iamamiwhoami: videoarte, música eletrônica, narrativa multimídia convergem numa estratégia de...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIALCURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA
FELIPE DÁRIO DOS SANTOS
iamamiwhoami: videoarte, música eletrônica, narrativa multimídia convergem numa estratégia
de comunicação experimental
Recife2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCOCENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIALCURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA
FELIPE DÁRIO DOS SANTOS
iamamiwhoami: videoarte, música eletrônica, narrativa multimídia convergem numa estratégia
de comunicação experimental
Artigo apresentado à disciplina Método de Pesquisa em Comunicação 2, sob orientação da Profa. Dra. Cristina Teixeira Vieira de Melo.
Recife2011
Resumo: A saturação do mercado musical exige novas estratégias de comunicação.
Analisaremos o projeto de música eletrônica e videoarte iamamiwhoami, que criou
uma narrativa que se espalha de forma viral e com a ajuda de seus fiéis
consumidores.
Palavras-chave: marketing viral, narrativas multimidiáticas, consumidores-fãs, novas
mídias, mercado fonográfico.
Introdução
A estrutura da indústria musical está sendo radicalmente transformada por uma série
de mudanças nos últimos anos. Deflagradas principalmente pelo uso da internet para
distribuição, essas mudanças estão transformando o mercado musical e, assim, têm
um impacto significativo sobre os agentes tradicionais desse mercado. Enquanto
desafiam os segmentos mais estabelecidos da indústria musical, os novos paradigmas
criam oportunidades para os outros segmentos. Mais e mais artistas começam a
desbravar uma carreira independente de gravadoras, da produção à promoção.
(BOCKSTEDT, J; KAUFFMAN, R; RIGGINS, J., 2004).
A internet sem dúvida facilitou diversos processos envolvidos na criação e distribuição
de música. Mas ter visibilidade (uma visibilidade prolongada, e não “quinze segundos
de fama”) ainda é difícil para grupos musicais sem o apoio de grandes selos. As
estratégias de comunicação mudaram fundamentalmente, mas precisam continuar
fortes e bem estruturadas para que o artista não seja one hit wonder.
Alguns dos novos elementos aliados às estratégias comunicacionais de diversas
empresas incluem: o uso do marketing viral, uma ferramenta que potencializa a
dispersão espontânea de uma mensagem atrativa; a construção de narrativas
complexas e interessantes, que por vezes se desdobram em diversas mídias, e a
tentativa de se obter “consumidores-fãs”, pessoas que se ligam emocionalmente às
marcas que compram (JENKINS, 2009).
Esses elementos refletem uma confiança inaudita no consumidor: são criadas
condições para que este desenvolva uma relação de afeto com a marca e contribua
ativamente para sua promoção, ao passo que o torna vigilante em relação a sua
marca, fazendo com que deslizes antes perdoáveis possam causar grandes danos. A
“transformação do consumidor em veículo de comunicação” faz muito sentido quando
pensamos na “nova esfera conversacional” teorizada por André Lemos (2009, p.3):
A nova esfera conversacional se caracteriza por instrumentos de comunicação que desempenham funções pós-massivas (liberação do polo da emissão, conexão mundial, distribuição livre e produção de conteúdo sem ter que pedir concessão ao Estado), [...] alicerçada na troca livre de informação, na produção e distribuição de conteúdos diversos, instituindo uma conversação que, mesmo sendo planetária, reforça dimensões locais. As tecnologias da comunicação e da interação digitais, e as redes que lhe dão vida e suporte, provocam e potencializam a conversação e reconduzem a comunicação para uma dinâmica na qual indivíduos e instituições podem agir de forma descentralizada, colaborativa e participativa.
Mas, como o próprio André Lemos (ibid., p. 2) deixa claro, “É importante compreender
que a nova paisagem comunicacional não aniquila o poder e a força dos meios
massivos.” Na publicidade atual, vídeos virais são quase sempre usados como teasers
de campanhas tradicionais, ancoradas em mídia massiva. E as mídias de massa
quase sempre geram mais lucro que as iniciativas perpetradas em meios alternativos e
direcionadas apenas a tais consumidores-fãs.
Como uma entidade que não tem acesso (ou interesse em ter acesso) a mídias
massivas consegue utilizar-se apenas de alguns recursos experimentais para se
promover na internet?
I am. Am I? Who am I? O que é iamamiwhoami
Falando sobre música independente na internet, Gisela Castro (2004, p.12) defende
que “nichos restritos de mercado podem tornar-se bastante lucrativos devido à
conectividade da rede em escala planetária, favorecida ainda com os inúmeros
dispositivos de conexão à distância”. Mas apenas disponibilizar arquivos de música
não garante que o público seja atingido. Promover é necessário mesmo nos mercados
mais restritos, em que os ouvintes naturalmente compartilhem novidades e os canais
em que se pode distribuir um conteúdo são limitados.
iamamiwhoami é um projeto audiovisual experimental em que música eletrônica,
construção narrativa, videoarte e formatos de comunicação próprios das novas mídias
convergem. No final de 2009, vídeos de cerca de um minuto de duração contendo
cenas enigmáticas, melodias eletrônicas, imagens aparentemente desconexas e
sequências de números começaram a ser publicados num canal do site de vídeos
YouTube1 (JOHANSSON, 2011).
Ao mesmo tempo, alguns jornalistas de música pop e eletrônica de todo o mundo
receberam pacotes contendo uma mecha de cabelo loiro e o endereço daquela
página, junto da expressão “To whom it may concern”. Semanas depois, clipes
musicais mais longos, mas ainda assim densos e misteriosos, foram divulgados aos
poucos e suas canções, postas a venda em lojas online como iTunes e Amazon. O
quinto clipe alcançou mais de três milhões de visualizações no YouTube, sem que uma
palavra fosse dita oficialmente sobre quem eram os autores daquele projeto ou que
1 Disponível em http://youtube.com/iamamiwhoami
uma canção tocasse em rádios (DE PAULA, 2010; FREITAS, 2010; IAMAMIWHOAMI,
2011).
Desde então, uma performance em longa-metragem transmitida apenas pela internet e
um show num festival de música foram realizados, contendo sempre a mesma estética
e os mesmo elementos – e da mesma forma misteriosa.
Uma das autoras reconhecidas pelo público nas imagens é a artista sueca de 29 anos
Joanna Lee, que já lançou alguns álbuns de estilo diferente do produzido por
iamamiwhoami. A equipe criou uma história que gira em torno da mandrágora do
folclore europeu e discute meio-ambiente, identidade e gênero, entre os temas mais
facilmente observáveis.
iamamiwhoami é um dos expoentes da quebra do paradigma “teaser viral seguido de
campanha tradicional”: o viral é a única interface com o público e o “mistério” proposto
no teaser nunca é revelado. As principais peças de divulgação do projeto são suas
próprias obras: os clipes. E, por ser um projeto artístico, iamamiwhoami também
consegue dialogar com o fenômeno da comunicação pós-massiva. Vídeos do YouTube
são citados nos clipes, fãs são escolhidos para participar (de forma bastante ativa) de
uma performance através dessa plataforma, e a quarta parede é quebrada algumas
vezes, salientando o caráter de videoarte.
Os principais produtos são os vídeos postados exclusivamente no canal do projeto no
YouTube, mas a produção já incluiu um número de telefone para o qual os fãs ligavam
e ouviam um novo trecho de uma música. Uma performance transmitida pela internet
(“IN CONCERT”) e um show no festival sueco Way Out West são os mais recentes
formatos explorados.
Durante 2010, os lançamentos de vídeos e músicas foram bem espaçados, o que
garantiria que não houvesse grandes baixas do buzz em torno do projeto (ver Tabela
1). Primeiro, ocorreu a publicação de seis teasers que desenvolvem um arco da
história: uma mandrágora nasce (ou “brota”), é retirada de seu ambiente natural (ou
“colhida”) e levada para um ambiente humano.
O segundo arco, dos videoclipes “b o u n t y”, traz o desenvolvimento dessa
mandrágora, ora no ambiente humano, artificial, ora no ambiente natural. Em
novembro daquele ano, acontece a performance “IN CONCERT”, com duração de
pouco mais de uma hora, em que ocorre o inverso: a mandrágora sai do ambiente
humano e retorna ao ambiente natural.
Título Lançamento Visualizações Endereço original
Prelude
699130082.451322-
5.4.21.3.1.20.9.15.14.1.12
04/12/2009 312.297 http://www.youtube.com/watch?v=oPFM3DUVT-8
9.1.13.669321018 07/01/2010 240.151 http://www.youtube.com/watch?v=HouIf-PXpJs
9.20.19.13.5.723378 25/01/2010 269.608 http://www.youtube.com/watch?v=oVVLkWjTISE
13.1.14.4.18.1.7.15.18.1.1
110
10/02/2010 379.925 http://www.youtube.com/watch?v=4yAI5_YXNqI
15.6.6.9.3.9.14.1.18.21.13.
56155
22/02/2010 308.598 http://www.youtube.com/watch?v=UxC4zMCwefo
23.5.12.3.15.13.5-
8.15.13.5.3383
01/03/2010 331.914 http://www.youtube.com/watch?v=1rpD_eclfTY
b 14/03/1020 842.039 http://www.youtube.com/watch?v=M2WDbAFvt6A
o 12/04/2010 527.476 http://www.youtube.com/watch?v=MMroXbAmrI8
u-1 03/05/2010 229.113 http://www.youtube.com/watch?v=izejVXJ_arQ
u-2 07/05/2010 219.022 http://www.youtube.com/watch?v=WB85HAUXbbM
n 02/06/2010 489.921 http://www.youtube.com/watch?v=N0BsI8R4izQ
t 30/06/2010 708.860 http://www.youtube.com/watch?v=bW89Pv8QrX4
y 04/08/2010 3.439.222 http://www.youtube.com/watch?v=LEoGQU_k78k
201010012 01/10/2010
20101104 03/11/2010 112.293 http://www.youtube.com/watch?v=mnJ_bZV9X3o
IN CONCERT3 16/11/2010 http://towhomitmayconcern.cc
; john 15/05/2011 250.534 http://www.youtube.com/watch?v=TLPxTKR7A70
clump 31/07/2011 149.238 http://www.youtube.com/watch?v=VduvB5xY2L0
Tabela 1: videografia de iamamiwhoami. Dados de 07/11/2011 (YOUTUBE, 2011).
2 Apagado do canal original. É um preâmbulo para a performance “IN CONCERT”.3 Disponível durante 6 horas no endereço indicado.
A importância de uma “comunidade” de consumidores
Henry Jenkins (2009) retoma o conceito de comunidades de conhecimento de Pierre
Lévy (1997) ao estudar as comunidades de fãs. O grupo de pessoas que participa
ativamente de uma “comunidade de marca”, também chamados de “consumidores-
fãs”, tende a ser uma fração do público total de uma marca. Porém, todos os
consumidores passam a ter a seu dispor uma teia de informações criadas pelos fãs
em discussões e produções inspiradas em seu objeto de fascínio. Essa construção em
muito transpassa a propriedade intelectual original.
Esse novo entendimento dos consumidores como agentes no processo de promoção e
até mesmo de criação de produtos modifica as relações mercadológicas, e tem sido
notada especialmente na indústria cultural.
Diferente de pensar a comunidade de espectadores como passivos telespectadores, é preciso investigar os diálogos estabelecidos a partir do advento das mídias digitais. [...] A produção coletiva de sentidos motiva a audiência a acompanhar os episódios e a se inserirem no grupo. As discussões que se estabelecem, facilitadas pela internet, propiciaram uma nova dinâmica entre os produtores e consumidores (GREGOLIN, 2010).
Tal comunidade de pessoas organizadas em torno da apreciação de uma entidade da
cultura pop é comumente chamada de fandom. “Since the mid–1990s, studies of
fandom have increasingly focused on the Internet as a locus of fan activity” (BAYM,
2007, p. 2), atividade essa que começou em listas de discussão e fóruns e hoje
também se estabelece em redes sociais.
A comunidade de iamamiwhoami
Uma comunidade de fãs em torno de iamamiwhoami começou a se formar nos
comentários dos primeiros vídeos e em posts de blogs tratando do assunto: as
pessoas sentiam-se atraídas em descobrir do que se tratava aquilo e quem era(m)
seu(s) autor(es). Foi inusitado observar que fandoms de diversos artistas já
estabelecidos aproximaram-se para descobrir a identidade da mandrágora: seria
Christina Aguilera? Allison Goldfrapp? (YLOSIAM, 2010).
Depois da primeira leva de virais, sites mais representativos, como Iambounty Fan4, se
estabeleceram. Mas a discussão continuou a acontecer por toda a internet, em blogs
4 Disponível em http://www.iambountyfan.com/
pessoais como ForsankenOrder, de Dariana Ylosiam5, em que cada vídeo é
exaustivamente analisado. Fãs também se manifestam quando iamamiwhoami
aparece em sites mais conhecidos: o Papel Pop, um dos mais visitados blogs de
cultura pop do Brasil (CAPERUTO, 2009), publicou uma resenha pouco lisonjeira e
recebeu dezenas de comentários discordantes6.
Além do número de visualizações dos vídeos no YouTube, não há muitos dados
oficiais em relação ao YouTubede iamamiwhoami. No Facebook, uma fan page não
oficial7 possui 14.272 pessoas conectadas. O site de fãs Iambounty Fan tem 1.053
pessoas conectadas no Facebook8 e 368 seguidores no Twitter9. Para um projeto
musical underground, são números consideráveis.
Esse número de fãs só foi conquistado com a criação de um conteúdo interessante,
intricado, complexo, que causa estranhamento, interesse e convida a uma
investigação para ser melhor compreendido (DINEHART, 2006).
A criação de uma narrativa
A história contada por iamamaiwhoami começa pelo título, escrito oficialmente em
caixa-baixa. Dariana Ylosiam (2010) propõe duas formas de leitura: “I am. Am I? Who
am I?” e “I am Ami. Who? Ami”. Acaba escolhendo a primeira como “verdadeira”, e
desmembra essa composição (grifo do original):
I am. – Statement, not question. Synonym to: I have been born, I exist, I came into being. I am is the response to a direct question establishing identity. [...]Am I? – Question. Strongly related to the existential interrogation of the human being: do I exist? The first thing a baby does after having been born is to figure this Am I by touching his fingers, moving his feet and so on. Whoever has a baby knows this is what it does in the first months of his life. Who am I? – in the same extent, an existential question, but this time applied throughout a being’s existence. I might as myself “Who am I?” at the age of 80, as I have been asking myself at puberty.
Os títulos dos vídeos também precisam ser decodificados. Os primeiros teasers,
dispostos em sequência, revelam mais uma identidade (a da personagem principal) e
um indício importante para o entendimento de alguns elementos da narrativa.
5 Disponível em http://forsakenorder.com/6 Disponível em http://papelpop.com/2011/08/video-o-show-mico-da-sueca-iamamiwhoami-no-way-out-
west-festival-2011/7 Disponível em https://www.facebook.com/pages/iamamiwhoami/2704177543358 Disponível em: https://www.facebook.com/iambounty9 Disponível em https://twitter.com/iambountyfan
Utilizando o código clássico em que cada número equivale a uma letra, de acordo com
a ordem do alfabeto latino, podemos converter alguns números dos títulos (YLOSIAM,
2010):
“Prelude 699130082.451322-5.4.21.3.1.20.9.15.14.1.12”: Prelude 699130082.451322-
E.D.U.C.A.T.I.O.N.A.L.
“9.1.13.669321018”: I.A.M.669321018
“9.20.19.13.5.723378”: I.T.S.M.E.723378
“13.1.14.4.18.1.7.15.18.1.1110”: M.A.N.D.R.A.G.O.R.A.1110
“15.6.6.9.3.9.14.1.18.21.13.56155”: O.F.F.I.C.I.N.A.R.U.M.56155
“23.5.12.3.15.13.5-8.15.13.5.3383”: W.E.L.C.O.M.E.-H.O.M.E.3383
A pergunta do título do projeto parece ser respondida, em parte: “Quem sou eu? Sou
uma Mandragora officinarum.” A mandrágora, planta alucinógena e de uso medicinal, é
tratada no Gênesis e no Cântico dos Cânticos como “planta do amor”, que cura a
infertilidade das mulheres e tem perfume afrodisíaco (PAULUS, 2002; MANDRAKE,
The, 2011).
Mas sua representação mais conhecida no folclore europeu é de uma raiz
antropomórfica que, ao ser retirada da terra, grita e mata todos que ouvirem-na.
Alguns naturalistas afirmaram que seria ela um antepassado, um “rascunho” do
homem. No folclore de alguns países, a mandrágora brotaria na terra em que o sêmen
de um homem enforcado caiu (MANDRÁGORA, 2011; MANDRAKE (plant), 2011).
O romance Alraune, “mandrágora” em alemão, de Hanns Heinz Ewers, trata de uma
mulher sem alma concebida pelo sêmen de um homem enforcado. Foi adaptado num
filme do surrealismo alemão de 1928, que se utilizou mais da ideia de uma femme
fatale que matava seus amantes, pois “a natureza tem sua vingança” (HELLE, 2010).
Todas as versões dessa história, porém, tratam da dualidade homem/natureza, em
que a mandrágora é um homúnculo, tanto senhora dos dois ambientes, natural e
humano, quanto sofredora, por não possuir ou conhecer sua identidade (BORELLI,
2002).
No primeiro arco da história de iamamiwhoami, a sequência de teasers, a mandrágora
nasce e é levada para um ambiente humano. Em “Prelude...”, a mandrágora está num
útero escuro, úmido, dentro de uma árvore. O bosque é antropomorfizado: as árvores
têm membros e olhos humanos. Em “9.1.13.669321018”, ela lambe uma substância
branca (leite materno? sêmen?) na casca da árvore. “9.20.19.13.5.723378” tem dois
indícios a um mundo artificial que começa a se inserir na história: um bolo de
morango, confeitado com glacê, e o latido de cães.
Os cães retomam a lenda da mandrágora: cachorros negros devem ser usados ao se
colher mandrágoras, pois seus latidos abafam o grito fatal quando a planta é
desenterrada. Quem está colhendo a mandrágora não se fere, mas o cachorro
morrerá.
A mandrágora rói o tronco de uma árvore em “13.1.14.4.18.1.7.15.18.1.1110” e é
perseguida pelos humanos por meio de seus cães negros. E eles encontram-na em
“15.6.6.9.3.9.14.1.18.21.13.56155”. Ela é capturada (ou “colhida”) e, em
“23.5.12.3.15.13.5-8.15.13.5.3383”, é levada para uma casa próxima a um cemitério
onde os cães foram enterrados. Lá, começa o próximo arco de vídeos.
Os teasers tem uma direção de arte, fotografia e montagem muito semelhantes ao
resto dos vídeos: cortes rápidos, imagens que parecem desconexas à primeira vista,
retomada de elementos, cenas da natureza etc. Destacam-se os efeitos especiais
complexos justapostos ao uso de “material reciclado” como objeto cênico: plástico-
bolha, fita adesiva e papel alumínio tem muito destaque, indicando o “mundo artificial”
em que a mandrágora se encontra. O tema homem vs. Natureza é tratado sob a nova
ótica da produção para mídias pós-massivas e com uma montagem muito atual.
“IN CONCERT”: uma narrativa contemporânea com bases milenares
Após os teasers, temos “b o u n t y”, série de sete videoclipes, e “IN CONCERT”,
composto de curtas introdutórios e um vídeo de média-metragem.
Essa performance teve início quando um vídeo no canal de iamamiwhoami no
YouTube pediu aos fãs que indicassem um voluntário entre si, sem explicar a
finalidade dessa tarefa. O rapaz que foi escolhido em votação viajou para a Suécia,
onde gravou vlogs10 misteriosos num quarto de hotel e manteve um contato lacônico
com Joanna Lee (ou a mandrágora)11, até participar da performance.
“IN CONCERT” foi transmitido a partir das 12:15 do horário sueco (23:00 UTC) num 10 Uma forma de blog que utiliza o vídeo como formato.11 Quase todos os vídeos de introdução a “IN CONCERT” foram apagados do canal de iamamiwhoami,
mas foram republicados por fãs.
site criado para ele12, e ficou disponível para visualização durante quatro horas.
Com uma hora e quatro minutos de duração, o vídeo começa com uma filmagem
amadora feita pelo voluntário, mostrando ele e a mandrágora saindo de um hotel e
entrando num carro, dirigido por um homem vestido de preto e mascarado. Eles
partem para um campo, próximo a um bosque, ponto em que a filmagem passa a ser
feita por uma câmera profissional, e assim continua em plano-sequência até o final,
sem cortes aparentes.
Para melhor identificar momentos-chave da história de “IN CONCERT”, utilizaremos
uma tabela que contrapõe o que se desenvolve na performance e as “funções”
narrativas definidas por Vladimir Propp (1984). Após analisar cem contos de fadas do
folclore russo, Propp identificou, em 1928, um padrão de trinta e uma “funções” dos
personagens na história (NARRATOLOGIA, 2011).
A relação entre essa estrutura e a noção de “conto de magia” é tão forte que Propp
(op. cit., p. 85) define conto de magia como um texto possuidor de tal estrutura:
Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a) e passando por funções intermediárias, termina com o casamento (W0) ou outras funções utilizadas como desenlace.
A função final pode ser a recompensa (F), a obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o salvamento da perseguição (Rs) etc.
As funções, para Propp, são as ações dos personagens, que mudam de nome e
características, mas continuam desempenhando os mesmos papéis em contos
diversos. Nem todos os contos possuem as trinta e uma funções, mas a sequência
entre elas (ou um grupo delas) é sempre idêntica: uma ação resulta num estado que
exige a realização de outra ação (PEIXE, 2009).
Na tabela 2 abaixo, analisamos a história de “IN CONCERT” com auxílio das funções
narrativas de Propp que pudemos identificar. É uma tentativa de aclarar a narrativa
(que, por mais fracionada e surrealista, não deixa de ser uma história com início, meio
e fim) e observar as estratégias criativas empreendidas.
Para sintetizar o estudo e não nos perdermos em longas descrições, limitamos a
12 Disponível em http://towhomitmayconcern.cc/ Fãs gravaram e republicaram a performance em http://www.iamconcert.com/
análise às ações mais elementares. Por exemplo: durante todo o vídeo, diversas
outras imagens são resgatadas de vídeos anteriores, o que enriquece “IN CONCERT”,
mas tomar nota delas alongaria bastante nosso texto.
Ao fazer a análise, notamos que ocorre uma inversão no meio da história: a
mandrágora começa como vilã (assumindo as funções de antagonista) e seduz o
voluntário para a morte. Quando isso acontece, porém, ela passa a desempenhar a
funções do Herói vencedor. A história parece tratar da vingança da mandrágora
(natureza) contra o homem (a humanidade), mas indica que a mulher-planta também
se apaixonou e sofreu remorso por assassinar o voluntário. Pode-se considerar
também que o voluntário era a parte humana que a mandrágora precisava expurgar
para voltar a pertencer integralmente à natureza (YLOSIAM, 2010).
Tempo Ação Função do personagem
Antes de “IN CONCERT”
iamamiwhoami publica um vídeo pedindo por voluntários.
INVESTIGAÇÃOO Vilão faz uma tentativa de aproximação/ reconhecimento.
Antes de “IN CONCERT”
Um voluntário é indicado pelos fãs. DELAÇÃOO Vilão consegue informação sobre a vítima.
0:00 – 0:16 A mandrágora e o voluntário deixam o hotel. Após um percurso de carro, andam por uma estrada, ao som de risadas.
DISTANCIAMENTOUm membro da família deixa o lar. O Herói é apresentado.
0:16 - 0:20 A mandrágora seduz o voluntário, que cede timidamente. Ela percorre o resto do caminho sozinha, e é seguida por ele depois.
ARMADILHAO Vilão tenta enganar a vítima para tomar posse dela ou de seus pertences; o Vilão está traiçoeiramente disfarçado para tentar ganhar confiança.
0:20 – 0:22 O voluntário chega numa grande árvore feita de papelão. A mandrágora está sobre seu tronco, agitando os braços. A roupa dela está ligada aos galhos. Abre-se um buraco no tronco, por onde o voluntário entra.
CONIVÊNCIAA vítima deixa-se enganar e acaba ajudando o inimigo involuntariamente.
0:22 – 0:24 O voluntário está numa floresta. Segue uma fonte de luz até um marionete da mandrágora, que, dublando a canção “n”, pergunta “como a história termina?”
SUBMISSÃO/PROVAÇÃOO Herói é testado pelo Ajudante.
0:24 – 0:25 Ele responde com um rosto assutado, apenas.
REAÇÃOO Herói reage ao teste.
0:25 – 0:26 Ele é levado pela fonte de luz até a mandrágora.
TRANSFERÊNCIAO Herói é transferido ou levado para perto do objeto de sua busca.
0:26 – 0:28 A mandrágora e o voluntário dançam uma valsa. Eles andam de mãos dadas pela floresta, dançam mais um pouco, fazem referências, se abraçam. A câmera dá um giro, mostrando homens vestidos de preto simulando sexo com árvores: a mandrágora seduziu e fez sexo com o voluntário.
CONFRONTOO Herói e o Vilão se enfrentam em combate direto.
0:28 – 0:30 A câmera volta ao voluntário, que observa a mandrágora. Ela canta sobre um tronco cortado, envolta de
ARMADILHA
superfícies feitas de papel branco. Ela retira a roupa branca e revela um collant negro. Os homens vestidos de preto abrem uma caixa de papelão no chão. A mandrágora se aproxima da caixa e do voluntário, dançando sedutoramente.
0:30 – 0:31 Ela o faz entrar na caixa. CONIVÊNCIA
0:31 – 0:42 Os homens vestidos de preto fecham a caixa com fita adesiva. A mandrágora troca de roupa, vestindo acessórios floridos e um colar com a foto do voluntário. Ela guia os homens vestidos de preto que levam a caixa de papelão/caixa do voluntário numa marcha. A caixa é colocada dentro de uma construção de caixas de papelão.
VITÓRIA Do Herói sobre o Antagonista.
0:42 – 1:02 Os homens de preto ajudam a mandrágora a trocar de roupa. Ela agora usa um collant branco.
Os homens de preto fecham-se na construção de papelão com as roupas antigas da mandrágora, e põem fogo nela.
A mandrágora solta seus cabelos, deita no chão e, depois, caminha até as cinzas das caixas de papelão. Ela se deita sobre elas e as esfrega pelo corpo. Então, junta um pouco de cinzas numa folha de papel alumínio e a enterra numa área com cruzes brancas. Usando um véu negro, ela canta a última música, “We run, we run”.
TRANSFIGURAÇÃO DO HERÓI ePUNIÇÃO DO ANTAGONISTA
1:02 – 1:04 A mandrágora está de volta ao mundo natural: ela encontra-se numa mesa e brinda com os animais representados nos teasers de iamamiwhoami.
RETORNO DO HERÓI
Tabela 2: Análise das cenas de “IN CONCERT” com base nas funções narrativas.
Conclusão
Iamamiwhoami é um caso interessante de produção criativa independente: sua obra
se confunde com os meios de divulgação. Se o videoclipe tradicional vende a música e
a imagem do artista, aqui eles são o próprio produto, e a ”mandrágora” é um
personagem que só existe neles. Além disso, toda a produção do projeto foi pensada
para se utilizar (e pôr em discussão) o uso de mídias de função pós-massiva.
Temos ferramentas que já se firmam na publicidade atual (a viralização de
mensagens, o incentivo à criação de uma “comunidade de marca”, a produção de uma
narrativa que se expande em formatos diversos) inseridas no primeiro estágio do
processo criativo, na forma em que o produto é pensado.
A pequena escala do projeto ajuda, em parte, a identificação das partes diversas
dessa produção. Por outro lado, seu caráter hermético dificulta uma análise mais
quantitativa de seus resultados.
Não há como negar, porém, que iamamiwhoami conquistou muito em pouco tempo.
Deixou claro, ainda, que todas essas ferramentas mais ou menos inovadoras de
comunicação podem ser usadas em campanhas de pequena escala, com poucos
recursos, bastando que as estratégias estejam muito bem traçadas e, claro, que o
produto final tenha qualidade e características que satisfaçam seu público.
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