutas polticas do tempo, e, como podemos

    perceber, o peridico aqui em analise no esteve alheio a esse

    contexto. Frases encontradas em O Carapuceiro referindo-se aos

    colunas como "os malditos preparavam-se para o rompimento" ou "os

    infames foram batidos e destroados em menos de 24 horas"

    exemplificam essa linguagem agressiva que caracterizou a imprensa

    de incio da dcada de 1830 (SODR, 1966: 143-144). Ainda falando

    sobre a Abrilada, Lopes Gama diz:

    "A generosidade mal assente do Governo, a desassisada tolerncia

    dos liberais no foram capazes de desarmar o dio desses perversos

    escravos da Sagrada Causa da Liberdade Brasileira. Inimigos desta

    no tempo do poderio do Dspota, que felizmente deixou-nos,

    conjurados para volver-nos ao jugo do absolutismo Portugus, a

    queda do Tirano, o desbarato de suas tentativas no foram bastantes

    a quebrantar-lhes os nimos, e porfiosos continuaro em seus planos

    infernais, at que desmascararam-se de todo, e deram o grito da

    33 Francisco Jos Martins foi um Coronel deposto de seu cargo logo

    aps a abdicao e um dos lderes da Abrilada.

  • 42

    revolta na noite do dia 14 do corrente ms de Abril" (O Carapuceiro n.

    3, 20/04/1832).

    Outro aspecto deve ser ressaltado no discurso do Padre

    Carapuceiro: elementos antilusitanos. A historiografia recente tem-se

    debruado muito pouco neste aspecto que teve enorme relevncia na

    consolidao do Estado-nao no Brasil. Note-se que as

    manifestaes lusofbicas tm uma temporalidade precisa e sempre

    vieram articuladas a interesses polticos bem definidos. Mosher, ao

    analisar a lusofobia em Pernambuco no sculo XIX, periodiza sua

    pesquisa entre 1822 e 1850. No entanto, em sua anlise, no h

    provas contundentes que demonstrem o aparecimento do fenmeno

    antilusitano de forma significativa entre 1824 e 1830, entre a

    Confederao do Equador e agravamento da crise do primeiro

    reinado. Esse autor acabou, ento, por dar nfase apenas ao perodo

    da Revoluo Praieira (1848). Porm, o perodo ps-abdicao em

    Pernambuco frtil para o estudo de tal tema. E, assim como o

    antilusitanismo presente na Revoluo Praieira esteve diretamente

    associado aos interesses polticos dos liberais praieiros, como bem

    demonstra Mosher, impossvel dissociar o antilusitanismo do incio

    das regncias do processo de nacionalizao do Estado, quando

    vrias pessoas tachadas de lusitanas foram bruscamente substitudas

    por nacionais nos quadros dirigentes da provncia (MOSHER, 2000b),

    Disse Lopes Gama em abril de 1832:

    "Esses Quixotes so frteis em recursos. Quem poder pintar o

    entusiasmo, o ar autoritrio que tomaram os nossos Lusitanos! De

    balde escritores liberais, e neste nmero estou eu, como notrio, h

    muito se esforam por aplacar a rivalidade entre brasileiros natos e

    adotivos: de balde temos bradado a estes, que se no metam com

    Brasileiros degenerados, ou colunas, que tratem de seus negcios,

    de ganhar a vida, e nada mais: de balde o Governo do Brasil, mais

    humano que acautelado, continuou dar soldo e ordenado a essa

    gente depois do que fizeram durante a tirania de D. Pedro: de balde

    em fim at lhes confiou armas para a defesa comum; os ingratos tm-

    nos um rancor implacvel, nada os move, nada os convence, nada os

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    43

    irmana conosco. Se castigamos a sua ousadia, humildam-se

    exteriormente, escondem-se; mas no cessam de aborrecer-nos; se

    os abraamos, julgam-nos fracos, atrevem-se nos e querem

    suplantar-nos. No h fora moral que tire do estpido bestunto, que

    ns, filhos do Brasil, somos meros colonos do caduco Portugal, que

    isto por c muito seu e a eles cabe governar-nos per omnia saecula

    saeculorum" (O Carapuceiro n. 3, 20/04/1832).

    Em seguida, fez uma ressalva: existiam brasileiros adotivos

    extremamente honrados causa da Ptria. Mas, logo aps, sua fala

    novamente refluiu: "porm o nmero destes mui diminuto

    comparativamente ao grande todo". Percebe-se nessa fala a

    elaborao de categorias sociais: "brasileiros natos", "brasileiros

    adotivos",

    "brasileiros degenerados" ou simplesmente "lusos". Essas

    diferenciaes so deveras pertinentes para compreender de que

    maneira essas rivalidades influenciaram de fato as relaes sociais e

    polticas. Frei Caneca procurou, em 1822, amainar as rivalidades que

    se acirravam entre os pernambucanos de nascimento e os europeus

    que fixaram residncia na provncia, defendendo que todos eram

    cidados da mesma ptria, mesmo existindo categorias as mais

    diversas. Era uma tentativa de unificar uma identidade ainda

    inexistente e criar um sentimento de pertencimento, algo

    indispensvel para a construo de um Estado (LYRA, 1998; SILVA,

    2005). Nos idos de 1832, Lopes Gama fez diferente, pois procurou

    distinguir os "brasileiro adotivos" dos "degenerados". Sua inteno

    no era, tal qual a de Caneca, apagar o incndio dessa "rivalidade

    entre portugueses europeus e os lusos indgenas do mesmo Brasil"

    que "vai minando e solapando, quanto pode, as bases da sociedade".

    Queria ele adicionar mais combustvel a essa fogueira.

    "No posso ser indiferente ao esprito de concrdia",- disse Lopes

    Gama - "que se difundiu por todos os brasileiros. Todos se

    abraaram, esqueceram as rivalidades, no houveram mais

    moderados, nem exaltados; tudo um s sentimento, tudo

    brasileiro, tudo quer salvar a Ptria, defender a Liberdade, acabar

    com os infames colunistas". Uma "causa nacional", como tambm

    uma identidade, eram reivindicadas (O Carapuceiro n. 3, 20/04/1832).

  • 44

    A abdicao demarcou o inicio de um processo de nacionalizao do

    Estado brasileiro. Esse processo, porm, no se deu de forma

    pacfica, e lutas ocorreram em vrias esferas: na militar, na poltica e

    no "reino da opinio" (MOREL, 2005: 200-222). A nacionalizao do

    exrcito e a criao da Guarda Nacional foram aspectos centrais

    nesse processo (RODRIGUES, 2006; CASTRO, 1977: 16-26), bem

    como a nacionalizao dos cargos dentro do executivo, do judicirio e

    do legislativo. E a palavra impressa foi um elemento que esteve

    altamente vinculado a toda essa transformao dentro das

    instituies brasileiras.

    A identidade nacional contra "bairrismo"

    No incio das regncias, Lopes Gama colocou num primeiro plano a

    defesa da soberania da nao, e relegou a defesa da soberania

    monrquica e da lealdade dinstica a um plano secundrio. A

    conjuntura da primeira metade da dcada de 1830 no permitia que a

    defesa do princpio monrquico fosse colocada em destaque, pois

    Pedro II contava com menos de 10 anos de idade, e, sendo assim,

    defender tal princpio poderia colocar em cheque a soberania da

    nao. Elaborar um discurso monarquista nesse perodo significaria

    uma associao imediata com o grupo restaurador. E esta

    associao, no entender do Padre Carapuceiro, era oposta

    "sagrada causa da liberdade" brasileira.

    Nos anos finais do Perodo Regencial, no entanto, j era possvel

    colocar esses dois princpios em um mesmo plano, ou seja, conferir a

    mesma importncia defesa da soberania da nao em relao

    defesa da soberania monrquica. E esse foi o tom do discurso de

    Lopes Gama na poca do reaparecimento de O Carapuceiro a partir

    de 1837. Defendeu a soberania da nao nos seguintes termos: o

    Imprio uno e indivisvel. J a defesa da soberania monrquica e da

    lealdade dinstica foi empreendida na medida em que o nico

    sistema considerado capaz de promover a manuteno da unidade

    da nao era a monarquia constitucional.

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    45

    Mas a monarquia no era o nico elemento que, para Lopes Gama,

    poderia assegurar a integridade do Imprio. Em um artigo de maio de

    1839, "O Bairrismo", elaborou vrias propostas que poderiam auxiliar

    na manuteno da unidade. Nesse artigo dissertou sobre um

    vocbulo que no era contemplado pelos dicionrios, mas que todos

    sabiam o que significava. Definiu o "bairrismo" como "o excessivo

    amor, a indiscreta predileo pelas cousas, e pessoas da localidade,

    em que nascemos". Para ele, o "bairrismo" era um "vcio, que nos

    pode levar s mais terrveis desgraas":

    "Esta paixo vil, baixa, e ignominiosa no deve ser confundida com o

    nobre amor da Ptria, amor, que quando bem regulado, o

    manancial das mais hericas virtudes. A nossa Ptria pois o Brasil,

    e todos os Brasileiros constituem uma s, e a mesma famlia" (O

    Carapuceiro n. 20, 30/05/1839).

    Esse trecho demonstra muito bem alguns aspectos que j foram aqui

    tratados. Lopes Gama criticava a antiga "ptria" e o "patriotismo" da

    poca da independncia, e redefinia essas noes. O vocbulo

    "ptria" e a qualidade de ser "patriota" eram referncias ao Brasil, e

    no ao local de nascimento, ou seja, s provncias. Lopes Gama

    evocou, assim, uma identidade nacional, caracterizando-a como o

    "manancial das hericas virtudes". O contrrio disso, o "bairrismo",

    era um vcio. O Carapuceiro, sempre qualificou a Confederao do

    Equador como uma "quixotada", e construiu, dessa forma, uma

    memria que valorizava a unidade do Imprio, fazendo um

    contraponto a uma memria de carter regionalista que poderia

    mitificar a rebeldia pernambucana frente ao Imperador (FELDMAN,

    2006b). Quando caracterizou o "bairrismo" como uma "paixo vil",

    novamente se voltou contra a exacerbao das identidades regionais.

    Formulou, assim, uma identidade brasileira que deveria estar sempre

    em destaque, sempre em um primeiro plano, sempre em evidncia. A

    identidade nacional deveria se sobrepor identidade regional, o

    "amor ptria" deveria se sobrepor ao "infernal bairrismo", para no

    desunir a "Grande Famlia Brasileira".

    Mas ele no defendeu a unidade do Imprio apenas atravs de um

    discurso que transitava no abstrato campo das identidades. No

    mesmo artigo, props algumas medidas polticas concretas que

    poderiam auxiliar na unio da "Grande Famlia Brasileira". Criticou a

  • 46

    idia, sempre em voga, que propugnava que os no nascidos em

    Pernambuco deveriam ser proibidos de exercer alguns direitos

    polticos nessa provncia, mesmo sendo domicilirios desta e ali

    vivendo casados. Frei Caneca j defendera semelhante proposio.

    Estava Lopes Gama se referindo ao direito de ser nomeado pelo

    governo provincial para o exerccio de um emprego pblico e ao

    direito de participar das eleies populares. Questionou Lopes Gama:

    "por que motivo ho de ser excludos, se o brasileiro em qualquer

    Provncia do Brasil, em que habite, est em sua ptria?" Pretendia

    com isso acabar com as "rivalidades, que de dia em dia vo tomando

    galga entre as Provncias do Imprio". Props tambm que, para

    "conservar a to precisa unio entre as Provncias, e para melhor

    desempenho das funes pblicas convinha, que na escolha dos

    Presidentes se revezassem os Brasileiros das diferentes Provncias,

    isto ; que o Baiano viesse ser Presidente em Pernambuco, o

    Pernambucano fosse para a Bahia; o Maranhense para a Paraba, o

    Paraibano para o Maranho, etc. etc." (O Carapuceiro n. 20,

    30/05/1839).

    Observe-se que esta proposta, feita por Lopes Gama, foi colocada

    em prtica a partir do segundo reinado, e que Jos Murilo de

    Carvalho, tentando elucidar quais foram as condies que permitiram

    a construo do Imprio unitrio, conferiu a essa prtica um peso

    relevante. Para Carvalho, a circulao dos membros da elite imperial

    por todo o territrio do Brasil foi um dos fatores determinantes para a

    manuteno da unidade. Analisando a carreira dos polticos no

    interior desta elite, e verificando qual foi a trajetria daqueles que

    galgaram at os cargos mais altos da burocracia imperial, como, por

    exemplo, uma pasta ministerial ou uma cadeira dentro do Conselho

    de Estado, ele constatou que a funo de Presidente de Provncia foi

    um dos inevitveis degraus que deveriam ser ultrapassados para se

    obter esta ascenso poltica. E, na maioria das vezes, a carreira

    desses polticos foi marcada pelo exerccio de vrias presidncias,

    nas mais diversas provncias. Era uma prtica semelhante adotada

    pela coroa portuguesa nos tempos coloniais, quando os magistrados

  • REVISTA AULAS. Dossi Identidades Nacionais

    47

    circulavam por todo o Imprio - na frica, na Amrica, na sia e

    tambm no Reino (CARVALHO, 1996b: 107-127).

    A grande lacuna na anlise desse socilogo , no entanto, a falta de

    uma periodizao precisa. Ele no indica a partir de quando comeou

    a ocorrer essa intensa circulao entre os presidentes de provncia.

    E, como leva a crer o tom do discurso de Lopes Gama, essa prtica

    ainda no era recorrente durante o perodo das regncias. Em

    Pernambuco, durante o perodo das regncias, muitos presidentes

    eram nascidos na prpria provncia. Caberia empreender uma anlise

    que tivesse como eixo periodizar esta prtica e tambm verificar se

    ela realmente ainda no era levada a cabo durante as regncias.

    Seria interessante verificar quais foram os formuladores desta prtica.

    Ser que o discurso de Lopes Gama exerceu alguma influncia na

    consolidao deste fenmeno? De que maneira, onde e quando

    essas idias foram discutidas? Ser que o Padre Carapuceiro,

    quando Deputado Geral entre 1840 e 1841, foi um agente atuante no

    seio desse processo?34

    * * *

    Observamos, neste breve artigo, que inexistia uma identidade

    nacional brasileira de tipo poltico poca da independncia. Esta

    identidade teve que ser construda, junto com o Estado imperial, e

    este processo esteve repleto de disputas e peculiaridades. No

    contexto ps-abdicao, a soberania nacional brasileira esteve

    seriamente ameaada pelas intenes restauradoras. A afirmao e a

    exaltao da identidade brasileira, em oposio identidade lusitana,

    foi elemento crucial no processo de nacionalizao do Estado. No fim

    do perodo das regncias, a unidade da nao estava duramente

    ameaada, e as identidades regionais ainda se sobrepunham, em

    alguns casos, identidade nacional. Era preciso reverter essa

    proeminncia do regional sobre o nacional. E, numa poca sem

    internet, televiso e rdio, a imprensa peridica era o meio mais

    efetivo de divulgar idias e construir novas identidades polticas.

    34 A anlise de Carlos Humberto P. Corra (2004) baseada em dados quantitativos acerca da prtica da presidncia de provncia durante todo o Imprio, mas tambm no responde s questes aqui levantadas. CORRA, Carlos Humberto P. A presidncia de provncia no Imprio. In Anais da XXIV reunio da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica. 2004. Curitiba: SBPH.

  • 48

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