identidade e trabalho uma articulação indispensável

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  • 5/16/2018 identidade e trabalho uma articula o indispens vel

    Capitulo I

    Identidade e Trabalho: umaarticu lac;Ao indispens8vel

    Marla do Grafa C o r r e a Jacques (UFRGS - RS)

    As mudaneas que ora se processam no espaco organizacional, re-introduzem a impot'tincia conferida ao chamado fator humano e suas im-plicacoes sobre 0processo produtivo. Embora ja apontado por escolas deadministracao desde algumas decadas passadas, ressurge com outra abor-dagem, privilegiando, agora, a complexidade e a multiplicidade de dimen-sees consideradas, 0 componente subjetivo e sua relevancia no cotidianolaboral enseja 0 aprofundamento de alguns temas , procurando fomecersubsidios para uma melhor compreensao e analise dos aspectos que the s a opertinentes. Por outro lado, a crescente demanda por services de assistenciaa saude e a constatacao da relacao entre os processos de saude/doenca dapopulacao e 0cotidiano laboral, propoem 0exame e a articulacao entre adimensao subjetiva e a dimensao objet iva representada pelo trabalho. Essaarticulacao pressupoe a reciprocidade e a interdependencia entre essasdimensoes e a interat;3.oentre os aspectos psicol6gicos e os aspectos estru-turais fundantes de um detenninado contexto social. Com essa finalldade seinscreve a tematica proposta, procurando fomecer fundamentos oriundosda chamada Psicologia Organizacional e do Trabalho que auxiliem a analiseda relacao homemltrabalho e suas implicacoes sabre 0sistema produtivoe sobre 0contexto socio-economico,

    Os temas identidade e trabalho tern em comum interpretacoescontrovertidas de ordem conceitual, extensivas assuas origens etimol6gicas.o vocabulo identidade (do latim idem, 0mesmo, a rnesma) propoe umanocao de estabilidade que se contrapoe a processualidade e ao carater deconsrrucao permanente que Ihe sao proprios. Sugere, ao mesmo tempo,o igual e 0dlferente, 0permanente e 0mutante, 0individual e 0coletivo.Sua tradicao te6rica se cireunscreve, prioritariamente, no campo da Filo-sofia, revelando uma diversidade de posieoes em acordo com diferentes

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    prindpios fil0s6ficos nos quais se fundamenta. A tendencia atual e deconcebe-la como uma sintese 16gia e ontol6gica e facultar a s relacoessocials papel de destaque na sua constitui~o. 0 termo trabalho propoe,tambem, urna assOcia:~ 'rontrovettida relaciOnada a sofrimennto e atransformacao da narureza atra~ e t a al;ividade human. (do latim tripalium,instrumento de tortura e instrumento agricola de cultura de cereals). Osautores reconhecem uma diftculdade em definf-lo com precisio e sugererno emprego de aproximaes conceituais, au seja, conceitos de trabalhodistimosque nio.o esgotam e nem sio integdveis racionalmente entre si(Heller, 1989).

    A articulacao entre identldade e trabalho vern de uma tradicao queconfere ao papel social expressividade na constituieao da identidade.Dentro dessa tradicao, incluern-se as referencias do Interadonismo Simb6-lico atraves dos estudos de Goffman (1985) que representam urn romp l-menta no costume de atribuir, somente ao individuo, enquanto autonomoe livre, a causalidade para as suas acoes, Mais recentemente, Habermas(1990) propoe que a uma "identidade natural" se segue uma "ldentidadede papel", que se constitui pela Incorporacao das unidades simb6licasmediadas pela socia}jza~o e, sobre essa, a "identidade do eu" a partir daintegra~ des papeis socials atraves c ia igualdade e da dilerenca emrela~ao aos outros.

    A importilncia e exaltacao maximas conferidas ao trabalho na socie-dade ocidental concedem ao papel de trabalhador lugar de destaque entreos papeis socials representativos do cu. Arendt (1981), referindo-se aimportancia do homo faber no mundo contemporaneo, assinala que aotentar dizer "quem e", a propria linguagem induz a dizer "o que alguerne", reservando urn lugar de destaque ao papel de trabalhador. Papel socialao qual se agregam outras quallflcacoes exigidas pelo exerdcio laboral quese substantivam e se presentificam, constituindo-se em atributos definit6riosdo eo (atlvidade, forca, bravura, honestidade, etc.) e inclusos na represen-ta~ao do "eu sou trabalhador", Costa (1989) registra, na sua pratlca psiquia-trlca em ambulat6rios de saude, a presenca de transtornos psfquicos,denominados "doencas dos nerves" au "crises nervosas", intimamenteassociados com a trajetoria e os percalcos da vida Iaboral e com ameacasa identidade de trabalhador, 0 autor assinala que essa identidade, asso-ciada a outros atributos sodalmentevalorizadose julgad05 como constitutivosdo ser humano pelo imaginario social, mostra-se a conseiencia do sujeito22

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    como urn elemento definit6rio de grande significai.o na "identidade psico-logica", Emprega 0termo identidade psicol6gica pam diferenciar de outrossistemasidentificat6rlos (identidade social, etnica, religiosa, etc.),por seapresemar, noo como apenas urn atributo do eu ou de aIgum eo, mas comourn predicado universal e generico definidar por excelencia do humano.Essas consideracoes apontam a pertinencia da articulacao entreidentidade e trabalho e a expressividade.dessa Ultima categoria na cons-titui~o do eo. Aoompanhando 0cara ter de exaltacao maxima que 0trabalho alcanca na sociedade ocidental a partir da tmplantacao e 00050-lidacao do sistema capitalista, e escolhido, por rnuitas teorias, como care-goria explicativa do processo de desenvolvimento fllogeneuco da especiee como representativa da con~ao humana. 0exercicio de atividadescoletivas e de trabalho conjunto e apontado como responsavel pelosurgimento das especiflcidades pr6prias do homo sapiens, como pensa-mento, consciencia e linguagem (Leontiev, 1978). Atraves da analise dotrabaho alienado, Marx (1989) 0apresenta como categoria que confere aqualifica~o de humano ao seu portador, a partir de urna concepcao denatureza humana que se constitui na existencia concreta pe1a insercao nomundo das relacoes socials.

    Essa mesma concepcao de natureza humana vai fundamentar aarticulacao entre identidade e trabalho, em que ganha relevancia 0queSeve denomina de "formas hist6ricas de individualidade"(1989,p.123). Ascapaddades caracteristicas da humanidade, historicarnente desenvolvidas,encontram-se objetivadas em urn sistema temporal de atividades,inseparavelmente socials e individuais, fundadas sobre 0e no conjunto dasrelacoes socials, OU seja, na forma de reia~5es socials que carla indivfduoe carla geracao encontram como dados existentes, mas transformados sobo ponte de vista da individualidade psicobiograflca atraves da mediacaodo outro e de sfnteses proprias que dao 0carater de especifiddade.Omundo concreto do trabalho se constitui como urn locus por excelenciapara essa mediacao, par mais nao seja, pelo mimero de horas diarias queos individuos a ele se dedicam.

    Estudos empiricos revelam (Jacques e colaboradores, 1995) que aidentidade de trabalhadorse constitui precocernente atraves da identifica-i.o com modelos adultos e/ou atraves da insereao concreta no mundo dotrabalho. Essa insercao e determinada por fatores de genero e c1asse,reservando as meninas pobres 0trabalho domesnco e, aos meninos po-

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    bres, 0exerdcio de atividades, no espaco publico, de menor reconheci-mento social e de cardter prescindfvel. 0exerdcio das atividades sesubstantivam e se presentificam, constituindo-se em qualfficacoes ao sertrabalhador e em predicativos definit6rios do eo ("engraxo sapatos, souengraxate"), 0ingresso no MUndO concreto do trabalho confere valorsocial, reproduzindo 0imaginMio coletivo de valoriza~ moral ao sertrabalhador. Permite a aquisiCio de qualificaes como seriedade, obdiencia,disciplinamento, etc., esperadas pelo espaeo de trabalho oportunizado adetenninadas camadas socials que sao agregadas a identidade de trabalha-dor e incorporadas ao eo.

    Na vida adulta, a i~o no Mundo concreto do trabalho aparececomo sequencia l6gica de uma vida "adaptada" e "normal" e como atributode valor em uma sodedade pautada pelo fator produtivo. Os diterentesespacos de trabalho oferecidos vao se oonstituir em oportunidades dife-renciadas para a aquisicao de atributos qualificativos da identidade detrabalhador. sao inumeros os estudos que rem como tema a investtgacaode caracteristicas identificat6rias proprias da c1asse operaria e/ou de de-tenninadas categorias profissionais (Lopes, 1987; Campioo, 1982; Sainsaulieu,1988) e que apontam que 0 exerddo de determinadas atividades eoconvfvlo com determinadas relacoes socials constituem "modos de ser",que qualificam os pares como iguais (mesmo facultando diferencas indi-viduals) e se expressam em comportamentos similares, modos de vestir ede falar, lugares freqOentados, etc. sao variadas essas qualjflcacoes esomente 0acesso a esses estudos permite especifica-las. No entanto, todosapontam a sua presenca como constitutivas da Identidade, marcando asigualdades sem desconsiderar as dfferencas individuais.Alguns autores (Camino,)9%) ernpregam 0termo "identidade so-cial" (inspirados na terminologia de Tajfel) para se refirir a consciencia depertencer a determinado grupo social e a carga afetiva que essa pertencaimplica. Enquanto apresentada como um ~rocesso dialetico, a identidadesocial facilita a incorporacao de valores e normas do grupo social, implicaem uma participacao ativa do sujeito na construcao da identidade grupale afeta 0contexte hist6rico onde ocorrem essas relaeoes concretas. Por suavez, as estruturas sociol6gicas influenciam as representacoes que os indi-viduos fazem de si, enquanto representacoes do eu. Alguns espacos detrabalho e/ou categorias profissionais, pelas suas especificidades pr6prias,

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    em geral assocladas a prestigio ou desprestiglo social, proporcionam atri-butos de qualfficacao e/ou desqualificacao ao eu. Em alguns casos, aqualifica~o e de tal forma representanva desse eu que 0prefixo ex eevocado para dar conta da idenddade em determinadas circunstiincias,como a aposentadoria, por exemplo.Santos (990) aponta a representacao da aposentadoria como aperda do papel profissional, que passa a ser urn marco social (ser velhoe suas signiflcacoes), corporal (tendencia a doencas) e psicol6gico (pers-pectiva de futuro). Os dados sobre a realidade brasileira indicam que essae urna experiencia muito caracterlstica de determinadas camadas sociais,visto que a grande maioria da populacao idosa continua como trabalha-dora, principalmente por necessidade de sobrevivencia,Entre a populacao idosa, 0 conceito de trabalho que constitui aidentidade de trabalhador se re-signlfica, visto os limites sociais impostos:trata-se agora de ser ativo (em contraposlcao ao nao-ativo). Sob essaperspectiva sao buscadas atividades, remuneradas ou nao, preferentementeno espaco publico para garant i r 0reconhedmento social. E0que oportunizaa experiencla de sentir-se vivo, ja que a sua ausencia e associada a morte,a exclusao e a segregacao (Jacques e colaboradores, 1995). Quando essaspossibilidades nao se concretizarn, as lembrancas de trabalho sao evocadascomo justiflcacao de toda uma biografia e de reconhecimento social, comoconstata Basi (987).

    Quando urn conjunto social se pauta por valores utilltartos como nocaso da sociedade conternporanea, a ausencia de insercao nesse modeloe/ou em suas formas organizativas e relaclonais representarn experienciasde sofrimento e repercutem na qualidade de vida de sua populacao. Esobre esse enfoque que a articulacao entre identidade e trabalho se tornadispensavel ou indispensavel, conforme prioritaria ou nao a eruase atribu-fda a qualidade de vida da populaeao por urna determinada sociedade, Sobessa perspectiva, 0desemprego, a aposentadoria, a inatividade, revelamuma dimensso subjetiva e uma repercussao social para alern dos dadosestatisticos e para metros econ6rnicos. No momento em que a globalizacaoda economia aponta para a necessidade de ir alern da re-estruturacaoprodutiva, incluindo programas de prevencao a preservacao ecol6gica doplaneta e a saude de sua populacao, a associacao identidade e trabalho secoloca enquanto associada ao sofrimento e a doenca, A constatacao de

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    que, em escala mundial, sao asdoencas psiquidtrieas e as doeneas sorruiticascom fortes componentes emocionais (como a hlpertensao, por exemplo)os motivos principais de afastamento, ternporario ou nao, do trabalho,aliadas ~presence da morte por excesso de trabalho (0kar6shi no japao),a articulacao identidade e trabalho se apresenta como lndtspensavel, querse considere a identidade psicol6gica (de carater Individual), quer seconsidere a identidade social (de cartier grupal).

    Qualquer argumentaeao sobre a tematiea nao pode se propor ateorias generalizantes. Aose inscrever no espaco do humano convive coma singuiaridade que 0caracteriza. Importante, no entanto, compreenderesse humano inscrito em urn contexto s6cio-hlst6rico que exa1ta ato detrabalhar e lhe confere valor positivo, faculta-Ihe significincia Impar naexistencia, constitumdo-se como repre.sentante do eo. Os cotidianos laboralse suas determinaH!s qualificam opersonagem trabalhador e se expressamnasrespostas a pergunta "quem es"...

    "Eu sou mUsico (24 hs. per dia)","Eu sou sacoleira ( ser muambeira nao faz a minha cabeca)","Eu sou engruate (mas cia pouco dinhefro)","Eu sou ativa (porque se eu parar eo estou na ante-sala da rnorte)".Eu sou ...