homens e saber na idade-média partes 2 e 3

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Emton di UnlvmkWi da Sagrado Cmgio sumario V5867h Vergerjacques Homens e Saber na Idade Média / Jacques Verger; tradução Carlota Boto.- Bauru, SP: EDUSC, 1999. 284 p.; 21 cm (Educar) ISBN 85-86259-46-2 •\ , f . Tradução de: Lês Gens de Savoir daris T Europe de Ia fln du MoyeaAge , Inclui bibliografia. 1. Idade Média. 2. Civilização Medieval I.Título. II. Série. CDD 940.1 ISBN,2 13 048764 5 (original) Copyright © Press Üniyersitaires de France, 1997 Copyright ©"(tradução), EDUSC, 1999 Tradução realizada a partir da l" ed. (1997) Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO i Rua Irmã Arminda, 10-50 CEP 17011-160 - Bauru - SP Fone (14) 3235r7111 - Fax (14) 3235-7219 e-mafl: [email protected] Apresentação Introdução PRIMEIRA PARTE Os fundamentos da cultura. Capítulo I: Os saberes l .As bases: o latim e Aristóteles 2. Saberes legítimos e saberes marginais. 3.As disciplinas superiores: teologia, medicina e direito ™i_™. 4. Utilidade social ou cultura geral?. 5- Cultura erudita, cultura popular SEGUNDA PARTE O exercício das competências Capítulo IV: Serviço de Deus, serviço do príncipe l. Docere aut applicare. 2. Homens de saber, homens de Igreja. 3. Uma idade de ouro dos legistas?. 4. Conclusão: alguns matizes necessários Capítulo V: Saber e poder __^__ ; _ ra ______, 7,, 13 21 23 23 38 47 56 61 Capítulo II: Os estudos 1. As escolas elementares ,„, •• 2. A universidade , 3. As novas instituições ^>pítii1n JTT- Os livros ^ 1 O aresso an livro 2. 0 conteúdo das bibliotecas 3-Do manuscrito ao impresso ,. . , 69 _' 72 si 104 m 112 122 128 135 137 139 144 156 165 169

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Page 1: Homens e Saber Na Idade-Média Partes 2 e 3

Emton di UnlvmkWi da Sagrado Cmgio

sumario

V5867h VergerjacquesHomens e Saber na Idade Média / Jacques Verger;

tradução Carlota Boto.- Bauru, SP: EDUSC, 1999.284 p.; 21 cm (Educar)

ISBN 85-86259-46-2•\ , f .

Tradução de: Lês Gens de Savoir daris T Europe de Ia flndu MoyeaAge

, Inclui bibliografia.

1. Idade Média. 2. Civilização Medieval I.Título. II. Série.

CDD 940.1

ISBN,2 13 048764 5 (original)Copyright © Press Üniyersitaires de France, 1997

Copyright ©"(tradução), EDUSC, 1999

Tradução realizada a partir da l" ed. (1997)Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa

para o Brasil adquiridos pelaEDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

i Rua Irmã Arminda, 10-50CEP 17011-160 - Bauru - SP

Fone (14) 3235r7111 - Fax (14) 3235-7219e-mafl: [email protected]

Apresentação

Introdução

PRIMEIRA PARTEOs fundamentos da cultura.

Capítulo I: Os saberesl .As bases: o latim e Aristóteles2. Saberes legítimos e saberes marginais.3.As disciplinas superiores: teologia,medicina e direito ™i_™.4. Utilidade social ou cultura geral?.5- Cultura erudita, cultura popular „

SEGUNDA PARTEO exercício das competências

Capítulo IV: Serviço de Deus, serviço do príncipel. Docere aut applicare.2. Homens de saber, homens de Igreja.3. Uma idade de ouro dos legistas?.4. Conclusão: alguns matizes necessários

Capítulo V: Saber e poder __^__;_ra______,

7,,

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232338

475661

Capítulo II: Os estudos

1. As escolas elementares • ,„,•• 2. A universidade , „

3. As novas instituições

^>pítii1n JTT- Os livros^ 1 O aresso an livro

2. 0 conteúdo das bibliotecas3 -Do manuscrito ao impresso ,. . ,

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1. Saber e ideologia2. Do serviço ao conselho3. Espírito de corpo __„

Capítulo VI: O mundo da prática1. Cultura erudita e prática privada2. Os intelectuais intermediários3- O -alcance social dos saberes: contestação ouintegração? •. --.-,...

i ) • - - • ; • • ' .TERCEIRA PARTERealidades sociais e imagem de si

Capítulo VII: Homens novos ou herdeiros?,l. Questões de fontes e de, método „2.A vereda dos estudos „_3. Reconversão, adaptação, reprodução

Capítulo VIII: Ambições e representações1. Clero , , i, __ ._2. Nobreza ! _3. Um "quarto estado"

170179190

195196199

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223223''229237

245246249258

Capítulo EX: À guisa de conclusão: dos doutores aoshumanistas - continuidade e inovação ___i_. 267l. Dominadores e confiantes em si : ' 2682.Idéias novas,homens novos -- , 270

Bibliografia 279

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nal da Idade-Média, Apesar de seus limites e dos sinais bem per-ceptíveis de escleròse, ela seria ainda suficiente para criar aconsciência de si dos homens de saber, o que nos leva agora-ainvestigar a obra da sociedade de seu tempo.

segunda parte

O EXERCÍCIO DASCOMPETÊNCIAS

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1 A idéia de um uso desinteressado dos saberes, de uma cul-tura geral que objetivasse o pleno desabrochar da personalida-de individual, era, como vimos, bastante estranha às concepçõesmedievais de educação. A Idade Média era mais atenta às finali-dades sociais desta última, por outras palavras, aos usos práticosque poderiam fundados sobre os conhecimentos adquiridos.Estes, de acordo com sua própria natureza, desenhariam os con-tornos de competências específicas para as quais nós estamos,em geral, bastante dispostos a reconhecer uma eficácia concre-ta, mesmo que naturalmente, outros critérios, que não os das ca-pacidades intelectuais, complementares e com maior freqüên-cia concorrentes - tais coifto o nascimento e as relações de for-tuna, idade e experiência -, fossem também considerados quan-do, se tratava de designar àqueles sobre quem recairiam os exer-

Acícios das principais funções sociais e políticajs.Quais eram os domínios para os quais as sociedades do fi-

nal da Idade Média reconheceram um valor particular - na au-sência de uma verdadeira exclusividade - às competências fun-dadas sobre a superioridade dos saberes discursivos? Tais com-petências eram vistas como restritas às tarefas de execução ouelas davam àqueles que eram seus portadores um certo papelna própria elaboração das decisões iniciais e de sua justificaçãoideológica? Será que elas se exerciam apenas no nível das ins-tâncias superiores da sociedade medieval - dito de outramaneira, elas não teriam um papel fundamental entre as mãos ea serviço de uma elite - ou será que elas eram difundidas tam-bém junto aos estratos mais modestos e mais largos da socieda-de e, se assim for, constituiriam elas instrumentos de uma orde-nação generalizada ou seriam, ao contrário, fetor de contestaçãoe mudança?

Essas são as principais questões às quais procuraremosresponder nesta segunda parte.

capítulo IV

SERVIÇO DE DEUS, SERVIÇO DO PRÍNCIPE

Os conhecimentos que os homens de sabei possuíam, demaneira mais ou menos aprofundada, e já estudados neste livro,tinham todos eles aplicações práticas. Tais aplicações geralmen-te não era separáveis, na mentalidade daquele tempo, da noçãode serviço. Com efeito, jrepugnava-se, então, não apenas á idéiade uma cultura desinteressada, mas também aquela de um sabercujo detentor utilizasse a seu modo e exclusivamente para seupróprio benefício pessoal. Scientia donum Dei est, unde ven-di nonpotest: a ciência é um dom de Deus, que não poderá servendido . Esse adágio constante na Idade Média implicava, cer-tamente, a condenação de todo uso "lucrativo" do saber, quer setratasse do ensino pago ou de consultorias jurídicas, científicasou médicas efetuadas mediante pagamento .Teólogos e canonis-tas acabaram por reconhecer que, se era considerado normalque o hometn de saber recebesse da sociedade (quer dizer, daIgreja ou do Príncipe ou, na ausência destes, de quem eventual-

1 - Vide G. Post, K. Giocarinis, R. Kay, "The medievalheritage 6f a bumanístíc ideal: scientia donum Dei,ümte vendi nonpotest", Traditio, 11 (1955),p. 195-234.

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mente fosse desfrutar desses conhecimentos) Uma justa remu-neração por seu esforço, destinada a permitir que ele vivesse demaneira decente e conforme as exigências de seu Estado, estamesma remuneração seria, em contrapartida, repreensível portirar dos dons recebidos de Deus um proveito especulativo, qque viria a desviar para fins essencialmente terrestres Um di-nheiro que teria sido melhor aproveitado em favor dos pobresou do culto divino.

Naturalmente, essa posição teórica, trabalhosamente ela-borada por homens entrincheirados entre a doutrina cristã tra-dicional (reforçada por certas máximas antigas) .e as exigênciasconcretas de seus colegas ávidos de consideração e de promo-ção social, está longe de ter sempre sido respeitada na IdadeMédia. Apesar das ponderações que acabo de me lembrar, inú-meros homens de saber procuravam tirar o máximo proveitopossível de suas competências intelectuais. Muitos deles, nósveremos, instalar-se-ão por sua própria conta, diríamos hoje emdia, como profissionais liberais, pelo menos de maneira provisó-ria ou episódica, com o intuito de poderem exercer, da mais lu-crativa maneira possível, a atividade para a qual eles haviamsido formados.

Considera-se que, mesmo em semelhante caso, a esperan-ça de ascensão, com fins de carreira, para algum cargo onde oexercício das competências intelectuais não seria mais umaobrigação econômica, mas um dever assumido em virtude dopróprio cargo conferido (éx debito qfflctf), parece.ter sido umaperspectiva muito solidamente ancorada no coração dos hormens de saber do final da Idade Média2. Portanto, é exatamentesob esse ângulo da profissão que melhor se pode, ao que me pa-rece, abordar o estudo dos campos de competência que eramabertos para os homens cultos das sociedades daquela época.

2 - Usse atrativo petos cargos públicos, vindo como coroa-mcnto, freqüentemente menos lucrativo porém mais ho-norífico, das carreiras conduzidas anteriormente- a títuloprivado, foi bem destacado por J. R. Strayer em seu estudoprosopográfico sobre Lês gens de justice de Languedocsóus Pbüippe lê Be/,Toulouse, 197O.

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MI4

t \.DOCEREAUTAPPUCARE

Em um de seus Qtiodlibets O, 35) datado de 1276, Henrlde Gand, que foi no final do século XIII o mais célebre profes-sor secular de teologia da universidade de Paris, perguntava-se .se valeria mais, para um jovem doutor em teologia, permanecerna universidade e consagrar-se ao ensino ou, ao contrário, dei-xar o pequeno mundo protegido da alma mater e colocar seuconhecimento adquirido a serviço da ação pastoral e adminis-trativa para maior proveito das almas cristãs confiadas à Igreja-(JJtKum melius sit stare in studio, spe plus proflctendi,sufflcienter, instructum quam ire ad procurandum anima-rum saluteni). Sua resposta era imprecisa, embora, no conjun-to, Henri julgasse mais útil que a pessoa dotada para o ensinopermanecesse na universidade, onde sua palavra abarcaria umraio infinitamente maior dó que se ela exercitasse seus talentosapenas na instância de uma simples igreja particular8.

Um século mais tarde (em 1386-1388), eis um doutor pordecreto da mesma universidade de Paris, Armeilh du Breuil -que, além disso, seria futuro arcebispo de Toürs - em processocom seus colegas da faculdade de direito canônico. Estes pro-curavam afastar do colégio "professores regulares" da universi-dade - e, no caso específico, privá-lo dos direitos e rendas cor-respondentes, alegando que ele não cumpria verdadeiramenteas obrigações de tal encargo; a que Ameilh du Breuil replicavaque ele deveria, ao contrário, vangloriar-se por haver podido, aolongo dos anos, alternar o ensino magistral e o serviço ora dopapa (como auditor das causas do Palácio apostpfico), ora dórei (como mestre das petições da casa real)4.

Esses dois exemplos são suficientes para recordar que na-quela época, pelo menos para todos os homens de saber porta-dores de diplomas universitários, o ensino era o primeiro e maisevidente de seus domínios de competência e, conseqüente-

3 - Henrici de Gandavo opera omnta,V,QuodlibetI,ç<3â.\tado por R. Macken, Louvain-Leyde, 1979, p. 195-202.4 - Os autos do processo são publicados no ChartulariumUniversitatis /teftófeMsft» editado por H. Dénifle e B. Châ-telaln,tomo III,Paris, 1894,n°1528 a 1531,1546.

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mente, a forma de serviço em direção à qual eles iam naturalmen-te ao deixar os estudos, com freqüência muito longos, sendo que,além do mais, os cargos de docência eram raramente percebidosna Idade Média como impeditivos do exercício simultâneo ou su- >cessivo de outros tipos de funções eclesiásticas ou laicas.

Isso era particularmente verdadeiro para os mestres emartes. Geralmente jovens (esse grau obtinha-se normalmentepor volta dos vinte anos), muitos mestres em artes, sobretudoentre aqueles menos abastados, ensinavam durante alguns anos •após ao"btenção de seu diploma. Uns tornavam-se mestres de al-guma escola, urbana ou rural, de gramática; outros permane-ciam na universidade e tornavam-se regentes da faculdade deartes. Um documento parisiense datado de 1283 ou 1284 deixaentender que havia, na ocasião, por volta de cento e vinte mes-tres ãctu regentes na faculdade de artes5. Essa cifra elevada nãome parece inverossímil, mas chega a ser, inclusive, esclarecedo-ra quanto ao fato de, apesar de o^estatuto teoricamente impordois anos de regência obrigatória, nem todos os candidatos querecebiam o grau em artes efetivamente ensinavam. De todomodo, raros eram aqueles que, assim como ó célebre Jean Buri-dan (1300-1360), atestado como regente em artes desde 1325até sua morte, permaneciam durante toda sua vida nessa situa-ção. No final de alguns anos, um pequeno pecúlio amontoado,a maior parte dos mestres em artes deixavam a universidade ou ientão se inscreviam como estudantes em uma faculdade supe-rior. Talvez continuassem ainda por algum tempo a ensinar, masnão isso não representava para eles nada além de uma situaçãoprovisória para garantir um complemento de renda. t

Os estudos superiores eram, como sabemos, muito longos(entre seis e quinze anos, de acordo com as normas estatutárias,segundo a faculdade e a universidade em questão), se bem queaquilo que não deveria ser mais do que um tempo de formaçãono início de carreira e tornava-se, por vezes, senão um fim emsi, pelo menos a fase mais longa da vida de certos homens desaber. Se muitos abandonavam a rota ou conseguiam, mais ou

menos legalmente, graduar-se nos prazos determinados, outrosse eternizavam, especialmente se eles pudessem ter a chancede obter os proventos de alguma confortável prebenda semobrigação de residência ou mesmo um quarto e uma bolsa emum colégio. Era, por outro .lado, possível interromper a qualquertempo seus estudos para exercer um cargo oficial, para depoisretomá-los a fim de se apresentar aos exames. Nas ordens men-dicantes, as instâncias dirigentes faziam voluntariamente apeloaos irmãos entregues aos estudos, para confiar-lhes as viagenspara pregações ou para .funções administrativas.

Uma vez seus estudos superiores concluídos, aqueles quehaviam conseguido chegar ao título supremo, o doutorado, po-deriam ter a expectativa de permanecer na universidade comoprofessores. Encontra-se, de feto, aqui, originalmente, o significa-do dos graus universitários: o bacharelato sancionava o progres-so dos estudantes avançados, doravante admitidos para proferireles mesmos algumas lições; o conjunto da licença - mestradoou doutorado - que reunia, ao mesmo tempo, a autorizaçãoeclesiástica para o ensino (licentia docendtyç. a integração ofi-cial em um corpo de mestres (sob a forma de um ato inauguralde ensino), era primitivamente destinado a assegurar o recruta-mento de novos professores. Se, em seguida, os títulos universi-tários tomaram um valor muito mais amplo de diplomas que ga-

, rantem um certo nível de conhecimento e, conseqüentemente,de competência intelectual e eventualmente profissional, elesnão perderam, por tal razão, aquele lugar de instrumentos decooptação de novos mestres.

Infelizmente, não se conhece perfeitamente o corpo àf>cente das universidade medievais^. O número exato dos profes-sores nas"diversas faculdades e universidade é freqüentementedifícil de determinar, bem como a renda que eles recebiam peloensino (honorários pagos pelos estudantes, direitos de exame,salários pagos pelos poderes públicos). Parece, de qualquer ma-neira, que eles se tinham em alta conta quanto à sua dignidade

5 - Chartulariuru Universttatís Paristensts,op. cit.,tomoI, Paris, 1889,'n" 515.

6 - J.\terger, "Lês professeurs dês universités françaises à Ia (

fln du MoyenAge", In: Inteltectuels français, tntettecíuetsbongrois: XIIf-XX' síècles, dirigido por J. Lê Goff e B, Kô-peczi, Budapest-Paris, 1985, p. 23-39.

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e que, por seu turno, a sociedade da época, tanto em seus círcu-los dirigentes quanto nos demais níveis, não lhes atribuía mar-cas de estima e consideração, na feita de uma remuneração ver-dadeiramente generosa. Talvez se pudesse generalizar o que es-creveu Dante. Zanètti a propósito dos professores da universida-de de Pádua no século XV: "A universidade conferia o prestígio,não afortuna"7.

Do conjunto, apenas uma minoria de doutores tornar-se-iaefetivamente professores, sobretudo em direito, onde, como ve-remos, inúmeras outras vias, igualmente prestigiosas e mais lu-crativas, abriam-se aos titulares desse título tão invejado. A pro-porção daqueles que escolhiam o ensino era, talvez, um poucomais elevada em teologia, onde as possibilidades de carreirafora da universidade erarn mais raras, e em medicina, onde, pelomenos para aqueles que residiam em alguma cidade universitá-ria, ensino e prática médica eram plenamente compatíveis. EmMontpellier, por exemplo, havia sempre Uma boa dezena de cê-gentes em medicina para um conjunto dê estudantes que rara-mente ultrapassava uma centena. Mas, salvo precisamente a me-dicina, a carreira docente de tais regentes não parece ter sidomuito longa; em Paris, no princípio do século XIV, os .doutoresem teologia, ainda que mais estáveis do que os outros, pratica-mente/não ensinavam por tempo superior a uma dezena deanos8. Se considerarmos que se trata de um valor médio, isso sig-nifica que uma boa parte dos docentes de universidade abando-navam suas cadeiras no final de alguns anos para ocupar outrasfunções. Em certos casos - doutores tornando-se bispos ou car-deais - tratava-se de uma evidente promoção social; mas em ou-tros, as razões iniciais, pelo menos no tocante ao prestígio so-cial, são menos claras. Deve-se, sem dúvida, pensar'que os inte-ressados não consideravam efetivamente a atividade de ensino

7 - D. Zanètti, "A 1'Universjté de iPavie au XV siècle: lês sa-lairesdêsprofesseurs",AnnalesESC, 17 (1952),p.421-433-8 - W. J. Courtenay, Teaching careers at tbe Vniverálty ofParis in tbe tbirteenth and fourteenth centuríes (Textsand studies in the history çf fflediaeval educatlon, XVIII),Notre Dame: 1988,p. 29.

como um verdadeiro ofício suscetível de ocupar toda uma vida,Seus anos de magistério eram tidos como conjugados a seusanos de estudos^ período que eles próprios encerravam ao cabode algum tempo, com o. intuito de passar a uma outra fase desua existência ou, pelo menos, de sua carreira.

Esse quadro é um pouco alterado no século XV. Em mui-tas universidades - particularmente nas universidades de me-nor importância ou de criação recente -, observa-se, então, a ní-tida distinção de dois grupos. Existe primeiramente um peque-no grupo estável de "professores regulares" que assumem, aomesmo tempo, o encargo de gestão da universidade, os cursosmagistrais e a organização dos exames. Pouco numerosos - emAvignon, por exemplo, havia apenas quatro -, esses professoresregulares viviam do ensino e permaneciam por muito temponessa função. Por vezes, atraídos por um melhor salário, elespassavam de uma universidade para outra; era, sobretudo, na Itá-lia, onde as cátedras assalariadas haviam sido criadas pelas co-munas desde finais do século XIII, que as cidades disputaram,assim, os serviços dos melhores docentes. Em outros lugares, osprofessores, sobretudo em artes e em direito eanônico, perma-neceram com muita freqüência clérigos cujo benefício eclesiás-tico assegurava, pelo menos parcialmente, a subsistência. Come-çaram igualmente a ser criados, no final da Idade Média, postos- modestamente remunerados, porém, estáveis - de professores^de colégio.

Face a tais mestres quase profissionais, podia também ser.encontrado um segundo grupo, mais flutuante, de professores"extraordinários". Recentemente portadores de diploma, estesministravam apenas algum ensino menos importante ou à gui-sa de substituição; não podiam ter assento nem nos conselhosuniversitários nem nos júris de exames.Alguns estavam à espe-ra de um lugar nos colégios dos doutores regulares, mas muitosdeixavam bem rapidamente o ensino para ocupar outros tiposde funções.

.Quais teriam sido as conseqüências dessa evolução? É pos-sível, mas não certo, que a emergência de pequenas oligarquiasde professores regulares tenha propiciado a esclerose do ensi-no e que os professores extraordinários, mais jovens e menosconvencionais, tenham sido mais apreciados rpelos estudantes.

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É possível, mas não certo, que os professores regulares, mais ve-lhos, mais dependentes dos poderes externos, mais ligados aosnotáveis locais tenham tomado menos para si a defesa da auto-nomia universitária. De qualquer maneira, pode-se estar certode que o professor profissional, com seu específico modo devida, seus tiques de linguagem, suas redes\ próprias de relaçõesprofissionais e familiares, tornou-se, no final da Idade Média, umdos tipos sociais nos quais se investia, mesmo aos olhos doscontemporâneos, a figura do homem de saber. Mas, como vere-mos, ele estava longe de ser o único.

2. HOMENS DE SABER. HOMENS DE IGREJA

No decorrer da Idade Média, a maior parte das escolas edas universidades do Ocidente foram instituições eclesiásticasou controladas pela Igreja. Note-se que, não somente nas facul-dades de teologia, mas também nas escolas de artes e de direitocanônico, a proporção de padres e religiosos era elevada e, dequalquer modo, estudantes e professores, que tivessem ou nãorecebido as ordens sagradas, portavam a tònsura e seu estatutoera correspondente, notadamente no plano fiscal è judiciário,àquele dos clérigos. Não surpreende que até o final da IdadeMédia tenha sido no seio dá Igreja que a maioria dos homensde saber puderam fazer carreira.

Rigorosamente, poder-se^ia sustentar que todos os ho-mens da Igreja eram homens de saber e que eles possuíam aidentidade dos dois grupos. Mas embora esse esquema não te-nha sido completamente estranho à ideologia clerical da altaIdade Média9, ele praticamente já não tem pertinência para aépoca que aqui nos interessa. Entretanto, por paradoxal que pa-reça, havia certamente muito menos clérigos e religiosos com-pletamente ignorantes em nossa época do que na alta Idade Mé-dia ou mesmo nos séculos XII e XHÍ. Todavia, o letrado não sedefiniria mais, dali por diante, pela simples pertença ao clero

9 • Vide H. Grundmann,"Utteratus-llUteratus. Der Wàndeleiner Bildungsnorm vom Altertum zum Mittelaltèr",ArchivfürKuUurgesclttchte,40(.l$58),p.l-65.

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nem pelos saberes elementares (ler, escrever, cantar) que todopadre ou monge deveria ser capaz de dominar. Exigiam-se deleconhecimentos e técnicas intelectuais de nível superior e quenão eram mais de natureza exclusivamente eclesiástica. Havia,além disso, em grande número, pelo 'menos em determinadospaíses, os leigos letrados. O grupo dos homens dç saber ultra-passava, portanto, a antiga clivagem clérlgos/laicos. Ele era re-presentado por uns e por outros, constituindo a linha de demar-cação dos estatutos pessoais de uma elite intelectual relativa-mente homogênea «f percebida como tal por seus contemporâ-neos. Para dizer as coisas mais simplesmente, podemos pensarque, no final da Idade Média, um cônego graduado em direitocanônico era - e se sentia -, sob múltiplos aspectos, tanto socialquanto intelectualmente, mais próximo de uni leigo graduadoem dirçito civil do que de um simples padre do interior.

Nos devemos, portanto, procurar restringir, no próprioseio do clero, o grupo daqueles que, por sua cultura, seus estu-dos, seus diplomas, seus bibliotecas, suas competências, suasfunções, até suas maneiras de se exprimir e de se comportar, so-bréssaíam-se sobre os outros clérigos ou religiosos que defi-niam simplesmente por pertencer à ordem eclesiástica, suasobrigações litúrgicas e seus poderes sacramentais.

Globalmente, a proporção das pessoas dê saber no pró-prio seio da Igreja aumentou bastante nos últimos séculos daIdade Média. Mas o nível atingido foi bastante variável de acor-do com as categorias de clérigos consideradas, e, além do mais,o crescimento não ocorria no mesmo ritmo nem com a mesmaintensidade para os diversos países do Ocidente.

Naturalmente, é no alto clero que a presença dos homensde saber foi, de longe, a niais forte. Nós disppmos hoje em diade estudos prosópográficos bastante numerosos para poderadiantar algumas cifras significativas.

Foi desde meados do século XII que os clérigos formadosnas escolas de Paris e de Bolonha começaram a possuir um cer-to espaço na cúria romana. Seu lugar não cessou,de crescer, des-

, de então, para culminar sem dúvida ,na época do papado deAvignon (1305-1378). Numerosos trabalhos colocaram em evi-dência a complexidade e a eficácia do aparelho administrativoe fiscal do qual aquele conseguiu se dotar - em detrimento, é

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verdade, de seu esplendor espiritual. Esse aparelho foi inclusivesuficientemente sólido para sobreviver ao Cisma de 1378 e per-mitir aos pontífices rivais manter sua autoridade durante cercade quarenta anos, cada um em sua obediência, antes de teremde se inclinar diante do Concilio geral. c

Uma tentativa de mensuraçãõ global permite-me calcular,de maneira ao menos aproximativa, o que pode ser o lugar doshomens de saber no âmbito do governo central da Igreja noapogeu do papado administrativo de Avignon, quer dizer, notempo dos papas Clemente VI (1342-1352),InocêncioVI (1352-1362) e Urbano V (1362-1370)10. Pode-se considerar que, naque-la altura, cerca de quarenta doutores e licenciados, quase sem-pre em direito, dirigiam os principais organismos da Cúria(Chancelaria, Câmara Apostólica, Confessionário, Audiência dascausas do palácio apostólico), mesmo que possamos encontrartambém, ao lado deles, alguns prelados da alta nobreza ou pa-rentes próximos do pontífice.

No nível subalterno, o pessoal da administração pontificairepresentava por volta de trezentas pessoas. É mais difícil calcu-lar o quantidade de graduados e antigos estudantes; pelo menospara a Chanceleria, 20 a 25% parece uma porcentagem plausí-vel. E, seja como for, é provável que até mesmo os tesoureiros,notários e secretários do papa que não haviam passado pelasuniversidades pudessem ser considerados como "homens de sa.-ber" tomando-se tanto a complexidade das tarefas que eles de-sempenhavam quanto o caráter bem-informado, cosmopolita eeducado da sociedade paroquial no seio da qual eles viviam..

Esta sociedade efetivamente não se limitava aos escritó-rios oficiais da administração. Se os serviços propriamente do-mésticos ou militares do palácio pontificai não deviam abrigarmuitos letrados, estes, como contrapartida, não faltavam nas ca-marilhas pessoais - lesfamiUae - do próprio papa e dos car-deais. Nesses últimos, graduados e antigos estudantes represen-

10 - Eu retomo aqui minhas conclusões de J.Verger,"Étu-des et culture universitaires du personnel de Ia curie avig-nonnaise", em Aux origines de VÉtat modeme: lê fonc-tionnèment administrattf de Ia papauté d'Avignon(Coll. De 1'École française de Rome, 138). Roma: 1990, p.61-78.

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tavam em média 20% de efetivos (dos quais, é verdade, somen-te um terço de licenciados ou doutores de uma faculdade supe-rior). Mais importante ainda, talvez, para explicar o alto nível decultura da cúria de Avignon (alto nível que não impedia'eviden-temente uma certa timidez diante de novas idéias, especialmen-te diante do humanismo) era a presença, permanente ou episó-dica, em Avignon, dos prelados e dos embaixadores, dos médi-cos dos papas ou dos cardeais (freqüentemente provindqs dauniversidade vizinha de Montpelliér), de doutores em teologiafranciscanos ou dominicanos reunidos pelo papa em comissões

, para examinar certos assuntos delicados, etc.j Se buscamos delinear um pouco mais os contornos do

grupo dos homens de saber que gravitavam ao redor da cúriade Avignon, dois traços imediatamente se destacam. O primei-ro é o lugar preponderante dos juristas (civilistas, aliás, tantoquanto canonistas), às custas dos teólogos e dos simples filóso-fos ou reitores da faculdade de artes. O segundo, é a origemmajoritariamente francesa - e freqüentemente, para ser maispreciso,de, Lünousin e Languedoc - desses homens, ainda quenão seja excepcional encontrar dentre eles italianos, às vezesalguns ingleses.Os graduados provinham, desse modo, sobretu-do das universidades de Toulouse ou de Montpelliér e, em me-nor proporção, de Paris ou de Orléans. É claro que, de acordocom um movimento .iniciado a partir dó século xm e que du-rou até finais do século XV, o papado atraiu uma parte conside-rável das elites intelectuais do clero francês. Supõe-se, pois,queserá com nostalgia que, sobretudo no Midi, este verá, após oCisma, esgotar essa fonte, que parecia infindável, de posiçõestão bem-remuneradas quanto prestigiosas". Não lhe restaráníais do que se submeter com melancolia às carreiras pura-mente locais ou buscar do lado do rei da França e de sua cor-te, ao preço da docilidade política, os favores e as honras querecentemente Avignon dispensava.

Isso, com efeito, não quer dizer que os papas do século XVnão tenham mais recorrido aos homens de saber. Mas a perda

11 - J. Gazzaniga, Véglise du Midi à Ia fln du règne deCharles VII (1444-1461) d'après Ia Jurisprudence duParlementdeToulouse.Varis:l976. r

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de influência do papado fora da Itália ocasionaria, mais e mais,a limitação do acesso das carreiras curiais para os próprios ita-lianos. Os estudos sobre a Cúria romana do século XV não são- até onde eu conheço - suficientemente avançados para poderque se possa fazer aqui apanhados globais, como os que exis-tem sobre o século XIV Recordemos somente que a partir dospontificados de Nicolau V (1447-1455) e Pio II (1458-1464), umcertç número de humanistas, especialmente toscanos, começa-ram a encontrar empregos na corte pontificai, assim como Lo-renzo Valia (1407-1457) ou Platina (1421-1481), compendiadorda chancelaria e depois bibliotecário do papa. Os pontíficesnão renunciavam, portanto, aos serviços dos homens de saber.Mas nem todos eram igualmente favoráveis às novas idéias -Paulo II (1464-1471) lhes foi inclusive violentamente hostil - e,no conjunto, torna-se bastante difícil precisar como, além de al-gumas individualidades brilhantes, se poderia qualificar o nívelcultural do conjunto da cúria romana do Quattrocento.

Se, do nível pontificai, nós passarmos para aquele dasigrejas locais, fortes disparidades nacionais ou regionais apare-cem, acentuadas talvez pelo desigual avanço das pesquisas his-tóricas12.

Era o reino da Inglaterra, embora pouco populoso e urba-nizado, que possuía, na Idade Média, um conjunto importantede escolas, dê universidades, de colégios, e de Inns of Court,onde se encontrava o clero mais instruído. Dentre os bispos,passa-se de 51% de antigos estudantes de Oxford ou Cambrid-ge no século Xni para 70% no XIV e 91%, ou seja, a quase tota-lidade, no século XV. Esses graduados eram, em sua maioria, oscanonistas, nías podemos sublinhar a presença notável entreeles dos doutores em teologia (40% no século XV).Tais porcen-tagens elevadas de clérigos instruídos eram encontradas nãoapenas entre os cônegos - 80% de cônegos graduados em Yorkno século XV - mas até, em um nível mais modesto, no simples

clero paroquial: desde o princípio do século XIV, de acordo comas dioceses, 7 a 26% dos curas eram oriundos da universidade,cifras aparentemente bastante baixas, mas ria realidade excep-cionais para a época medieval. Para tor/nar as coisas airída maissurpreendentes, entre 1451 e 1500,40% pelo menos - e talvez,na realidade, bem mais - dos antigos estudantes de New Colle-ge, o principal colégio dç Oxford, fizeram depois carreira £0clero paroquial.

\Se passarmos agora para o continente, existe sem dúvi-da lugar para colocar em paralelo, no coração da Europa oci-dental, os velho? países - essencialmente ^ Itália e a França -onde a existência de antigas tradições escolares permitiu apromoção relativamente precoce de autênticos homens desaber no seio do clero, pelo menos do alto clero, e os paísesmais jovens e um pouco periféricos, que, por longo tempo,conservaram as estruturas eclesiásticas e sociais arcaicas enos quais o atraso em matéria dê formação intelectual doshomens de Igreja não foi recuperado a não ser tardia, e, senídúvida, imperfeitamente: tratava-se, antes de tudo, dos paísesgermânicos e dos países eslavos, húngaros e escandinávios.

Durante um longo período, o clero francês esteve bas-tante atrasado, se comparado ao inglês, o que é surpreenden-te quando se sabe que, além do mais, uma boa parte dos pró-prios clérigos ingleses recebia sua formação intelectual nasescolas de Paris e de Orléans. No tempo do rei Filipe Augus-to (1180-1223), apenas 20% dos bispos franceses e menosainda entre os cônegos de um cabido tão importante quantoaquele de Làori eram magistri ( em uma época em que os ca-bidQS ingleses tinham correntemente mais de 40% de cône-gos graduados)13. Somente a partir de 1250, no tempo de SãoLuís, os homens de saber parecem ter se assentado firmemen-te no alto clero francês; a taxa dos bispos magistri eleva-seem 41%, enquanto se generalizam os tribunais da oficialidade

12 - Nas páginas que seguem, as cifras citadas são tiradas,salvo indicação contrária, do capítulo de P. Moraw,"Careersof graduates", In: A histoty ofthe university ín Europe,vol. I, Untversities in the Middle Ages, editado por H. deRidder-Symoens, Cambridge, 1992, p. í 44-179.

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13 - J.W.BaldwüivStudium et regmjnuthe penetratíon ofuniversity pefsonel into french and english admifllstrationat the turn of the twelfth and thirteenth centurier" In: Re-vue dês études islamiques, 44 (1976) [número especial:L'enseignement em Islam et em Occident au MayenAge}, p. 199-215.

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quase sempre presididos por um licenciado ou mesmo umdoutor em direito. -

Em breve, a instalação do papado em Avignon reforçaráainda mais a posição dos clérigos provenientes da universida-de no seio do clero francês. Os recursos e expectativas ponti-.ficais concedidos ao reino da França pelos papas João XXII(1316-1334) e Benedito XII (1334-1342) foram, respectiva-mente 25% e 33% dentre os' mesmos, para titulares de grausuniversitários. Isso não corresponde naturalmente à propor-ção de graduados no seio do clero francês toniado em seuconjunto, dado que as porcentagens acima revelam apenas osbenefícios eclesiásticos conferidos pelo papa, embora se pos-sa bem adivinhar, através das elevadas cifras ^ já que milharesde indivíduos faziam parte delas - que a política de benefíciosdos papas de Avignon fez de tudo no sentido de promover osletrados no seio do clero francês. É verdade que - este é o re-verso da medalha - os graduados assim designados pelo papairiam com freqüência engrossar o rol dos clérigos não resi-dentes que acumulavam vários cargos, mal vistos pelos sim-ples fiéis por preferirem seguir seus estudos, gravitar na órbi-ta de um cabido catedral ou procurar um emprego em uma re-

^partição de Avignon, a ocupar a incumbência pastoral para aqual eles haviam teoricamente sido nomeados.

Njío se dispõe ainda de informações sistemáticas sobre orecrutamento e a formação do episcopado francês nos sécu-los XIV e XV. No tocante aos cabidos catedrais, algumas boasmonografias - cujos resultados não devem ser, contudo, gene-ralizados sem precaução - permitem seguir a irresistível as-censão dos homens de saber no pequeno mundo dos cône-gos. Em Laon, em um dos mais poderosos cabidos seculares donorte da França, a porcentagem de graduados passa de 45%em füis do século XIII para 65% um século mais tarde, demodo a culminarem 86% em 1412, no final de dois séculos deprogressão contínua14. Cifras também importantes foram esta-belecidas emTournai (64% de graduados em 1330-1340). Emcertos cabidos do Midi também, encontram-se, no tempo dos

14 - H. Millet, Lês chanoines de cbapitre cathédral deLaon: 1272-1412 (Coll. De 1'École française de Rome, 56).Roma: 1982,p. 87-95.

papas de Avignon, de 30ia60% de graduados e antigos estu-dantes15, cifras também notáveis,por se tratarem, acima detudo, de juristas, enquanto os percentuais de Laòn ou deTour-nai anteriormente citados levam em conta, pelo menos emparte, simples mestres em artes. ( . . ^

Não se dispõe de dados tão precisos para os cabidos cate»drais italianos do final da Idade Média. Alguns estudos inuítoparciais parecem apresentar, cifras surpreendentemente medíç?-crês (menos de 20% de graduados em Parma ou em Pávia no fi-nal do século XIV). Em Roma, os graduados parecem, com mui-to,custo, ter tomado um lugar em meio aos caçulas de famíliasnobres ou patrícias; em um cabido tão prestigioso quanto aquè~lê de São Pedro, composto aproximadamente por 80% de" no-bres, somente 15% dos cônegbs, entre 1277 e 1500, passarampela universidade e não havia entre eles, no total, mais do que9% de graduados16.

Ainda que comparável, a evolução se fez de maneira umpouco diferente nos países germânicos do império, bemcomo sobre as margens nórdicas da velha Europa medieval(Escócia, Escandinávia, países eslavos e Hungria). A Igreja, du-rante longo tempo, guardara ali as estruturas "feudais "e os car-gos do alto clero permaneceram assim apanágio exclusivo daalta nobreza, de maneira que se continuou durante longo tem-po a encontrar nesses países bispos e cônegos bastante igno-rantes, que levavam um gênero de vida pouco apropriadopara as obrigações de seu estado. Quanto àqueles que desejas-sem adquirir uma boa formação intelectual, e esses existiam,

15 - J Vergef, "Lês chanoines et lês universités", In: Lêsmonde dês chanoines (XF-XrVslècles).Tou\ouse: 1989, P-285-307, seçe.. p. 302-303.16 -Ver em I canonici ai serviziò dello Stato in Europa,seçoli XIII-XVT/ Lês chanoines ao service de 1'État én Eu-jrope du Xllf au XVI' siècle, dirigido por H. Millet, Mòdè-ne-Ferrare, 1992; òs~estudos de G. Battioni, II capitolocattedrale di Parma (1450-1500), p, 61-72, M. PeUegrioi Dcapitolo delia cattedrale di Pavia in età sfqrzesca (l45O-1535), p. 73-92, e R. Montei, Lês chanoines de Ia basiliqueSaint-Pierre de Rome (fin 3ÇHF siècle-fln XVT siècle):esquisse d'une enquête prosopógráphique.p, 105̂ 118.

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deveriam, na ausência de universidades locais, emigrar paraobter seus diplomas em Paris e, sobretudo, em Bolonha ondeeles sempre povoaram as prósperas e bem organizadas "na-ções germânicas".A aparição,em fins do século XTV.de univer-sidades nos países do Império e do norte da Europa só lentae progressivamente modificou essa situação. Os nobres quemonopolizaram sempre os postos mais importantes continua-vam a ir estudar, quando o faziam, na França ou na Itália. Quan-to às universidades autóctones, elas formavam, antes de tudo,mestres em artes, dos quais muitos não poderiam pretendermais do que uma simples cúria paroquial. Certamente, houveno século XV, melhoria do nível intelectual médio do clero naEuropa do Centro e do Norte, mas tal melhoria não modificouprofundamente nem o recrutamento social nem as práticasculturais do alto cleros Em Roskilde, no principal cabido doreino da Dinamarca, a proporção dos cônegos que haviampassado pela universidade se elevou de 55% pára 76% entre1367-1430 e 1431-1493, mas, geralmente, tratava-se apenas deum insuficiente verniz cultural: menos da metade desses anti-gos estudantes obtiveram um simples mestrado em artes equase nenhum chegou a alcançar uma faculdade superior. Es-tudos menos precisos trouxeram, para alguns cabidos ale-mães, resultados comparáveis: em Mayence, por exemplo, en-tre 1260 e 1503,42% dos 415 cônegos identificados passarampela universidade, embora apenas 38, ou seja, 9%, tivessem ob-tido um grau.

Para terminar esse olhar panorâmico, caberá, por fim, po-der analisar a situação dos países ibéricos.A informação dispo-nível acerca do tema, pelo menos aquela gue é acessível naFrança, é, infelizmente, bastante precária. Ela parece refletiruma situação intermediária entre os modelos inglês ou fran-cês, de um lado, alemão, de outro.Tomemos o exemplo de Val-ladolid, cidade sem bispado, mas provida de uma universidadee capital, de fato, até o-século XIV, dá monarquia castelhana.Entre os cônegos e os beneficiários da principal igreja de Val-ladolid; Santa Maria Ia Maybr, não encontramos, de 1369 a1425, mais do que 5% de graduados, sempre etn direito. Entre1425 e 1480, essa proporção saltava para 22%, enquanto asprincipais paróquias da cidade passavam a ser, desde então,

servidas por bacharéis17. Nós reencontraremos essa evolução- atraso inicial e recuperação tardia e incompleta, porém rápi-da - quando nos referirmos adiante aos letrados a serviço damonarquia. Podemos, sem duvida, tomá-la como característicada situação espanhola em geral.

O que nós temos dito até o momento diz respeito, acimade tudo, ao clero secular e a certos cabidos urbanos de cônegosregulares.A situação era bastante diferente no mundo dos mon-ges e dos frades mendicarites, mais homogênea, talvez,.no âmbi-to da Crfetandade, embora muito contrastante de uma ordempara outra. ,

Ao longo de toda a Idade Média, os mosteiros abrigaram,em suas escolas, suas bibliotecas e seus sctiptoria,a. maior par-te dos homens de saber daquela época. Mas, daquele antigo mo-nopólio que há muito tempo havia terminado, bem pouco so-brevivia no final da Idade Média. Seria, de fato, excessivo acredi-tar que o monaquismo estava em completa decadência nos sé-culos XIV e XV e que as antigas abadias não acolhiam mais doque as pessoas menos apresentáveis das linhagens aristocráti-cas. Alguns mosteiros, particularmente os Chartreuses, eramainda capazes de suscitar ̂ autores espirituais de alta elevação.Outros, como St Alban's na Inglaterra ou Saint-Denis na França,permaneciam lugares de produção de uma historiografia mo-nárquica e um homem como Michel Pintoin, o autor recente-mente identificado de Chronique du Rellgieux de Saint-Denis,nossa nielhortfonte narrativa sobre o reino de Carlos VI (1380-1422) é simultaneamente a prova da mestria na escrita e deuma acuidade de julgamento que testemunham o alto nível dacultur^ tanto literária quanto histórica, política e religiosa18. Masse nada indica que o mesmo Michel Pintoin tenha feito estudosuniversitários, as principais ordens monásticas haviam, ha ver-dade, acabado, bem ou mal, por se abrir à nova cultura erudita,que era, no entanto, bastante alheia às suas tradições. Desde

17 - A. Rucquoi, VaÜadolid au Mayen Age (1080-148O).Paris: 1993, p. 435.18 - Ver a introdução de B. Guenée,"Michel Pintoin, as vie,son oeuvre", na reedição em três volumes da Chroniquedu relígíeux de Saint-Denis, publicada e traduzida por L.Belkguet. Paris: 1994.

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meados do século XIII, os Cirtercienses depois os Cluniacensesfundaram um colégio em Paris, a fim de poder enviar alguns jo-vens monges para seguirem os cursos da própria faculdade deteologia ou até, ainda que isso fosse teoricamente proibido, dedireito canônico. Outros colégios monásticos aparecerem nosanos seguintes também em Paris, em Oxford e emToulouse. Suaexistência mantinha-se contudo difícil. Faltava o dinheiro e, ape-sar dos apelos^pontificais, especialmente aqueles de BeneditoXII, abades e cabidos mostravam pouco zelo em desenvolver osmodernos estudos no seio das ordens, A proporção de gradua-"dos de universidades em meio às populações monásticas rara-mente ultrapassava, ao que parece, os 3 ou 4% dos efetivos e osprincipais abades continuavam a ser recrutados na alta aristo-cracia mais do que entre os doutores.

Completamente oposta, pelo menos aparentemente, era asituação das ordens mendicantes. Desde o início, São Doniingosfizera dos estudos gramaticais, filosóficos e teológicos um ele-mento essencial, não apenas da formação dos jovens frades pre-gadores, mas até da espiritualidade de sua ordem e, após algu-mas hesitações, os Franciscanos seguiram pelo mesmo cami-nho. Pregadores e Menores eram, como vimos, dotados de umconjunto complexo e hierarquizado de studia dos quais osmais importantes se integravam nas faculdades universitáriasde teologia.-Priores, cabidos é ministros provinciais e gerais ad-ministravam cuidadosamente tais instituições de ensino, tantono tocante ao seu financiamento quanto no concernente à es-colha dos estudantes ou à designação dos professores. No finaldo século, Carmelitas e Eremitas de Santo Agostinho adotaram,por seu turno, um sistema análogo. Ainda que tais studia tives-sem visto passar no final da Idade Média centenas de estudan-tes", não se poderá daí concluir que todos os irmãos mendican-tes eram, nessa época, grandes intelectuais. Deveria haver, em

19 - Assinale-se, como exemplo, que as únicas provínciasgermânicas da ordem dos Carmelitas (Alemania superioret inferior et Saxonia) enviaram 3349 irmãos para os stu-dia universitários de teologia entre o fim do século XIII einício do Xiy dos quais 122 se tornaram doutores (F. B.lickteig, The german carmelites at the medieval univer-sities [textus et studia histórica Carmelitana,13]. Roma:1981, p. 416)

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todas as ordens, uma maioria de fratres canímunes que nãoreceberam mais do que a formação mínima assegurada em cadainstituição para o leitor,conventual. Porém é verdade que a es1

piritualidade mendicante sempre valorizou o estudo e conside-rou os doutores como iluminados e chefes naturais das ordens.Como bem demonstrou André Vauchez, antes dos movimentosde estrita observância do século XV a simplicidade do idiota ig-norante jamais foi tida aqui como mérito e muito menos comovirtude20. Os quadros das ordens mendicantes (priores, minis-tros, conselheiros, pregadores gerais) - quaisquer que tenhamsido sua origem social (pensando bem, freqüentemente mal co-nhecida) - são sempre recrutados, de maneira quase exclusiva,entre os doutores e licenciados em teologia. É inútil insistir naimportância dos autores mendicantes na produção teológica dofim da Idade Média. Deve-se a eles, em Paris e em Oxford, 63%dos comentários bíblicos conservados para o século XIII e 83%para o XIV; sua parte, é verdade cai para 67% no século XV porcomplexas razões que mesclam, sem dúvida, um certo decííniòdas ditas ordens, ou, no mínimo, a ascensão no interior das mes-mas de tendências "observantes", menos voltadas para a produ-ção escolástica - e uma incontestável renovação da teologia se-cular21. Seu papel era igualmente considerado no domínio dapredica: eles representam 85% dos pregadores cuja atividade foiatestada na França setentrional no século XV22.

Poucos, na Igreja e mesmo fora dela, tiveram, indubitavel-mente, ho final da Idade Média, um lugar equivalente ao dossábios e letrados. Isso não impede que eles estivessem longede exercer o quase monopólio do qual haviam desfrutado osmonges da alta Idade Média. O serviço do príncipe, tanto

20 - A. Vauchez, La sainteté en Occident aux derniers siè-cles du Moyen Age á'aprés lesprocès de canonisatíon etnutres documente hagiograpbiques (Bibl. dês écoles fran-çaises d'Athenes et de Rome, 241). Roma: 1981, p. 460-472("Valorisation de k culture"). Y '21 - J. VERGER. Texégese de Vuniversité", In: Lê MoyenAge et te Bible, dirigido pôr P Riché e G. Lobrichon. Paris:1984, p. 199-232, espec. p. 231.22 - H. Martin, Lê métíer de prédicateur à Ia fln duMoyen Age: 1350-1520. Paris: 1988, p 72-75.

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Jtfi

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quanto o serviço de Deus, requeria, dali para a frente, as com-petências dos homens de saber.

3. UMA IDAbE DE OURO DOS LEGISTAS?

A oposição entre serviço de Deus e serviço do príncipe -ou, sé preferirmos, do Estado - está longe de dar conta da opo-sição entre clérigos e~ieigos. Se ,nos países mediterrânicos, opessoal político e administrativo empregado pelas cidades e pe-los príncipes estava já bastante laicizado nos derradeiros sécu-los da Idade Média, isso não acontecia na Europa do Norte.Tan-to pelo fato de os laicos letrados serem ainda bem pouco nume-rosos quanto por ser cômodo para o poder secular fazer apeloaos clérigos cuja remuneração era assegurada pela igreja e, mui-tos servidores do Estado eram aqui homens de Igreja e, cône-gos, bispos ou abades. Cabe sublinhar que a Igreja, e em parti-cular o papado, não parecia se opor a tal situação que iria, con-tudo, ao encontro das antigas interdições canônicas contra aprática^por parte dos clérigos de disciplinas profanas. Pareceaté que, do século XIII ao século XV, os papas haviam volunta-riamente outorgado benefícios eclesiásticos ao clérigos já enga-jados no serviço dos príncipes e recomendados por eles. Pode-se interrogar sobre as causas dessa generosidade: desejaria aIgreja um meio, de guardar uma certa influência nas novasestruturas de Estado em vias de se constituir? Tratar-se-ia, antes,como já se sugeriu, de um verdadeiro "desafio lançado pela no-breza" (Hélene Millet)23, detentora tradicional do poder político,e, se assim for, por quê?

De qualquer maneira, não é muito difícil colocar em evi-dência a importância da afuda aqui concedida, em certa medi-da, gratuitamente, pela Igreja ao Estado».

23 - H. Millet, "Lês chanoines au service de 1'État: biland'une étude comparative", Imitai modeme: gênese, bi-lans et perspectives. Editado por J. Ph. Genet, Paris: 1990,p. 137-145. spéc. p. 1&.

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Os serviços prestados aos príncipes e às cidades por par-te de cônegòs e bispos eram de vários gêneros. Podia tratar-seantes de serviços de natureza doméstica e pessoal, guardandouma certa coloração religiosa (conféssorés, capelães, familia-res), ou, ao contrário, de serviço*s que davam clara prioridade àesfera pública e laica (oficiais de justiça ou de"finanças, embai-xadores). ' • , ' ,

Os reinos da Inglaterra e da França são os dois Estadosonde os clérigos por mais tempo ocuparam um lugar importan-te entre os servidores da monarquia, sobretudo no nível central.De fato, essa tradição de clérigos a serviço do Estado não desa-pareceu completamente desses países, a não ser com o próprio *Antigo Regime.

Na Inglaterra, não apenas o chanceler do reino era quasesempre um prelado, quase sempre arcebispo de Canterbury,mas os serviços centrais da monarquia, chancelaria, "Bane durói" (Tribunal Supremo) e Èchiquier eram amplamente com-postos por clérigos, pelo menos até finais do século XIV. Aténos cabidos bem distantes da capital como Éxeter ou York, uma-forte proporção de cônegòs (32% no primeiro caso, 53% no se-gundo) exerceu, durante os séculos XIV e XV, ofícios públicos24.

Na França, na época de Filipe, o Belo (l 285-1314), um in-quérito prosopográfico sobre o pessoal dos órgãos centrais do ,governo, tanto do Palácio quanto dos serviços administrativos,demonstrou que 273 dos 1884 funcionários recenseados, ouseja, 15%, eram cônegòs Xá que se devç acrescentar alguns bis-pos e outros religiosos)25; eles estavam presentes por toda a par-te e não apenas como capelães e conféssorés. De fato, eles re-presentavam mais da metade dos notórios e secretários dachancelaria, dos mestres de Contas, dos conselheiros do Parla-mento. Em seguida, tais porcentagens baixaram, mas lentamen-

24 - Ver cm / canonici, op. cit., os estudos de R. B. Dob-son, "The Canons ofYork Cathedral: 1400-1500", p. 15-26,e de D. N. Lepine.The canons of Éxeter Cathedral: 1300-1455", p. 27-46. ,25 - Ver em / canonici, op. cit., o estudo de E. Lakm, "Lêschanoinés au sevice de Philippe lê Bel: 1285-1314". p] 219-230. iv

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te; no Parlamento, a paridade entre conselheiros clérigos e con-selheiros leigos foi rigorosamente mantida até meados do sécu- ,Io XV. No início do mesmo século XV, a metade dos conegos deLaon acumulava suas prebendas com um cargo a serviço do reiou de um príncipe de sangue; acrescente-se que os conegos as-sim empregados pelo príncipe eram geralmente aqueles quepossuíam diplomas universitários.

Esses clérigos graduados e servidores de Estados pratica-mente não sofreram a política "galicana" (diminuição da obe-diência, entre 1398 e 1408, Sanção Pragmática de 1438) que pri-vava o papa do usufruto de benefícios eclesiásticos franceses: orei e os grandes, que recuperarão largamente os direitos de co-lação, não os esquecem na distribuição de favores e de rendi-mentos.

Na Itália, em compensação, o pessoal das chancelarias, dasadministrações e dos tribunais foi laicizado muito cedo. Sem re-correr à Igreja, em 1224 Frederico II fundava em Nápoles o stu-dium de retórica e de direito que deveria formar os fun-cionários de que se tinha necessidade para governar o reino daSicília. Nos séculos XIV e XV as chancelarias e os tribunais dascidades italianas apareciam essencialmente povoados por se-cretários e juizes laicos provenientes de Bolonha e de outrasuniversidades jurídicas da península. Os clérigos eram quase sis-tematicamente colocados à parte das atividades políticas e ad-ministrativas. Mesmo em São Pedro de Roma, e note-se que setratava aqui de caso muito particular do Estado pontificai ondenão poderiam ser distinguidos serviço da Igreja e serviço do/Es-tado, apenas 19% de conegos foram encarregados de cargos pú-blicos, dos quais apenas 1% de cargos estritamente laicos.

Seja como for, quer se tratassem de clérigos ou de leigos,o número dos servidores do Estado cresceu por toda parte nofinal da Idade Média (apesar das fortes diferenças geográficas ecronológicas), e aí está o dado maior da história social e políti-ca dessa época. Tal fenômeno foi mesmo bastante espetacularpara que os contemporâneos tivessem tido a tendência de exa-gerar sua importância e rapidez. Periodicamente, os^Parlamen-tos ou as assembléias dos Estados denunciavam o número ex-cessivo dós funcionários e o peso demasiado que eles represen-tavam para as finanças urbanas ou principescas; algumas medi-

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das de reforma foram então tomadas para limitar o seu número,mas o movimento repercutiu logo de maneira panorâmica pe-los Estados do final da Idade Média porque, na realidade, sobre-tudo ás grandes monarquias nacionais, eram ainda notoriamen-te sub-administradas e não podiam dispensar os serviços daque-les homens devotados e competentes - ou pelo menos assimconsiderados - que eram os homens de justiça e das finanças.

A administração central do reino da França, se deixarmosde lado o Conselho - organismo político, o Palácio - organismodoméstico - e o comando do exército, não empregava pratica-mente, por volta de 1350, mais do que 250 pessoas (uma cente-na no Parlamento, sessenta na Chancelaria, ó resto nos diversosserviços financeiros e monetários) e a cifra praticamente nãoaumentará antes de 1450 e o final da Guerra dos Cem Anos26. Éverdade que á maior parte daqueles funcionários, colocando-seà parte o pessoal das finanças encarregado da Assistência ou doTesouro, mereciam a qualificação de "homens de saber"; a qua-se totalidade dos conselheiros do Parlamento e os mestres decontas eram licenciados ou doutores em direito. Muitos dos no-tários e secretários do rei também o eram, ou, talvez, pelo me-nos, mestres em artes. De qualquer maneira, o simples fato dehaverem longamente freqüentado os meios da corte e do palá-cio (e da catedral, para aqueles dentre eles^que eram clérigos)lhes havia plenamente proporcionado a ocasião de se dotaremde uma boa cultura tanto jurídica quanto retórica; de Gervais deBus, autor do Roman de Fauvel por volta de 1314, até os "pri*meiros humanistas franceses'' do tempo de Carlos VI, numero-sos foram, os indivíduos da Chancelaria que desempenharamum papel importante no desenvolvimento da literatura e dopensamento político francês.

Em poucas palavras, os serviços da administração centraldo reinp, concentrados em Paris na lie de Ia Cite, representa-

26 - Este parágrafo e os seguintes inspiram-se fundamen-talmente nos tjrabalhos de E Autrand, Naissance d'umgrana çorps de VÉtat: lês gens du Parlement de Parts(1345-1454). Paris: 1981; e em "Uappariüon d'um nouveaugroupe social", In: Histoire de Ia fonctton publique enFrance, dirigido por M. Pinet, tomo I, Dês origines au Xvé-mesíècle. Paris: 1993, p. 311-443. '

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vam um meio de alta cultura ao' mesmo tempo que uma saídaparticularmente atraente, tão prestigiosa quanto bem remune-rada, para os melhores graduados das faculdades de direito fran-cesas. Compreende-se que eles tenham feito de tudo para asse-gurarem o monopólio a si própriosjaos seus parentes e amigos.As relações pessoais tornavam-sè, no final do século XIV, o com-plemento-indispensável do diploma para fazer carreira a servi- .çò do rei e os homines novi rapidamente se tornaram raros nosorganismos centrais da monarquia. /

O quadro é ,um pouco diferente se olharmos do lado daprovíncia, quer dizer, os funcionários do Patrimônio e da .admi-nistração das bailias e senescalias. Isso representava efetivos, di-fíceis de calcular, de alguns milhares de pessoas. Durante longotempo, nãq. havia ali muita gente que merecesse a qualificaçãode "homens de saber": nem os bailios nem os senescais, nobrese militares, nem "os rendeiros, nem os coletores de impostos, ho-mens de finanças com comportamento geralmente diligente,nem a massa dos meirihhos, quase iletrados e encarregados, so-bretudo, de exercer penhoras e prisões. Mesmo os pequenosperiodistas e tabeliães que povoavam os escritórios da adminis-tração real eram' de uma modesta competência que praticamen-te não ia além da escrituração dos seus registros.

A bailia de Senfis, modesta porém próxima da capital, quefoi estudada de maneira exemplar por Bernard Guenée, ofereceunia imagem quç pode ser, sem dúvida, transposta para inúme-ras outras regiões do reino da França27. Até cerca de 1450, nãoée encontram doutores em direito na bailia de Senlis, sendo quehavia no máximo uma dezena de licenciado, mais freqüente-mente advogados, dos quais alguns foram bem-sucedidos em setornar bailios ou lugares-tenentes da bailia, advogados ou pro-curadores do rei. No restante, simples práticos sem cultura, mei-rinhos e procuradores de origens obscuras. Entre 1400 e 1500,;no arroubo de, reconstrução do país, os funcionários se multi-plicaram, mas também, dentre eles, os graduados que são dora-vante vinte ou trinta e devem por vezes aceitar, pelo menos no

27 - B. Guenée,"fribunaux et gens de Justice dans lêbaillfflge de Senlis à Ia fin du Moyén Age (vers J 380-vers 1550). Strasbourg: 1963.

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início da carreira, os postos bastante modestos de escrivães,prebostes, ou guarda-selos. A evolução não estaria, aliás, em seufinal: por volta de 1550, havia de oitenta a cem licenciados emdireito na bailia de Senlis, pequeno mundo que se tornara carac-terístico por seus hábitos provinciais, calma existência e amb^-ções bloqueadas, p crescimento do Estado, multiplicando osofícios, estimulou a produção de homens de saber. Mas comose deve entender isso? A difusão capilar da cultura erudita pe-los escalões mais modestos da sociedade provincial, ou a desva-lorização dos títulos acadêmicos e a frustração dos graduadosprometidos a tristes lazeres, à rotina intelectual e a destinossem futuro?

O rei não era o único na França que empregava funcioná-rios e que oferecia eventuais possibilidades de carreira para osjuristas. Os príncipes - que possuíam o apanágio do sanguereal, sendo ainda proprietários de grandes feudos -, os preladosenquanto senhores temporais, as comunas, dispunham todoseles de um aparato de governo que reproduzia mais modesta-mente aquele do soberano, coih a tripartição (serviços domés-ticos do palácio, conselho, os próprios serviços administrativosclassicamente divididos em chancelarias, tribunais e escritóriosfinanceiros). A principal diferença é que aqui os indivíduos sécontavam às dezenas e não às centenas, além de o lugar atribuí-do às pessoas cultas, ao lado dos pais, familiares ou simples prá-ticos, ser freqüente e pobremente'avaliado. Mesmo os principa-dos do nível do ducado da Bretanha mantiveram, até final do sé-culo xy instituições bastante sumárias nas mãos de um pessoalpolítico de competência limitada. Apenas os duques da Bor-gonha conseguiram edificar um verdadeiro Estado capaz de ofe-recer um número apreciável de empregos aos graduados em di-reito provindos dás universidade de Orléans, de Dole ou deLouvain28.

O que acabamos de dizer da monarquia francesa se aplica,,sem dúvida, mutatis mutandis, à monarquia inglesa. É mais in-

28 -J.üaiticr^égistes et gens deflnance au XVétne stècle:'lês conseillers dês ducs de Bourgogne sous Phtíippe lêBom et Charles lê Téméraire. 2 volumes. Bruxelas: 1955-57. , ' . - ;'

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teressante pára nosso propósito perguntar o que se passou du-rante esse mesmo período em países mediterrânicos que ha-viam sido, desde o século XIi; o berço do renascimento do di-reito romano e o~ ninho geográfico e cultural onde os legislashaviam conquistado (desde essa época um lugar importante nocenário social e político, mas que não viu, no final da Idade Mé-dia, serem edificadas construções de Estado tão sólidas quantoas grande monarquias nacionais dá França é da Inglaterra.

Na Franca do Midi, onde as primeiras menções de juristas(jurisperiti, causidicf) e de professores legum datam da segun-da metade do século XII, tanto nos prlncipados feudais quantonas cidades de consulado ou de cabidos catedrais, e onde o sé-culo XIII vira se constituir um sólido ensino autóctone de direi-to romano, existia ainda, no início do século XTM no momentoem que aqueles países ingressavam doravante na órbita ca-petíngia, uma quantidade impressionante de juristas leigos mui-tas vezes titulares de licenças ou de doutorados universitáriosadquiridos na própria região pú na Itália. Joseph R. Strayer con-tou 189^ dentre ps quais, pelo menos, 98 doutores ou "jurispe-ritos", no Languedoc no tempo de Filipe, o Belo (1285-1314),sendo que alguns deles - como Guillaume de Nogaret, Guillau-me de Plaisians ou Pons d'Aumelas - conseguiram seguir bri-lhantemente suas carreiras até Paris2"; do mesmo modo, paraAvignon e para o Condado avinhonês, Jacques Chiffoleau con-seguiu recensear 272 juizes (à exclusão de outras categorias dehomeris de lei), quase todos graduados, no século dos papas deAvignon30. Mais tarde, uma vez o papado dividido em Roma e oacesso aos, órgãos centrais da monarquia francesa açambarca-dos pelos graduados de Paris e de Òrléans, as esperanças de car-reira para os homens de saber meridionais tornaram-se maisaleatórias e isso foi, sem duvida, uma das causas do relativo de-clínio das faculdades meridionais de direito no século XV. Aosjuristas provençais e do Languedoc, não restava praticamentenada além de carreiras bem medíocres na administração das se-

29 - J- R. Stryer, Lês gens dejusttce du Languedoc, op, cit.30 - J. Chiffoleau, Lês Justices du pape: delinquance ,et cri-minaliié dans Ia rÇgion d'4vignon au XJjVémesièçlç. Pa-ris: 1984.P. 285-317. ,

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nescalias ou vinculados aos consulados urbanos. A serviço des-ses,últimos, eles poderiam, além do mais, tornar-se, no momen-to certo, agentes eficazes de resistência ao progresso da autori-dade real. Mas era, apesar de tudo, um combate na defensivaque não poderia, enquanto tal, preencher suas ambições. Serviro rei sem trair as tradições e as particularidades da "pátria deLanguedoc" correspondia mais à suas expectativas e, a esse res-peito, a aparição dos Parlamentos de província (Toulouse em1443, Grenoble em 1453, Bourdeaux em 1463, Dijon erti 1476,Aix-en-Provence em 1501) e os postos prestigiosos que elesofereciam aos melhores juristas locais são particularmentebem-vindos. *

Na -mesma época, a Itália e a Espanha viviam evoluçõescontrastantes. Na Itália do Norte e naToscana triunfavam se-nhorios urbanos e cidades-Estados a serviço dos quais se pos-tavam secretários humanistas e doutores em direito, algumasvezes aparentados das velhas famílias do patriciàdo mercantil,às vezes provindos de troncos mais modestos recentementçimigrados do contado vizinho31. Na mesma época, na Itália doSul e na Península Ibérica, ao final de um longo período deguerras, e de dificuldades, iniciava-se com os reis católicosuma unificação territorial e monárquica (1479 - Castela, Ara-gão, Duas Sicílias), ainda imperfeita em 1500, mas que exigiajá a instalação de um aparelho administrativo moderno. Foinesse contexto que, no século XV, apareceu, na Espanha, a fi-gura do letrado, prometido á um belo futuro tanto socialquanto literário. Os letrados constituíams na realidade, um gru-po bastante heterogêneo. No vértice, vinham os grandes fun-.cionários da monarquia, freqüentemente instalados em Valla-,dolid: juizes da Audiência real, contadores mayores (mestresde contas), que supervisionavam os proventos ordinários e ex-traordinários do Estado, secretários da Chancelaria, referendá-rios das cortes. Outros letrados, ou talvez os mesmos, exer-ciam as principais magistraturas municipais (alcaides, regido-res e corregidores) que, em Castela, estavam submetidos pra-

31 - L Martínes, Lawyers and.statecraft in RenaissanceFlorence. Princeton: 1968.

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ticamente todos à nomeação do rei32. Enfim, as famílias da gran-de nobreza tinham seus próprios notários e secretários (escrtva-nos) que geralmente, ao mesmo tempo, faziam parte de suas clien-telas domésticas de protegidos ou criados. O ingresso dos letra-dos foi particularmente notório em Castela, indício da preponde-rância política que esse reino em breve exerceria no seio. da Espa-nha unificada. Em Aragão e tia Catalunha, em compensação, ondeos representantes do Estado sempre se opuseram vigorosamenteaos progressos da autoridade real, eles teriam um lugar menos im-portante, enquanto em Navarra instituições muito mais sumáriascontentavam-se em recorrer a um punhado de licenciados e debacharéis53. Em Portugal, finalmente, os juristas laicos representa-vam apenas 18% dos funcionários da administração central no sé-culo XIV34, embora seu papel houvesse aumentado no século XV

Observa-se semelhante ascensão dos homens de saber a ser-viço de príncipes territoriais e de cidades nos países do norte daEuropa, onde se modernizam então estruturas políticas que, pormuito tempo, permaneceram arcaicas. As administrações locaisofereciam, uma gama bastante ampla de empregos, indo dos mo-destos cargos de secretários nas pequenas cidades, para as quaisse dirigiam inúmeros mestres de artes, até os postos de conselhei-ros nos tribunais do Império para onde iam doutores em direito,muitas vezes graduados em universidades italianas.

', Enfim, por toda a Europa, príncipes e cidades, embora aindanão fossem tão acolhedores para com os homens de saber quan-to a Igreja, empregavam, a seu serviço, um crescente número deletrados, particularmente juristas. O nível de competência, bemcomo o prestígio e a remuneração desses homens, era variável,embora o exercício de um cargo público significasse, para todos,um ponto comum de referência em torno do qual se começava acristalizar, no século XV, o sentimento de constituir um grupo so-cial específico, o qual seria, em seguida, conhecido, na França, porclasse de toga.

32 - Vide A. Rucquoi, íftsíoftv médiévale de Ia PéninsuleIbérique. Paris: 1993, p. 308-322.33 - B. Leroy.Ze royaume de Navarre: lês hommes dupouvoir, XIléme-Xveme siècle. Biarritz: 1995, p. 208-212.34 • "A L de Carvalho Homem, O desembargo régio (1320-1433). Poreto: 1990, p. 471-472.

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4. CONCLUSÃO: ALGUNS MATIZESNECESSÁRIOS

Das páginas precedentes, o leitor terá apreendido, sem dú-vida, um esquema bastante simples, e, no cômputo geral, previ-sível, que poderia ser assim resumido: o final da Idade Médiaviu, ao mesmo tempo, dois fenômenos alimentando-se um aooutro: a transformação da Igreja em uma monarquia administra-tiva centralizada e o nascimento dos Estados laicos modernos.Não podendo se satisfazer com o apoio dos grupos dominantestradicionais, a saber o clero e a nobreza "feudais", Igreja e Esta-dos cada vez mais recorriam às novas categorias de servidores,cuja incondicional fidelidade se aliava a competências técnicasfundadas sobije o domínio do escrito e das disciplinas da cultu-ra letrada. Essa promoção. dÔs homens de saber naturalmenteprovocou, como contrapartida, o próprio crescimento de seugrupo e das instituições de ensino onde eles eram formados.^Daí em diante, a tarefa principal do historiador das sociedadepolíticas e das elites culturais do final da Idade Média será, res-guardado por um instrumental prosopográfico, reconstituir, sepossível de maneira quantitativa, o crescimento paralelo dosaparelhos administrativos, religiosos ou leigos, e dos letradosque lhes asseguravam o funcionamento.

Esse esquema geral não é falso. Ele corresponde, aliás, àambição afixada pelos poderes políticos da época, por exemploquando eram fundadas novas universidades destinadas a forne-cer os juristas e os letrados competentes dos quais se afirmavater necessidade. Confirmando, em 1413, a fundação da universi-dade de Aix, o conde de Provence declarava, por exemplo, queele o fazia "(•••) para que enfim os homens de estudos, plenosde saber e de virtude, tomassem o encargo da coisa pública evelassem melhor por seus interesses."35 - - • ' .

35 - (...) ut tandem studiosí iHri moribus et scientta de-corati reípubllcae, et eidem salubrier consuterent (M.Fournier, Lês statuts etprivilèges dês universités françaí-ses depuis leur fondation Jusqu'ett 1789, tomo CL Paris:1892, n°1578).

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A visão um pouco mecanicista de evolução social e cultu-ral sugerida por tal esquema convida, entretanto, a alguns mati-zes necessários.

Antes de mais nada, de que natureza eram exatamente os"serviços" prestados pelos homens de saber a Deus e ao prínci-pe, à Igreja e ao Estado? Eles os serviam, é um fato, mas não seserviriam também deles? Ainda que atribuíssem um peso espe-cial para as noções teóricas e avaliassem melhor que os outrosa força das idéias, os homens -de saber da Idade Média não de-vem ser considerados como abstrações, definidas apenas pelaconjunção de uma competência e de um ofício; eram seres decarne e osso, com suas ambições, seus interesses, suas amiza-des. Deve-se ter em conta todos esses fatores para julgar comeqüidade seu papel na sociedade do tempo.

Segundo matiz a se ter presente na reflexão: será que ha-via necessariamente uma ligação funcional entre a competên-cia intelectual dos homens de saber e as tarefas que eles cum-priam? A resposta é evidentemente negativa. Eu não falo aquidas defasagens entre as disciplinas estudadas -, direito romano,teologia .escolástica, medicina galênica - e as'práticas sociaisposteriores desses homens36; pode-se admitir que, nessa época, ,se considerasse que uma formação de alto nível, ainda que rela-tivamente abstrata, podia, naquilo que dava acesso ao próprioespírito das disciplinas, ser, em seguida, aproveitada em práticasconcretas heterogêneas, costumeiras e empíricas. Eu me inter-rogo, em contrapartida, sobre o tipo de competência reconhe-cida a todos aqueles - certamente, a maioria dos homens de sa-ber, pelo menos da metade norte da Europa - que não haviamrecebido nada além de uma formação gramatical e lógica, co-roada, quando muito, por um mestrado em artes57. Em si, o mes-trado em artes praticamente não abria grandes possibilidades:ele permitia tornar-se mestre de escola (e, como vimos, muitosmestres-escolas não o possuíam), a rigor, escrivão, secretário, es-crivano. Mas, de resto, ele simplesmente garantia o bom conhe-

$6 - Vide, sypra, p. 40. . . . ' ' . .37 - Jacqucs Verger,"Pout une histoire de Ia maítrise ès-artsau Moyen Age: quelques \dans", Médiévales, 13 (1987)", p.117-130.

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cimento do latim, noções de lógica e de filosofia, uma certa ap-tidão para o pensamento abstrato e para o manejo, ativo ou pas-sivo, da escrita, enfim, a^experiência de uma particular sociabi-lidade, aquela das escolas, dos colégios e das universidades. É dese crer que esse tipo de formação, com o qual se contentavamdois terços de estudantes parisienses e quatro quintos, pelo me- 'nos, daqueles das universidade alemãs, era por si mesma perce-bida como fundadora de uma competência intelectual, aindaque fosse desprovida de qualquer dimensão técnica ou profis-sional. Era assim que o resto -quer dizer, por exemplo, even-tuais conhecimentos religiosos ou até jurídicos - podia ser ad-quirido a partir dali, progressiva e empiricamente.

Deve-se, desse maneira, resgüardar-se de determinadas ilu-sões documentais. É verdade que os juristas e acessoriamenteos teólogos ocupam o primeiro lugar neste cenário, com seustítulos ruidosos e seus belos diplomas - nós pensamos nos sun-tuosos pergaminhós, realçados pela pintura, que, no século xyas universidade de Bolonha e Pádua entregavam. Mas por detrásda grande e orgulhosa figura dó doutor, o homem de saber me-dieval foi, mais freqüentemente, o modesto mestre em artes,aquele simples magister - título para o qual Conrad de Megen-berg sublinhava, com correção, a ambigüidade, em seu Econô-mico, III, (por volta de 1354)** - cujos conhecimentos bastanteelementares constituíam, no entanto, uma bagagem comum,fundamento de uma prática social específica.

Será que essa prática social - e isso constituirá nosso ter-ceiro matiz aplicado ao esquema geral indicado acima - era, poroutro lado, sempre direcionada a serviço da Igreja ou do podersecular? Evidentemente não. Fosse por espírito de independên-cia, fosse por busca de lucro ou por falta de postos, muitos ho-

38 - Magister nomem est equivocum ad plura (Konradvôo Megenberg, Werke. Õkanomik (Bucb III), editadopor S. Krüger [ MGH, Staatsschriften dês spãteren Mittelal-ters, III, 5/3]; para Conrad de Megenberg, com efeito, a pa-Jsrm magister recobria três elementos distintos -, o títulouniversitálio (títulus), o saber efetivo (re$) e o reconheci'mento social (nominacio) - sendo que muitos dos mctgts-trí não posssuíam mais do que um ou dois.

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mens de saber na sociedade medieval optaram por uma práticaprivada, por vezes diretamente ligada à sua formação anterior,por~vezes mais inesperada (e, por essa razão, difícil de ser des-coberta). Esse uso individual e privado das competências inte-lectuais deve também ser levado em consideração por quemdesejar reconstituir de maneira cpmpleta o papel dos homensde saber nas sociedades medievais sem retornar aos cursus bo-norum, por mais brilhantes que eles possam ter sido, das car-reiras eclesiásticas ou políticas.

Com o intuito de explicitar e aprofundar tais matizes, euacabo de indicar a que serão consagrados os próximos capítu-los deste livro.

SABER E PODER

Nós acabamos de passar em revista as principais funçõesque as sociedades ocidentais do final da Idade Média mais co-mumente designaram aos homens de saber, sem, jamais, ao queparece, lhes haver reservado monopólio absoluto. Convém ago-ra interrogarmo-nos sobre a natureza exata de tais funções,

À primeira vista, f ratava-se de funções relativamente técni-cas, correspondendo, em seu aspecto prático, às disciplinas in-telectuais anteriormente incorporadas. Somente o caso dos ba-charéis e dos mestres em artes, cuja cultura gramatical e lógicanão correspondia a nenhum saber-fazer imediatamente utiliza- •vel, é como vimos, um pouco mais complexo. Mas dos outros,esperava-se sempre, de uma maneira ou de outra, que eles seapresentassem por escrito, que eles julgassem, que eles admi-nistrassem. Os homens de saber redigiam cartas e ordenações,pregavam e advogavam, dispensavam a justiça, verificavam ascontas ou administravam os assuntos temporais das igrejas oudos príncipes. Em outras palavras, e como indicava o próprio tí-tulo de nosso capitulo anterior, tratava-se sempre de servir um .mestre - individual ou coletivo -, de providenciar ou aplicar de-cisões ou regulamentos para aqueles, que eram, verdadeiramen-te falando, os detentores do poder.

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O papel dos homens de saber seria reduzido a isso? Nãodisporiam eles de uma certa margem de liberdade? Não esta-riam eles nunca associados, em algum nível, à própria elabora-ção de decisões, à definição de regras, ao exercício do poder?Não disporiam eles de uma certa capacidade de interpretaçãoe de iniciativa e de uma certa autonomia de ação? Sempre ser-vindo os interesses de seus mestres, será que eles não tiveram apossibilidade de defender os seus próprios? Procurar responderessas questões é o objeto do presente capítulo. >

I. SABER-E IDEOLOGIA

Nas sociedades medievais, como em qualquer época dahistória, bem raros foram os poderés; religiosos ou laicos, quenão provaram a necessidade de acompanhai sua ação por umcerto esforço de legitimação ou justificação ideológica. Todotipo de meios podia ser colocado a serviço da ideologia e dapropaganda políticas: a arte, sob todas as suas formas, os ri-tuais públicos a literatura vernácula, oral ou escrita, a história.No tocante à Idade Média ocidental, foi principalmente a par-tir do século XII, que se desenvolveu a idéia de se recorrertambém aos recursos da cultura erudita tal como esta haviasido definida no primeiro capítulo deste livro e, assim, de ape-lar para os homens de saber nesse esforço de produção ideo-lógica. O Policraticus (1159) representa aqui uma etapa capi-

^tal; nesse, que foi na Idade Média o primeiro grande tratado es-pecífico - senão laicizado - de filosofia política, Jean de Salis-bury explicava que o príncipe, se desejasse realizar vim bomgoverno em seus Estados, não devia ceder nem às intrigas doscortesãos nem à sua própria fantasia, as quais só poderiamconduzi-lo à tirania. Devia, pelo contrário, seguir os conselhosdos "filósofos", quer dizer, dos doutores provenientes de esco-las e compenetrados no que havia de melhor, nas bélas-artes,na dialética, no direito, na ciência da Escritura. Foi ele que co-locou em níoda o adágio "um rei ignorante é quase um asnocoroado" (Rex illiteratus est quasi asinus corçnatus), queserá, até o final da Idade Média, um dos lugares-comüns maiscitados de toda literatura política. '

vPara dizer a verdade, nesse domínio como em muitos ou-tros.foi sem dúvjda a Igreja quem desbravou o caminho para ospoderés laicos. Desde o final do século XI, a querela do sacer-

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dócio e do Império conduzir^ os papas (e, pela repercussão, osimperadores) a buscar na teologia e no direito romano a justifi-cação de suas pretensões à autoridade suprema. A intensa pro-dução que disso resulta em um e em outro campo se prolongouaté o século XII, com o papaAlexandre III (1159-1181) é O im-perador Frederico I Barbarüivá (l 155-1190), depois , no sécujoXm, no tempo das lutas entre Frederico II (1220-1250) e os pa-pas Gregório IX (1227-1241) e Inocêncio IV (1243-1254). No^curso dessa última fase do conflito, os teólogos mendicantes vi-riam agregar sua voz àquela dos canonistas romanos para sus-tentar a causa àaplenitudopotestatís pontificai. No século XIV;a relativa retração do poder imperial e o funcionamento muitodesconfiado da máquina administrativa dos papas dç Avighoncolocaram por um tempo em vigília a reflexão eclesiológica,mas aquela voltaria-a ocupar o primeiro plano a partir de 1378com o Grande Cisma do Ocidente e a crise conciliar que se pro-longa até meados do século XV, enquanto se eterniza o conciliode Bale. Filosofia, teologia e direito foram novamente encarrega- ~dos de fornecer, aos partidários dos diversos papas, sob a supe-rioridade do concilio os argumentos próprios para fundar acausa que eles sustentavam. De qualquer modo, fosse nas uni-versidades, nas camarilhas dos príncipes ou nas dos pontíficesrivais, multiplicavam-se os tratados e panfletos "do cisma", "doconcilio", ou do "papa".

Do lado dos poderés seculares, para além da literatura pró-imperial já mencionada, os progressos da ideologia políticaacompanharam, sem dúvida, e até precederam aqueles da renas-cença efetiva do Estado e da soberania do príncipe.

Os reis Plantagenêt da Inglaterra foram os primeiros a rercorrer, desde o século XII, junto com autores como o próprioJean de Salisbury, Giraud de Barri ou Gautier Map, todos eles pu-ros produtos das escolas de seu tempo e teóricos da monarquiaao mesmo tempo que críticos impiedosos dos cortesãos e dos,nobres sem cultura1. Na França, o culto dínástico e a historiogra-fia foram, por longo tempo, os principais suportes ideológicos,da política dos Capeto. Foi sob São Luís que alguns juristas,

l -Vide E. Türk, Nugae curialium. Lê règne d'Henri //Plangenêt (1145-1189) et 1'étbique poltttque. Genève:1977.

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como Pierre de Fontaines ou Jean de Blanot, começaram a em-pregaf, com vistas à afirmação da soberania do rei, "imperador "em seu reino", o apoio do direito romano. Vinte anos mais tar-de, o aristotelismo político, interpretado no sentido mais mo-nárquico possível, Veio fornecer uma segunda caução, de natu-reza filosófica, para a edificação dó Estado moderno. Filipe, oBelo (1285-1314), que em sua juventude tivera entre seus pre-ceptores um dos maiores mestres de filosofia e de teologia deParis, o Augustin Gilles de Rome, autor do De regirnine prínci-putn (Do governo dos príncipes), foi, sem dúvida, o primeiro aresolver utilizar sistematicamente os recursos da cultura erudi-ta a serviço da ação política da monarquia. Sua longa e vitorio-sa querela com o papa Bonifácio VIII para afirmar a total inde-pendência do rei em relação ao poder temporal, foi acompa-nhada da publicação de inúmeros tratados e panfletos favorá-veis à prerrogativa real.

A orquestração ideológica da política real foi impulsiona-da, em seu mais alto nível, no tempo do rei Carlos V (1364-1380). Seu codinome "Sábio" (sabant) mostra bem que os pró-prios contemporâneos foram sensíveis para esse aspecto daação real. Carlos V era efetivamente um homem de cultural Elecriou e instalou no Louvre a "biblioteca real" onde história na-cional, direito público e filosofia política encontraram seu lugarao lado de livros religiosos e de literatura vernácula! Ele amavacercar-se de um círculo de intelectuais, freqüentemente provin-dos da Universidade de Paris) que Françoise Autrand agradavèl-mente chamou de "o clube do rei"2; verdadeiro órgão informal,' não de decisão (esse papel permanecia reservado ao Conse-

lho), mas de reflexão geral sobre a natureza e as finalidades doEstado e da ação política. Esse círculo reunia-se habitualmente,em torno do rei, para conversas que, ao mesmo tempo, eramcultas e amigáveis. Ele produzia também, certamente sob diretocomando do soberano, um determinado número de obras mui-to bem apresentadas, onde se exprimiam de maneira bastantecompleta as concepções políticas (soberania do Estado e inalie-nabilidade da coroa, necessidade do conselho e do consenti-

2 - E Autrand, Ctetfes V lê Sage, Paris: 1994, p. 728.

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Jn _^M*l«« 1s rtlH"* *"' r ^mento, eleição dos funcionários, plena *atofl ^tçou j

em relação aos religiosos, etc.), que Carlos V .& ^^locar concretamente em prática no governo J^télcs «or Ntsãs produções, nós já citamos as traduções de ̂ ^ Trémaugorf! ft

colas Oresme e o Songe du vergier de Évra^podçmos acrescentar a tradução do PolicratiClechat, aquela az Cidade de Deus de Santo Ag^5

^limitada, niode Presles etc. . , . m , .Os tratados teóricos, cuja difusão devert^,^ acresccntaf, ^

eram os únicos veículos da ideologia política. ^ ̂ outro, o9de um lado, os panfletos e folhetos de propag^ ̂ cuidadosa1' itextos diplomáticos*. A redação desses últiíIlOeSma proporçãomente elaborada no seio das chancelarias, na & cetrveis de attft- 'em que eles eram, por sua própria natureza, s& concretaioeiiteder um vasto público e de fazeros temas mais clássicos da propaganda real: p 0ieneSi cartas detas e ordenações, considerandos, de sentenças reformadores»comissão dadas a inquiridores ou a comissáí* jaetc. Frederico II e os papas do século XHI haV* QSdimensão ideológica contida nessas fórmula^' _final da Idade Média não esqueceram essa UÇ^ s

Durante o reino de Carlos VI - colocanc^^Q autodidatade Mézières (1327-1405), cuja cultura de cz^ homens de sã-não permite, aliás, situá-lo exatamente entre propaganda falber aos quais nos referimos aqui - o esforço ̂ jsputavam entrerecuperado pelos príncipes dá flor-de-lis, qu^ gânda do rei. Ossi o poder que lhes era concedido pela extraV^g£ para ̂duques de Borgonha e de Orléans rivalizava!**^ o primeirolar aos serviços intelectuais niais reconhecicJ QrléanSmais hábil riesse jogo e, enquanto o duquesobretudo a seu favor a fidelidade de adminis*tares, o duque de Borgonha obtinha apoiorios eminentes, como Jean Gerson, quantoprofissionais como Christine de Pisan, uma

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autores

3 - Cf. Lê forme deüa propaganda poTrecento, editado por P CammarosanoFrançaise de Ronie, 201). Roma: 1994.

rÉcole

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como Picrre de Fontaines ou Jean de Blanot, começaram a em-pregar, com vistas à afirmação da soberania do rei, "imperadorem seu reino", o apoio do direito romano.Vinte anos mais tar-de, o aristotelismo político, interpretado no sentido mais mo-nárquico possível, veio fornecer uma segunda caução, de -natu-reza filosófica, para a edificação do Estado moderno. Filipe, oBelo (1285-1314), que em sua juventude tivera entre seus pre-ceptòres um dos maiores mestres de filosofia e de teologia deParis, o Augustin Gilles de Rome, autor do De regtínine princi-pum (Do governo dos príncipes), foi, sem dúvida, o primeiro aresolver utilizar sistematicamente os recursos da cultura erudi-ta a serviço da ação política da monarquia. Sua longa e vitorio-sa querela com o papa Bonifácio VIII para afirmar a total inde-pendência do rei em relação ao poder temporal, foi acompa-nhada da publicação de inúmeros tratados e panfletos favorá-veis à prerrogativa real.

A orquestração ideológica da política real foi impulsiona-da, em seu mais alto nível, no tempo do rei Carlos V (1364-1380). Seu codinome "Sábio" (savaní) mostra bem que os pró-prios contemporâneos foram sensíveis para esse aspecto daação real. Carlos V era efetivamente um homem de cultural Elecriou e instalou no Louvre a "biblioteca real" onde história na-cional, dircitdpúbuco e filosofia política encontraram seu lugarao lado de livros religiosos e de literatura vernácula. Ele amavacercar-se de um círculo de intelectuais, freqüentemente provin-dos da Universidade de Paris', que Françoise Autrand agradavèl-mente chamou de "o clube do rei"2, verdadeiro órgão informal,

'não de decisão (esse papel permanecia reservado ao Conse-lho), mas de reflexão geral sobre a natureza e as finalidades doEstado e da ação política. Esse círculo reunia-se habitualmente,em torno do rei, para converfsas que, ao mesmo tempo, eramcultas e amigáveis. Ele produzia também, certamente sob diretocomando do soberano, um determinado número de obras mui-to bem apresentadas, onde se exprimiam de maneira bastantecompleta as concepções políticas (soberania do Estado e inalie-nabilidade da coroa, necessidade do conselho e do consenti-

2 - F. Autrand, Charles V lê Sage. Paris: 1994, p. 728.

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mento, eleição dos funcionários, plena autonomia do políticoem relação aos religiosos, etc.), que Carlos V se esforçou por co-locar concretamente em prática no governo de s^u reino. Des-sas produções, nós já citamos as traduções de Aristóteles por Ni-colas Oresme e o Songe du vergier de Évrard de Trémaugon;podemos acrescentar a tradução do Pottcraticus por Denis Fou-lechat, aquela da Cidade de Deus de Santo Agostinho por Raoulde Presles etc.

Os tratados teóricos, cuja difusão deveria ser limitada, nãoeram os únicos veículos da ideologia política. Cabe acrescentar,de um lado, os panfletos e folhetos de propaganda, de outro, ostextos diplomáticos3. A redação desses últimos foi cuidadosa-mente elaborada no seio das chancelarias, na mesma proporçãoem que eles eram, por sua própria natureza, suscetíveis de aten-der um vasto público e de fazer compreender concretamenteos temas mais clássicos da propaganda real: preâmbulos de car-tas e ordenações, considerandos, de sentenças solenes, cartas decomissão dadas a inquiridores ou a comissários reformadores,etc. Frederico II e os papas do século XIII haviam já mostrado adimensão ideológica contida nessas fórmulas; os príncipes dofinal da Idade Média não esqueceram essa lição.

Durante o reino de Carlos VI - colocando-se à parte Filipede Mézières (1327-1405), cuja cultura de cavaleiro autodidatanão permite, aliás, situá-Jo exatamente entre os homens de sa-ber aos quais nos referimos aqui - o esforço de propaganda foirecuperado pelos príncipes da flor-de-lis, que disputavam entresi o poder que lhes era concedido pela extravagância do rei. Osduques de Borgonha e de Orléans rivalizavam-se para se vincu-lar aos serviços intelectuais mais reconhecidos. O primeiro foimais hábil nesse jogo e, enquanto o duque de Orléans ganhavasobretudo a seu favor a fidelidade de administradores e de mili-tares, o duque de Borgonha obtinha apoio tanto de universitá-rios eminentes, como Jean Gerson, quanto de autores quaseprofissionais como Christine de Pisan, uma das raras mulheres

3 - Cf. Lê forme deüa propaganda politíca nel Due eTrecento, editado por P. Cammarosano (Coll. De 1'ÉcoleFrançaise de Rome,201>. Roma: 1994.

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suficientemente versadas nas disciplinas eruditas para que pos-samos associá-la ao grupo das pessoas de saber.Alguns letradospermaneceram duradouramente fiéis à causa borguinhona, ou-tros acabaram por afastar-se dela, sobretudo após o assassinatodo duque de Orléans (1407), fosse para reunir um bastante ilu-sório terceiro partido reformador, fosse para aderir ao clã ar-manhaque. Era incontestavelmente para este que se dirigia, porexemplo, a simpatia dos. secretários humanistas da Chancelarianos primeiros anos do século XV, assim como Jean de Montreuil(1354-1418), cujos tratados políticos (A toute Ia cbevalerie,Traité contre lês anglais) sustentavam vigorosamente, frente àInglaterra, a política "nacionalista" do partido de Orléans. Em1418, quando o duque de Borgonha foi nomeado senhor de Pa-ris, a maior parte pagava, quer com a própria vida, quer com umexílio definitivo, esse engajamento que se tornara, no decorrerdos anos, abertamente anti-borguinhão.

Contudo, tal ruptura não interrompeu completamenteessa corrente ideológica. A partir dos anos 1430, se o duque deBorgonha Filipe, o Bom, debruçou-se sobre as formas de propa-ganda, tanto as literárias quanto as mais tradicionais (crônicas eliteratura cavalheiresca)4, o rei Carlos VJI fez novamente apeloaos autores políticos capazes de desenvolver os argumentos fi-losóficos e jurídicos necessários para fundamentar sua legitimi-dade, e além disso, para justificar a política cada vez mais auto-ritária, talvez quase "absolutista", que ele havia empreendidopara reconstruir o Estado monárquico, sempre perseguindo vi-toriosamente a reconquista idos territórios ocupados pelos in-gleses, Os especialistas possuem geralmente um julgamentosem indulgência sobre tal produção, estimando que, cada vezmais, as argumentações aproxlmativas a serviço de uma propa-ganda descarada substituíam as fortes análises jurídicas e políti-cas do século precedente; apenas Jean Juvenal dês Ursins(1388-1473) - esse austero advogado do rei autor de diversas"proposições", "exortações" e outras "deliberações" dedicadas a

4 - Ver o conjunto de textos publicados sob o títulofplendeurs de Ia cour de Bourgogne: récits etcbroniques, sob a direção de D, Régnier-Bohler. Paris:1995.

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Carlos VII - encontra um relativo perdão aos olhos daqueles his-toriadores que, em compensação, eram particularmente seve-ros com um Jean de Terrevermeille, outro advogado do rei (emBeaucaire) cujos Tractatus contra rebelles suoj-um fvsum de1419 foi definido como "uma apologia da obedjência impostaaos indivíduos...face ao rei onipotente", um Robert Blondel,preceptor do segundo filho de Charles VII (Lês droitsdela cou-rònne de France, 1450) ou, no final do século, o chanceler hu*-manista Guillaume de Rochefort que se gabava, em 1484, da "in-fatigável prontidão para a obediência" por parte da ilação fran-cesa5. Deve-se ver nisso um primeiro exemplo de "traição doshomens de letras" em uma longa e difícil historia de relaçõesentre os, intelectuais e o poder político na França? "

Seja como for, importa para nosso propósito precisar cor-retamente a origem sociológica desses homens de saber, paraquem o serviço do príncipe, geralmente muito bem remunera-do, não tomou a forma (ou melhor, não apenas) do exercício detal ou qual cargo administrativo, mas de elaboração de um.aideologia de Estado destinada a justificar, sob coloração de "re-forma do reino", o retrocesso das antigas liberdades, em provei-to de uma acepção sempre mais larga da soberania real.

Muitos, notemos, não assinaram suas obras, que perma-necem para nós anônimas. Poderíamos nos interrogar sobre ascausas dessa discrição .Alguns agiram, sem dúvida, espontanea-mente, quer por "patriotismo", ou "regalismo" sincero (paraempregar um vocabulário um pouco anacrônico), quer parase fazer destacar aos olhos do príncipe e conseguir seus favo-res. Era, sem dúvida, esse o caso de Pierre Duboisf antigo estu-dante de Paris e de Orléans que se tornaria um advogado bas-,tante obscuro da bailia çíe Coutances na Normandia e que en-tre os anos 1300-1310, produziu utna dezena de pequenos tra-tados nos quais sustentava, sem reservas, a política de Filipe oBelo, como o faria também tanto em seus ataques contra Bo-nifácio VIII ou contra os Templários, quanto em seus projetosde Cruzada (ou pelo menos aqueles que atribuíam a ele). Essa

5 - J. Krynen, L'empire du rói: idées et croyances pofítí-ques en France: XIIP-XV siècte. Paris: 1993, p. 384314.

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lealdade irrepreensível não foi, aliás, recompensada. Talvez òrei jamais tenha tomado conhecimento dos textos de Pierre

Dubois6.' Outros autores vinham diretamente da universidade;

Christine de Pisan nos informa assim "que lê roy Charles [V]amast science et Vestude, bien lemonstroit à sã três arnée fil-ie l'Université dês clers de Parts Ç..) La congregacion dês clerset de Vestude avoit en grant reverence; lê recteur, lês rnaistreset lês clers solemfmélz, donty a maint, mandoit souventpouroír Ia dottrine de leur sciencç, usoit de leurs conseilz de cêqui apartenoit à 1'espirituaulté, moult lês honnçroit etpor-toit en tautes 'choses"1. Outros autores, enfim, pertenciam já atal ou qual organismo administrativo quando o príncipe faziaapelo ao talento de sua pluma. A maior parte foi, assim, direta?mente solicitada pelo príncipe. Ignoramos evidentemente qualseria a parte respectiva, desse seu consentimento, do interessebem delimitado e qual parte provinha de sincera convicção,sendo que ela mesma estaria apoiada, senão sobre um consen-so geral, pelo menos sobre uma poderosa corrente de opinião.Ignoramos também até que ponto o real comandatário esboça-va por antecipação o esquema da obra solicitada ou, ao contrá-rio, deixava para o autor uma margem dê liberdade que pode-ria eventualmente lhe permitir ultrapassar ps desejos de seumestre e fornecer-lhe os argumentos, e até os conceitos que elenão havia ainda sequer sonhado.

Caberá para poder responder a tais questões cercar demaneira direta a personalidade e a cultura do próprio príncipe.Ó "rei sábio" do final da Idade Média não era certamente o rexillitteratus ridicularizado por Jeah de Salisbury, embora, comopraticamente não possuamos para essa época escritos autênti-cos verdadeiramente provindos de uma pluma real, torne-se di-fícil dizer em que medida o príncipe; podia discutir de igualpara igual com os homens de saber ou preferia deixá-los com o

6 -Ver a introdução de Pierre Dubois, The Recovery ofthe 'Holy Land, traduzido por W. 1. Brandt. New York, 1956.7 • Christine de Pisan, Lês livres dês faits et bonnesmoeurs 4u sage roy Charles V. Editado por S. Solente,tomo H, Paris: 1940, p. 46-47. x

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campo livre para desenvolver suas idéias, com a condição deque estas fossem condizentes com o sentido geral por ele dese-jado, i

Nós desenvolvemos um pouco o exemplo francês que nosé mais familiar, mas, na maior parte das monarquias européias,encontraremos, inclusive, entre os séculos XIII e Xy um ou maispríncipes "sábios" que souberam se cercar de letrados a quemeles encomendavam as obras de ideologia ou propaganda des-tinadas a favorecei seus esforços de modernização do Estado;

Desde os anos 1260, o rei-de Castela Afonso X (1252-1284), que também é considerado "Sábio" (ei Sábio), havia feitoalguns legislas formados em Bolonha compilarem a célebre co-leção jurídica das Siete Partidas, de inspiração fortemente ro-mana e c(ue se tornaria muito em breve a base do direito públi-co espanhol, antes mesmd de ser promovida, no século seguin-te (1348), ao estatuto de código de leis oficial e ensinado comotal nas universidades. Outros príncipes ibéricos do final da Ida-de Média saberão ao mesmo tempo fazer legitimar pelos douto-res de Salamanca ou de Coimbra tanto o reforço do Estadoquanto os primeiros projetos de expansão ultramarina. Comoexemplo, citaremos o rei Duarte I de Portugal (1433-1438), au-tor de,grandes compilações legislativas (Ordenaçoens do se-nhor rey D. Duarte e Livro das leis eposturas),e seu irmão ca-çula, o infante Henrique, ò Navegador (1394-1460), cujo interes-se pelas matemáticas, por astronomia e por geografia nós con-hecemos.

No Império, a propaganda imperial, ainda ativa no tempode HenriqueVII, Luís da Bavieratp provável inspirador e o mo-delo do Défenseur de lapaix, composto em 1324 por Marsíliode Pádua, ele próprio antigo reitor da Universidade de Paris quese tornara vigário imperial nsí Itália) e Carlos IV de Luxembur-go, periclitaria em seguida. Contudo, os príncipes territoriais,bem como os italianos (os Médicis em Florença, os Sforza emMilão, os Este em Ferrare, Afonso V em Nápoles) e os alemães(os duques da Baviera, os Eleitores palatinos os margraves deBade), até mesmo quando seus poderes tomavam a forma deuma brutal tirania ou não ultrapassavam uma escala local e bas-tante modesta, tomavam freqüentemente a precaução de cerca-rem-se de doutores e dê letrados a seu serviço. Concebe-se que,

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nesse contexto, o debate entre defesa das liberdades cívicas, re-descobertas pela leitura de Cícero, e a adesão ao mecenato prin-cipesco teria sido um daqueles que mais agitaram o mundo doshumanistas italianos, especialmente toscanos, no sécülo-XV.

Podemos apresentar outras referências ainda emprestadastanto da história inglesa - como por exemplo, aquela do tem-po do rei Ricardo II que fazia com' que os juristas de seu círcu-lo, como Robert Tressilian, presidente do Banco do rei, procu-rassem justificar sua política de poder pessoal hostil ao Parla-mento e aos grandes barões9 - como de países mais longínquoscomo a Polônia de Casimiro, o Grande (1333-1370), ou a Hun-gria de Mathias Corvino (1458-1490) com seus chanceleres hu-manistas provenientes das universidades de Viena ou de Bolo-nha, JeanVitéz e Pierre Váradi10.

Naturalmente, as disciplinas eruditas não forneciam a úni-ca base, talvez nem sequer a principal, da legitimação ideológi-ca do Estado moderno. Na França como em outros lugares,todos os tipos de elementos tradicionais, retomados fundamen^talmente da antiga cultura cavalheiresca, lhe foram também in-tegradas, ao mesmo tempo que as crenças mais populares, reli-giosas ou morais, históricas ou míticas, adequadas para suscitara adesão afetiva das populações para a idéia nacional e para adinastia que ela encarnava11. Todavia, permanece, para nossopropósito, o fato de o final da Idade Média assistir aos homensde saber inaugurarem,'pelo menos alguns dentre >eles, uma for-ma intelectual de engajamento político que ia bem além doexercício das funções judiciárias ou administrativas habituais.

8 - Na base de uma enorme literatura acerca desse tema, en-contram-se os trabalhos de H. Baron e especialmente de seumaior livro, The crists of tbe early tíalian Renaissance.Civic Humanism and republican liberty in an age çfclassicism and tyranny, 2 volumes, Princeton: 1955.9 - S. B. Chrimes, "Bicharei II's questions to the judges",ln:Law quaterly review,~!2 (1956), p. 365-390.10 - L. S. Domonkos, "Eccfcsiastical patrons as a factor in ,thé hungarlan Renaissance", In: New review ofeast-euro-pean Mstory, XTV/1-4 (1974), p. 100-116.11 - C. Beaune, Naissance de Ia nation France. Paris:1985.

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2. DO SERVIÇO AO CONSELHO

No fólio l do maço 2902 da Biblioteca real de Bruxelas,que constitiji-se um exemplar de apresentação da tradução daÉtica de Aristóteles, uma iluminura mostra-nos o mestre NicolasOresme ajoelhado em frente a Carlos V; ao rei que senta majes-tosamente, com a coroa sobre a cabeça, sob o palio real; o autoroferece respeitosamente o livro que acaba de compor "du côm-mandement de três noble et três excellent prince Charles, parlê grâce de Diéu roy de France". Mesmo tendo cumprido umatarefa mais nobre dó que a simples escrituração, mesmo dispon-do de uma certa liberdade de inspiração, o ideólogo que colo-casse seu talento a serviço das escolhas políticas de seu mestreesperando recompensa, estava ainda em posição de dependên-cia. Sua ciência e sua competência são reconhecidas, emborautilizadas para finalidades que lhe são impostas.

Teriam os homens de saber do final da Idade Média seconduzido para além dessas posições sempre subordinadas? Te-riam eles participado pessoal e diretamente do exercício do po-der? A resposta a essa questão não é simples e cabe outra vezdiferenciar efetivamente o caso da Igreja daquele dos Estadosseculares.

Para a Igreja, a resposta é incontestavelmente afirmativa apartir, pelo menos, de meados do século XII. De fato, até finaisda Idade Média, um grande número de papas, de cardeais, debispos, de abades, foram recrutados na alta e por vezes muitoalta, aristocracia. Porém, como vimos no capítulo precedente^ odomínio de uma boa cultura teológica ou jurídica, sancionada apartir do século XIII pela posse de títulos universitários, torna-ra-se igualmente uni eficaz critério de promoção no aitp clero.O papa Alexandre III (1159-1181), ainda que não se deva maishoje em dia identificá-lo com o canonista Rolandus, foi o pri-meiro de unia longa linhagem de papas cultos provindos das es-colas de Boíonh^. Outros, como Inocêncio HI (1198-1216), ha-viam, antes, estudado teologia em Paris. O mais eminente, a esserespeito, foi, sem dúvida, Inocêncio IV (1243-1254), canonistade grande renome, que ofereceria, como papa, a edição defini-tiva de sey Apparat sur lês Décrétales. Os papas dá segunda

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r,

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metade do século XlII, como aqueles de Avignon, ainda que fos-sem personalidades menos brilhantes, foram, praticamente to-dos eles, também antigos doutores em direito ou teologia.

A ascensão dos homens de saber no Sagrado Colégio pros-seguiu naturalmente, entre os séculos XII e XIV Sem dúvida, elanão foi, de maneira alguma, linear, com alguns papas sendo ma-nifestamente mais favoráveis 4o que outros em relação aos ho-mens de estudo. Mas havia já dez magistri dentre 34 cardeaisnomeados "por Alexandre III e a época dos papas de Avignontermina com um Sagrado Colégio composto ao menos por me-tade de licenciados e doutores12 - e, sem dúvida, na realidade,bem mais do que isso.

Talvez o papado e a Cúria do século XV constatassem am-bos um certo recuo daquelas posições, com a grande nobrezaitaliana tornando-se a força dos órgãos dirigentes da Igreja; nãofaltava, no entanto, mesmo nessa época, entre os pontífices e oscardeais, juristas reconhecidos, teólogos eminentes (Nicolas deCues) e humanistas de primeiro plano, colecionadores de belosmanuscritos gregos e latinos oU eles próprios autores (como ospapas Nicolau V ou Pio II, o cardeal Bessarion).

Eu não retomo aqui o lugar igualmente importante ocupa-do pelos graduados no episcopado, encontrando-se estes àfrente das sedes mais importantes. É suficientç recordar, porexemplo, que a sede episcopal de Canterbury, que era a cabeçada Igreja ria Inglaterra, viu sucederem-se, do século XII ao XIVletrados da qualidade de Anselmo d'Aosta, Stephen Langton, Ro-bert Kilwardby, John Peckham e Thomas Bradwardine. Por seuturno, as ordens mendicantes eram governadas por equipes dedoutores em teologia. Como já salientamos, apenas o moriaquis-mo tradicional escapou das restrições dos graduados sobre asfunções dirigentes.

Se não há qiualquer dúvida acerca da grande ajuda exerci-da pela formação intelectual para a promoção desses homensde saber - já que não poderíamos atribuir apenas a ela, porqueintervinham também questões de origens sociais, de afinidades

12- Vide supra, p. 117.

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políticas e de personalidade - deve-se, na mesma proporção, Cconcluir que, por causa disso, eles governaram a Igreja (ou sãigrejas locais que lhes eram confiadas)? Homens de saber quese tornavam ^ homens de poder. Era, antes de tudo, enVvütudçda autoridade e das responsabilidades pastorais das quais eleseram investidos e de como estas eram definidas pelo direito, ca-

, nônico, que eles tomariam doravante suas decisões e efetua-riam sua aplicação. Suas armas eram, em uma certa medida, asdo saber - a extensão dos conhecimentos, a pertinência do jul-gamento, a capacidade de convencer - mas também aquelas dopoder - o arsenal de sanções canônicas, as riquezas temporaisda Igreja e seus meios de coerção, aí compreendidos os milita-res, legitimados pelo direito ou pelo uso. Para falar com franque- ;za, pode-se dizer que a existência de eminentes professores deteologia nas escolas parisienseis explica ó fato dê Stephen Lang-^ton ter tomado a frente dos barões ingleses revoltados contra orei João Sem Terra em 1215 ou de Eudes Rigaud ser revelado;enquanto arcebispo (de 1248 a 1275), um administrador parti-cularmente eficaz da província eclesiástica de Rouen? A Igrejamedieval certamente transferia uma boa parte de seu destinopara as mãos dos doutores e dos sábios - os devotos, os místVcos, os heréticos a criticavam na ocasião -; mas nem por isso elase tornaria uma "república de professores" nem uma modernatecnocracia.

A tentação, entretanto, existia, pelo menos na época dacrise conciliar. A falência do magistério pontificai, as retrata-ções do Sagrado Colégio tinham então convencido um certonúmero de mestres da universidade, particularmente teólogosparisienses, que lhes cabia tomar diretamente em mãos a reso-lução da crise, talvez, mais duradouramente, uma parte, pelomenos, dp governo da Igreja. A reflexão eclesiológiça sobre ppapel do Concilio, apoiada, ela própria, sobre o desenvolvi-mento do aristotelismo político, dava a tais pretensões certasbases teóricas. A Universidade de Paris (note-se, apesar da suaoposição à de Toulouse; portanto, nem todos os universitárioseram conciliaristas) começou por intervir através de seu pró-prio chefe com. o intuito de impor ao governo real e'à Igreja 'da Françi a "diminuição da obediência" perante o papá deAvignoh (em 1398 e em 1408), e, em seguida, o enfraqueci-

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mento no Concilio geral. No seio desta, em Pisa, (1409) e, so-bretudo, em Constance (1414-1417), os delegados das univer-sidades, apresentados como tal, muito ativos nas assembléias e

--nas comissões, puseram-se a avaliar tanto a escolha dos proce-dimentos quanto a preparação da legislação conciliar. Tais es-forços redobraram-se no concilio de Bale (1431-1449), quan-do a retirada progressiva de grande número de bispos deixarao campo livre para as manobras e ambições reformadoras dosdoutores.

O funcionamento e a obra dos concilies de Constance ede Bale foram objetos de apreciações divergentes por partedos historiadores, sendo que "aqueles que se inscrevem emuma tradição religiosa ou cultural ultramontana eram sempremuito mais severos do que os historiadores liberais e/ou pro-testantes. No tocante aos concilies de Pisa e de Constance, seurelativo sucesso (eles tiveram êxito no Cisma propriamentedito) é geralmente atribuído a crédito dos bispos, que soube-ram tomar, quando necessário, políticas realistas, mais do queaquelas dos universitários, logo assustados com suas própriasaudácias reformadoras, e, além disso, inquietos pelas eventuaisconseqüências financeiras da desaparição das provisões pon-tiflcais em matéria de benefícios1*. Em compensação, 6 conci-lio de Bâlexproduziu, sob o impulso de teólogos parisienses,uma obra legislativa abundante e freqüentemente interessan-\te, mas não pôde escapar da paralisia política. Deve-se, portan-to, concluir que ocorreu um completo fracasso de uma assem-bléia dividida, impotente face ao duplo movimento de resta-belecimento da autoridade pontificai e do embargo do poderprincipesco sobre as Igrejas nacionais? Os historiadores an-glo-saxões insistem, apesar de tudo, na fecundidade das idéiasadiantadas em Bale e sobre o descrédito, definitivo em deter-minados países, lançado pelo concilio sobre o papado centra-lizador oriundo da Reforma gregoriana; uma outra Reforma da

Igreja tornar-se-ia doravante possível è os tempos estavampróximos dela".

Os Estados leigos, sem dúvida, jamais conheceram seria-mente, a tentação de um governo de assembléias dominadaspor doutores. Sç.os homens de poder puderam exercer algumasformas de poder, iéso só podia ocorrer quando eles se colo-cavam como conselheiros do príncipe. O conselho é, na Idade ,-Médias um dado fundamental da vida política. A própria palavradesignava ao mesmo tempo uma das obrigações reciprocas queligava o senhor e seu vassalo (o vassalo devia aconselhar-se, tan-to quanto possível, com seu senhor, "o qual não devia tomar ne-nhuma decisão importante sem haver- solicitado o conselho deseus homens) e o organismo, de composição bastante flexívele mais ou menos ampliada (grande conselho, conselho restrito,conselho secreto), no seio do qual eram examinados todos osassuntos sobre os quais o senhor ou o príncipe requeriam pre-cisamente o conselho dos seus. Dentre estes, distinguem-se vas-salos propriamente ditos e simples funcionários ou familiaresque o senhor convidava especialmente para "o conselho" e aosquais ele podia delegar, de maneira provisória ou permanente,entre duas reuniões da cgrte dos vassalos, o exame de algumasquestões e o julgamento de certos processos. É, naturalmente,no âmbito dessa segunda categoria de conselheiros que os ho-mens de saber podiam ser chamados para o conselho do prín-cipe. Eu deixo de lado os organismos especializados(Exchequer e Banco do rei em Westminster, Câmara das Contase Parlamento em Paris) que são destacados do Conselho na In-glaterra desde o século XII, na França em finais do século XIII.TUis organismos possuíam um papel principalmente administra-tivo e nós já falamos sobre isso. Detenho-me aqui no Conselhopropriamente dito, como organismo de deEberação poEtica porexcelência no seio do qual eram tomadas, "pelo rei e pelo con-selho", as decisões mais importantes. Salvo nos períodos de cri-

13 - Esta foi, de qualquer modo, a tese sustentada por R. N.Swanson, Universities Acadêmica and the Great Scbism.Cambridge: 1979.""

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14 - J. W. Stiéber,P(>pe^eugeniUs IV, the Councü ofBaseland the secular and ecclesiastical autborítíes in the Em"pire; the eonflict over supreme (tuthortty and poiver íntbe Cburch. Leyde: 1978.

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se política durante os quais os delegados da nobreza ou das ci-dades puderam desejar controlar a própria composição do Con-selho, o príncipe o convocava normalmente quando ele o dese-java, quando ele bem entendia. Será que os homens de saber es-tavam ali presentes?

Eles poderiam ser consultados, como um corpo, particu- ..larmente no' caso dos universitários. Filipe, o Belo, foi quem, em ,primeiro lugar, criou o hábito de consultar a Universidade deParis como uma "nova fonte de autoridade"15 para lhe fazer exa-minar certas questões, formular os avisos e, definitivamente,sustentar uma política real. Os mestres parisienses deveriam as-sim se pronunciar em 1303 sobre o conflito entre o rei e o papa"Bonifácio VIII, e depois em 1308 sobre a questão dosTemplá-rios. O uso não se perdeu mais e até o finaTda Guerra dos CemAno§ a Universidade de Paris desempenhou um papel políticonão negligenciável; nós a veremos particularmente, durante oGrande Cisma, tfabalhar para impor ao governo real a "diminui-ção da obediência" e á solução conciliar, para, em seguida, ade-rir progressivamente, em sua maioria, à causa borguinhona,aprovar o Tratado deTroyes (1420) e a dupla monarquia anglo-francesa antes de contribuir com bastante vigor, por libelos deuma rara violência, à condenação de Joana d'Are (1431).

Fora de Paris, o principal exemplo que se pode citar deum .papel político importante ocupado por universidades éaquele de Praga. Dç meio universitário de Praga saíram JeanHus e seus amigos reformadores .Após sua mor^e.os mestres dePraga se reencontraram, todos juntos, na corrente mais modera-da dá revolução hussita, esta, que, combatendo ao mesmo tem-po o extremismo taborita e ã armada imperial, não cessou derestabelecer a união com a Igreja (l 436). Ao longo de toda a cri-se, os universitários de Praga comportavam-se, pois, a um sótempo, como intérpretes do movimento jiacional e reformadortcheco,ao mesmo tempo como conselheiros naturais e inspira-

15 - Para retomar a expressão de S. Menache, "La naissan-,cê d'une nouvelle source d'autorité: 1'unlversité de Paris".In: Revue historique, 5'44 (1982), p. 305-327.

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dores políticos primeiramente do rei, depois da nobreza e dopatriciado que havia tomado o poder na Boêmia16,

É inútil acrescentar que tanto quanto Paris pu Praga, nodomínio político como no domínio religioso, as ambições polí-ticas das universidades experimentaram enorme reviravolta nasegunda metade do século. Ò fim do Cisma e das guerras hussi-tas, a restauração na França, da autoridade real permitiram aosoberano, sempre cerceando os privilégios da universidade;prescindir dos conselhos que esta podia pretender lhe oferecercomo instituição autônonia.

De maneira mais cotidiana e mais comum, os homens desaber podiam também participar do Conselho a título pessoal.Mas eu não conheço praticamente nenhum exemplo no qual osuniversitários tenham sido diretamente chamados de suas cáte-dras para o^onselho. Quando os graduados ali apareciam, era,mais freqüentemente, sobretudo no início, na condição de con-selheiros eclesiásticos. Sempre havia algum prelado quê tinhaassento no Conselho e tais prelados eram também doutores emteologia e em direito. No Império, na França, na Inglaterra, nosséculos XII e XIII, os conselheiros eclesiásticos possuíam umpeso bastante grande. Quando deixa a França para sua últimaCruzada (1270)» São Luís entrega o governo de seu reino paraum leigo, o senhor de Nesle, e dois clérigos, o abade de Saint-Denis e,o bispo de Paris.

A partir do final do século, o percentual de leigos aumen-tou regularmente entre os conselheiros do rei, sem que os ho-mens dá Igreja fossem por isso completamente eliminados. Sãoconhecidos os célebres legislas de Filipe, o Belo, geralmenteprovenientes das faculdades de direito de Orléans ou do Midi.Além disso, para todos que não eram leigos (ou que, ao contrá-rk>, não eram juristas, como alguns conselheiros importantes deFilipe, cr Belo, tal como Enguerrand de Marigttyj, deve-se pron-tamente distinguir, como o mostraram F. J. Pegues ç J. Favier17, os"legistas administradores", simples funcionários vinculados a

16 -, F. Smahel, La révolution bussite, une anatncâtehistorique. Paris: 1985. •17 - F. J. Pegues, The Lauyers of tbe lastCapetians. Prin-ceton: 1962; e J. Favier, Lês legisles et lê gouvernement dePhilippe lê Bel, ln:Joumalde$ savants, 1969, p. 92-108.

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I:

organismos administrativos, locais ou centrais, da monarquia, eos "legislas políticos" que, assim como Pierre Flote ou Guilher-me de Nogaret, tiveram efetivamente assento no Conselho, Elespuderam ali exercer uma influência importante, embora jamaisduradouramente dominante, estando em minoria em relaçãoaos parentes do rei e aos nobres de elevada estirpe.

O Conselho do rei guardará esse tipo de composição, comdoses variáveis, até o final da Idade Média; alguns conselheirosclérigos, alguns grandes funcionários que haviam geralmentefeito estudos de direito, como o chanceler ou o presidente daCâmara de Contas (embora, Jean Coitier, que ocuparia essa fun-ção na época de Luís XI, fosse médico) e uma maioria de ho-mens de ação, que pertenciam ora. à família real, ora à grande oumédia nobreza. O estado dex guerra quase permanente que co-nhecerão os reinos da França e da Inglaterra a partir dos anos1340 favoreceria, aliás, os conselheiros providos de competên-cias militares, quer dizer, alguns magistrados ou senescais, ocondestável, os marechais,vos almirantes. No total, mesmo con-siderando-se o fato de alguns graduados, clérigos ou leigos, ha-verem ocupado, num momento ou noutro, um lugar importan-te (tais como GuÚlaume de Melun, arcebispo de Sensjean d'An-gerant, bispo de Chartres e depois de Beauvais, Jean de Dor-'mans, bispo de Beauvais e, mais tarde, cardeal, ou ainda Jean deLa Grange, abade de Fécamp depois cardeal no início do reinode Carlos V, ou bem, sob Luís XI; os bispos d'Angers e d'Albi,Jean Balue e Jean Jouffroy, e alguns parlamentares tais como Hé-lie de Tourette, Mathieu de Nanterre ou Jean pauvet18) não res-ta qualquer dúvida que a nobreza enquanto tal representava, naFrança, bem como em outras monarquias do Ocidente - e ain-da por longo tenlpo - a classe política dominante, aquela queera verdadeiramente responsável por decisões importantes eextraía maior proveito (em termos de apanágio, de títulos, depensões, etc.) de sua proximidade em relação ao poder. Aliás,mesmo os clérigos graduados e os juristas que eram convidados

18 - F. Autrand, Charles V te Sage, op. cit., p. 688-712 e P.R. Gaussin, Louis XI, un roí entre deux mofídes. Paris:1976, p. 150-152.

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a ocuparem altas funções e tomarem assento no Conselho,eram freqüentemente, eles próprios, nobres.

1 Á análise que P. R. Gaussin efetuou sobre a composição doConselho sob Carlos VII, entre 14l8e 1461, ilustra bem, ao queme parece, nosso propósito: dentre os 283 indivíduos que neletiveram assento em um momento ou em outro, e uma vez colo-cados à parte 15 casos mal identificados (5%), constata-se a pri-mazia da nobreza, a grande e muito grande nobreza de um lado(eram 58 indivíduos, ou seja 20%), pequena e média nobreza demilitares e cortesãos de outro, (eram 87, ou 31%); prelados (59,ou 21%) e funcionários (65, ou seja 23%) representam apenasuma minoria, substancial, é verdade, mas não se pode esquecerde que muitos deles eram também de origem nobre".

Naturalmente, grandes senhores e príncipes de sangueque formavam o círculo mais próximo do rei possuíam seuspróprios conselheiros e clientes, dentre os quais reencontrare-mos os homens de saber, de quem eles solicitavam conselhos, eos colocavam generosamente*nos principais organismos da ad-ministração real quando eles já ocupavam posição dominanteno Conselho. Raymond Cazelles/demonstrou bem a sucessãodos diversos clãs - borguinhão, normando etc. - que assim sesucederam no favor real no tempo de Filipe VI e João,, o Bom20.Cada um contava com seu lote de prelados e de graduados, masapenas raramente estes iriam exercer diretamente o poder.

Lancemos uma vista d'olhos sobre os outros principadose monarquias européias do final da Idade Média. É verdade quena Inglaterra o chanceler era praticamente sempre um bispograduado em Oxford, mas alguns altos barões, muitas vezes apa-rentados do rei, dominavam habitualmente o Cpnselho. Na Pe-nínsula Ibérica, os letrados em plena ascensão invadiram, tiamesma época, os órgãos centrais da monarquia. Alguns deles,como no princípio do século XV, os contadores mayores de

19 - P. R. Gaussin, "Lês conseillers de Charles VII (1418-1461): essa! de politologie tústorique".Franc{a. 10 (1982),p.67-130. /20 - R. Cazelles, La société politique et Ia crise de Ia ro-yauté sotts Philippe de Valois.Paris: 1958. E 14., Sociétépolitique, noblesse et couronne sous Jean lê Bon etCharles V. Genève/Paris: 1982.

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Castela Fernán Alfonso de Robles e Alfonso Péres de Vivero, am-bos de origem modesta, realizaram belas carreiras conjugadas aespetaculares ascensões sociais21. Mas foram raros aqueles que- como João das Regras, doutor em Coimbra, chanceler e prin-cipal conselheiro do "mestre de Avis", coroado rei em 1385 sobo nome de João l22 - chegaram, de feto, ao auge do poder.

Acontece o mesmo nas cidades, fundamentalmente nas ci-dades-Estados independentes daToscana, da Itália do Norte ou,na Alemanha, do mundo Hanseático, Em Florença, por exemplo,se os graduados ou os clérigos letrados povoavam a chancelariae os diversos outros serviços administrativos da comuna, calcu-la-se que, no início do século XV, os homens de lei e os notáriosrepresentavam apenas 10% do pessoal verdadeiramente in-fluente nos conselhos, sendo ainda que inúmeros dentre eleseram aparentados de famílias de banqueiros e de mercadoresque constituíam o essencial da oligarquia dominante23.

Nas simples comunas e outros "vilarejos" dos reinos daFrança e da Inglaterra, onde o governo municipal se resumia aoexercício de uma autonomia fiscal e judiciária bem controladapelos funcionários do rei, o acesso aos cargos de inspetores pú-blicos e aos consulados abrira-se, com maior ou menor parci-mônia, para os homens de saber.- $e todas as cidades recorriamvoluntariamente a juristas como juizes, conselheiros jurídicosou procuradores, oradores ou embaixadores ou ainda assesso-res encarregados desta ou daquela função técnica, eles nãoeram tão bem admitidos no que dizia respeito à própria direçãoda cidade, em virtudç fundamentalmente de não pertenceremàs mais antigas famílias da cidade e, por tal razão, poder-se sus-peitar de eles não serem suficientemente atenciosos com os in-teresses específicos dessa cidade - suspeita alimentada pelo

21 -A. Rucquoi, VaUadolid au Moyen Age (1080-1480).Paris: 1993, p. 289-291.22 -Vide A. L. de Carvalho Homem, "O doutor João das Re-gras no Desembargo e np Conselho Régio (1384-1404) -Breves Notas", In:Estudos de História de Portugal: home-nagem a A. tf. de Oliveira Marques, volume I, Séculos X-XV. Lisboa: 1982, p. 241-253.23 - G.Brucker, The civic world of,earfy renaíssance Flo-rence. Princeton: 1977, p 269.

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fato de muitos desses juristas pretenderem acumular ou alter-nar funções municipais e cargos a serviço do príncipe. O reinoda França ofereceu ao século XV todo leque de soluções possí-veis. Em Montpellier, os cônsules provenientes do mundo docomércio e dos ofícios recusaram obstinadamente, até o finalda Idade Média, que o menor lugar em seu seio fosse ocupadopor eleitos dos "legistas, advogados e notários"24. Em compen-sação, em Toulousè, capital de uma senescalia depois sede deum parlamento, os homens de lei penetraram nas assembléiasreligiosas desde o século XIV, permanecendo geralmente mino-ritários (por volta de 22% no tempo dê Carlos VI)25. Em Lyon,pelo contrário, as grandes famílias dos homens de lei conse-guem, a partir de 1450, suplantar quase completamente os her-deiros dos mercadores como cônsules da cidade26. Em Paris, fi-nalmente, o prebostado dos mercadores e a almotaçaria, pos-suídos, no século XTV, por homens de negócios como ÉtiénneMareei, passara, desde 1412, para as mãos dos homens de lei li-gados à corte e à administração real: entre 1420 e 1500, sobreí

os vinte e quatro prebostes dos mercadores, não se conta maisdo que dois cambistas e um mercador; os outros tinham vindodo Parlamento (12), da Câmara de Contas è demais serviços fi-nanceiros (7) ou do Palácio (2); dezesseis, em particular, todosdo Parlamento, eram titulares dê um grau universitário27.

24 - Como testemunha, um longo processo que se eterni-zaria diante do parlamento de Toulousé de 1448 a 1470 ecujas peças essenciais são conservadas pelo Arch. Cpm. deMontpellier (FF 75-76).25 - Ph. Wolff, Commerces et tnarchands de Toulousè(vers 1350 - vers 1450). Paris: 1954, p. 541.26 - R. Fédou, Lês hommes de loi lyonnais à lafin duMoyen Age. Étude sur lês Origines de Ia classe de robe.Lyon: 1964, p, 279-292 e 375-396.27 - J. Favier, Nouvelle bistoire de Paris; Parts au XVsiède (1380-1500). Paris: 1974, p. 420-430,

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3. ESPÍRITO DE CORPO

Se considerarmos sobretudo os leigos, e colocados à par-te alguná sucessos individuais excepcionais, os homens de sa-ber não conquistaram, pois, o supremo poder no final da IdadeMédia. Os proffessores ou os funcionários tornar-se-iam, por ve-zes, conselheiros, mas muito-raramente decididores, como diría-mos hoje. Contudo, é verdade que o exercício direto das res-ponsabilidades políticas superiores não era o único meio atra-vés do qual eles podiam se valer para fazer sentir sua influênciasobre a evolução da sociedade e do Estado.

Efetivamente, em seus simples papéis de funcionários econselheiros, e sempre se apresentando como fiéis executoresda política do príncipe, eles poderiam, de fato, ter algum peso,graças às solidariedades internas dos grupos que formavam, aseu espírito de comunidade, à estabilidade e à continuidadeque eles haviam conseguido adquirir e que lhes possibilitavagalgar discretamente alguns degraus em sentido mais condizen-te com suas idéias e ao mesmo tempo mais favorável à seus in»teress(es. A idéia de que a administração não era neutra, de queos servidores! do príncipe - e, em primeiro plano, entre eles, osgraduados - não apenas exauriam as finanças públicas por seunúmero excessivamente grande, mas, na prática cotidiana dosassuntos de jurisprudência, arrastavam insidiosamente o Estadoem direção ao reforço constante das prerrogativas dos funcio-nários às custas de antigas liberdades do país (quer dizer, da no-breza e das cidades), foi vigorosamente abraçada, na França, des-de a grande crise política dos anos 1356-1358; nos Estados Ge-rais, denunciava-se em alto e bom som o "partido dos funcioná-rios", o qual permanecia basicamente independente, prontopara recuperar, alguns anos mais tarde, as posições perdidas.

O ataque repetiu-se várias vezes, de marieira recorrente.Em 1380, sob o pretexto das revoltas urbanas, os tios dp jovemrei Carlos VI intitularam-se conselheiros de Carlos Y Estes reto-mariam o poder cm 1388 com o início do reinado pessoal deCarlos VI. Tais "Marmousejts" -i assim os qualificavam, por goza-ção, seus adversários - esforçavam-se por retomar a política do"partido dos funcionários", bastante constante, é verdade, des-

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de meados do século, no que diz resrjeito ao reforço da sobera-nia monárquica e de uma racionalização cada vez mais rigorosada administração e cia justiça reais. Mas, desde 1392, »osMarmousets voltaram a dar lugar aos partidários dos duques.Esse últimos, por sua vez, tinham todos partidários nos diversoscorpos de funcionários e de homens da justiça, mas foi, sem dú-vida, o duque de Orléans que mais assumiu para si a políticacentralizadora e autoritária de modernização do Estado outroraenaltecida pelos conselheiros de Carlos V Compreende-se, por-tanto, que a crítica ao número excessivamente grande e ao>sabusos dos funcionários tornou-se um dos emblemas da propa-ganda borguinhona e, em 1413, o princípio diretor do "regula-mento maior", projeto de reforma confuso e ultrapassado que,pelo que se sabe, jamais foi aplicado.

A própria repetição dos ataques contra o partido dos fun-cionários já revela, há muito, á sua ineficácia. Contra a versatili-dade das assembléias e as intrigas políticas que desorganizavamperiodicamente à composição do Conselho, os servidores, doEstado podiam efetivarnente opor as solidariedades internas doseu grupo, apostando na estabilidadev

Tais solidariedades remontavam com freqüência aos anosde juventude exle estudos. Os homens de saber eram formadosnasjnesmas universidades, e, em Paris, nos mesmos colégios. Eujá assinalei o lugar essencial que tais colégios de Navarrâ e deDormans-Beauvais e, em menor proporção, aquele de Montai-gu, de Presles ou do Plessis desempenharam a partir do reino

, de CarlosV na formação dos servidores da monarquia francesa.Aqueles que eram graduados em direito civil haviam tambémpassado pela universidade de Orléans, onde um sistema eficazde "nações" reforçava as solidariedades entre os estudantes deuma mesma origem geográfica. Na Inglaterra, um colégio comoKing's Hall (Cambridge) parece ter sido, do mesmo modo, umlugar de formação privilegiada para inúmeros oficiais da coroa.No país flamengo ou germânico, as relações há pouco travadaspor ocasião das viagens de estudo no exterior e a lembrança deexperiências vividas em comum em Paris, Orléans e Bolonhaeram o cimento de certos grupos de graduados e de juristas.Existia, então, em Ypres, na Flandres, uma confraria de antigosalunos da universidade de Paris, que se encarregavam, entre ou-

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trás coisas, de pagar bolsas aos jovens compatriotas que par-tia^ para estudar na mesma universidade28.

As relações estabelecidas nos tempos de estudo prolonga-vam-se ao longo de toda a existência. A freqüência contínua dosmesmos escritórios e dos mesmos tribunais, as trocas quotidia-nas garantiam que se compartilhassem os mesmos hábitos men-tais, as mesmas maneiras de viver e de sentir, os mesmos gostos,as mesmas devoções. Aos elos institucionais viriam juntar-se,com freqüência, elos familiares e as afinidades de vizinhança.Constata-se que, em inúmeros grupos de funcionários, ao final.;de uma ou de duas gerações, a maior parte das famílias se asso-ciavam em casamento, e os recém-ingressos, sem jamais desapa-recerem totalmente, tornavam-se raros. No Parlamento de Paris,Françoise Autrand viu suceder-se ao "tempo dos legislas e dosadvogados", que deviam sua promoção à sua competência pes-soal e à sua devoção a serviço do Estado, o "tempo dos aliados",que extraíam do rei o direito à cooptação, sustentando-se entreeles e cimentando seu acordo pelo casamento de seus filhos, e,enfim, o "tempo dos herdeiros", que é aquele das linhagens triun-fantes onde a transmissão hereditária dos cargos por resignaçãoou por venalidade vai, pouco a pouco, tornar-se a regra29.

O exempío do Parlamento de Paris, que é, sem dúvida, umcaso extremp, não deve ser incondicionalmente generalizado.Outros grupos de funcionários, como aquele das finanças, jánão conseguem a mesma estabilidade. Outros, ainda, emboracoerentes sob o aspecto cultural e social, não foram capazes dese constituírem como grupos eficazes de pressão política. Para1

tomarmos o caso da França, nem as pessoas da universidade, ví-timas, desde 1440, da desconfiança do poder real, nem os juris-tas do Midi - afastados dos ofícios centrais da monarquia e re-duzidos a cultivar sua impotente nostalgia de um passado enter-

28 - BTrio, "A Medieval sjudents confraternity at Ypres: theNotre-Dame Confraternity of Paris Students". ln:Histoiy ofuniversittes, 5 (1985), p. 15-53.29 - F. Autrand, Naissance cTunigrand cotps de 1'Étafc lêsgens du Parlement de Paris (1345-1454). Paris: 1981, p.53-108.

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rado, aquele dos consulados independentes é, sobretudo, dospapas deAvignon que lhe/haviam distribuído funções e prebcn»das sem conta30- não puderam tirar do século XV proveito po-lítico de suas solidariedades institucionais.

Por toda a parte, evidentemente, os homens dó Parlamen-to, que se tornavam as elites assumidas das pessoas de saber e

^de poder, tinham, sozinhos, b controle da situação, O rei lhes ha-via abandonado, precisamente, o controle e a regulação dos pri-vilégios que fundavam a autonomia das universidades, consa-grando, assim, sua vitória sobre eventuais rivais; e no próprioMidi os graduados locais não viram mais salvação, a não ser nacriação de parlamentos-provinciais quê lhes reabririam enfinvem uni nível de dignidade suficiente, os caminhos do serviçodo príncipe.

Tal evolução não significou necessariamente a degradaçãoda competência intelectual das pessoas de ofícios nem de seusentido de Estado é de serviço público. Eleição e cooptação dosfuncionários, sempre garantindo os interesses das famílias, eramproteções contra nomeações arbitrárias. Mas elas agiram, sègu-,ramente, no sentido de reforçp do espírito de corpo e suscita-ram a criação de castas, agarradas a interesses e a seus privilé-gios correspondentes a seus específicos serviços judiciários ouadministrativos no seio da máquina governamental. A constitui-ção de grandes corpos de Estado, cujos membros eram unidospelas solidariedades que eu acabo de lembrar, permitiu reduzi-rem-se ao mínimo os efeitos de depuração consecutivos nas lu-{as de clãs que se afrontavam na própria cúpula do Estado. Ela,sobretudo, permitiu que fosse elaborada, se não uma teoria1,pelo menos uma prática política que, definitivamente, paraalém dos acasos das guerras e da revoluções palacianas, será,fora de qualquer fase de crise aguda, aplicada com uma realconstância durante os séculos XIV e XV, no sentido de um refor-ço regular do Estado monárquico.

30 - A fronda, no cômputo geral ineficaz, das elites, espe-cialmente eclesiásticas, do Midi é bem caracterizada, em J.L,Gazzaniga,Z'e.g/fae du Midi à lafin du règne de Char-les VU (1444-1461), d'après Ia jurtsprudence du Paríe-ment de Toulause. Paris: 197&

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Príncipes, grandes senhores e chefes de guerra, reagrupa-dos em ligas e partidos, poderiam bem agitar-se diante da cena,defrontarem-se em sangrentas lutas de clãs e intermináveis vin-ganças (Armanhaques, é Borguinhões, Praguerie e guerra dobem público na França, Guerra das Duas Rosas na Inglaterra,inumeráveis querelas dinásticas, guerras civis e revoltas npbi-liárquicas na Espanha) ou sonhar com explorações cavaleires-cas e cruzadas. Na retaguarda, juristas e funcionários, conven-cidos doravante de serem "membros do corpo do rei", partici-pando, de algum modo, de sua majestade, ç protegidos, no exer-cício de suas funções, pela sua salvaguarda especial, perseguiamobstinadamente, senão silenciosamente, o "bem da coisa públi-ca", quer dizer, a obra de edificação do Estado moderno, comtanta tenacidade quanto mais eles tivessem consciência de, aomesmo tempo, colocar em funcionamento as teorias cujos estu-dos- de filosofia e direito lhes houvessem ensinado a superiori-dade e de tirar por si próprios, em termos de enriquecimento ede prestígio social, o máximo proveito dessa evolução da qualeles eram simultaneamente os instrumentos e, em larga medida,os atores. ,

capítulo VI

O MUNDO DA PRÁTICA

Pelos capítulos precedentes, o leitor terá talvez ficadocom a impressão de que, nas sociedades do final da Idade Mé-dia, os homens de saber e em particular, entre eles, os titularesde graus universitários situavam-se decididamente do lado daselites sociais e políticas. Preenchendo as fileiras do alto clero eos órgãos superiores da administração princípesca, eles teriamcomo principal função - e por principal ambição - servirem aIgreja e o Estado e exercerem sobre os grandes desse mundçuma influência mais ou menos direta. Eles podiam desfrutar deuma certa liberdade intelectual e reivindicar uma real autono-mia para o grupo social que eles próprios constituíam; não dei-xavam de tirar partido dos elementos dirigentes da sociedade e,a esse respeito, eram mais inclinados a colocar sua cultura a ser-viço da, ordem estabelecida - e de sua eventual modernização- do que de colocá-la em questão.

Quanto a pôr em prática decisões inspiradas ou concebi-das por homens de saber, isso teria sido, não sem desdém, aban-donado aos práticos de fraca cultura, que praticamente não sa-biam ler nem escrever: baixo clero e monges ignorantes, mei-rinhos brutais, prebostes sem escrúpulos, coletores de impos-tos gananciosos, tabeliães capazes apenas de recopiar incansa-velmente os mesmos formulários, barbeiros e cirurgiões de umempirismo arriscado, etc.

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Mesmo não sendo completamente falsa, uma tal visão dascoisas leva a um redücionismo caricatural, deixando subenten-dido, de um lado, que os homens de saber eram completamen-te alheios à "prática", e, de outro, que os "práticos" eram comple-tamente alheios à cultura,erudita; Trata-se de um duplo precon-ceito que eu gostaria de retificar nas páginas seguintes.

l. CULTURA ERUDITA E PRÁTICA PRIVADA

Seria bastante delicado - e talvez nulo, em meu entendi-mento, arriscar calcular para o final da Idade Média, ainda queem escala estritamente local, a relação entre o conjunto de ho-mens de saber e aquela das posições disponíveis sobre o "mer-cado de empregos" das carreiras administrativas 6 eclesiásticas.Do século XIII ao XV, um e outro cresceram, a grosso modo, demaneira paralela, mas com fortes distorções. Em certas oca-siões, sobretudo nos séculos XIII e XlV.as competências procu-radas por vezes faziam falta: os bispos queixavam-se por não en-contrarem, ao menos entre os seculares; os mestres em teologiados quais se tinha necessidade para manter em atividades suaescola catedral e muitos advogados eram ainda desprovidos dequalquer formação teórica. Contudo, ao contrário, no séculoXV, a multiplicação das novas universidades parece'ter, algumasvezes, criado uma ameaça de saturação e os titulares de grausuniversitários acabaram por aceitar situações relativamente mo-destas; os licenciados em direito sentam-se nos tribunais secun-dários, os bacharéis em teologia são, pelo menos na Inglaterra,curas de aldeias. ,

A essa dificuldade para aceder a um ofício ou a um privi--légio, inúmeros outros fatores virão juntar-se para convencercertos homens de saber a consagrarèm-se a uma atividade pri-vada. Qualquer que tenha sido o prestígio social dos cargos pú-blicos ou das digmdades eclesiásticas, não se pode excluir queisso tenha sido, em determinados casos, compensado pelo gos-to de uma certa independência pessoal oia pela esperança degrandes proveitos extraídos de uma clientela privada. De qual-quer maneira, serviço privado ou serviço público não eram for-

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çosamente incompatíveis; em ambos os casos, podia-se dedicara um e a outro sucessivamente, alternativamente ou mesmo si-multaneamente: o advogado tornava-se juiz, ò professor de di-reito ou de medicina completava seus proventos fazendo diag--nósticos ou consultas.

As atividades privadas abertas aos homens de saber esta-vam, como as funções públicas, ligadas às disciplinas estudadas,o que lhes limitava ipsofacto o campo porque, como vimos noprimeiro capítulo, muitos dos saberes úteis no domínio priva-doj particularmente saberes técnicos ou econômicos, não eramensinados nas escolas ou nas universidades. Para nos atçrmos àsdisciplinas canônicas da cultura erudita permanece o fato dêque os gramáticos e os mestres de artes, quer fossem eles cléri-gos ou laicos, podiam tornar-se preceptores ou mestres-escolasi,juristas, advogados ou procuradores; os médicos cuidavam desuas clientelas particulares; apenas os teólogos, todos eles pa-dres ou religiosos, permaneciam fora do circuito'das atividadesliberais.

É difícil fixar o número de envolvidos nessas profissões, jáque estes não eram forçosamente reagrupados em ofícios orga-nizados cujos membros, por vezes isentos de impostos, não apa«reciam sempre, por tal razão, em documentos fiscais. Mas, aomenos na cidade, eles parecem ter reunido em geral um núme-ro relativamente significativo de pessoas. Os lugares dos tribu-nais reais conheceram, às vezes muito bem, um certo númerode advogados: havia uma dezena deles emTpulouse, todos licen-ciados em direito, na segunda metade do século Xy desde acriação do parlamento1, e uma simples cidade de bailia comoSenlis contava praticamente outro tanto - onze em 1465, dosquais nove licenciados em leis, para apenas alguns milhares dehabitantes2. Nem todos doutores em medicina encontravam

1 - M.AlIabett,"Les avocats devant lê Parlement deToulou-se à travers lês registres d'audience (1444-1483)". In: Éco-le nationale dês Charles: positions dês tbèses...l989,Pa.-ris:1989,p,7-í5.2 - B. Guenée, Tribunaux etgens de justice ãans tebail-Uage de Senlis à lafin du Moyen Age (vers 1380-vers/55Q).Strasbourg: 1963.P-192.

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uma regência universitária ou um emprego financiado pelo cír-culo de algum poderoso; era, assim, necessário para eles instala-rem-se por sua conta e assinarem contrato com uma daquelascomunas que tinham por costume retribuir um ou dois médi-cos municipais, de acordo com um uso bastante comum parti-cularmente nos países mediterrâneos3. Estudos concernentes adiversas cidades da Itália, da França ou da Inglaterra chegarama resultados que supunham ter em torno de um médico por milhabitantes; essa taxa bastante fraca - mas que é duplicada outriplicada se levarmos em conta cirurgiões e barbeiros - corres-ponde, entretanto, à presença de inúmeras dezenas de práticosem todas ás cidades4.

Há um outro ponto que se deve ter presente quando sedeseja avaliar oy lugar e a influência dos homens dê saber da so-ciedade daquele tempo. Cabe recordar que a atividade è o pa-pel social desses homens não se conduziam exclusivamentepela prática profissional, religiosa ou laica, pública ou privada,descolada de sua competência intelectual. Que essa prática te-nha sido regida, como aquela dos universitários ou 'dos juizes,por um calendário teoricamente imutável (dias úteis, dias feria-dos, férias) ou estivesse adaptada a maior ou menor urgência denecessidades, restava sempre tempo livre para o homem de sa-ber compartilhar da existência quotidiana de seus contemporâ-neos.

Consumidor, ele negociava suas compras de grãos e depano no mercado. Proprietário, ele geria suas casas na cidade esuas terras no campo, ele Vigiava seus locatários e seus rendei-ros.Vivendo de seus rendimentos, ele colocava seu dinheiro emparcelas de rebanhos, de moinhos e de barcos. Devoto, ele semisturava à vida de sua paróquia ou de sua confraria.. Burguês,enfim, ele participava, senão da defesa da cidade, porque seu es-

3 - Vide J. Shatzmilkr,"Médicins municipaux en Provence,Catalogne ei aütrès régíons de 1'Europe méridíonalle(1350-1400)". In: Lês sociétes urbaines en France méri-dionalé et en Péninsule Ibérique au Moyen Age. Paris:1991, p. 329-336.4 - D. Jacquart, Lê mitteú medicai en France du Xllétneau XVémesiècle. Genève; 1981, p. 237-257.

tatuto privilegiado o dispensava freqüentemente de portar at-mas e de assegurar a ronda, pelo menos nas festividades urba-nas e da administração municipal; ele sentava-se,-portanto, emmeio aos concidadãos, nos conselhos e nas assembléias das ci-dades e dos bairros e exercia muitas vezes, como vimos, os ofí-cios comunais. '

A documentação não permite facilmente dizer como,secomportavam em circunstâncias semelhantes nossos homensde saber. Conformar-se-iam eles, a partir, do momento em quenão mais estavam no exercício de suas funções, às maneirasmais comuns de sentir e de agir ou bem continuariam á se dis-tinguir, de alguma! maneira, por suas atitudes, sua linguagem, eaté seus'modos de se portar? Sem pretender deslindar umaquestão complexa, pode-se, ao que me parece,'formular ao me-nos a hipótese que em todas essas ocasiões da vida cotidianaeles puderam fazer passar discretamente, talvez inconsciente-mente, alguma coisa de sua cultura e de seu modo dê ser (con-fiança na força do escrito, jurisdieismo, racionalidade etc.).

2. OS INTELECTUAIS INTERMEDIÁRIOS

Nós temos privilegiado até aqui os homens de saber nosentido relativamente estrito que havíamos já definido na intro-dução deste livro e que corresponde bem, acreditamos, a umapercepção específica que os próprios homens daquela épocapossuíam. Sem assumir rigorosamente essa delimitação de nos-so objeto arriscaríamos, contudo, a falsearmos seriamente asperspectivas. .

Atrás desse grupo relativamente restrito, talvez sempreprovindo, como dissemos, das universidades ou das escolas denível equivalente (studia mendicante; Inns of Court inglesas,ou contübernia humanistas italianos) vinha efetivamente amassa, verdadeiramente bem mais numesosa, de todos os indi-vídujos de cultura menor, detentores de um saber medíocre eparcelar que, por seu turno, seriam, sem dúvida, completa-mente incapazes de ensinar, pelo mçnos em termos discursi-vos, mas cuja atividade e posição social, chegavam a ser.defl-nidas em grande parte por aquele aspecto intelectual dê suacompetência. • ' •

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A sociologia, há muito tempo^reparou na existência, cmsociedades bastante diferenciadas, desses indivíduos que elaqualifica voluntariamente de "intelectuais intermediários" ouainda, com Gramsci, de "intelectuais orgânicos"; nem criadorese nem mesmo verdadeiramente transmissores do saber, mas fi-guras indispensáveis para difundir, em uma escala suficiente -ainda que simplesmente por retração ou por tabela - uni deter-minado número de elementos provindos dá cultura erudita çem assegurar sua eficácia sòcial.Tal papel é evidentemente difí-cil de ser apreendido e, por vezes, mesmo imperceptível, já quefalta documentação, como habitualmente acontece para o caso,da Idade Média. Não se deve, contudo, deixar de procurar re-constituir alguns- dados que permitam perceber sua existênciae lhes adivinhar o peso. \

Os próprios contemporâneos não os ignoraram comple-tamente. Em seu Quodlibet /, questão 35, Henri de Gand fala,com afábilidade de seus "doctoyes rurales - dever-se-á traduzi-los por'intelectuais de aldeia'? - e de seus pregadores (Henri deGrand, mestre em teologia, pensava antes de tudo no problemada ação pastoral) que, habitualmente, ignoram os princípiosque ensinam ou pregam, embora o fizessem com convicçãoporque eles sabiam que aquilo do que falavam provinha dosmestres [da universidade]"5. Não é preciso dizer mais nada.

Ç fácil fazer a lista de todos aqueles que poderiam figurarna rubrica de "intelectuais intermediários" dá sociedade medie-.vai. : • ' '" ... • . , .. .

Pensemos inicialmente em todos os antigos estudantesque haviam deixado a universidade sem nenhum diploma - ou;melhor, com um simples, baccalauréat ou um modesto- mestra-do em gramática ou em artes -, muitas vezes após apenas al-guns anos, às vezes, alguns meses de estudos. Estava lá sem dú-vida, lembremo-nos, a sorte da maioria-dos estudantes, dito de

5 - Sicut rurales doctores et pràecticatares eorumtquaepràedicant et docent freqitenter ignorara rationes, <sedtamen docent conffàenter, quia sciunt ea quae docent, amagistris se accepísse (Henricí de Gandavo opera om-nia,V, Quodlibet I, editado por R. Macken, touvain-leyde,1979, p. 199).

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outro modo, de milhares e milhares de indivíduos6. Alguns ha-viam podido vencer os exames, mas a maioria os havia abando-nado por serem desencorajados ou por falta de recursos finan-ceiros; é possível também que muitos deles não tenham tido,desde o princípio, outras ambições-para além de uma curta pas-sagem pela universidade a fim de adquirir uma vaga familiarida-de com as disciplinas eruditas (sem falar da atração da "viagemde estudos" e dos privilégios ligados a condição de scolaris).Tais efêmeros estudantes infelizmente escapam quase por com-pleto ao histpriador. Mesmo quando eles estavam inscritos emalguma matrícula universitária, é praticamente impossível reen-contrá-los depois de sua partida da universidade já que na do-cumentação ulteripr seu nome não é acompanhado do títulouniversitário que permitiria identificá-los com segurança. Foipor acaso que descobrimos um processo - como exemplo - deum Jean de Roaix, filho de uma antiga linhagem empobrecidado patriciado deToulouse, que se tornara um simples cura dealdeia: teria sido, queixava-se ele, com amargura, pelo fato deseus tutores se recusarem a financiar cpnvenientemente seusestudos que ele teve que deixar prematuramente a universidaide e contentar-se com uma posição .subalterna7. Mas quantos,outros; em situações comparáveis, rião deixaram traço algum nadocumentação?!?

É, porém, pouco provável que todos aqueles que haviam,assim, recebido um mínimo de cultura universitária, mesmoque não diplomados com um grau, e que possuíam talvez, ain-da, alguns' livros adquiridos no início de seus estudos, não te-nham retirado nada nem no nível de seus conhecimentos, nemno estado de espírito, nem mesmo nas relações sociais.

São esses antigos estudantes desafortunados, e outros quejamais ultrapassaram o nível da escola elementar de gramática,os que deverão ocupar os postos dos ofícios que aqui nos inte-ressam: méstres-escolas, dos quais muitos, como dissemos aci-ma, não haviam sequer passado pela faculdade de arjtes, cirur-giões e barbeiros, procuradores e até mesmo alguns advogados,

6 - Vide supra, p. 71-72.7 - Arch. dép. de Ia Hte-Garonne,Archives du château dePinsaguel, 6 J 164, f 207-26 Iv.

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sobretudo nas cidades pequenas, curas de paróquias rurais e, afortíriori, vigários e capelães, escrivães e, finalmente» todo gê-nero enfim de tabeliães de notários. Dentre esses últimos, al-guns podiam possuir um mestrado em artes, mas eram raríssi-

v mos os que haviam feito um baccalaureat em direito: etes for-mavam-se essencialmente pelo aprendizado na oficina de umnotário já instalado. Mas, de resto, não se poderia subestimar aimportância não apenas social, mas cultural, dos notários, pelomenos em país de direito escrito; desde ,1327, havia 20 notáriosem Sisteron, para não Mar dos 600 notáriçs inscritos em 1338na Arte dei Giudtci e Notai de Floresça, durante o apogeu deseu poder8; e durante meados do século XV, em um períodobem menos favorável, havia ainda 22 notários em Aries, paracerca de 5000 habitantes, e 78 em Lyon, para uma populaçãoquase triplicada9. A massa dos registros notariais dos séculosXIV e XV, que sobreviveram nos arquivos meridionais e que re-presentam apenas uma parcela limitada -25% no melhor doscasos - daquilo que se sabe ter existido, é suficiente para fazer-nos calcular a onipresença desses indivíduos nos países medi-terrâneos, instrumentalizando em uma queda de braço as maismiúdas circunstâncias da existência, impondo.a todos*e a todomomento ã referência ao ato escrito e à norma do direito,

Ê pelo viés de tais personagens, que nenhuma distância re-verenciai separava do resto da população, que a maioria destapodia receber um eco, ainda que bem apagado, da cultura eru-dita do tempo e provar em sua existência quotidiana alguma re-percussão da aplicação, decidida nos escalões superiores daIgreja ou do Estado, das teorias fundadas sobre essa cultura eru-dita,

O ato notarial, como dissemos há pouco, e mais ampla-mente qualquer forma de escrito jurídico ou regulamentar, vei-

8 - R.Aubenas,^íMífe sur lê nptartat provençal au MoyenAge et saus 1'Ancien J?£gíwe,Aix-en-Provence: 1931, p. 72;L. Martines, Lawyers and Stateçraft fn Reinassance Fíorence, Princeton:1968,p. 1,5.9 - /L. Stouff, Aries à lafln dê Moyen ^e.Aix-en-Provence:

, ., ' 1986,t.I,p.l7e l44;R.~PédQVL,LeSbommes(leloityonnafsà tafln du Moyen Age: étude sur lês .origines, de Ia clas-se de robe. Lyon: 1964, p. 160.

culavam discretamente, tanto na forma quanto no conteúdo, al-guns dados emprestados do direito romano. E o papel dos notarrps não ficava por aí, porque lhes cabia habitualmente acumu-lar seu principal ofício com cargos mais ou menos episódicosde bayles, escrivães, procuradores, secretários, etc., a serviço departiculares ou de comunidades rurais ou urbanas.

Em um domínio completamente diferente, o sermão maiscomum, alimentado por recolhas de exempla e de sermões-mo-delos dominicanos ou franciscanos, recebiam, pelo menos sobreas noções fundamentais, as orientações mais importantes da fi-losofia e da teologia escolástieas.A prática, enfim, dos cirurgiões

. e dos barbeiros não era jamais, em tal medida, empírica, postoque ela implicava recurso, ao menos implícito; a esse ou àqueleconceito vindo da física e da fisiologia de Aristóteles e Galeno.

3.0 ALCANCE SOCIAL DOS SABEREI

CONTESTAÇÃO OU INTEGRAÇÃO?

É, pois, no nível desses "intelectuais intermediários" que secoloca de maneira verdadeiramente cruciai a questão da eficá-cia política e social dos saberes formulados e difundidos noseio das elites cultas.

Do lado destas, praticamente não havia dúvida quanto àsua vontade de integração. Não que elas tenham 'necessaria-mente representado os meios calmos e rigorosamente confor-mistas. Sabe-se bem que nas cidades universitárias, sobretudonas maiores como Paris, Bolonha, Oxford, Toulouse ou Orléans,os conflitos entre "town andgown", quer dizer entre a popula-ção urbana e os professores e estudantes, mesmo aqueles das fa-culdades superiores, sem ser, longe disso, permanentes, nãoeram excepcionais. Os universitários formavam uma massa tur^bulenta de homens jovens, solteiros, quase sempre estrangeirosna cidade, orgulhosos de sua ciência e de seus privilégios, quelhes pareciam garantia de impunidade, e não hesitavam em pro-vocar grandes escândalos nas ruas e nas tavernas, prestes a pas-sar às vias de fato, na .ocasião, com os sargentos da roncla, os lo-jistas e os criados dos hotéis nobres ou fidalgos. Essas desor-dens, por vezes sangrenta? e até mortais, consumavam-se fre-qüentemente, em embates físicos, em detrimento dos universi-

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tários, embora estes tivessem geralmente sua revanche arrastan-do seus adversários diante.dos tribunais, tanto os da Igreja,quanto os do rei, que, na maioria das vezes, lhes dava razão. Noséculo XV, é verdade, as coisas mudaram um pouco e os juizesreais estiveram menos inclinados a absolver os excessos que pa-reciam cada vez mais incompatíveis com a ordem política maisestrita que o Estado moderno começava a impor para todos ossujeitos do reino, qualquer que fosse, inclusive, o estatuto pes-soal ç os privilégios coletivos que pudessem ser reclamados.

Todavia, de qualquer maneira, não se poderia dar a tais de-x sordehs uma coloração subversiva. Quando elas não provinham

exclusivamente da exuberância da juventude, ela tinham efeti-vamente, quase sempre, como origem^ a afirmação da defesa deprivilégios fiscais pu judiciários dos universitários. Não se trata-va de um questionamento sobre a ordem estabelecida, mas,pelo contrário, do desejo dos scolares de marcar bem sua per-tença aos extratos privilegiados da sociedade e não se deixar re-baixar para as fileiras do simples burguês ou, pior ainda, do es-trangeiro, do "aubain" exposto ao arbítrio das autoridades lo-cais. Aliás, estas últimas e as populações urbanas das quais elasadvinham diretamente não se enganavam e, regularmente, nosmovimentos populares da Idade Média, os estudantes situaram-se ao lado dos poderosos e dos privilegiados tomando por alvoa vindicta citadina. Isso é o que se passa em,Orléans desde 1251quando esses tipos de cruzada 'popular que eram os "Pasto-rinhos" atingiram violentamente estudantes, bem.como bispose cônegos; e, nos anos turbulentos de 1382-1387, naquela mes-ma cidade de Orléans, a violência urbana reaparece rapidamen-te contra os estudantes e seus privilégios.As desordens assina-ladas em Oxford em 1355 ("o massacre de Santa Escolástica")ou em Toulouse, em 1332 e 1427, teriam a mesma tonalidade.Em Montpellier, por ocasião da terrível revolta 'anti-fiscal de1379 durante a qual foram massacrados os comissários do du-que deAnjou.os universitários não se mexeram ou fugiram,maspraticamente não se envolveram naquele protesto que lhes eraalheio já que eles próprios escapavam do imposto.

Uma vez saídos da universidade e ingressando em umacarreira do clero ou do funcionalismo, os homens de saber nãopareciam ter mais nenhuma tendência para a subversão ou para

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a contestação. Realmente, eles tomaram por vezes partido naslutas de facções que se opunham para o controle do poder nacúpula do Estado ou da Igreja (no tempo do Grande Cisma), EmOxford, desde o século XHI, alguns universitários parecem seter colocado ao lado do rei, enquanto outros, tanto em 1215quanto nos anos 1250, manifestavam, antes, sua simpatia pelosbarões revoltados. Em Paris, teria havido entre os universitários,no decurso dos séculos XTV e XV, tanto paladinos da lealdademonárquica quanto partidários do rei de Navarra, do duque deOrléans ou do duque de Bourgogne e dos Ingleses.Tais engaja-mentos políticos conduziram alguns até á morte ou ao exílio,embora no conjunto eles parecessem haver escapado às depu-rações mais radicais, mostrando geralmente mais habilidade,para aderir ao campo vitorioso do que os chefes de guerra ouos financistas. . ,

Mas aqui também, esses engajamentos políticos não per-mitem falar de escolha verdadeiramente crítica frente à ordem

. social e política estabelecida. O que os homens de saber dese-javam era melhor servir essa ordem estabelecida, de acordocom suas doutrinas e sem negligenciar seus próprios interes-ses. A principal censura que eles podiam fazer aos homens depoder não era a de imporem uma ordem injusta ou perigosa,mas de não lhes emprestar um ouvido suficientemente atentoe de não lhes arranjar um lugar razoável nos órgãos de poder.Como escreveu Robert Fossier, "mesmo hostis à ordem estabe-lecida a que eles reprovam por não lhes oferecer suficienteatenção, os universitários pertencem, ou se agregam todos, pou-co a pouco,às classes dominantes; (...) sempre contribuindo re-gularmente para despertar vivas reivindicações sociais, elescondenaram sistematicamente quaisquer recursos à violênciaque pudessem fazê-las triunfar"10. Nas sociedades do final daIdade Média, os homens de saber não eram sempre, como já dis»semos, homens de poder, embora eles fossem, pelo menos, ho-mens de autoridade, a quem repugnava a violência, mais incli-nados a servir e a melhorar a ordem existente do que a assumiro risco de subverter as hierarquias sociais onde eles próprios

10 - R. Fossier, La socíété médiévale. Paris: 1991", p. 417.

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não estavam tão mal colocados e onde eles aspiravam a uma as-censão ainda mais alta.

Não resta dúvida que, em tais condições, eles reconhece'ram no saber um poder essencialmente integrador e moderni-zador, que eles tenham visto no mesmo saber o cimento da coe-são social e política e que eles não tenham jamais sido tão feli-zes como no momento em que tiveram por interlocutor um rei"sábio" partilhando suas convicções e aberto para algumas re-formas, tal como o rei da França Carlos V.

Aconteceria o mesmo com os "intelectuais intermediá-rios" que foram acima evocados?

A questão convida a uma resposta bem mais matizada.Existiram, incontestavelmente, no final da Idade Média, nesse ní-vel, indivíduos cujo caráter incompleto dos conhecimentos,aliado a um sentimento de inferioridade em relação aos verda-deiros-detentores do saber e a consciência da posição social-mente subalterna ou, pelo menos, ambígua onde eles estavammantidos apesar de suas ambições e dos esforços despendidospara adquirir uma competência intelectual,pôde engendrar umsentimento de frustração, o qual seria, por si, fonte de um pen-samento e de uma ação eventualmente contestatórios ou dissi-dentes.À história das heresias e das revoltas populares do finalda Idade Média revela algumas dessas figuras de ''intelectuaisfrustrados" ("attienated Mtettectuals"), como sendo um dosclássicos agentes da subversão latente nas sociedades de ordensdo Antigo Regime".

Não que eles fossem encontrados sempre e em qualquerlugar. Certas revoltas, e especialmente as mais breves e mais vio-lentas, como o Motim popular francês de 1358, também a revol-ta dos "Trabalhadores" ingleses de 1381 ou ainda aquela dosCiòmpi de Florença, em 1378, parecem praticamente não ter se-guidores além de suas próprias fileiras, eventualmente reunidospor antigos soldados "desprovidos de salários* ou alguns nobres

11 - O tema e a expressão foram, sem dúvida, lançados pôrM. H. Curtis, The alienated intellectuals of Early Stuart En-gland", In: Past andpresent, 23 (1962), p. 2543.

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desclassificados12. Porém, em inúmeros outros movimentos, en-contramos traços da presença dos letrados ou dos semi-letra-dos, trazendo, ao mesmo tempo, um embrião de base teórica euma certa prática da escrita.

Para dizer a verdade,, a documentação subsistente tende aocultar essa ligação entre revolta e literacy, para retomar esseconceito dificilmente traduzível de autores anglo-saxõés, sendoque os eventuais escritos dos revoltados e dos heréticos foramimpiedbsamentè destruídos, vítimas, talvez, ainda mais do des-prezo do que da raiva de seus adversários13. Um exame atentodos eventos revela, contudo, sua presença, pelo menos, subter*rânea.

Tomemos inicialmeníe o caso da dissidência religiosa dofinal da Idade Média. Ela tivera relativamente pouco impacto rioreino da França, a não ser nas zonas marginais (os últimos Cáta-ros do condado de Foix, os Valdenses de Dauphiné), o que cer-tamente confortou a imagem do "muito cristão" rei de França.Em outros lugares, em contrapartida, na Itália, na Inglaterra, noImpério, ela tomou provavelmente grande amplitude.

É surpreendentes fraqueza do papel que desempenharamos irmãos mendicantes. Sua cultura teológica e sua formaçãooratória parecem ter-lhes servido bem mais para justificarem aordem estabelecida e para recuperar algumas impaciêhcias po-pulares do que para atiçar o descontentamento das massas quevinham escutá-los". Foi apenas do lado dos Franciscanos Espiri-tuais, no limite da ruptura com a igreja oficial, que se encon-

12 - Notemos que na lista dos cinqüenta principais líderesdos Ciòmpi inserida em A. Stella.IíZ revolte dês Ciòmpi: lêshommes, lês lieux, lê travail. Paris: 1993, p. 90-91, enconrtra, quando muito, um médico, um notário é um mestre-es-cola;de resto, um taberneiro/um padeiro, serralheiro e 44trabalhadores têxteis.13 - Ver os estudos reunidos em Heresy and Uteracy (1000-1530), dirigidos por E Biller e A. Hudson, Cambridge: 1994.14 -Ver, por exemplo, a análise de temas bastante "recupe-radores" do sermão de Florença nç tempo dos Ciòmpi emCh.-M. de La Roncière, "Pauvres et pauvreté à Florence auXTVéme siècle* In: Études sur 1'bistoire de Ia pauvreté(Moyen Age-XVF síècle). Dirigido por M. Mpllat, tomo 2.Paris: 1974, p. 661-745.

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tram, pelo menos aparentemente, algumas, tendências subversi-vas. Mesmo assim, elas devem ser observadas de perto; comobem revelou, por exemplo, Jean-Louis Biget, havia sobretudomercadores, juristas e notários em torno do Espiritual languedo-ciano Bernard Délicieux, leitor de teologia do convento de Nar-bonne, quando este procurava amotinar a multidão contra os in-quisidores de Carcassonè. Essa conjunção paradoxal - que tra-duz, sem dúvida, o mal-estar das elites urbanas diante do entor-pecimento dos poderes do rei e da Igreja no Midi - não repre-sentaria, ela mesma, o sinal de uma recuperação mais ou menosconsciente na qual o extremismo franciscano vinha socorrerum protesto muito mais regionalista e político do que religiosoou social?19 N

~ A heresia constituída tem, com mais freqüência, encontra-do sua origem na doutrina e no ensino dos mestres seculares dauniversidade, como JohnWycliff (1330-1384) na Inglaterrra, ouainda JeanHuss (1369-1415) na Boêmia. Embora perseguidos eaté, rio segundo caso, condenados pela Igreja, esses dois ho

' mens não fizeram nascer, enquanto vivos, um verdadeiro movi-mento religioso popular. Este desenvolveu-se após sua morte,apelando mais diretamente para sua memória.

Na Inglaterra, tratava-se dos Lollardo. Sabe-se que, entre es-ses pregadores populares nos quais o evangelismo era acompa-"nhado por uma veemente crítica das riquezas da Igreja, encon-trava-se um determinado número de antigos estudantes de Ox-ford, como WllliamTaylor ou Peter Payne. Sem participarem di-retamente, no movimento, inúmeros regentes de teologia dauniversidade, dentre os quais o chanceler Robert Rigg, manifes-tavam uma certa simpatia pôr ele e seria necessária uma longae muito vigorosa retomada da universidade pelos arcebispos deCanterbury para extitpar-lhe definitivamente, no final de apro-ximadamente trinta anos, todo fermento de heresia. O lollardis-mo não era, realmente, uma heresia culta, mas o fato de existi-rem entre seus inspiradores e propagandistas pessoas de saber

15 -J. L. Biget,"Autour de Bernard Délicieux. Franciscanls-me et société en Languedoc entre 1295 et 1330". In:Mouyements francíscaíns et soçtété ffançatse: XIF-XX'siècles. Editado por A. Vauchez. Paris: 1984, p. 75-93.

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fez com que ele não cultivasse o anti-intelectualismo freqüenteem tais movimentos. Os pregadores lollardos atribuíram, pelocontrário, uma grande importância à produção e à difusão ide'grande número de libelos manuscritos e pregaram a traduçãoda Bíblia em língua vernácula, a fim de torná-la acessível a todosos fiéis (com a condição de que eles soubessem ler)16. , \.

Na Boêmia, a universidade de Praga mantém-se fiel à me-mória de Jean Huss. Ela permaneceu, contudo, como vimos, nacorrente mais moderada e menos-heterodoxa - fora da questãocentral da comunhão de dois gêneros, colocada em uso pêlosteólogos da universidade - do movimento nacional tcheco.Esteocasionou críticas veeriientes dos Taboritas, que constituem aala extremista, popular e verdadeiramente revolucionária dohussismo, mas permitiu-lhe preparar, com o. concilio de Bale eo imperador, p compromisso doutrinai sacionado pela Compaç-tatafe 1436.

Sem romper abertamente com a Igreja, outras correntesde devoção e de espiritualidade, mais ou menos marcadas de,misticismo, tais como ps "Amigos de Deus" rénanos ou begardose beguinos flamengos, sem falar dos mais tradicionais terciáriosfranciscanos, desenvolveram-se à margem das instituições ecle-siásticas tradicionais e não sem colocá-las um pouco em evidên-cia. Esse foi especialmente o caso dos Países Baixos e dos Esta'dos borguinhões.Tais movimentos freqüentemente tiveram emsuas direções homens de uma certa cultura, ainda que não setratasse de mestres de-primeiro plano. Alguns, como Ruys-broeck, o Admirável (1293-1381), eram antes autodidatas; ou-tros haviam passado pela universidade, tais como Gérard Grote(1340-1384), iniciador da Devotio moderna e antigo mestre emartes de Paris (ainda que ele expusesse, em seguida, palavrasmuito duras para o orgulho e a vã ciência de seus antigos con-discípülos) . Tais correntes devotas eram, aliás, bem-vindas naleitura pessoal e no estudo; alguns, como os Irmãos da Vida Cp-

16 - Apresentação e estado da questão em J-Ph. Genet,"Wyclif e et lês iollarás\1n:H{stortensetgéograpbes,29*(abrU-maio 1983), p-869-886.17 - G. Epiney-Burgard, Gérard Grote f 1340-1384) et lêsdebute de Ia dévotíon »no£feme,Wiesbaden.: 1970:

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mum instituídos por Gérard Grote, edificaram, como vimos aci-ma, uma rede dç escolas bastante eficaz e muito inovadora, quesé apresentava, sob certo ponto de vista, como Uma alternativaa certas esquisitices da escola tradicional. r

Os homens de saber, e fundamentalmente os mais modes-tos dentre eles, tiveram seu lugar nos diversos movimentos or-todoxos ou heterodoxos de reformas que procuraram no finalda Idade Média, responder à crisme da Igreja institucional e satis-fazer as aspirações religiosas dos fiéis, compreendidos estes nosentido de um acesso mais direto às próprias fontes da sabedo-ria cristã, quer dizer, à Escritura.

Tiveram também seu lugar nos movimentos de contesta-ção política e de revolta. Mais do-que quaisquer pregadores iti-nerantes, é o mundo dos advogados, dos escribas e dos notá-rios que cabe aqui mencionar. Freqüentemente desprovidosde títulos universitários, menos confiantes em seu saber e emsua posição social do que os funcionários e os prelados, nãodesfrutando nem de seus privilégios e nem de seus proventosassegurados, expostos, pois, às flutuações de conjuntura eco-nômica e política, apesar de uma comodidade por vezes real,tais homens não dispunham sequer de suficientes conheci-mentos gramaticais e jurídicos e de prática da escrita ao mes-mo tempo que lhes faltava habilidade para serem capazes deredigir um manifesto, de compilar um esboço de reivindica-ções, de discursar em uma assembléia; ou encetar uma nego-ciação. Ainda próximos das fileiras populares das quais eleseram, em geral, provenientes, ganhavam facilmente a confian-ça destas que, obscuramente conscientes do peso crescentedo saber na vida política, dirigiam-se espontaneamente a eles

• para dar uma forma a suas aspirações e encetar diálogo comas autoridades superiores.

Por volta do final da Idade Média, a figura arquetípica, ain-da que excepcional, desses semi-letrados impelidos à direçãodo movimento popular é certamente aquela de Cola di Rienzo(l 313-1354)18. Filho de um taberneiro romano, o jovem Cola

18 - J. Q. Maire Vlgucur, "Cola di Rienzo". In; Díziotutriobiográfico degíi Italiani. Volume XXVI. Roma: 1982, p.662-675.

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aprendeu o ofício de notário com um parente; depois, sempreexercendo sua arte, adquiriu como autodidata uma certa Cultu-ra literária, tendo por base historiadores e poetas antigos, e umpouco de direito romano; de uma certa maneira, ele se apega aoprimeiro humanismo italiano, aquele de Petrarca. Em contrapar-tida, suas convicções religiosas eram bastante banais e tradicio-nais. Ele tornou-se, então, um dos chefes do partido popular quereagrupava, ao mesmo tempo, mercadores,^ artesãos, notários ebaixo clero contra as famílias dos barões que; na ausência dopapa, governavam Roma,-tendo por único objetivo seus pró-prios interesses privados,. O programa de Cola era, pelo contrá-rio, o de estabelecer em Roma um regime regular e de equida-de em torno do qual pudesse ser reunificada a Itália inteira. Porduas Outras vezes (1347 e 1354), Cola conseguiu estar no podere, com o antigo título de "tribuno", tentou, coni grande ostenta-ção de prodamações solenes e de cerimônias públicas sobre-carregadas de alegorias, colocar em prática sua política.Todavia,rapidamente abandonado pelo papa Clemente VI e pelo impe-rador Carlos IV, ele sucumbiu aos Ataques dos nobres e pereceumassacrado pela multidão a 8 de outubro de 1354.

Existiram aqui e ali, no Ocidente dos séculos XTV e XV, ou-traá figuras de líderes populares, menos trágicas e menos desta-cadas, porém comparáveis, quanto à sua situação social e àssuas ambições políticas, àquela de Cola. Citemos apenas uma,bem estudada por René Fédou, a do notário Jean dê Condeys-sie, um dos principais atores da "rebeyne" de Lyon, em 14361*.Notário que, partindo da vizinha Dombes para Lyon, sem títulouniversitário, mas bom orador, abastado, graças a um bom casa-mento, Jean de Condeysie permanecia, contudo, familiar doshomens de ofícios entre os quais v^via e para quem ele redigia;há longo tempo ele manifestava publicamente seu apego ao es-pírito de comuna tradicional e foi naturalmente que se fez ape-lo a ele quando o povo íionês se dirigiu, ao mesmo tempo, con-tra os funcionários reais que pretendiam impor uma nova gabe-Ia e contra os ricos cuja fraude sobre a talha, isto é, o imposto di-

19 - R. Fédou, "Une revolte populaire à Lyon au XV* siècle:Ia Rebeyne de 1436". In: Cahiers d'Histoire, 3 (1958), p.129-149.

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reto, obrigava a tornar muito pesadas as taxas sobre a consuma-ção. Jean de Condeyssie procurava canalizar a cólera popular éimpor o retorno a um governo equilibrado onde os ofícios parti-lhassem o poder com a oligarquia dos mercadores e dos juristasexcessivamente dóceis às ordens reais. Contudo, essa defesa das li-' berdades comunais era anacrônica; Carlos Vn, que não poderia ad-mitir que fosse entravado o esforço fiscal necessário para o pros-seguimento vitorioso da guerra, fez com quê a cidade fosse ocu-pada militarmente e Jean de Condeyssie foj preso com outroschefes dá "rebelião".

De qualquer maneira, nem os clérigos transformados empregadores anticlericais, nem os notários improvisados como tri-bunos populares, podiam ser considerados como verdadeiros re-presentantes de seus gçupos. Em sua maioria, os letrados de se-gundo escalão que se multiplicam no fim da Idade Média pare-cem ser, sobretudo, ciosos de integração e de promoção social.

No conjunto, eles foram também diligentes para colocarsuas competências, eín seu nível, a serviço da Igreja ou do Estado.

Os padres de paróquia, apesar da insuficiência freqüen-te de seus sermões, ofereciam tudo de si para a obra educati-va da Igreja, contribuindo, ao mesmo tempo, para multiplicarentremos fiéis um mínimo de cultura cristã, o respeito pela or-todoxia é pelos clérigos, além dos elementos de uma visão demundo, que, permanecendo bastante disparatada e tradicio-nal, veicülava entre eles vidas de santos, coletâneas de exem-pla e enciclopédias comuns20. No prólogo de seus Contos deCanterbury (por volta de 1386) Geoffrey Chaucer encarnou,nos versos 467-528, na pessoa de um cura do campo ("par-son"), o mais simpático dos trinta e dois peregrinos que elecolocou em cena: esse santo homem não havia estudado nauniversidade, mas ele sabia de cor a educação de suas ove-lhas:

20 - H. Martiti, TEglise éducatrice. Messages apparents,contemis sous-jacents". In: Educcttions médiévales:1'enfance, VÉcole, 1'Église en Occident(Vf-XVsiècles).Díi.J.Verger [n° especial da revista Histoire de 1'éducaHon, 50(1991)],p. 91-117.

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"Era também um homem instruído, um clérigo, , ^Que pregava verdadeiramente o Evangelho do Cristo; ,.Ele instruía seus paroquíanos com zelo."21 ' '

E como ele juntava o exemplo à palavra, não cessava de fa-zer progredir aqui embaixo o reino de Deus.

Por seu turno, como se disse, os mestres-escolas leigos, adespeito de seu nível bastante variável, inculcavam os rudimen-tos da leitura, por vezes da escrita, em uma parcela da popula-ção (pêlo menos masculina) mais numerosa do que por muitotempo se acreditou. -,

Por fim, os homens de lei, funcionários reais subalternos enotários foram eficazes agentes da modernização e do reforçodo Estado. Para que com efeito, serviria o resgate do direito ro-mano por parte dos doutores, se os notários, não o houvessemrecolocado em prática? Para que serviriam as prisões do Parla-;mento e os regulamentos reais, se não houvesse meirinhos parapublicá-los e executá-los? Apesar de certas fraquezas individuaise das brutalidades que as populações mal suportam, tais ho-mens contribuíram, em larga medida, para impor por toda á par-te o respeito pela regra do direito e a onipresença da justiça éda soberania do Estado. Graças a eles, as noções da fidelidaderendida ao príncipe, da obediência devida ao Estado, e do pri-mado do "bem da coisa pública", efetuadas às expensas das an-cestrais "liberdades" e das pretensões dos potentados locais, en-traram pouco a pouco nos costumes e, com elas, o receio reve-renciai do m9narca ao mesmo tempo que a idéia de um recur-rsó supremo sempre possível.

Os homens de saber mais modestos de que falamosaqui, desfrutavam cada vez mais de bom grado esse papel noqual, como os graduados da universidade e os grandes funcio-nários reais, satisfaziam seus interesses e também os de suasfamília, ,

/•v.

21 • "He was alsoa leadedmán,a clerk,That Crístesgos-pel trewely wolde precbe/ His parisscbens devoutlywolde be tecbe" (jThe complete works of GeoffreyChaucer. Ed.PqWW Skeat, tomo JV.Oxford: 1894,p. 15versos 48O482).

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Alguns marcavam sua vihculação global ao mundo dos le-trados manifestando curiosidades intelectuais que iam bemalém dos conhecimentos estritamente necessários apenas à sua"prática". Nós já evocamos as abundantes leituras históricas ejurídicas de Cola di Rienzo e de seus amigos humanistas. Semuitos não possuíam mais do que algumas obras técnicas indis-pensáveis para seu ofício, outros possuíam bibliotecas que po-diam rivalizar com aquelas de graduados. A impressionante lis-ta de 136 títulos deixada por Richard de Bazoques, modestomestre-escola normando do início do século XV, corresponde,sem dúvida, mais a um tipo de "biblioteca ideal" do que a um in-ventário de livros efetivamente possuídos ou mesmo lidos22.Contudo ela testemunha; pelo menos, os conhecimentos biblio-gráficos, bastante em dia, da personagem e de seu apetite peloconhecimento. Outros possuíam realmente bibliotecas não ne-gligenciáveis. Os inventários de livros sicilianos revela-nos a co-leção de 25 volumes de Nicolas de Rabuazio, mestre-escola emTermini, bem como as honradas pequenas "bibliotecas" de al-guns nòtáríos: 20 volumes em média e até 88 na casa de Stefa-no de Aviilino em 1449; esse notáfio de Messina não possuíaapenas obras de direito, mas sermões e crônicas, um volume depante e um outro de Tomas de Aquino23.

Alguns elevavam-se inclusive à dignidade de,autor. Os me-lhores advogados e, na Inglaterra, os Common lawyers prove-nientes dos Inns of Court produziam as "questões" práticas(como aquelas de Jean lê Coq, advogado no Parlamente) de Pa-ris nos anos 1370-1400)24 e os tratados de justiça que eram úteispara consultorias e comentários especializados dos doutoresdas faculdades de direito. Ali, eles manifestavam, ao-mesmotempo, uma ciência bastante real e uma atenção para os proble-mas contemporâneos, por vezes uma sensibilidade para com asdificuldades das pessoas simples, bastante condizente com suasituação social intermediária. André Gouron pôs em evidência,

22-). Bignami-Odier, Á.Vernet,"Les livres de Richard deBazoques", In: Btbliotbèque de 1'École de Cbartes, 110(1952), p. 124-153. " •23 - H.Bresc,Iíire etsodété en'Sícile (1299-1499). Paler-ma: 1971, p. 138-140 é 179-182.24 - M. Moulet, Quoestiones Johànis Galli, Paris: 1944.

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assim, a figura modesta mas exemplar de Pierre Antiboul (?•1357); depois de alguns estudos em Montpellier, esse "jurispefl-to" instalou-se como advogado em Daguignan; foi lá que redi-giu, nos anos 1340, seu Traité dês impôts (Tractatus de mune-ribus); amparado simultaneamente por um sólido conhecimen-to dos autores eruditos e pela experiência de situações concre-tas de seu tempo, o Tractatus de Antiboul é uma vigorosa defe-sa da igualdade diante do imposto, uma crítica bem argumenta-da das isenções fiscais indevidas e dos privilégios da aristocra-cia, bem como das brutalidades dos funcionários e, no total, deacordo comi a expressão de André Gouron, a obra de um práti-co sensível "à miséria rural e às injustiças sociais de seu tempo"que ele imputa às "taras da nobreza provincial e de seus servi-dores ... [ assim c,omo de ] certos práticos do tempo acusadosde incompetência"25; Pierre.Antiboul não era tanto um revolu-cionário nem um demagogo condutor das massas (pu, pelo me-nos, não teve ocasião dê tornar-se um); a ordem política maisjusta à qual ele aspirava, ele a esperava sem dúvida, da ação maiseficaz do príncipe - na época, do conde da Provença r; em ou-tras palavras, dê um reforço do Estado, não de uma transforma-ção das hierarquias sociais. ,

Em uma escala evidentemente muito mais elevada, porémem uma perspectiva definitivamente comparável, aquela de um,refprmismo rnodernizador favorável ao crescimento do Estado,nós recordamos que o maior jurista e publicista inglês do finalda Idade Média, sir John Fortescue (1390-1479), autor dos céle-bres De laudibus legumÂnglie e The Gavernance ofpngland,havia se formado em Lincoln's Inn (uma das quatro principaisInns o/Courf) em Londres, e não em Oxford ou Cambridge, eque ele havia, por muito tempo, exercido funções de práticocomo sergeantat law e inquiridor, antes de sentar-se ele pró-prio no Banco do rei26.

25 • A. Gouron,"Doctrinc mediévale et justice flscale: Pier-re; Antiboul et son Tractatus de muneribüs": In: AnalectaCracovtensia,! (1975), p. 309-321 (reirapresso em A. Gou-ron, La science du draitdans lê Midi de Ia France au Mo-yen Age, Londres: 1984, n° X).26 - Sobre*Fortescue, ver a Introdução de Sir John Fortes-cue, De Laudibus Legufíi Ariglie. Ed. S. B. Chrimes, Cam-bridge: 1942.

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Essa aspiração a um saber cada vez mais formalizado apro-xitnando-se da dignidade das disciplinas universitárias, guardan-do porém um estilo mais prático e mais moderno (os textos sãofreqüentemente, aqui, em língua vernácula), reenc^ntra-se demaneira particularmente nítida entre os cirurgiões do final daIdade Média. Várias escolas de cirurgia parecem ter existido nofinal da Idade Média, pelo menos na órbita das faculdades demedicina italianas; sua existência em Paris ou Montpellier émais duvidosa. Alguns cirurgiões redigiram tratados que pro-metiam um real sucesso, sendo o mais conhecido Henri deMondeville cuja Chirurgia (1306) foi rapidamente traduzidaem francês, em provençalrem inglês, em alemão, etc.

Promoção cultural, promoção social também. A variaçãode riqueza entre as diversas categorias de pessoas de saber nãoera forçosamente muito grande, porque, se o ensino ou o servi-ço de Deus ou do príncipe eram incontestavelmente fontes deprestígio e, de certa maneira, garantia de estabilidade, eles nãoeram sempre, como vimos, muito bem remunerados. Inversa-mente, se alguns vegetavam na prática privada, outros práticosque haviam conseguido adquirir unia bela clientela, contrair ummatrimônio vantajoso ou completar seus proventos profissio-

*nais com outros trabalhos na terra ou no comércio, podiam es*perar uma bela comodidade.

Alguns advogados eram bastante ricos. Jean lê Coq, já cita-do, era nobre e possuía, pelo menos, além dê pensões e de ren-das, cinco senhorios e dois feudos em torno de Paris, mais umpalácio e duas ou três casas na própria capital. Para esses advo-gados abastados, não era, aliás, impossível aceder ao mundomais respeitado dos ofícios. Se, tanto em Paris como emlbulou-se, os advogados perante o Parlamento não parecem muito nu-merosos para se tornarem conselheiros na própria corte sobe-rana, isso lhes trazia, em compensação, a necessidade de ocupa-rem, com muita freqüência, as funções de juizes nos tribunaisde menor importância.

Notável também era a fortuna de alguns juristas florenti-nos. Sabe-se, por suas importantes Ricordanze que, por volta de1407, sua prática trazia 350 florins para Ricciardo di Francescodei Béne (1369-1411), ou seja, considerando os salários de al-guns cargos públicos e o produto de suas casas e de suas terras,

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500 a 600 florins. Recordemos como comparação que, nessaépoca, o benefício liquido do ramo florentino da banca dos Me-diei não ultrapassava 1100 florins;e, contudo, Ricciardo não ti* ;nha reputação de um jurista excepcional; mas pertencendo auma velha família bem implantada na oligarquia florentina, elehavia conseguido constituir uma grande clientela27.

Mesmo entre os notários, nós poderemos encontrar, aolado de tabeliães necessitados, fortunas apreciáveis, cohipará-veis àquelas dos homens de lei, aparentemente mais abastadosou negociantes. EmToulouse, por exemplo, de acordo com osregistros de avaliação de 1335, a fortuna de 35 notários com-preendia, a grosso modo, de 30 a 934 libras deTours, que colo-cava os mais ricos dentre eles no nível dos poderosos mercado-res28. Em Saint-Flour, em 1380, um certo Durand Saysset, simplesnotário sem grau universitário, praticamente não tendo con-cluído seu estudo ao longo de toda uma existência laboriosa,com 1575 libras de patrimônio imobiliário, precedia todos osoutros homens de lei, sendo ele próprio superado apenas pordois mercadores2*. ^ }

Quando eles não chegavam a ascender eles próprios, pe-los títulos ou pela fortuna, ao nível dos graduados, dos grandesfuncionários ou dos prelados, os homens da prática podiampelo menos remeter essa ambição para seus filhos. Nós retoma-remos no próximo capítulo o processo de ascensão social, mas

27 - L. Martines, Latvyers anâ Statecrafi in RenaissanceFl&rence, op. dt, p. 103-105.28 - M-C1. Marandet,"Approche d'um mflieu social: lê nota-rial en Midi toulousata aux XTVe et XV* siècles". In: Visagesdu notarial dans l'histoire du Midi toulousian (XIV-XIX' siècles).Toúlouse:}. L. Laffont, 1992,p. 81-115.29 - A. RJgaudière, "La fortune dês hommes de loi sanflo-rains d'après lê livre d'estinies de 1380" In: Studia históri-ca Gandensia, 267 (1986) [Structures sociales et topogra-phiquie de Ia pauvreté et de Ia richessè aux XIV et XV*siècles. Aspects ttwtbodologiques et résultarts de recher-cbes récents].?. 13-49, especialmente página 41 (reímpres-so no A.Rigaudière, Gouverner Ia vittedu MoyenAge. Pa-ris: 1993, p. 275-318).

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pode-se dizer desde já que a freqüência das passagens, em umaou duas gerações, da prática para o funcionalismo tornara-se talque era necessário ver nela uma fileira clássica de promoção so-cial. Os filhos dos notários ou dos procuradores nãoxlispunhamapenas dos subsídios paternos para se dedicar ao caminho dosestudos e das honras. Eles beneficiavam-se também, com muitafreqüência, de suas.origens, de um embrião de biblioteca, de al-gumas relações e de uma certa familiaridade com as disciplinasintelectuais, ou seja, de um mínimo de "capital social" e "cultu-ral", que, em relação aos recém-chegados, devia realmente lhesfavorecer30.

Pode-se dizer que se tratava então, efetivamente, de umapromoção interna no próprio seio do grupo das pessoas de sa-ber. A existência e a freqüência desse tipo de promoções ilus-tra a coesão, o dinamismo e a abertura desse grupo. Era, certa-mente, possível penetrá-lo em diversos níveis.Alguns chegavamdiretamente à universidade e ao diploma, às dignidades de pre-lado e aos grandes escritórios. Em compensação, outros, entreos mais modestos homens da prática, não conseguiam fran-quear, ou fazer com que fosse franqueado à seus filhos o passodecisivo e ficavam na base do escalão social, até saindo do gru-po para retornar ao mundo dos trabalhos artesanais ou das mer-cadorias. Mas o essencial estava na continuidade estabelecidaem torno de um determinado número de práticas culturais co-muns.

É bem possível que tenham existido, aqui ou lá, padreslivres de qualquer obrigação, advogados demagogos, procura-dores ásperos, notários que permaneciam próximos dos meiospopulares, prestes a colocarem suas competências a serviço deuma crítica mais ou menos subversiva da ordem estabelecida.Na maioria dos casos, porém, os homens de saber, observadospor um certo angulo, teriam tido por mais tempo o sentimentode que-a sua própria afirmação passava pela aceitação de seupapel integrador. Eles eram chamados a desempenhar na nova

sociedade que se constituía em lugar da antiga sociedade feu-dal, um papel essencial, agitando por toda parte, até nos peque-nos burgos è nas retiradas regiões dos campos, as redes de crt-quadramento e de obediência que permitiam aos príncipes, àscidades e à Igreja impor a ordem jurídica que era sua própriarazão de ser. Sem elçs, quer dizer, sem o concurso voluntário csua ação cotidiana e multiforme, o Estado moderno nascentenão teria tido os meios de se fazer aceitar e obedecer, e nemmesmo conhecer. Nos novos processos de regulação social epolítica do final'dá Idade Média, os homens de saber postaram-se ao lado das elites e é incontestavelmente nestas que a maiorparte ,deles tinha os olhos fixados."

Mas ao mesmo tempo, a existência desse largo leque de"intelectuais intermediários", fazendo reserva e transição entrea ordem estática~superior e os simples sujeitos, evitou que oshomens de saber não se reduzissem a uma simples casta demandarins ou de padres, apartados do restante dá sociedade esubmetidos exclusivamente aos caprichos do príncipe ou deseus próprios desejos egoístas. Foram eles, os doctores ruralesde Henri de Gand, que asseguraram o alicerce das categorias su-periores dos letrados, que lhes possibilitou a inserção na socie-dade, proporcionando-lhes uma base suficientemente larga eaberta; e foram eles, também, que tomaram como encargo, demaneira bastante empírica, a difusão, a adaptação concreta equotidiana e, no total, a recepção um pouco consensual, senãounânime, dós saberes teóricos a partir dos quais eraní elabora-das as novas regras do jogo social e político. /

30 -A importância desse processo foi particularmente bemavaliada, no tocante à sociedade de tyon dp final da IdadeMédia, por R. Fédou,~£es hommes de loi lyonnais à laflndu Moyen Age. Op. cit, p. 153-178.

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terceira parte

REALIDADES SOCIAIS EIMAGEM DE SI

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Na primeira parte deste livro nós vimos o que possibilitavadefinir os homens de saber enquanto tais na Europa Ocidental dofinal da Idade Média. Na segunda parte, quais funções suas'com-petências intelectuais lhes permitiram ter nas sociedades dessaépoca.Assim, nós pudemos não apenas indicar os papéis que lheseram destinados, .de maneira mais ou menos exclusiva, mas com-preender que o exercício de tais papéis se inscrevia, ele próprio,em uma dinâmica social (e política) que era aquela das mutaçõesgerais daquela época. Dito de outro modo, tais papéis eram, em si,papéis novos que não existiam (ou, pelo menos, não da mesmamaneira nem com a mesma importância) nos séculos anteriores.Aqueles que os ocupavam os criaram e lhes deram forma por suaprópria ocupação.

Mas se os papéis eram novos, os homens também o eram? Aaparição sobre a cena Social do grupo dos homens de saber teriacorrespondido a um fenômeno generalizado de ascensão e reno-vação? As mutações culturais e a emergência de funções até entãodesconhecidas ou pouco desenvolvidas, teriam permitido aos indi-víduos ou às famílias provenientes dos estratos populares é modes-tos da sociedade se elevarem na hierarquia social e constrangeremas elites tradicionais a lhes acolher em seu seio, talvez até a lhes ce-derem algumas posições? Ou será que teria simplesmente ocorri-do uma reconversão funcional dessas antigas elites (que, de qual-quer modo, jamais haviam estado rigorosamente fechadas), adap-tação e modernização garantindo a continuidade das hierarquias?

Descobre-se facilmente que, na prática; as duas soluções de-vem ser verificadas, com porcentagens variáveis de acordo com osmomentos e os lugares, de modo que será necessário procurarmensurá4as (capítulo VII). Mas, tanto quanto os dados brutos damecânica social, são importantes também as representações de simesmo e dos outros que acompanháramos fenômenos de ascen-são ou de mutação (capítulo VIS). Qual era a imagem das pessoasde saber no final da Idade Média? Guardaria essa imagem algumtraço de suas origens por vezes obscuras? Uma indelével marcaclerical? Para fazei- esquecer sua ausência de tradição, procurariameles se assemelhar as cores vivas da antiga nobreza? Ou será quenossos homens de saber já conseguiam na época se distinguir dorestante da sociedade, mostrando aquilo que eles, de fato, eram,um composto social novo e complexo, com suas próprias manei-ras de viver, de falar e de pensar, seus hàbitus e seus valores, o quesignifica uma certa consciência de si e de seu papel histórico?

capítulo VH

HOMENS NOVOS OU HERDEIROS?

O problema^ da origem social dos homens de saber do fi-nal da Idade Média parecerá primeira vista, um problema sim-ples, no qual as dificuldades desmembram-se, antes de tudo, dasinsuficiências da documentação. Na realidade, isso ocasionatambém algumas dificuldades teóricas, as quais deveremos, emseguida, comentar.

l. QUESTÕES DE FONTES E DE MÉtQDO

Se o problema da origem de nossos homens de saber sécoloca, é porque trata-se, evidentemente, de um grupo novo,em forte expansão nos últimos séculos da Idade Média, prèen-chendo funções nascidas, elas mesmas, da modernização do Es-tado, da centralização da Igreja, dos progressos da cultura e,mais amplamenterda complexidade crescente da sociedade eda economia. Era necessário, porém, ao que parece, que os ho^mens encarregados daquelas novas funções saíssem de algumaparte, ou melhor, que fossem provenientes de grupos sociaismais antigos.

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Para dizer a verdade, como já disse, é impossível avaliar demaneira precisa o ritmo e a amplitude do crescimento do gru-po de! homens de saber, que havia, aliás, variado consideravel-mente de acordo com os momentos e os lugares. Os próprioscontemporâneos eram conscientes desse crescimento mas elestiveram, sem dúvida, intenção de^ exagerá-lo. Para remontar,como exemplo, talvez ao menos ̂ mal conhecido dos casos,aquele dos funcionários reais na França, as pesquisas históricasparecem indicar que seu número experimentou, em fins da Ida-de Média, duas fases de crescimento sustentado - os anos 1250-1314 primeiramente (aqueles do próprio nascimento do Estadomoderno, de São Luís a Filipe, o Belo), depois a segunda meta-de do século XV, época de "reconstrução" e reforço do poderreal no final da Guerra dos Cem Anos -, mas que, entre essasduas fases, teria havido, apesar de uma denúncia ritual, a cadacrise política, da "multidão infinita" de funcionários, uma quaseestagnação - pelo menos em números absolutos (porque, é ver-dade, essa estagnação não impedia uma forte alta relativa jáque, na niesma ocasião, a população global do reino diminuiumais da metade em função das epidemias)1.

Um< outro fator que exige que se indague sobre o recruta-mento social dos homens de saber era que estes eram, ainda,em grande" parte, como vimos, homens de Igreja, ó que excluíaa simples reprodução hereditária do grupo.

De onde vêm, então, as dificuldades? Na verdade, estas sãoas mesmas de qualquer investigação de história demográfica ousocial da Idade Média. Efetivamente não faltam documentosque permitam identificar os parentes dós clérigos e letrados

'que nós estudamos aqui. Nos países mediterrâhicos, os múlti-plos contratos, inventários e testamentos contidos nas fontesnotariais oferecem abundantes informações sobre os laços fa-miliares. Além disso, cartas e súplicas pontificais, papéis fiscais,arquivos judiciários, coleções de títulos e de rendas, etc, podem

l - Cf. F.Autrnd,"L'appaiition d'um nouveau groupe so-cial". In: Hístoire de lafonction publique en Frcmce. Dir,M. Pinet, tomo I,Dês origines ou XV siècle. Paris: 1993. p.311-443.

render serviços análogos. Mas, além da coleta de tais informa»ções em^vias de constituírem os dicionários prosopográficos,(hoje necessariamente informatizados), ser um trabalho de mui-to fôlego que proporcionou, até agora, apenas resultados multoparciais, podemos temer que seja sempre difícil, talvez impossí-vel, empregar, para tanto, verdadeiros esforços quantitativos, so-bretudo considerando-se uma duração verdadeiramente longa.

Com efeito, as fontes que acabo de mencionar, ainda quan-do não são excessivamente incompletas só muito raramentesão seriais; elas não produzem mais do que geralmente fotogra-fias instantâneas, com datas isoladas. Em outras palavras; elaspossibilitam avaliar mais ou menos a abertura do leque de ori-gens possíveis,, das mais populares às mais aristocráticas. Osmais diversos casos podem ser ilustrados por exemplos maisou menos acentuados nas cores. Mas praticamente não pode-,mos apreciar a proporção respectiva de cada categoria social e,muito menos, sua respectiva evolução no tempo.

O caráter incompleto da documentação não é, .porém,aqui a única causa. De fato, é bem provável que a maior partedas fontes,.de acordo com s.uá^natureza, privilegiem este ouaquele tipo de origem social. Globalmente, são evidentementeos mais poderosos e os mais rieos que têm maior probabilida-de de aparecer na documentação ou, de qualquer modo, de nãopermanecer apenas como simples nomes, mas de poder seridentificados e unirem-se às famílias conhecidas por sua histó-ria ou sua situação de fortuna. Foi ,assim que os homens de sa-ber de nascimento nobre, dos quais nós falaremos abaixo, tive-ram alguma chance de poder deixar sua marca com uma relati-va regularidade; mas, para as outras categorias sociais, tanto ur-banas quanto rurais, as indicações são de tal modo aleatóriasque parece ser muito difícil submetê-las a um verdadeiro trata-mento estatístico. ,

Deve-se, certamente, acrescentar ao que foi aqui dito - di-ficuldade de ordem geral - que o vocabulário "social" utilizado,por fontes medievais remete, com muito maior freqüência, paraos estatutos jurídicos do que para as categorias profissionais oueconômicas. É assim, por exemplo^ que os arquivos das univer-sidades alemãs do século XV repartiam os estudantes em "ri-cos" (divttes) e "pobres" (paupetvs); mas, de fato, tais palavras

.'$3v1»

'II

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não remetem para uma classificação social, que seria, em suma,bem vaga. Tratava-se simplesmente de distinguir os estudantescontribuintes que pagavam regularmente os seus direitos deinscrição e aqueles que, em virtude de uma pobreza alegada e,talvez, provisória, ficavam isentos^ Havia também os semipaupe-res (ou semidivites): eram aqueles que haviam conseguido ob-ter apenas lima tarifa reduzida ou um prazo para o pagamento;vê-se o quanto seria arriscado tirar de uma tal classificação asindicações precisas sobre a origem dos graduados das universi-dade alemãs2.

i Mencionemos também a ambigüidade ou a polissemia dealgumas palavras correntes do vocabulários social medieval,como burgensis, tnagister, ou clericus3. E a própria noção denobreza, que muito freqüentemente não distingue a antiga danova nobreza, estatuto hereditário e notabilidade adquirida, é,como veremos, de um uso igualmente delicado.

No total, parece, contudo, que a história social das popu-lações dos letrados medievais permanece exposta a muitas in-certezas.

Uma última dificuldade, não de vocabulário mas de méto-do, deve ser assinalada, O historiador tem tendência de partirdos indivíduos que ele estudou tomados por si próprios e dedefini-los, socialmente situando-os em relação a seus ascenden-jtes ou a seus descendentes diretos. É assim que ele espera apro-veitar as dinâmicas de ascensão ou de reprodução sociais ou,

2 - Vide J. Paquet. "Recherches sur 1'universlté 'pauvre' auMoyen Age". In: Revue belge de philologie et cfbistoire, 56(1978), p. 301-353," '3 - Por magister,v&:supra,p. 1^5.Burgensis se aplicavaao habitante de qualquer comunidade que tivesse seu pró-prio direito e cabe recordar aqui que.no finar da Idade Mé-dia, um país como a Alemanha tinha por volta de 4000aglomerações, desde Coloene ou Frankfurt até todos os pe-quenos buígos rurais possuindo o estatuto de cidade. Clè~rícus podia designar ora um clérigo que houvesse recebi-do apenas as ordens menores, ora não importa qual mem-bro do clero, ora enfim um letrado provindo das escolas(ainda que fosse casado e levasse um gênero de vida com-pletamente laico). ,

ainda, a desclassificação progressiva de certos grupos mal adap-tados a seu tempo. Mas, sobretudo tratando-se de sociedadesfortemente integradas como o eram aquelas do final da IdadeMédia, é de fato o conjunto das estruturas familiares que deve-rá ser levado em consideração e particularmente as ramifica-ções colaterais - tios, irmãos.primos - e as linhagens dos paren-tes por afinidade. _ ' . _ ;

A promoção de um filho de artesão entre as pessoas de sa-ber podia conter variadas significações em se considerandoque o filho de artesão não dispunha de nenhuma relação parti-cular ou, ao contrário, tinha já um tio cura capaz de lhe empres-tar alguns livros ou de recomendá-lo a seu bispo. A passagemde um filho de comerciante para o mundo da JÍoga e dos ho-mens, de justiça não pode ser interpretada do mesmo modçquando isso significava o abandono da antiga vocação familiarou quando o novo jurista era simplesmente um caçula que es-colhera o caminho 'dos estudos enquanto seus irmãos continua-vam a se dedicar ao comércio e aos negócios.

Poderíamos multiplicar os exemplos desse gênero. Nãopodemos passar silenciosamente pelo problema que eles acar-retam, mas é claro que eles perturbam a tarefa do historiador, aconsciência do conjunto das relações, familiares pesando consi-deravelmente na investigação prosopográfica e tornando aindamais aleatória a esperança de obter resultados quantificáveis.

Além do mais, a própria família não é, sem dúvida, aquiuma unidade suficiente. Dever-se-á com efeito procurar reintró-duzi-la em meio às inúmeras redes de vizinhança e de clientelaque estruturavam todas as sociedades medievais. Retomemosaqui o exemplo do filho de artesão que havia acedido pelo viésdos estudos a uma posição honorável entre as pessoas de; saber.Nós seríamos tentados hoje em dia a interpretar essa promoçãocomo um belo exemplo de êxito meritocrático, que se tornapossível pelas estruturas relativamente abertas, conservadas, atéo final da Idade Média, por instituições de ensino tais como asuniversidades. Julgamento sem dúvida um pouco anacrônico.Porque havia, na realidade, grandes chances para que esse filhode artesão - quaisquer que fossem, além do mais, suas capacida-des mtelectuais e suas qualidades de caráter - não pudesse se-guir os estudos, a não ser, como disse acima, que tivesse um tiocura e, mais provavelmente ainda, que sua" família, por modesta

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que fosse, pertencesse à área de influência desta ou daquela,po-derosa abadia ou porque seu pai fosse um protegido ou talvezum homem de confiança desta ou daquela grande personageni.

Nós somos surpreendidos,i por esse exemplo, a ver queinúmeros colégios universitários medievais recrutavam seusmembros, para além da família do fundador, em dois ou três vi-larejos designados por nomeação (cujo fundador era originájio,ou até mesmo o próprio senhor): os lugares eram assim reser-vados às crianças de Saint-Pierre de Nazac (diocese de Cahors)no colégio fundado, em 1341, emTouloüse, pelo arcebispo deAries, Gasbert de Lavai, e outros para aqueles de Dormáns (dio-cése-de Soissons) no colégio fundado em Paris, em 1370, pelocardeal Jean de Dormáns; os dois prelados não haviam se esque-cido dos filhos de seus compatriotas menos afortunados; quan-

• N to ao colégio de Pélegry (Cahors), era, em grande parte, destina-do a acolher pequenos gramáticos nascidos nos próprios domí-nios legados ao colégio por seus fundadores, Hugues e Ray-mond Pélegry (1365)4. É evidente que com fortuna e capacida-des semelhantes, os filhos dos camponeses dessas aldeias ti-nham muito mais chance em relação àqueles das cidades vizi-nhas de chegar à universidade.

É inútil multiplicar ^sse gênero de hipótesesr sem qual-quer validade teórica. Essas que precedem terão sido suficien-tes, acredito, eu, para o demonstrar: múltiplos parâmetros po-dem entrar em jogo no mecanismo social do final da Idade Mé-dia.A interpretação desta última é, todavia, verdadeiramente de-licada e arrisca-se, em todo caso, a recusar, ainda por longo tem-po, a abordagem estatística. É, portanto, no essencial, em algu-mas anotações fundamentalmente qualitativas e descritivas queeu me deterei nas páginas que se seguem. . ' . ' . „ '

2. A VEREDA DOS ESTUDOS

A idéia de que os estudos deveriam ser acessíveis a todose ijue graças a eles os estudantes pobres e merecedores deve-riam poder se elevar a altas funções a serviço de Deus,ou dopríncipe não era estranha nos últimos séculos da Idade Média.Diversos estatutos universitários, bulas pontificais ou regula-,mentos reais lhe fizeram eco. Em 1224, o imperador FredericoII havia prometido fortuna (lucruni), nobreza (nobílttas) cboas relações (amicitiarum favor) para todos aqueles que viés-.sem a estudar o direito no studium de Nápoles5. Por seu turno,em 1336, o papa Benedito XII reprovará aos doutores de Mont-'pellier o-desencorajamènto de estudantes pobres mas compe-tentes e dignos, que aspiravam legitimamente chegar ad altio-ra, exigindo deles os direitos de exames abusivos6.

Confirmando a seu modo essa idéia, alguns romancistas e .cronistas a serviço da alta nobreza indignaram-se, por seu tur-no, com o fato de as pessoas de "pequena estração social" pode*rem obter o favor real e tomar, junto ao soberano, o lugar geral-mente devotado aos representantes das maiores e das mais an-tigas famílias do reino. Em sua Chronique métrique (1316), opoeta Geoffroy de Paris já dizia para os barões de Filipe, o Belo:

"Nous sommes versez a revers ,Et par vilains et par convers [juifs convertis],Chetive Gent que sont venuz /Cum a court mestre devehuz,(...)A Ia court ne nous fait on doitSers, vilans, avocateriausSont devenuz emperiaus."7

4 - F. Autrand, Charles V lê sage. Paris: 1994, p. 707; M.Fournier,Ies statuts etprivüèges dês universitésfrançaisesdepuis leur fcmdatíanjusqu'en /7S9.Tomo I. Paris: 1890,n° 595 e tomo n. Paris: 1891, n°l435.

5 - Circular para anunciar a fundação do studium publica-da no Ryccardi de Sancto Germano notarii chronica. Edi-tado por C. A. Garuffl (Rerum Italicarum Scriptorès,VII/2). Bolonha: 1938, p. 113-116,6 - M. Fournier, Lês statuts et privttèges dês universitésfrançaises, op. cit.,tomoil, n°944. ,7- A.Diverrès,£«chonique métrique atrtbuéeà Geoffroyde Parts. Paris: 1956, v.6433-6442, p. 212.

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"O debate entre o clérigo e o cavaleiro", um gênero literá-rio que remonta ao século XII, guardava toda sua atualidade nofinal da Idade Média. Sob a pluma dos autores da corte, o cava-leiro, graças a sua força, sua lealdade e sua coragem, saía geral-mente vencedor do combate, tal como o Pequeno Jehan deSaintré às voltas com as maquinações do "Senhor Abade" no ro-mance deAntoine de La Sale - ele próprio um produto puro domeio cavalheiresco e cortês - por volta de 1456. Mas que nãpvê que essas compensações literárias escondiam mal as desven-turas na realidade concreta da existência. E em nossa época osarrivistas assim denunciados não eram apenas os prelados mun-danos ou os monges devassos, mas fundamentalmente os estu-dantes hábeis na oratória ou os advogados espertalhões (mes-tre Pathelin), enfim, os doutores confiantes de seus diplomas ede sua ciência e convencidos de ser, doravante, indispensáveispara o bom encaminhamento do Estado.

A ambição social e,ra incontestavelmente uma das motiva-ções mais comuns daqueles que se lançavam pelo caminho dosestudos. A própria noção de cultura geral e desinteressada era,como dissemos acima, bastante alheia dos homens dessa época,como lhes era alheia aquela segundo a qual a viagem "para osestudos" podia ser, tanto quanto um instrumento de formaçãointelectual e profissional, a ocasião de forjar o caráter sempreenriquecendo sua memória da imagem dos lugares visitados edas personalidades reencontradas. Aqueles que se davam ao tra-balho de estudar as disciplinas eruditas, de maneira mais ou me-nos aprofundada, e não dissimulavam o caráter árido dessaaprendizagem, estavam convencidos tanto do prestígio quantoda utilidade social e política desse tipo de estudos, entendendoser necessário tirar deles o máximo partido para eles próprios,sempre fazendo lucrar as pessoas próximas, as quais haviam fre-qüentemente contribuído para o financiamento de seus estu-dos. Porque, sobretudo nas famílias modestas, estimular umacriança para a via dos estudos devia ser uma árdua empreitadapara a qual todos contribuíam na medida de suas possibilida-des. ' V.. ' - -

Não faltanTexemplos de promoções sociais, por vezes,-es-petaculares pelo viés dos estudos e dos graus. $em falar da mas-

, sã de todos aqueles sobre cujo nascimento nós nada sabemos,

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aquilo que deve ser o índice, em numerosos casos, de uma ori-gem modesta, recordamos simplesmente aqui alguns exemplosclássicos, os dois grandes teólogos e prelados, ingleses do iníciodo século xm, Stephen Langton e Robert Grosseteste, eram fi-lhos de camponeses, talvez de servos; origem próxima de Robertde Sorbon e, um século e meio mais tarde, para o futuro chance-ler Jean Gerson. Quanto ao cardeal Nicolas de Cues (1401-1464), seu pai era um humilde barqueiro do Mosela.

Trata-se ali, note-se, de teólogos cuja bela carreira foi essen-cialmente eclesiástica. Mas encontraremos exemplos análogos,ainda que talvez menos notáveis e menos numerosos, entre osjuristas e os médicos: o escrivão humanista do Parlamento de Pa-ris no final do século Xiy Nicolas de Baye (1364-1419), era umfilho de servo que passara pelo colégio de Dormans e seu con-temporâneo, Robert Mauger, primeiro presidente de 1413 a1418, ele também proveniente de Dormans, era iguaímenteYdeorigem modesta8. Quanto ao grande médico Guy de Chaujiac(1300-1368) que tratou de três papas de Avignon, a tradição quisque ele fosse, em sua infância, um mero criado de uma herdadeem Gévaudan. ,

Apesar de tudo, esses são casos excepcionais. Contudo hátrajetos feuniliares mais comuns embora todos eles também sig-nificativos.

Tomemos o exemplo de Paston. Essa família do Sudeste daInglaterra (região de Norwich) deixou uma impressionante co-leção de um bom milhar de cartas, escalonadas entre os anos1440 e 1490, que permitem seguir sua ascensão social por qua-tro gerações9.

Primeiramente, um camponês Üvre e abastado, que carregao próprio nome de sua aldeia natal, Clément Paston. Ele tinhaapenas um filho,Willian Paston (1378-1444), para quem ele pôdepagar os estudos de direito em uma Inn ofCourt. Graças a suas

8 - F.Autrand,Ar«ftsíWce d'un granei corps de VÉtaf.lêsgens du Parkment de Paris (1345-1454). Paris: 1981, pt75 e 326.9 - Encontraremos importante's excertos comentados dacorrespondência dos Paston em Lês Paston. Unefamílteanglatse au XV siècle. Correspondance et vie quotídfen-ne austrées,?Mis: R.Virgoe, 1990.

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Competências de jurista e sempre gerindo as terras herdadas deseu pai e aquelas adquiridas por várias compras, WUliam prosse-guiu uma carreira de homem de lei (a serviço do duque de Nor-folk e do bispo de Norwich) e de funcionário real que é concluí-da em Londres, na Corte de Pleitos; ele foi enterrado ha Catedralde Norwich. Na geração seguinte, aquilo que era apenas êxito in-dividual se estabiliza e torna-se vocação familiar. Os quatro filhosdeWilliam Paston fizeram os mesmos estudos: primeiramente afaculdade de artes enl Cambridge, depois a Common Law emuma Inn de Londres (manifestamente preferida às faculdadesuniversitárias de direito). Dois desses juristas morreram jovens esolteiros, mas dois outros realizaram carreiras semelhantes, aque-las de seu pai: eles foram sucessiva ou simultaneamente conse-lheiros jurídicos de grandes senhores e funcionários reais. Con-tudo, a ascensão social prossegue porque os mestres servis eramcada vez mais ricos e os domínios se estendiam, com a ajuda dasoríe;John (1421-1466) herdou uma bpa parte das terras de seumestre, o célebre capitão Sir John Fastolf, enquanto seu irmãoWUliam Jr. (1436-1496) casou-se com uma filha da boa nobrezae sentou-se no Parlamento.

Na quarta geração, representada essencialmente pelos setefilhos de John, o essencial fora conseguido e o destino familiarse diversifica. A nobreza é completamente atingida, já que doismeninos são armados cavaleiros; eles freqüentavam a corte e ge-riam suas propriedades; eram também militares que participa-ram dos combates da guerra das Duas Rosas, expondo-se, aliás,com isso - embora sem perdas excessivas - aos acasos da guer-ra civil. Um único filho permanece jurista na tradição de seu paie dê seu avô. Outros dois filhos morrem jovens, sendo que umdeles se destinava à universidade e à Igreja. Quanto às filhas, seuma se casou com um simples administrador agrícola, aliás bemabastado, a outra desposou o herdeiro de uma bela linhagem dejuristas comparáveis aos próprios Paston. Finalmente, no séculoXVI, os Paston, abandonando definitivamente o direito e seus es-critórios, tornaram-se importantes senhores de terra do Norfolk;eles obtiveram, no sçculo XVII, o título das condes de Year-mouth.

Muitos fatores evidentemente se combinaram para assegu-rar esse exemplo vitorioso e evidentemente tais homens (assimcomo suas esposas que geriam os bens da família quando, seus

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maridos estavam em missão ou sentavam-se no Parlamento) MO;.»'careciam nem de caráter nem de inteligência. Mas não é menOt, ievidente que são suas competências como juristas e, portanto, 'seus estudos de direito que asseguraram para duas-, por vezes.três gerações a continuidade de sua ascensão social. '

A história dos Paston é notável também sobre um outroponto. Não é só" ó exercício dos ofícios reais que explica o su-cesso deles, ainda que Londres e a corte os atraíssem como ímãs.É verdade que eles haviam vivido" no tempo da guerra das DuasRosas, quer dizer, em uma época de crise da monarquia inglesa;mas, sem dúvida, não era somente por isso que eles substituíamo encargo do príncipe pelo ofício deste ou daquele grande se-nhor. Sua fidelidade a tais potentados locais não era, aliás, sem-pre infalível; mas é certo que eles não imaginavam ter êxito, tan-to na esfera do governo central quanto naquelas do seu Norfolknatal, sem se apegarem a uma clientela ou uma clã aristocrático.

A história da família Paston não vem, de modo algum,,con-tradizer os ensinamentos das. pesquisas mais gerais que podemser conduzidas sobre a origem social dos doutores, dos preladosou dos homens de toga no final da Idade Média. Quer se tratas-se dos homens de lei lioneses estudados por René Fédou ou doscônegos de Laon, estudados por Hélène Millet, pode-se observarigualmente a importância, dos processos de ascensão social - agrande maioria desses homens era dê origem obscura ou pelomenos modesta - e o papel decisivo, e geralmente combinado,das relações de clientela bu de família com os diplomas. EmLaon, a diminuição dos cônegos proveniente da velha nobreza(de 26% para 5% entre o início do século XTV e p início do sécu-lo XV) é exatamente simétrica à ascensão dos graduados (cujaproporção passa de 43% para 86% de cônegos no mesmo espa-ço de tempo)10. •

Esses diversos grupos permanecem sempre abertos, até fi-nal do século XV, com uma certa porcentagem de recém-chega-dos de origem relativamente,modesta, mas titulares degraus

10 -; R. Fédou. Lês homrnes de loi lyonnats à lafln du M.O-yen Age: étude sur lês origines de Ia classe de robé. Lyon:1964, e H. Millet, Lês chanoines du chaptire cathédral deLaon (1272-1412). [Coll. De l'École Française de Rotnc,56]; Roma: 1982, spéc. p. 71-100.'

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universitários. Contudo, esse gênerç» de ascensão social pratica-mente não beneficiava; indivíduos isolados e saídos, de algumamaneira, do nada. Eles sempre fracassavam, por pretender aásu-mir um lugar de honra entre os homens de saber e, sobretudofora dp clero propriamente dito, poder teunir determinadascondições preliminares.

A filiação a uma clientela ou, no mínimo, a proximidadeem relação a um conjunto effcaz de relações e de poderes erauma. O acesso a um mínimo de recursos financeiros eraflutra.Quando aqueles da família faltavam e o interessado não era - ouainda não era - bolsista em um colégio ou titular de uni benefí-cio eclesiástico ou de um trabalho remunerado, ele podia espe-rar precisamente os subsídios de um protetor ou de um mecç-nas. Os próprios reis da França e da Inglaterra, desde o séculoXIII, não se recusavam a fazer com que os dons de quaisquer es-tudantes fossem desenvolvidos. Mas, tradicionalmente, eram, deum lado, as pessoas da Igreja e, de outro, os grandes funcioná-rios dos príncipes, uns e outros geralmente eles próprios gra^duados, que se mostravam os mais generosos para tomar como

fencargo o sustento de alguns jovens protegidos".De qualquer maneira, era absolutamente necessário um

pecúlio de base para pagar os estudos universitários, sem osquais o acesso aos estratos superiores do mundo dos homensde saber era quase impossível. Isso explica que aqui como alhu-res a ascensão social ocorria freqüentemente em várias etapas.Em geral - nós já o indicamos no capítulo precedente - a pri-meira era representada pelo notariato. Era o caso para 17% pelomenos de novas famílias de homens de leis que aparecem emFlorença desde 1350lze, no caso de Lyon, sem dar as cifras, R.Fédou calcula que os juristas do final da Idade Média eram"ma-joritariamente de obscura extração notarial - e de origem es-trangeira [à cidade em si]'-. Se acreditarmos hás árvores genea-lógicas que foram reconstituídas por diversas famílias, o ritmo

11 - Ensaio recente de RTrio>"Financing of;University Stu-dents iri the Middle Ages: a new orientation?. ln:ftístory ofuniversitíes,4 (1984),p, 1-24.12-1, Martines, Lawyers and statecràft in, ReinassanceFlarence. Princeton: 1968, p. 69.

de ascensão não era sempre o mesmo: seriam necessáriasgerações para que os Garbot e os Palmier passassem do notaria-to para o doutorado em leis e para as funções judiciárias; umaúnica seria suficiente, em compensação, para os Aurillac e osBullioud. Nem sempre, porém,, a vitória acontecia com horamarcada, inclusive no seio de uma mesma família. O exemplodos Bellièvre, outro nome bastante conhecido dos togados deLyon, é significativo: dos dois filhos de Antoine Bellièvre, Hugo-nin proporcionou uma longa linhagem de notários. BaAhélemytomou a via dos estudos, o que possibilitou a spu filho e a seuneto sentarem-se no tribunal do arcebispadode Lyon e, depois,no Parlamento de Grenoble, em que Claude e posteriormenteJean Bellièvre, serão, alternadamente, os primeiros presidentesantes que - suprema vitória - Pomponne Bellièvre, último netode Barthèlemy se tornasse chanceler da França no início do sé-culo XVÍI". „

Em consonância com a citação abaixo de R. Fédou, nãopodemos separar completamente mobilidade social e mobilida-de geográfica. Os homens de saber, sobretudo aqueles de umdeterminado nível, Concentraram-se naturalmente nas cidadesque tinham funções de capitais, nacionais ou regionais^ fosse noplano político ou administrativo, fosse no plano religioso oucultural. Inversamente, colocando-se à parte os mais modestos- curas, notários, barbeiros, ou meirinhos -, eles eram raros^quando não eram totalmente ausentes, nas simples aldeias ouvilarejos.

A viagem "para os estudos* marcava freqüentemente a pri-meira fase dessa mobilidade. Alguns permaneciam, aliás, na pró-pria cidade ou. iam estudar e faziam carreira e descendência.Esse foi, por exemplo, o caso dcrlimosino Hélie Brolhet, bem co-nhecido graças a uma sorte de cartulário privado conservadanos arquivos departamentais da Haute-Garonne (E 12005-53).Vindo estudar em Toulouse com uma bolsa no colégio de Péri-gord, ele adquiriu seu doutorado em leis e tornou-se, na primei-ra metade do século XV, um dos principais advogados da cida-de; seus dois filhos, por sua vez, estudaram direito em Toulouse.

13 - R. Fédou, lês hommes rfe loi lyonnais à laftn duMo-yen Age,oç. cit.,p. 153-178 e 416.

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Tratava-se ali apenas de uma migração bastante banal, aquelaque, em qualquer época, faz descerem para grandes cidades doLangucdoc as crianças talentosas das terras pobres do sul do

' Maciço central. Mais espetacular foi, certamente, a aventura dopomerano Jacques Rothschild chamado de"Angeli"(1390-l455),vindo da distante diocesç de Cammin para estudar medicina emMontpellier. Ele conseguiu se instalar bem ali, tornou-se profes-sor, depois, durante mais de vinte anos, chanceler da universida-de é, casando-se, criou por descendência uma bela linhagem dejuristas e de médicos de Montpellier14. Poder-se-ia facilmentemultiplicar os exemplos.

Outros emigravam para assumir um cargo. Mesmo os sim-ples mestres de escolas de gramática vinham habitualmente doexterior, e, por vezes, de muito longe; em Aix-en-Provence, ne^nhum daqueles que eram conhecidos no fim da Idade Médiaeram originários da cidade, e nem mesmo da diocese'5. É neces-sário acrescentar a isso que, em certos cargos, tanto laicos quan-to eclesiásticos, mudanças rápidas, sancionando, de acordo como caso, promoções ou desgraças, eram a regra: os papas de Avig-non transferiam incessantemente seus bispos de um lugar paraoutro e o rei da Franca mudava, quase tão rapidamente, seus ma-gistrados e seus senescais. Acredita-se que muita gente de sabertenha freqüentemente Surgido como recém-chegados nas. cida-des, mal integrados é alheios às tradicionais solidariedades dasvelhas famílias de notáveis. Estava lá um dos principais agravosque, ainda em meados do século, XV, no curso do processo aci-ma citado, os mercadores de Montpellier asseveravam contra osjuristas e os notários da cidade, por lhes recusarem o acesso aoconsulado16.' ' -' • '

14 - B. Delmas,"Le chancelier Jacques Angeli O390-1455,)restaurateur de 1'université de médecine de Montpellier audébut du XV' siècle". Injetes du l IO* Congrès nat. dêsSoe. savantes: Sectíon d'bistoire dês scienèes et dês tecb-niques, tomo II, Histaire de l'Écote médicale de Montpel-lier. Paris: 1985, p. 39-54,15 -J. Pourrière.ies commencements de l'école de gram-maire d'Aix-en-Pravence, 1-378-1413, d'après dês docu-ments ínéífôte.Aix-en-Povence: 1970, p. 28.\6 -Vide suprà,p. 154.

3. RECONVERSÃO.ADAPTACÃO.REPRODUÇÃO

Se, de fato, o mundo dos homens de saber, que era, no fi-nal das contas, bastante diferente de um país para outro, foi, atéo final da Idade Média, um dos meios mais flexíveis e mais aber-tos da sociedade medieval, ele, entretanto, teve tendência, comotodos os grupos constitutivos das elites de seu tempo, a se fe-char sobre si próprio e a tornar-se uma casta hereditária. Essatendência - apesar de tudo, como veremos, sempre imperfeita -resultou nos séculos XTV e aforttori no XV, na constituição deverdadeiras dinastias de médicos e, mais ainda, de juristas que sereforçavam aliando-se entre si mesmas por múltiplas relações decasamentos, o que se pode depreender em inúmeras gerações.Ao tempo dos colegas, sucedeu-se aquele dos herdeiros, o espí-rito de família vinha driblar' o espírito de corporação.

Esse fenômeno, até certo ponto, banal, de "reprodução",não é, contudo, o aspecto mais interessante da WStória socialdos letrados medievais. Na medida em que esses homens, comodissemos acima, foram talhados, no final da Idade Média, paraum lugar cada vez mais importante no seio dos estratos supe*-riores da sociedade, podemos nos perguntar se, pelo menos emparte, não teria sido tanto pela ascensão dos homens novoscomo pela reconversão das elites tradicionais, preocupadas emperpetuar sua antiga primazia apesar das mutações econômi-cas, políticas e culturais, que esse novo grupo se constituiu.

As investigações prosopográficas fazem com que efetiva-mente apareçam dois tipos de recrutamento por "deslizamen-to","horizontal ou, ao menos, oblíquo, mais do que por ascen-são, v

O primeiro caso é aquele dos homens de saber oriundosdo "mercado", no amplo sentido do termo. Esse clássico proces-so, descrito com bastante freqüência, é geralmente explicadopelo próprio desejo de os mercadores assegurarem a seus fi-lhos, sobretudo na economia retraída e incerta do final da Ida-de Média, senão um nível de fortuna mais elevado, pelo menosuma situação mais estável e honrada, eventualmente ela mesmauma etapa em direção à nobilitação. Será fácil fornecer osexemplos; vejamos apenas ura, aquele dos LeViste.Tais juristas

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que,* no final do século XV, eram a mais rica família de Lyon, es-' pelando promover-se em Paris, descendiam de Barthélemy LêViste, mercador de tecidos morto por volta de 134017.

Mas além da passagem do comércio para os estudos e paraos gabinetes não ser, na Idade Média, tão freqüente assim comopor vezes se tem dito, os exemplos observados sugerem, elespróprios, algumas ponderações na descrição do processo.

Primeiramente, a passagem do comércio propriamentedito para os estudos foi geralmente precedida por um estágiointermediário, aquele dos encargos e ofícios de finanças quepossibilitavam já se aproximar, senão do mundo do saber, emtodo caso do serviço do príncipe e do poder político. Citemoso caso exemplar dos Ysalgúier de Toulouse analisado porPhilippe Wolff18. Cambistas e mercadores do final do séculoXIII, os Ysalgúier tornar-se-iam conselheiros do senescal e rece-bedores de impostos reais no início do século XIV, o que possi-bilita a eles obter as cartas de nobilitação. Desde então, serápossível, na'segunda metade do século, eles> chegarem à univer-sidade; veremos aparecerem os Ysalgúier graduados em direito.Servindo o rei, eles serviam também sua cidade e acumulavamos cargos de capitães. Infelizmente, os Ysalgúier abandonarammuito rapidamente esse caminho. Desde o início do século XV,a aventura das armas atrai alguns deles nos últimos sobressaltosda guerra dos Cem Anos, enquanto outros preferem usufruir dafidalguia de senhores de feudos, que, mal geridos, os conduzi-riam à falência a partir da segunda metade do século XV

Segunda observação indispensável, o abandono do comér-cio para as carreiras administrativas ou eclesiásticas não foi umfenômeno generalizado, nem no nível global - muitas famíliaspermanecem fiéis a sua antiga vocação -, nem mesmo no quediz respeito às famílias envolvidas. Se os Lê Viste, já citados, pa-recem ter abandonado, de vez, qualquer atividade comercial

l

para se especializarem nos estudos ê nos ofiçios, nós vemos ha-bitualmente coabitareni em outras famílias, durante várias gera-'ções, seja em linhagens colaterais, seja no seio de cada Irman-dade, homens de lei e homens de negócios. As genealogias dealgumas importantes famílias provinciais reconstituídas por ,Nõel Coulet ilustram bem esse ponto19: em Aix-en-Provence no .século XV, de acordo com os anos, 20 a 40% dos juristas casa-vam-se com as filhas do mercadores e um quarto de seus pró-prios filhos tornava-se igualmente mercador.

Não se pode, porém, generalizar os casos como aquele dePoitiers, no^século XV, cidade onde triunfem as funções religio-sas, universitárias e administrativas em detrimento de uma ativi-dade econômica enfraquecida, que permitiram aos homens delei não apenas Assumir de maneiira quase exclusiva o governomunicipal como também eliminar, pouco a pouco, os grandesmercadores da oligarquia urbana20.

Outro fenômeno de deslize, no próprio seio das elites so-ciais, das posições antigas sobre as novas posições oferecidaspelos estudos e as competências intelectuais, é mais delicadopara se descrever. Trata-se daquele produzido no próprio seioda classe da nobreza. Mas aqui, a própria complexidade da no-ção de nobreza torna a análise difícil.

As coisas são relativamente simples quando se pode mosrtrar que tal homem de saber era herdeiro, de uma antiga linha-gem "feudal", de incontestável nobreza e de passado imemorial;o célebre teólogo GUles de Rome (1247-1316) pertencia à maisilustre família da aristocracia romana, a dos Colonna, enquantoos condes de Aquino, dos quais provinha São Tomás, eram, noreino da Sicflia, de uma nobreza também venerável. Mas tais ca-sos são relativamente raros e, definitivamente, pouco significa-tivos, por se restringirem apenas a alguns caçulas isolados e, dê

17 - R. Fédou, Ifs hommes de loi Jyonnais à lafindu mo-yenAge,ap. cit., p. 335-350.18 - Ph. Wolff, "Une famffle qu XIIP au XVT siècle: lês Yjsal-guier de Toulouse", Mélanges d'histoire socíale, l (Í942),p. 7-31 (reimpressão em Ph. Wolff, Regardssur te Midi me-rftewzí.Toulpuse: 1978, p. 233-257).

238

19 - N. Coulet, Lês juristes dans lês villes de Ia Provençe mé-diévale. Iií:£es socíétés urbaines en France meridionais eten péninsufe Ibérique au Moyen Age. Paris: 1991.p. 311-327.20 - R.Favreau.Z» v iüe de Poitiers à fafin dtt Moyen Age:une capitule régionale. Poitiers: 1978, tomo U,p. 487-541.

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qualquer modo, destinados, de acordo com um costume ances-tral, a uma carreira eclesiástica.

É, sem dúvida, mais apropriado procurar, entre; os homensde saber, aqueles que se agregaram a "velhas famílias", como fezLauro Martines em seu livro sobre os homens de lei florentinosdo final da Idade média, onde ele arbitrariamente escolheu adata de 1350 como linha demarcatória entre "antigas" e "novas"Jamílias, as primeiras sendo atestadas desde antes dessa data, assegundas - que se dividem elas próprias em famílias autóctonese famílias provenientes do contado - aparecem apenas poste-riormente21. Esse critério permitiu-lhe avaliar em 40% o percen-tual dos Juristas florentinos de origem antiga, ou até nobre.

Mas essa cifra e a próprio método de L. Martines têm ape-nas um valor relativo já que concentram, sobre uma única data,uma evolução, na realidade, progressiva e contínua.\De fato,sempre houve, entre os homens de saber, uma certa proporçãode "nobres". Alguns se diziam tais porque o próprio exercíciode seu ofício lhes havia autorizado a isso, quer porque tivessemsido oficialmente nobilitados, quer porque eles houvessem sebeneficiado de um reconhecimento social espontâneo ligado àprópria dignidade de sua função22. Outros eram nobres^ porqueseus ancestrais o' eram desde mais ou menos tempo. Existiam,efetivamente, muitos meios na Idade-Média de acedçr à funçãode nobreza ou, em todo caso, de ser reconhecido nobre; às ve-lhas linhagens castelãs ou1 cavalheirescas juntavam-se àquelas

21 -, L. Martines, Lawyers and statecçaft in ReinassanceFlorence:, op. cit., p. 62-78 e 482-505.22 - Pelo menos na França, originalmente, as cartas de no-bilitação privilegiavam, muito especialmente, funcionáriosreais \J. Rogozinski^Ennoblement by the cròwh and socialestratification in France (1285-1322>"."In: Order and inno-vattan in tbeMiddte Ages: essays in bonnor çfjaseph R.Sattyer.^. C. Jordan, B. McNab,X F. Ruiz eds. Princeton:1976, p. 273-291 e 500-515]; em seguida, um simples eno-brecimento "de fato" (pêlo prestígio social, casamentos,compras de terras,etc.) seria suficiente,para os mais impor-tantes, assim como os conselheiros do Parlamento; mas, ossimples notórios e secretários do rei permanecem sempremuito esperançosos de carta» de nobilitação.

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para quem a aquisição de domínios ou o serviço de umpé haviam permitido, de direito ou de fato, de se dizerem ̂ IK^bres, de adotarem o modo de vida da nobreza e de reivindica-rem seus privilégios. Para algumas regiões,especialmente da Eu-ropa mediterrânica, nós colocamos, aliás, no mesmo plano ospatriciados urbanos - entendamos por isso os estratos mais an-tigos, os mais estáveis, os mais próximos pelo gênero de vidados meios cavalheirescos, da população citadina, v

Dessas linhagens aristocráticas ou patrícias, algumas per*,manecem obstinadamente fiéis à sua antiga vocação guerreiraou terratenente. Mas, em outras, o acesso ao mundo do saberpela prática dos estudos acabou por tomar lugar, mais ou me-nos rapidamente; e uma vez Contraído o hábito, raramente elese perdia. Desde então, a continuidade no tipo de educação ede cultura facilmente alterou-se em função dos gêneros de caçyreiras pretendidas. Fosse ou não a passagem pelo diploma uni*versitário e um cargo de judicatura a primeira etapa, aquilo quenós chamaremos, em breve, nobreza de toga constituir-se-á, as-sim, em proveito dos detentores de competências intelectuaissuperiores, definidos por essa própria competência, bem maisdo que pela antigüidade ou pela novidade de sua nobreza.

Falar simplesmente da ascensão social dos homens novosou da reconversão da antigas famílias "feudais" seria, portanto,simplificar excessivamente. Trata-se, de fato, da progressiva eglobal adaptação das elites sociais às mutações da cultura do Es-tado pela conjunção da antiga idéia de nobreza e da valorizaçãodas1 novas formas, civis ou eruditas de serviço do príncipe ou daIgreja.

A partir de então, as grande famílias de toga tinham natu-ralmente tendência para se perpetuarem em suas posições dorminantes, embora a afirmação desse grupo jamais tenha repou-sado na Idade Média sobre a estrita reprodução biológica Airídaque uni pouco mais estreitas, as portas sempre se mantiveramabertas para os homens novos, que tardiamente chegavam aõi.estratos superiores do mundo do saber, cada vez mais ávidos denele se integrarem. O bloqueio das carreiras, a constituição emestreitas castas hereditárias do mundo das pessoas de saber eseu corolário geralmente denunciado, a saber, o fechamento só1

ciai das universidades do século XV são um mito historiográftco,que tende a ser desmentido pelas pesquisas recentes. ;

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A análise esboçada aqui desses fenômenos sociais bastantecomplexos repousa particularmente sobre o caso exemplar dehomens do Parlamento de Paris, bem estudado por Françoise Au-trand25, a qual não parece ter sido refutada por pesquisas condu-zidas sobre outros grupos do mesmo gênero que haviam existi-do nos últimos séculos da Idade Média nos principais Estadoseuropeus. Nós, por exemplo, sublinhamos a escalada significati- •vá dó título de cavalheiro (gentlemari) para o pessoal laico dosprincipais serviços administrativos da coroa inglesa no tempodos reis Henrique V (1413-1422) e Henrique VI (1422-1471)24:

Contudo, se os processos eram aqui e ali comparáveis,nem sua cronologia, nem o lugar respectivo dos recém-chega-dos e dos filhos das antigas famílias, provenientes de linhagensjá sólidas de cavaleiros e de doutores, não têm sido os mesmospor toda a parte. Eles variaram de acordo com o nível, a época,,e o país considerados. Nas zonas fortemente urbanizadas ondeas redes escolares eram antigas, por exemplo, nos países medi-terrânicos, belas, possibilidades de carreira foram precocemen-te abertas para homens que não pertenciam à antiga nobreza -mesmo se, por acaso, nesses mesmos países, a prática dos estu-dos se tenha expandido precocemente na nobreza cavalheires-ca, como demonstram todos os estudos sobre os juristas italia-nos e da Provenee dos séculos XII e'XIIP5.

Em compensação, nos países do Império ou até na Euro-pa Central, com estruturas mais arcaicas, onde a antiga aristo-

23 - F. Autran, Naíssancé d'un grana corps de VÉtat. Lêsgens du Parlement de Paris; op. cit., ver, em particular, aterceira parte "Lê Parlement et Ia noblesse", p. 163-261.24 - R. L. Storey, "Gentleman-Bureucrats". In: Profession,vocation and culture (n later medieval Englahd: essaysdedicated to the memory ofA: R. Myers. Ed. C. H. Clough(Liverpool: 1982, p. 90-129.•25 -Vide, por exemplo, A. Goüron,"Enseignement du droit,légistes et canonistes dans lê midi de Ia France à Ia fin duXÜT et au début du XlVe siècle". In: Recueil de mémoiresat travaux publiés par Ia Soe. d'histoire du droit et dêsinstituttpns dês àncienspays de droit écrit, 5 (J966), p. l-<33.

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cracia permanece senhora do acesso às posições politicamente'importantes e até à cultura erudita, já que esta continua, cm $l,ligada às viagens de estudos longos e custosos, o lugar dos ho-mens novos entre as pessoas de saber, de resto, menos numero-sas que em outros lugares, fica, durante muito tempo, restrito.Existe apenas 5% de nobres entre os estudantes das universida-des do Midi da França por volta de 1400, enquanto, no mesmomomento, havia 18% entre os membros da "nação germânica"da universidade de Bolonha e mais ainda (25%) entre os gradua-dos identificados com a diocese de Liège26.

Trata-se aqui apenas de estudantes, todavia de debutantesdesiguais nas ambições e nas vitorias. Mas o mundo dos ho-mens de saber era, como vimos, fortemente hierarquizado. Equanto mais nos aproximamos das posições dominantes, mais á-proporção daqueles que se diziam nobres - da antiga ou danova nobreza - aumentava. No século XV, era praticamente admitido na França que todos os conselheiros do Parlamento,qualquer que fosse sua origem, eram nobres, as tensões, de res-to, naturalmente vivas no próprio seio'do grupo de acordo coma maior ou menor antigüidade da nobreza de cada um. Pelo con-trário, quando se descendia aos níveis hiais modestos, os nobresse faziam raros, tanto porque os filhos de antigas linhagens des-denhavam geralmente tais posições pouquíssimo honradas aseus olhos quanto porque os titulares de taís cargos não po-diam tirar deles um suficiente prestígio para fundamentar suaspróprias pretensões à nobreza.

Somos, portanto, conduzidos, uma ve2 mais, à constataçãode que a'posição social dos homens de saber decorria menosde sua origem do c}ue do valor reconhecido a sua competênciae a seu papel político. Era esse complexo jogo de imagens e derepresentações que autorizava as promoções das quais algunsse beneficiavam, sempre facilitando para os outros mutações e

26 - Cifras extraídas de J. Paquet, Lês matricules universi-taires (Typologie dês sources du Moyep Age occidental,65),1urnhout: 1992, p. 131 e Chr. Renardy, Lê monde dêsmaitres untversitaires du diocese de Liège (1140-1350):recherche sur as composition et sés activités. Paris: 1979,p. 161.

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r adaptações. É, portanto, logicamente ao "imaginário social" daspessoas de saber do final da Idade Média que nós consagrare-mos o último capítulo deste Jivro.

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capítulo VIII

AMBIÇÕES E REPRESENTAÇÕES

Apesar de suas competências intelectuais, os homens desaber das sociedades me_dievais praticamente não estavam me-lhor preparados do que o resto de seus contemporâneos parapensar a novidade, compreendendo-se aqui sua própria emerrgência. É, portanto, naturalmente eni função das taxinomias tra-dicionais que eles procuraram legitimar sua posição social e foiapenas progressivamente e, ppr vezes, desajeitadamente, queeles procuraram atribuir valor e reconhecimento àquilo queconstituía sua especificidade coletiva.

Se há, entretanto, um ponto sobre o qual eles praticamen-te jamais estiveram em dúvida, é a convicção de que sua quali-ficação os situava, dê qualquer maneira, nas ordens superiorese privilegiadas da sociedade. Foi; então, ao lado destas - clero enobreza - que eles, desde o princípio, procuraram referências emodelos que lhes possibilitassem justificar suas ambições e de-finir os princípios de seu modo de vida.

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I. CLERO

A marca clerical permanece forte sobre a maior parte doshomens de saber até finais da Idade Média - e para além dela.A tendência global foi, efetivamente, do século XII ao século XV,'a laicização. Contudo, esse processo seguiu, de acordo coffl ascategorias dos indivíduos e dos países considerados, ritmosbem diferentes.

Desde os anos 1150, os primeiros doutores em direito ci-vil de Bolonha deveriam aparecer, aos-olhos de seus contempo-râneos, como laicos. Eles eram casados e pais de famílias, viviamdo fruto de seus trabalhos (ensino e consultoria jurídica) e aprópria desconfiança com que a Igreja tratava sua disciplina, aomesmo tempo lucrativa, profana e bastante favorável às preten-sões imperiais, poderia apenas precipitar a separação entre omundo dos clérigos e esses primeiros «senhores em leis», cujaposição não cessava, além do mais, de se afirmar no seio das eli-tes urbanas. Pelo menos nos países mediterrânicos, os médicosseguiram desde cedo os jurisías no caminho dessa precoce lai-cização. v

Mas não foi assim por toda a parte. Nos países da metadenorte da Europa, inúmeros juristas, inclusive civilistas, permane-ceram clérigos ainda durante longo tempo, o que os permitia,além do mais, realizarem com freqüência^ belas carreiras ecle-siásticas, apesar do caráter teoricamente profano, de sua espe-cialidade Em Paris, apenas em 1452, os professores de medici-na da universidade obtiveram o direito de se casar,

De qualquer modo, a parcela dos homens da Igreja entreas pessoas de saber foi vigorosa, em todos os lugares, até o finalda Idade Média, mesmo nas sociedades meridionais, que foramlaicizadas mais cedo. Se juristas e médicos tinham aqui a maisalta posição social, não é menos verdade que, mesmo nas uni-versidades dessas regiões, eram as faculdades de direito canôni-co que conservavam os efetivos mais numerosos, naturalmente,com uma grande maioria de clérigos e religiosos tanto-entre osestudantes quanto entre os professores. Em Toulouse, Montpel-lier e Avignon, os estudantes de direito canônico representavamainda, no final do século XIV, entre 75% e 57% dos efetivos; seadicionarmos a isso que entre 16% e 29%. desses estudantes

eram cônegos regulares ou monges - sem falar dos estudanfeá,seculares já titulares do sacerdócio - é que os professores per-'tenciam também freqüentemente ap clero regular, nota-se queaté essas universidades meridionais guardavam, através de suasfaculdades de direito canônico, uma forte coloração clerical eque elas deveriam, portanto, aparecer aos contemporâneos,como povoadas por clérigos e religiosos, destinados prioritaria-mente ao serviço xla Igreja1.

Isto não era, aliás, o único ponto em, discussão e recorde-^se que até o final da Idade Média e mesmo depois, inúmeros ofí-cios públicos, especialmente entre os mais elevados (conselhodo rei, coirte soberana, Câmara de-Contas, Éxchequer, etc.) con-tinuaram a ser igualmente confiados aos, homens de Igreja.Taisempregos não eram, certamente, percebidos, à época, como in-compatíveis com sua vocação e com seu estado religioso. Pode-se, contudo, admitir que, sempre servindo lealmente ao prínci-pe e ao Estado, tais homens de Igreja mantiveram em seus'ofí-cios - a seus próprios olhos, como aos olhos de seus contem*porâneos - uma certa coloração eclesiástica.

Poder-se-ia talvez objetar que, nas sociedades do final da ~Idade Média, a qualidade do clérigo não se limitava aos titularesdas ordens maiores obrigadas ao celibato (padres, diáconos esub-diácónos) é aos religiosos que haviam formulado votos per-pétuos. Ela estendia-se, e ainda de maneira quase sempre majo-ritária, a outras categorias de indivíduos, titulares de ordens me-nores ou mesmo simplesmente tonsurados que, sempre benefi-ciando-se de privilégios judiciários e fiscais do clero (pelo me-nos, teoricamente, porque as justiças laicas eram cada vez me-nos condescendentes), suportando apenas parcialmente suasrestrições, já que, não-se limitando a alguma obrigação pastoralou sacramentar, eles podiam, com facilidade, desfrutar dos pro-ventos eclesiásticos sem que isso atingisse seus benefícios, e

i - J. Verger, "Moines, chanoincs et collèges réguliers danslês unlversités du Midi au Moyen Age r. In: Naissance etfanctíonnement dês réseaux monastiques et canonimix(CERCrOR,Travaux et rechercbes, l),Saínt-Étienne: 1991, p.511-549. - ,

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eram até autorizados a se casar, com a única reserva de renun-ciar então aos ditos benefícios.

A nossos olhos, essa franja freqüentemente pletórica dapopulação clerical - aproximadamente i 5% da população mas-culina de uma cidade como Reims no início do século XIV2 -não parecia possuir um caráter religioso muito acentuado. Masdeve-se avaliar o que representava a "clerezia'' aos olhos dasmentalidades e das práticas sociais daquele tempo.

Em uma sociedade hierarquizada por ordens, os privilé-gios clericais, com seu duplo valor simbólico e real, .contri-buíam largamente para definir o estatuto daqueles que podiamse beneficiar deles. As maneiras de ser que todo "clérigo" deve-ria adotar para fazer reconhecer [seu estado (palavras graves eatitudes nobres, tonsura, vestimentas longas e escuras, recusado porte de armas) produziam um efeito quase imediato de dis-tinção social.

• Mas a "clerezia" era, fundamentalmente, um valor cultural.Não idealizemos, é verdade. Para retomar o exemplo dos já cita-dos habitantes de Reims, Pierre Desportes constatou que inú-meros "clérigos casados" da cidade e das redondezas eram, ver-dadeiramente, iletrados e que até mesmo os almotacés da cortetemporal do arcebispo, clérigos casados provenientes de boasfamílias burguesas, se eles sabiam ler o francês e conheciam odireito consuetudináriô, ignoravam o latim e rogavam para queo arcebispo e para que os cônegos não utilizassem essa línguanas formalidades, de maneira a não colocá-los em alguma difi-culdade.

Permanece que, pelo menos em teoria, e até com bastan-te freqüência, na práticaj "a clerezia" implicava aquilo que, paraas outras categorias da população, era apenas um procedimen-to facultativo, talvez até um divertimento gratuito, a saber,/

corno se viu no primeiro capítulo deste livro, o domínio da ca»crita e do latim, o conhecimento das disciplinas fundamental!da cultura erudita, a posse de livros. Ora, iodos esses sabcrcsconservavam eles próprios uma certa marca religiosa e eramsubmetidos a uma exigência de ortodoxia mediante a qual omagistério eclesiástico permanecia como único juiz. É verdadeque em algumas especialidades, como direito civil e medicina,essa exigência se satisfazia aparentemente sob o baixo custoda invocação ritual da benevolência divina e das tradicionaisvirtudes cristãs. Porém, mais profundamente, esses saberescontinuavam a se inscrever em um quadro que, em seu conjun-to, era reconhecido e validado pela Igreja; eles eram ensinadosnas escolas e nas universidades fundadas ou confirmadas pela

, autoridade eclesiástica; eles exaltavam uma ordem cristã dacultura. É significativo que tenham continuado a ser qualifica-dos de "clérigos", pela referência a suas práticas intelectuais es-pecíficas, mesmo homens de saber que levavam, além do mais,um gênero de vida completamente laico. Assim, na França fala-va-se tanto dos "clérigos do rei", quer dtóer, escribas e notadosda Canchelaria ou da Câmara de Contas, quanto dos "conselhei-ros clérigos" que, nas cidades, ocupavam as funções de assesso-res e de juristas (^clérigos e sábios em direitp", como dizia-, porvolta de 1450, um texto lionês) remunerados pelas municipali-dades*. . , . ' • . •

2. NOBREZA

Se "clerezia" permanecia o estatuto geralmente reivindica-do pela-maioria das pessoas cultas do final da Idade Média, "no-breza" definia um horizonte que não era, de todo, inacessível,pelo menos para aqueles mais dotados ou os mais ambiciosos •dentre eles.

2 -Vide P.Desportes,"L'enseignement à Reims auxXHP etXTV* siècles". In: lyiseignement et vie intettectuette (IX*-XVP siècles). (Actes du 95° Congrès nat. dês Soe. ssvantes,Reims: 1970- Philologie et histoire jusqu'à 1610); tomo I.Paris: 1975, p. 107-122, espec. p. 120-121.

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3 - A. Rigaudière.Tessòr dês conseillers juridiques dês vil-les dans Ia France du bas Mcsyén.Ag£".ln:RevÍ4ebiiftoriquede droitfíançais et étranger, 62 (1984), p. 361-390 (reim-presso por A. Rigaudière, Gouvemer Ia vtíle au MoyenAge, 1993, p. 215-251).

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O atrativo da referência nobiliária era tanto maior para oshomens de saber quanto os nobres eram, como vimos, numero-sos em suas fileiras. Nobres de velha estirpe, "reconvertidos"para o ensino ou para os ofícios, nobilitados pelas cartas reaisou pelo simples efeito do reconhecimento social, nobres de úl-tima hora, enfim; filhos ou netos de enobrecidos, embriões deuma nobreza de toga longa, na qual a fidelidade à prática dos es-tudos e dos cargos civis não impedia manter orgulhosamente o"estado nobre" e de arvorar títulos e brasões.

É inútil retomar aqui esses diversos processos sociais, queforam analisados no capítulo precedente deste livro. Deve-se, aocontrário, recordar que esses nobres homens de saber jamais re-presentaram mais do que uma minoria no conjunto do grupo,concentrados em um estreito estrato superior, aquele dos prela-dos, dos conselheiros do príncipe, dos juizes e advogados dascortes soberanas. Foi apenas nessa elite restrita que eles foramverdadeiramente numerosos, inclusive, sobretudo no século XVnitidamente majoritários.

Nem a fascinação pelo modelo nobiliárquico entre as pes-soas de saber, nem mesmo, aliás, os processos de nobilitação quebeneficiaram alguns dentre eles, não se explicam, pois, exclusi-vamente pela presença nesse meio, a não ser em sua cúpula, de,um determiriado número de nobres de incontestável - aindaque mais ou menos antiga - nobreza. Aquilo que estava em jogoera, ao que me parece, a noção, em si, de nobreza como paradig-ma da superioridade social e a pressão criada pela própria dinâ-mica de um grupo em pleno desenvolvimento.

A aspiração coletiva dos homens de saber à nobreza (ain-da que tal aspiração não se concretizasse efetivamente paraalém de um pequeno número dentre eles) exprimia-se de duasmaneiras; evidentemente complementares: reverência e aproxi-mação, por um lado, assimilação, por outro. Manifestava-se cadavez mais ostensivamente seu respeito pela nobreza t»em comose afirmava, por outro lado, a nobreza do saber e daqueles queeram seus portadores. Esse duplo e sutil mecanismo aparecemais ou menos claramente atuante em todas as instituições as-sumidas pelos homens de saber: capítulos religiosos, tribunais,chancelarias, etc. Permitimo-nos daí em conduzir a análise, to-

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mando o exemplo dás universidades, onde ele se exercia, de m*-'neira até certo ponto nativa, como elemento constitutivo da pró- 'pria formação das elites intelectuais da sociedade medieval4.

Os estatutos universitários dos séculos XÍV e XV mostramque diversos privilégios e vantagens eram reservados aos estu-dantes nobres - com a condição de que eles pudesseni provarsua nobreza fosse pela produção de uma genealpgiá, fosse, demaneira bastante simples, tomando para si o estado nobre ( ves-timentas de forro, número suficiente de servidores, etc.). Essesprivilégios eram, inicialmente, de ordem honorífica, o que signi-fica que eles permitiam aos estudantes nobres sentar-se nas pri-meiras fileiras das salas de aula e de desfilarem ao lado dos gra-duados, licenciados e bacharéis, nas procissões da universidade.Eles garantiam também vantagens mais substanciais a essesmesmos estudantes nobres: direito de sentar-se ao lado dos gra-duados nos conselhos da universidade (como se os nobres ti- .-vessem tido uma espécie de aptidão natural para a decisão epara o comando), prioridade sobre seus camaradas plebeuspara postularem os benefícios eclesiásticos reservados aos uni-versitários. Como contrapartida, uma estrita igualdade era ofi-cialmente mantida entre nobres e plebeus, no que dizia respei-to aos regimes de estudos e de condições de acesso aos exa:mês e aos diplomas.

Mas, como vemos, tais privilégios consentidos aos estu-dantes nobres auxiliavam também os plebeus, pelo mertosaqueles que eram titulares de graus e haviam, enquanto tal, co-locado à prova suas aptidões intelectuais. Porque os nobres não ..eram' designados a preceder os outros em todas as coisas. Uma

4 - Eu retomo aqui as conclusões de meu estudo "Nobles-se et sayolr: ,étudiants nobles aux universités d'Avignon,Cahors, Montpelller Et Toulouse (fln du XIV' siècle) *,ln:Lanoblesse au Moyen ~Agç (Xl'-XV sièctes): Cessais à Iamémoíré de Robert Boutrucfoe, reunidos por Ph. Contami-ne: Paris, 197&, p. 289-313. Até prova em contrário, essasconclusões me parecem poder ser estendidas, mutattsmutandis, para o conjunto das universidades européias dofinal da Idade Média. . \ ..

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escala sutil de equivalência era estabelecida entre degraus denobreza e graus universitários. Os graus menores (baccalau-réaf) ou adquiridos em faculdade menos prestigiadas (artes,medicina) permitiam situar-se no mesmo nível da pequena no-breza, a licença em direito concedia a igualdade com a grandenobreza; enfim, os doutores em direito e em teologia e os reito-res vinham sempre sozinhos encabeçando todas as manifesta-ções públicas da universidade, precedendo todos os nobres^qualquer que fosse seu escalão. Um estatuto de universidade deViena de 1389, destinado a determinar o.lugar dos membros dauniversidade na grande procissão da festa de Corpus Gristi, ex-plicava, com muita clareza, esse sistema de correspondência: osmestres em medicina caminhavam com a pequena nobreza(minores illustres), os regentes em direito com a média nobre-za (simpíices illustres), os teólogos com os duques e os cçndes;fechando enfim a procissão, o reitor deslocava-se sozinho, paramanifestar, aos olhos de todos, a dignidade sem igual da univer-sidade e do saber5

O tema da equivalência entre saber e nobreza - "Doutora-do vale cavalaria", como bem explicita o adágio - não subenten-de apenas as práticas institucionais sancionadas pelos estatu-tos. Ele foi explicitamente desenvolvido por um determinadonúmero de comentadores.Tomando o doutorado como expres-são concreta da perfeição do saber, diversos autores considera-ram que esse grau dava acesso a um verdadeiro status ou, me-lhor ainda, a um ordo6.\ solenidade dos rituais de colação dodoutorado (imposição das insígnias doutorais, sermões, beijostrocados entre, o examinador e o candidato, festas e presentes,aula magna do novo tituladorctc.) permitia sugerir similitudesdiretas com a investídura feudal ou com a iniciação da cavala-ria. Na introdução de seu comentário sobre as Clémenttnes(por volta de 1370), Simon de Borsano, doutor in utroquejure

5 - Estatuto citado por M. H. Shank, "Unless you belteve,you shall not ur^derstand". Logic, university, and societyin late medieval Vienna. Princeton: 1988, p. 23.6 - Vide G. Lê Brás, Velut splendor flrmamenti: lê doctordans lê drolt de l'eglise médiévale. In: M&anges offerts àEienne G//so«,Toronto-Paris, 1959, p. 373-388.

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de Bolonha, que logo se tornaria arcebispo'dç Milão e depoiscardeal, interrogava-se longamente sobre o "estado dos douto-res" (status doctorum)7. Depois de haver recordado os privilé-gios dos doutores, especificamente em matéria fiscal, Simon deBorsano concluía que a dignidade de doutor lhe possibilitava al-çar-se a cavaleiro'(militem doctor precedere debet, p. 242), eque, se havia ensinado direito durante vinte anos ou mais, eledeveria ser equiparado aos duques e aos condes. Notemos,aliás, que, devidamente fundadas sobre diversas referências dodireito romano, tais pretensões haviam já aparecido, um séculoantes, em Castela, nas Siete Partidas de Afonso X, o Sábio (p. II,t. 31, parágrafo 8) e que no século XIV inúmeros juristas italia-nos e franceses tiram dele os argumentos para se atribuir o títu-lo de "senhor em leis" (dominus legum^ou de "conde em leis"(comes legum).

Quais eram, além das citações retiradas da lex romana, asjustificativas dessa assimilação do saber ã nobreza? Havia, antesde tudo, ao que me parece, a própria noção da dignidade do sa-ber - ou mais precisamente, dos saberes canônicos, herdadosda Antigüidade, reconhecidos pela Igreja e ensinados nos stu-dia generaíia. O direito era, ao mesmo tempo, vetor de umacerta sacralidade, aquela da maiestas romana, e regulador sobe-rano da vida social e política; quanto à teologia, ela desvendouo sentido da Revelação e esclareceu de maneira quase infalível,pelo menos acreditou-se nisso até o Grande Cisma, p magisté-rio eclesiástico. O domínio de ciências assim tão elevadas nãopoderia ser objeto de homens indignos ou mesmo simplesmen-te comuns; elas enobreciam muito naturalmente aqueles quehaviam se voltado, sob o custo de longos e difíceis estudos, paraa aquisição do sedimento sagrado para preservá-lo e transmiti-lo a outros pela escrita e pelo ensino.A nobreza dos homens desaber deriva de sua "autoridade'' (auctoritas).^

Porém, ela também estava ligada, especialmente para os ju-ristas, à noção de serviço; ela própria era elemento constitutivo,desde a Alta Idade Média, da noção de nobreza. Bártolo e Bal-

7 - Texto edítado^em D.Maffei,°Dottori e studenti nel pen-siero di Simone da Borsano", Studia Graftana, 15 (1972),p. 231-249.

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dus, os dois grandes juristas italianos do século Xiy insistiramsobre o elo estreito e, de algum modo, funcional unindovdoutqre príncipe. Simon de Borsano, no texto mencionado acima,acentuava esse aspecto da vocação do doutor, recordando -apoiado em citações do Code - que um dos privilégios douto-rais era o de possuir aceSso direto ao príncipe, à sua corte e aosseus tribunais8..Esse tema encontrava tanto mais eco entre oshomens de saber do final da Idade Média quanto, sem transfor-mar-se em sua razão de ser exclusiva, o serviço do Estado eraefetivamente uma das perspectivas mais comuns dos estudosuniversitários, como vimos nos capítulos quatro e cinco destelivro. Orá"servindo-se o Estado por suas armas de direito - "o ju-rista é como o cavaleiro de uma cavalaria sem armas", dizia Jac-ques de Révígny, professor de Orléaris no fim do século XIII9 -,os homens de saber possuíam o sentimento de participar, decerta maneira, da majestade tremenda do príncipe e do bem co-mum da coisa pública.Tal proximidade implicava, ela também,presunção de nobreza. \

Calcula-se, portanto, melhor aquilo que significava para as. pessoas de saber, o modelo nobiliário que, ao mesmo tempo,

contribuía para desenhar a imagem que eles faziam de si pró-prios e dê seu4ugar na sociedade e conferia um objetivo preci-

*so às ambições concretas dos mais empreendedores dentre"eles. ' . • • - , . ' ' • -

A dimensão carnal - o sangue e a hereditariedade - nãolhes era, em primeiro lugar, essencial. Tratava-se, antes, de umanobreza de mérito, atrelada às aptidões e ao trabalho pessoal.Naturalmente, como dissemos, os homens de saber tiveram qua-se todos tendência de assegurar a continuidade de seu estatutono seio de suas famílias. Contudo, se o filho do doutor era no-bre, isso não ocorria apenas pelo fato de ele ser filho de doutor,mas fundamentalmente porque era, ele também, via de regra,

8 - Item doctorí ingredientt adprincipia ciariam non de-bet^vetari ingressus sed admittt, etíam ad secreta iudi-cum admitti ( D. Maffei, "Dottori e studenti", op. cit, p.241).9 - Mtles inertnis-milicie (citado em M. Bôulet, Quoestio-

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' • - • " .um doutor. A nobreza dos homens de saber era, pois, uma no-breza indissociável da competência e da função.

Isto posto, ela também era, evidentemente, como toda n<Vbreza, sinônimo de estabilidade, de privilégios e de considera-ção social. Em qualquer nível que se situasse, o homem, de sa-ber reivindicava com veemência os privilégios, especialmenteos privilégios fiscais, que lhe permitiam manter seu nível. A des-peito do interesse econômico, a condução desses privilégiosera tanto simbólica quanto real. Isso lhe proporcionava inclusi-ve as marcas de respeitç e de deferência - epítetos elogiososgestos reverenciais - que ele exigia dos outros - estudantes,isentos ou contribuintes - e do gênero de vida ao qual ele sédisciplinava, sob pena de decair. Raros eram aqueles que, umavez ultrapassado o estrato mais modesto, aquele dos meirinhose dos notários, arriscavam-se como Hugues Josáard a combinaros estudos e os ofícios com a prática do comércio e dos nego-cios10. Filho e genro de grandes lavradores de Arbresle, esse ba-charel em leis fez uma bela carreira de funcionário que o con-duziu até funções de primeiro homem do senescal e do juiz realem Lyon. Ele pôde, então, se fazer enobrecer em 1398. Contu-do, isso não o impediu de investir sua fortuna, de modo pionei-ro, nas minas de Pampailly, reconstituídas posteriormente porJacques Coeur; é verdade que, diferentemente do negócio oudo artesanato, a exploraçãp mineira não será jamais considera-da para os nobres como uma atividade que acarretasse sistema-ticamente a perda de nobreza. Seus dois filhos, eles também gra-duados, abandonaram, contudo, ao mesmo tempo os negócios -e as minas para voltarem-se para a gestão de suas terras e parao ofício das armas,

Todavia, se poucos homens de saber transformaram-se emhomens de .negócios da envergadura de Hugues Jossard, deve-se sublinhar que a maior parte dentre eles não contava apenascom o reconhecimento de suas capacidades intelectuais e dosserviços rendidos ao Estado para se fazer admitir no seio da no-breza, e depois para nela se manter e assegurar a perenidade de

10 - R. Fédou, «Une femille aux JOVC et XV« siècleS: lês Jos-sard de ly&n",Annales ESC, 9 (1954),p. 461-480.

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sua família; Como outras categorias da população em vias de as-censão social - ricos lavradores, mercadores, burgueses, ho-mens de guerra -, eles não desdenhavam alguns procedimen-tos, menos específicos, porém experimentados efetivamentepara o ingresso na clientela: a corrida aos dotes e aos bons ca-samentos, a compra de palácios, de mansões e de feudos, o exer-cício de direitos senhoriais, etc.

Um último traço deve ser sublinhado, mostrando bem'a ci-são ainda existente entre a imagem que os homens de jsaber fa-ziam de sua própria nobreza e as realidades sociais da época.

Em algumas famílias, a nobreza reivindicada a título dascompetências intelectuais permanece passageira e, por tal ra-zão, perde-se rapidamente. Tomemos o exemplb, em Montpel-lier, da família dos RebUffi, que possuía numerosos juristas nosséculos XIV e XV. O mais conhecido dentre eles, Jacques Rebuf-fi, dizia-se, no final do século XIV, "conde em leis". Mas a fortu-na da família não iria muito longe; juristas de menor porte, osRebuffi das gerações seguintes não conseguiram mais esse tipode título e1 aparentemente deixaram de ser considerados no-bres". Bem mais famosa, a família do glosador bolonhês Odofre-do (1200-1265) não teve melhor sorte; no início do século XIV,durante duas gerações, ps netos e bisnetos do grande juristaconseguiram obter o título de cavaleiros, mas, em seguida, esse"breve pàrêntese(da nobreza na história dos Odofredi" - comodisse Andréa Padovani - fechou-se, e as gerações seguintes fo-ram consagrar-se, à moda burguesa, ao tráfico das especiarias edas sedas12.

Em compensação, nas linhagens dos homens de lei cujoêxito foi mais notável, a prática do estudo e dos ofícios não pa-rece haver, por vezes, durado mais do que algumas gerações.Uma vez a situação da família definitivamente estabelecida, seusmembros abandonavam as atividades da toga para se voltarem,

de maneira exclusiva, a um modelo nobiliárquico mais tradldo-nal, em que a exploração da terra, de um lado, e o ofício das ar-mas, do outro, eram suficientes. Foi isso que se passou, como vi-mos acima, na segunda metade do século XV, tanto com os Ysal-guier deToulouse quanto com os Jossard de Lyon e os Pastonde Norfolk13. Apenas alguns grupos eminentes e já bení indivi-dualizados de homens de saber e de ofícios, os indivíduos doParlamento na França, por exemplo, com famílias como as dosMarle ou dos Orgemont, parecem haver atingido uma posiçãoeconômica e social bastante elevada e uma consciência de si su-ficientemente forte para permanecerem fiéis à sua vocação es-pecífica, aquela de uma nobreza de toga prontamente diferen-ciada de outros tipos de nobreza. Tal consciência, entre os Par-lamentares parisienses e outros clérigos do rei, de formar umgrupo social não apenas específico, mas estável e homogêneo,exprime-se particularmente em seus testamentos - conserva-dos em grande número para a época de Carlos VI - com a mui2

tiplicação das cláusulas destinadas a assegurar, para além datransmissão dos^patrimônios, a solidez dos laços de parentescoe de aliança e a perpetuidade da vocação intelectual e política14.

Tais casos de continuidade são raros, mas será, entretanto,inexato pensar que a absorção no seio de uma nobreza indifé-renciada, no horizonte de algumas gerações, tenha sido a únicaforma de ambição social de que os homens de saber do final daIdade Média haviam sido capazes.

11 -J.Segondy,aUne famille de juristes montpeüiéralns: lêsRebuffy". In: Fédérattoh Mstorique du Lcmguedoc médl-terranéen et dk Roussillon.XXXVIP et XXXVIIf Congrès(Liloux-Nimes) (75><í4-.í5?65JI,Montpellier: s.d., p. 14^153.12 -A. Padovani, L'archivio di Odofredo:lêpergamene dei-'lafamiglia Gandolfi Odofredi. Edizione e regesto (1163-1499). Spolète: 1992, p. 6162. - -\

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13 - Vide supra,p. 194,200 e 215.14 - Vide D. Courtemanche,"Les testaments parisiens sousCharles VI: dês écrits sur sói áu service de Ia piémoire col-lective", Lê Moyen Age, 97 (1991), p. 367-387.

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3. UM "QUARTO ESTADO"

Montaigne percebia bem o problema quando ele falavaem seus Ensaios (livro I, capítulo XXIII) desse "quattiesme es-tat dês gens maniants lês procès", o» qual formaria, dali pordiajite^wn cotps à part de celuy de fa noblesse"K. Um séculoantes, a emergência desse "quarto estado" de homens de saber,homens de leis e de escritórios, e"ra uma realidade social incon-testável. Mas até que ponto os contemporâneos - e os própriosinteressados - possuíam, na época, consciência que se tratavaentão do nascimento de uni "corpo â parte^ no seio da socieda-de e não apenas de uma excrescência - para muitos, nociva -imputável aos progressos recentes de um estado subitamenteesquecido das prerrogativas tradicionais e legítimas da antiganobreza e do clero?

Para dizer a verdade, a tomada de consciência de uma es-pecificidade do grupo dos homens de saber não exclui, em hi-pótese alguma, que eles tenham, para além disso, continuado -como nós acabamos de ver - a se perceberem como clérigos,sempre aspirando à nobreza.

Os preâmbulos dessa tomada de consciência remontamao passado. Desde o século XII, como bem demonstrou o PadreM. D. Ghenu, os clérigos das escolas urbanas, sem renunciar àsua opção eclesiástica, haviam procurado diferenciar-se do res-tante do clero. Os termos scolares e magistri, ou, mais ambicio-so, aquele de phjlosopM, serviram, desde cedo, para qualificarseu próprio estatuto, esperando que as universidades lhes vies-sem a oferecer um quadro institucional eficaz, ainda que, sobcertos'olhares, redutõr, já que implicava um controle direto porparte da autoridade eclesiástica16. A tomada de consciência pe-los juristas, especialmente os italianos - ou influenciados pelomodelo italiano -, do caráter original não apenas de seu saber

15 - Citado por R. Fávreau, Ia vitte de Poitíers à tafin.ãu Moyen Age: une capitale régionale. Póitiers: 1078,tomo 11, p. 487.16 -Ver em M. D. Chenu.Itf théoiogie #u douzíème síè-cíe. 2* edição/Paris: 1966,capítulo Xy"Les'science'théologique°,p. 323-50.

, mas de sua posição na sociedade e do seu papel político, prati-camente também é antiga; podem-se encontrar traços dela de£de os primeiros glosadores bolonheses.

Contudo, não é certo que essa consciência de si dos ho-mens de saber tenha, em seguida, progredido de maneira regu-lar e contínua. Se seu número vinha crescendo, bem como seupeso social, a sua inserção, cada vez mais estreita, nos quadros,eclesiásticos ou até políticos, mais e mais restritos e o desejo dêmarcar prioritariamente sua filiação às elites puderam thoderarsua emancipação e obscurecer a imagem que eles tinham de sipróprios. Alguns pontos, contudo, revelam-se perceptíveis nãoapenas ao historiador (sempre tentado a abusar das facilidadesda atitude retrospectiva); mas, sem dúvida aos próprios contem-porâneos, desenhando, com grandes traços, aquilo que podiaconstituir a especificidade dos homens de saber nas sociedadesdos últimos séculos da Idade Média. Para maior clareza, nós clas-sificaremos esses caracteres específicos sob quatro rubricas.

l. - Um primeiro aspecto pode parecer arcaico, mas con-tinua muito marcado, é o aspecto fundamentalmente urbano. Ohomem de saber, tal como o compreendemos aqui, colocava-seacima de tudo, como um homem da, cidade. Especialmente sécolocarmos à parte os simples práticos que, muitas vezes, po-

^diam residir nos vilarejos ou nas aldeias, nós encontramos nos-sós homens de saber essencialmente nas cidades, e até mesmona coração das cidades. Era lá que eles estudavam, lá que elesexerciam suas funções. Quando não lotavam as escolas, os ho-tmens de saber passavam suas jornadas nos lugares públicos enos domicílios oficiais: as catedrais e suas dependências, os pa-lácios e castelos principescos, as câmaras da cidade e os merca-dos municipais. Aqueles que não tinham ali seu escritório, fre-qüentavam os cursos e os corredores. Os práticos que recebiamseus clientes em suas oficinas ou seu "estúdio" não podiam, elespróprios, se distanciarem muito dos lugares dos tribunais oudas administrações. Todos os estudos de topografia social qiieforam conduzidos sobre as cidades de alguma importância nofinal da idade Média mostram que os homens de saber residiamnelas, fosse, de preferência no bairro das escolas, quando alihouvesse'uma - a Montagne Sainte-Geneviève em Paris -, fosstno antigo coração das cidades universitárias, na proximidade

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imediata dos lugares de poder. Em Lyon, pof exemplo, a maiorparte dos doutores, dos licenciados e dos notários residia nobairro do Palácio, quer dizer, bem ao norte da catedral Saint-Jean, em torno da casa dita de Roanne onde estava instalado otribunal do senescal17. v

Além do mais, os homens de saber, como já vimos nos ca-pítulos precedentes, participavam ativamente, tanto quanto po-diam, da vida associativa (confrarias) e política das cidades. Portoda a parte, onde as antigas oligarquias mercantis não lhes in-terditou o acesso, eles investiram os magistrados urbanos, o queimplicava igualmente uma presença constante no coração dacidade universitária.

Sempre conferindo, indubitavelmente, prioridade para aaquisição de imóveis urbanos, os homens de saber, como acen-tuamos acima, não se recusavam a comprar terras no campo .To-davia, diferentemente de muitos daqueles nobres cujas fileiras,no entanto, procuravam engrossar, eles não pareciam possuir ogosto de residir permanentemente em seus domicílios rurais.Isso seria, freqüentemente, incompatível com o exercício deseus ofícios e de seus cargos municipais.

Esse estreito laço entre os homens de saber e a cidade nãoparece ter sido, em parte alguma, tão vigoroso quanto em algu-mas cidades italianas, e particularmente em Bolonha. Nos sécu-los XIII e XIV, os jazigos dos grandes professores de direito fo-ram erigidos em pleno ar, sobre praças públicas, magníficos mo-numentos à antiga, com colunas de mármore e baixos relevos,nos quais o esplendor revelava suficientemente o quanto a gló-ria dos doutores era um elemento constitutivo da própria histó-ria da cidade e da consciência de si de seus habitantes18.

2. Segundo traço característico do mundo dos homens desaber consiste no que chamarei, para ser breve e não sem algumanacronismo, sua profissionalização. A noção poderia, talvez,aplicar-se também ao mundo dos artistas e dos mercadores,

17 - Vide R. Fédcm, Lês hommes de loi lyonnais à laflnetu MoyenAge:etude sur lês origines dela classe de rohe.Lyon: 1964, p. 356-357 e 363-365.'18 - R. Grandl, I monumetití dei dottort e Ia scultura aBologna (l267-1348). Bolonha: 1982.

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mas, para aquilo que nos interessa, quer dizer, as elites sociais epolíticas, certamente existia uma forte diferença entre os homens de saber e os antigos nobres, os quais, mesmo quando ser-viam o príncipe em determinadas funções, comportavam-sesempre, de alguma maneira, como "amadores", sem formação c&-pecífica e em tempo parcial. Já os homens de saber caracteriza-vam-se por uma relação muito diferente com seu trabalho, querse tratasse de ensino, de cargos públicos ou de prática privada.Para eles, havia uma ligação quase necessária entre sua compe-tência intelectual, ela própria freqüentemente garantida por umdiploma, e o exercício de suas funções sociais. Esse laço neces-sário explica que os homens de saber, diferentemente dos no-bres "amadores", não sentiam repugnância pelo caráter freqüen-temente austero è técnico de seus cargos, dado que haviamaprendido a dominar essa técnica desde os ahos de sua forma-ção. Foi isso que proporcionou, em inúmeras funções adminis-trativas, como ocorreria com muita freqüência no século XIX oafastamento da antiga nobreza em proveito dos novos funcioná-rios, mais competentes e que, voluntariamente, aceitavam consa-grar-se em tempo integral ao serviço do príncipe.

Essa evolução foi mais ou menos marcada de acordo comos países, fria Inglaterra, numerosos cargos públicos continua-ram a ser conferidos aos membros da gentry local. A França,por" seu turno, foi por excelência o país dos funcionários do rei,geralmente alheios, tanto social, quanto geograficamente, às eli-tes locais tradicionais, os quais extraíam, de qualquer modo, suaautoridade-simultaneamente de sua competência intelectual ede seu devotamento ao serviço do príncipe, ao mesmo tempoque de seu característico espírito de corpo. Com os funcioná-rios reais franceses do século Xly surgiria a noção moderna defunção pública. Os componentes de tal noção, tomados um aum, são, sem dúvida, freqüentemente de origem eclesiástica".Tomados no conjunto, eles esboçam os contornos de um verda-deiro estatuto prometido a uma notável prosperidade. Para co-meçar, os funcionários podiam seguir, de acordo com comple-

19 - J. Verger. "Lê transferi de modeles cTorganizaliori dePÉglise à 1'Etat à Ia fin du Moyen Age". In: État et ÉgUsedans Ia gênese de l'État modeme, Ed. J. Ph. Genet e B.VIn-cent (Bibliothèque de Ia Casa de Velazquez, 1). Madrld:1986. p. 31-39.

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xás estratégias comandadas ao mesmo tempo pela vontade dopríncipe e pela ambições pessoais dos interessados, as etapasde um verdadeiro cursus honorum\so\> o custo, com muita fre-qüência, de uma determinada mobilidade geográfica, eles po-diam sucessivamente ocupar posições cada vez mais importan-tes* cujo prestígio ia crescendo paralelamente à remuneração.Anoção dê carreira, sem dúvida surgindo para os titulares de be-nefícios eclesiásticos, foi, portanto, estendida para todos aque-les que serviam o príncipe e o Estado.

Do mesmo modo, estivessem eles a serviço da Igreja ou dopríncipe, os homens de saber participavam, de algum modo, damajestade destes. Eles foram, portanto, considerados como fa-zendo parte, em alguma medida, do próprio corpo eclesiásticoou político e, nesse nível, do momento em que eles passavama atuar no quadro de suas funções, eram vistos simultaneamen-te como pessoalmente! irresponsáveis, e como protegidos pelocaráter sagrado da instituição a que serviam. A Igreja defendiaseus clérigos contra qualquer golpe das populações ou dos po-deres laicos, o príncipe chegava a considerar como crime delesa majestade qualquer atentado à pessoa de seus servidores.

Finalmente» um último traço que caracterizava o serviço as-. segurado pelas pessoas de saber e de toga consistia normalmen-

te em um engajamento progressivamente vitalício e sempre re-vogávèl. Ainda que não ignorassem nem as prestações de jura-mento pessoal de fidelidade, nem a outorga de proventos assen-tados sobre a terra e outros bens reais, nem mesmo, RO final denossa época, uma certa tendência, por maneiras diversas, à here-ditariedade efetiva de cargos, o serviço da Igreja ou do príncipenão se manteve nos séculos XIV e XV dentro dos tradicionais en-quadramentos feudais, ainda que renovados sob a forma por ve-zes chamada de "feudalismo bastardo". Clérigos e funcionáriosrecebiam cada vez com maior freqüência seus soldos pagos emespécies e o príncipe podia, a qualquer momento, destituir ofuncionário com o qual ele estivesse descontente (mediante acondição, entretanto, pelo menos teoricamente, de tê-lo "ouvi-do", quer dizer, de lhe ter permitido apresentar sua defesa).

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3- - O terceiro traço que nós reputamos específico do gru-po das pessoas de saber nas sociedades do final da Idade Média- o que eu chamarei aqui, de maneira, inclusive, um poucoabrupto e anacrônica - é sua politização. Isso nãa significa, note-se, que todos tenham estado ou mesmo desejassem estar a ser-viço da Igreja ou do príncipe. Sobretudo nos velhos países de dl»reito romano, que, há muito tempo, reconheciam um lugar paraas práticas privadas do saber na regulação cotidiana da vida sp-xciai e econômica, muitos prosseguiam sua atividade pessoal semter a ambição de influenciar o funcionamento geral úos ppde-res. Contudo, em termos globais, uma maioria de pessoas de sa-ber, sem dúvida, acabou por servir, de uma maneira ou de outra,às autoridades de então, e que, de qualquer modo, mesmo aque-les que exerciam uma atividade privada - como os notários e osadvogados -, teriam, mais ou menos conscientemente, o cuida-do de promover, através de sua atividade, a instauração de umaordem fundada no respeito das regras em si mesmas derivadasde disciplinas canônicas da cultura erudito; em outras palavras,formularam as premissas daquilo que hoje nós chamaríamos'deestado de direito. Não que o estado anterior tenha repousado,qualquer que seja o julgamento, sobre o exclusivo reinado daforça e do arbítrio. Porém, as regras que haviam sido aquelas dasociedade feudal encontraram sua origem em um certo númerode noções costumeiras ou religiosas que não provinham, de ma-neira nenhuma, de considerações racionais. Com a emergênciados homens de saber, começa-se a assistir também à emergênciade uma certa racionalidade política.

A "politização" dos homens de saber traduziu-se px>r seuprecoce interesse, perceptível desde o século XII, posterior-mente reforçado a partir do século XIII pelo triunfo do direitoromano e, em seguida, do aristotelismo, pela literatura política(em seu sentido mala amplo, que incluía, evidentemente, "écle-siològia"), quase sempre presente em suas bibliotecas. Aindaque eles não houvessem sido os únicos a trabalhar por seu ad-vento, nem os únicos a tirar proveito dele, os homens de saberincontestavelmente tiraram partido do Estado Moderno quenascia na Europa nos últimos séculos da Idade Média. A "politi-zação" dos homens de saber foi uma das formas mais surpreen- ,dentes de sua modernidade. ^ y

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4. - Mas é, de fato, pelo lado de sua cultura que se deverá,sem dúvida, buscar, em última instância, aquilo que traduzia demaneira mais nítida a especificidade dos homens de saber do fi-nal da Idade Média. Nós comentamos acima o quanto essa cul-tura devia à cultura eclesiástica tradicional, incluindo o fato depermanecer, no âmbito de todo o debate, sob a supervisão dasinstâncias eclesiásticas e de suas exigências de ortodoxia. Re-cordamos também que ela, inclusive, não se recusava, ocasional-mente, a emprestar alguns símbolos da antiga cultura aristocrá-tica e cavaleiresca. Mas isso não deverá ocultar seus aspectos es-pecíficos.Tal especificidade não existia apenas no conteúdo emsi de disciplinas, particularmente filosofia e direito, cuja eman-cipação e desenvolvimento, como vimos, a própria igreja nãoadmitia- sem reticências: Á especificidade estava também riaspróprias práticas culturais, ou, dito de outro modo, na relaçãoconcreta dos homens de saber com esse saber pelo qual, preci-samente, nós os temos definido. •

Tais práticas, como dissemos, caracterizavam-se, antes demais nada, por seu aspecto trabalhoso, técnico, profissional. Aprática do saber era, para eles, trabalho com suas regras pró-prias'e seus métodos postos à prova. Sua finalidade não-consis-tia nem na fruição estética do poeta, nem na piedosa ruminaçãodos religiosos, mas na aquisição e na aplicação de conhecimen-tos socialmente úteis e dirigidos para finalidades concretas,mais freqüentemente políticas.

Por outro lado, as práticas culturais dos homens de saberdo fim da Idade Média tiveram uma dimensão evidentementeindividual, senão individualista20. Ainda que elas implicassemgeralmente formas orais e coletivas de aprendizagem - familia*rés ou escolares -, elas não podiam, em última instância, econo-mizar nem o trabalho pessoal (memorização e escrita), nem a

posse pessoal de livros, nem, bem freqüentemente, da aquisição <de títulos e de diplomas obtidos como resultado de verdadeirasprovas assumidas pessoalmente e que garantiam, independente* •mente de qualquer acepção de pessoa ou de origem, as compe-tências intelectuais de seu detentor.

Esse 'individualismo1 - que certamente não foi o único aexistir nas sociedades cada vez mais complexas e dinâmicas dofinal da Idade Média - também imprimiu sua marca própria nadevoção dos homens de saber. Clérigos ou leigos, ao que pare- .cê, inauguraram um tipo de devoção marcada pela interioriza-cão do sentimento religioso, o relativo desprezo pelas práticasexteriores, a extrema valorização da leitura, da meditação e daoração pessoais, a gravidade, enfim, e a contenção nó compor-. 'tamento, que continuaram ainda, durante longo tempo, a ser suamarca específica face à arrogância dos homefls de poder e à os-tentação dos homens de dinheiro. É fácil perceber que a Devo-tto moderna e, depois, o evangelismo erasmiano encontraramrapidamente nesses meios um eco favorável. . • ,

Mais do que pela importância, de resto bastante variável,de seus proventos ou pela sua posição, aliás imprecisa, na hie-rarquia social, é, portanto, provavelmente através de sua visãopolítica e de suas práticas culturais,e religiosas que melhor se1

destacam as ambições mais íntimas dos homens de saber dó fi-nal dá Idade Média, bem como a imagem que eles possuíam - ea que ofereciam - de si próprios e de seu lugar social ha socie-dade de seu tempo.

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20 - No volume The individual M politicaí tbeory andptactice, editado por J. Goleman, Oxford: 1996, ver particu-larmente, os capítulos primeiro, "The individual and theMedieval State" por Coleman, p. 1-34; e o capítulo terceiro"The contributlon of Medieval Universities to the birth ofindividualism and individual thougbt" por Jacques Verger,p . 59-77. ^. • ' • . : • . . ' .

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capítulo IX

( À GUISA DE CONCLUSÃO:DOS DOUTORES AOS HUMANISTAS -

CONTINUIDADE E INOVAÇÃO

A velha idéia romântica de uma radical ruptura entre Ida-de Média e Renascimento há muito tempo deixou de ter senti-do. Sem negar as mutações e novidades consideráveis que apa-receram na civilização européia durante os séculos XV e XVI, ohistoriador coloca hoje a tônica, em primeiro lugar, sobre ascontinuidades. Em virtude disso, no domínio que aqui nos intç-ressa, ninguém mais leva ao pé da letra os sarcasmos de Loren-zo Valia, Erasmo ou Reuchlin contra a escolástica nem as zom-barias de Rabelais sobre os catedráticos da Sorbonne. Se os de-bates que evocam essas polêmicas tiveram uma incontestávelrealidade na ordem ,das disciplinas, não é menos clara que ogrupo dos homens de saber, que apareceu nos últimos séculosda Idade Média, não apenas sobreviveu, mas consideravelmentereforçou suas posições no início da época moderna, em umaevidente continuidade social, política e cultural.

Estudar essa nova fase da história dos homens de saberserá objeto de um outro livro. Aqui, trata-se apenas, à guisa de

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conclusão, de recordar tudo aquilo que, sobrevivendo perfeita-mente da herança medieval à reviravolta dos anos 1500, assegu-rará, inclusive, para os séculos seguintes, ao preço de algumasinovações e ajustes, a continuidade de um fenômeno históricode longuíssima duração.

I. DOMINADORES E CONFIANTES EM SI

Em muitos dos países europeus, e particularmente nasgrandes monarquias nacionais, o fim do século XV viu, com oreerguimento do crescimento demográfico e econômico, ao

." mesmo tempo que o finaLdas guerras e dos problemas inter-nos, a retomada do crescimento do Estado.Tal retomada, semdúvida, foi particularmente espetacular ha Espanha unificadados Reis Católicos lançando-se à conquista do reino de Grana-da, depois ha América, mas observa-se também, na França deLuís XH (l 498-1515) ou na Inglaterra dos Tudor. Por toda parte,o desenvolvimento dos órgãos centrais do governo somou-seao reforço da administração local. Na França, a multiplicaçãodos parlamentos de província CToulouse em 1443, Grenoble em1453, Bordeaux em 1563, Dijon em l476,Aix-en-Provence em1502,Rouen em 1515, etc.) fez surgir nas principais capitais re-gionais, uma elite de legislas bem ancorados na sociedade locale rodeados por todo um mundo subalterno porém ambiciosode escrivães, advogados, procuradores e tabeliões; em Senlis,por exemplo, os dois advogados de 1450 tornár-se-iam dezes-seis em 15391. Mesmo se aqui ou acolá, em Lyon ou em Rouen,por exemplo, o progresso econômico permitia a manutençãoou a recpnstituição de grandes fortunas de mercadores, os ho-mens de leis, orgulhosos de seus cargos, de^seus diplomas e desuas belas bibliotecas, impunham-se, mais do que nunca, eminúmeras cidades, como a classe dirigente por excelência, ser-vindo, ao mesmo tempo, ao rei e a seus próprios interesses.

l - B. Guenée, Tribunatix et gens de justice dans lêbaillage de Senlis à Ia fin du Moyen Age (vers 1380 •vers 1550). Estrasburgo: 1963, p. 384 e 418.

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Os juristas não foram, aliás, os únicos a se beneficiaremdessa conjuntura favorável. Por todo lado, padres e religiososinstruídos, médicos, secretários rompidos com as escrituras,mestres-escolas a par das novas idéias chegaram a se empregar,com sufuciente facilidade, em número crescente.

Indício claro desse crescimento acelerado do grupo doshomens de saber, as instituições de ensino multjplicaram-se efe-tivamente na virada dqs anos 1500. Se é verdade que as funda-ções de universidades são um pouco lentas no início do séculoXVI (26 fundações apenas para toda Europa entre 1501 e 1505-,freqüentemente periféricas ou secundárias), os efetivos das an-tigas universidades, no ócaso de um século XV que, à exceçãoda Alemanha, havia sido, sem dúvida, um tempo de estagnação,sofrem um^vivo aumento desde 1480. No início do século XVI,a universidade de Paris acolhia, talvez, o número inusitado de12000 a 13000 estudantes (dos quais cinco sextos na faculdadede artes). Por outro lado, novos colégios foram criados enquan-to outros, que já existiam, monopolizavam cada vez mais certos,ensinamentos. Sobretudo, viu-se então multiplicarem, por vezesrebatizados "ginásios" à moda antiga, escolas e colégios pré-uni-versitários ou não. Em muitas cidades, na ausência de um stü-dium generale, as municipalidades doravante dominadas por'homens de leis esclarecidos favoreciam a criação de grandescolégios de gramática e de retórica, geralmente de excelente ní-vel, como o colégio de Guyenne em Bordeaux (1533) ou o Gi-násio de Jean Sturm em Estrasburgo (1538).

Naturalmente o rápido crescimento quantitativo dos ho-mens de saber permitiu a uma nova geração de "homens novos7" 'franquear um caminho nesse mundo, habitualmente pela viados estudos ou dos outros processos de ascensão social que jádescrevemos nos capítulos precedentes. Contudo, a tendênciaà estabilização do grupo, reforçada por sua posição cada vezmais assegurada no seio da sociedade, não foi, para tanto, esque-cida. Em breve, a venalidade dos ofícios e o enobrecimento ge-neralizado das camadas superiores do mundo dos homens desaber, favorecidos ambos pelos poderes políticos cada vez maisautoritários, acumularam seus efeitos para garantir a heredita-riedade dos cargos e um estatuto social privilegiado. Ainda queseu recrutamento social permanecesse suficientemente aberto

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- havia ainda menos de 10% de estudante nobres em meadosdo século XVI e menos de 25% filhos de funcionários, face auma maioria de filhos de mercadores, de artistas, de campone-sés abastados2 -, as universidades e mais ainda os colégios co-meçaram a servir cada ve&mais abertamente para a reproduçãodas elites sociais. Na Espanha, os seis colégios mayores de Sala-manca, Valladolid e Âlcalá, monopolizados por famílias de gran-des funcionários da coroa, tornaram-se um lugar de passagempraticamente obrigatório para os futuros membros dos conse-lhos reais do governo3.

Portanto, as .mutações econômicas e políticas que marcama entrada da Europa na era moderna não questionaram, demodo algum, no conjunto, a avantajada posição social adquiridapelos homens de saber nos séculos precedentes. Confiantes dosustentáculo dos Estados e das Igrejas que não podiam, em hi-pótese alguma, prescindir de seus serviços, eles apareciam, aocontrário, cada vez mais dominadores e confiantes em si na so-ciedade de seu tempo. Apenas uma profunda contestação dossaberes sobre os quais repousava sua competência e seu prestí-gio teria podido abalar essa situação. Mas isso poderia verdadei-ramente çcorrer?

2. IDÉIAS NOVAS. HQMENS NOVOS

De fato, se os homens de saber parecem ter se beneficia-do, do século XV ao XVI, de uma impressionante continuidade,tanto no que toca a sua estrutura social quanto no que diz res-peito a sua função política, não é menos verdade que a própriadefinição dós saberes de onde eles extraíam sua especificidadeprimeira, vinha então se transformando de maneira importanteem um tempo relativamente curto.

2 - JacquesVerger (dir.),/fisto/re dês uníversttés en Fran-çe.Toulouse: 1986, p. 182.3 • Vide A. M. Cambias Torres, Colégios mayores: centrosáepodef. 3 volumes. Salamanca: 1986.

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Contudo, antes mesmo de retomar essas mutações e seualcance exato, cabe, de inicio, sublinhar que essas ditas muta-ções não devem esconder certas permanências, bem ampara-das pela solidez das instituições universitárias e pela perenida-de das tradições familiares nos meios letrados. As disciplinas,chave da cultura erudita medieval (a lógica de Aristóteles, o di-reito romano e o direito canônico, a teolpgia escolástica), gçr-

í marieceram na base d,os programas universitários e,, portanto,na formação de uma boa parte das elites intelectuais. Do mes-mo modo, apesar das incontestáveis vitórias das línguas verná-culas, o primado do latim como língua ao mesmo tempo sagra-da e erudita não foi verdadeiramente colocado em questão. Arenovação filológica humanista ofereceu-lhe inclusive um novoimpulso.

As novidades intelectuais no campo da cultura erudita nãoforam menos consideráveis. Surgido na Itália do Norte e na Tos'-cana desde o século XV, o movimento havia conquistado toda aEuropa, por volta de 1500, com tanto mais vigor quanto a reno-vação da peregrinatio acadêmica fazia com que afluíssem,para além dos Alpes, estudantes, artistas e letrados de todos ostipos. Recordemos» simplesmente, para sermos breves, que qhumanismo primeiramente foi, na essência, um movimento lite-rário e filológico. Restabelecendo a honra das artes da lingua-gem - gramática e retórica - fundadas elas próprias sobre a fre-qüência assídua aos clássicos, rejeitando o antigo primado dadialética e o áspero tecnicismo dos gramáticos medievais, oshumanistas estenderam, em seguida, sua curiosidade para as ou-tras línguas antigas - particularmente p grego e o hebreu, prati-camente esquecidos no Ocidente desde a alta Idade Média - e,mais amplamente, para todos os aspectos da Antigüidade tantohebraica quanto greco-latina. É em meados do século XV que osprimeiros helenistas e hebraizantes de qualidade apareceramna Itália; no início do século XVI, eles eram encontrados -portoda a Europa. Citemos aqui, a título de exemplo, apenas Lefe-vre d'Étaples (1450-1537), o, editor parisiense de Aristóteles,Reuchlih (1455-1522), o restáurador dós estudos hebraicos naAlemanha, e sobretudo Erasmo (l469-1536), o mais célebre detodos. Se as ciências do quadrívium beneficiaram-se bastante•tardiamente e em proporção mais limitada da renovação flloló-

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gica impulsionada pelo humanismo, as outras disciplinas da cul-tura erudita foram profundamente transformadas. Na filosofia,tanto natural quanto moral e política, a redescoberta de Platãoe dos estóicos veio a colocar umJim no quase monopólio doaristòtelismo medieval. Em direito, a filologia humanista incita auma leitura mais crítica e mais histórica da codificação justinia-na. Na medicina, uma melhor compreensão dos textos galêni-cos precipitou o declínio dos autores árabes. Finalmente, nateologia, a redescoberta dos originais gregos e hebraicos do tex-to bíblico colocou no primeiro plano a exegese, às expensas dateologia dogmática fundada sobre a aplicação sistemática dadialética aos mistérios da fé. Sustentada pelas aspirações refor-madòras da época, o "humanismo religioso foi, para a maior par-te dos autores dessa corrente, um evangelismo no qual a vonta-de de reencontrar a pureza da mensagem primitiva de Cristoera, ainda, acrescida por uma crítica ácida (e, pensando bem,bastante tradicional em seu princípio) da Igreja estabelecida,excessivamente rica e excessivamente centralizadora.

A historiografia tradicional opôs voluntariamente osmeios humanistas, meios de homens novos, de 'homens obscu-ros', às elites intelectuais tradicionais, presas às estruturas imu-táveis da universidade e adversárias radicais da inovação. É in-contestável que a segunda metade do século XV e o início doséculo XVI foram, por toda a Europa, um tempo de debate inte-lectual particularmente vivo, tanto mais exacerbado quanto ospróprios textos da época não tinham mais medo de se excede-rem e tomavam rapidamente o comportamento de panfleto vi-rulento ou de manifesto - pensemos, na França em Rabelais -pelos quais alguns historiadores haviam sido enganados. É ver-dade também que, em todos os domínios, havia conservadorespara contestar, senão o próprio princípio, pelo menos a utilida-de social das idéias novas e para recordar os perigos, por elasacarretados, de fazer frente à autoridade real ou pontificai. Al-guns humanistas foram brutalmente cassados da universidade,como Lorenzo Valia em Pádua em 1433, as obras novas foramcondenadas, como aquelas de Reuchl^íi censuradas pelos huma-nistas de Colônia,Louvain e Erfurt,e geramjente os regentes dasdisciplinas humanistas parecem ter se afastado do tradicionalquadro universitário para desenvolver seus debates intelectuaise, suas publicações em instituições de um tipo inédito - sodali-

tates e cenáculos amistosos, ou

manistas não eram encontradoslatinidadé e partidários das idéiasriencia de uma fonna de ̂ Ugor nas antigas universidades. Estas haviam csobre os aspectos mais técnicos das aprencüzagemesmo tempo que sobre a utilidade social dn^;OtoAjrc academias permitiam, ao coS e L?« medida, ess^ exigências emba^s £3convidava a recusar-lhes a aspereza das dUniiM» H , -proveito de trocas amáveis <?o o<W ctln? ^

da natureza incitava a não mais s rCabllltado

daqueles do espírito e a reservarconcreta ao lado da compilação *

opos^rsTn^^forçada. Apenas não se devesociabilidade humana esboçadprogramáticos porque esses meios erdos pelos conflitos de pessoasaqueles que haviam conhecido astudo.hoje parece bastante claro queculo XVI, em todos os países

,di,ddaccra"

mais ou menos de bom grado, Para as disciplinas^ As feculdad "

,culdades de artes foram geralmente as primename^tos de retórica e de grego, talvezguiram^e as faculdades supVriorc7osqüentemente um papel importantea universidade se opunha vitoriosamente) em

4 - Der Humanismus und die oberen Fakultãten.^ifci-nheim: W.Trusen, 1987.

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cão, no seu interior, do 'colégio dos leitores reais' fundado porFrancisco I para o ensino das novas disciplinas (grego, hebrai-co, matemáticas), a universidade de Louvain havia admitido, al-guns anos antes, a abertura do Collegitím trilingue (1517) e,de$de o início do século,uma universidade nova igualmente es-,pecializada nos ensinamentos de latim, grego e hebraico existiajá em Alcalá de Henares. A maior parte dós humanistas haviam,aliás, passado pelas universidades e muitos não desdenharamnem de defender um doutorado, nem de nelas ensinar. O pró-prio Erasmo, se ele guardava uma lembrança ruim de seus estu-dos no colégio de Montaigu em Paris,fez un\ doutorado em Teo-logia em Turim, ensinou em Cambridge e visitou, no total, qua-se todas as cidades universitárias importantes de sua época; océlebre médico Paracelso (1493-1541) também possuía trêsdoutorados, não apenas em medicina, mas em direito e em teo-logia.

As academias e os Cursos ofereciam, sem dúvida, apesar detudo, para aqueles que os freqüentavam, formas tanto de socia-bilidade quanto de trabalho diferentes daquelas que se pratica-vam nas universidades, mas, enri geral, eram, efetivamente osmesmos homens que nós encontraríamos^nos dois tipos de ins-tituições^ Seus interesses se alteraram ou se alargaram, algunsaspectos de seu modo devida podem ter evoluído, porém sUaspreocupações sociais e políticas permaneciam as mesmas eeram sempre os juristas e os funcionários, os médicos, os secre-tários e os notários, os cônegos e ps religiosos, pertencendo, ge-ralmente, a famílias consagradas aos estudos desde há uma ouduas gerações, que continuavam a formar o essencial do mun-do das pessoas de saber.

Não será necessário alongar-se sobre esse ponto. Meu pro-pósito era apenas o de mostrar que a renovação dos saberes -real, embora parcial - por volta de 1500, não acarretou, para tan-to, profundas mutações nem na estrutura nem nas funções so-ciais e políticas do grupo daqueles <[ue colocavam precisamen-

5 - Vide Universttà, accademie e società scientiflcbe inItália e in Germania dal cinqueccento ai setteccento. Bo-lonha: L, Boehm/E. Raimondi, 1981.

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te sua razão de ser no domínio desses saberes e no exercíciodas competências que deles resultavam.

Se b grupo dos honieás de saber permanece, portanto, da'Idade Média ao Renascimento, substancialmente semelhante asi próprio, sempre procurando adaptar-se a correntes intelec-tuais novas nascidas alhures, no essencial, em seu seio, ele tam-bém começou a ser alargar, englobando categorias de indiví-duos que lhe haviam sido, até então, bastante estranhas. Para di-zer a verdade, ps primeiros sinais desse alargamento são peivcéptíveis desde o século XV, talvez até desde o século XTV^ e, poroutro lado, tratava-se apenas de uma tendência que levaria ajn-da muito tempo para desabrochar plenamente.

Essa aníplíação ocorreu em duas direções. Inicialmente,aparece uma elite, ainda restrita, de artesãos (pensamos nas pri-meiras tipografias e impressores alemães e italianos, dos quaisalguns haviam passado pela faculdade de artes), de artistas (Leo- <-\nardo da Vincl ou Dürer são evidentemente casos extremps,mas significativos), de técnicos, engenheiros - militares ou ou-tros -.arquitetos, alcançar formas suficientemente elaboradas eabstratas de cultura erudita para que se possa qualificá-los dora-vante de homens de saber. A tipografia certamente desempe^nhou um grande papelna promoção social e cultural dessas ati-vidades que permaneciam ainda longe, np início do século XVI,de possuir a dignidade das disciplinas religiosas, filosóficas, lite-rárias ou jurídicas tradicionais, mas, incontestavelmente, germi-nava um novo movimento, de valorização e reconhecimento só-;ciai dos saberçs científicos è técnicos, em linhas gerais, ignora-do na Idade Média ocidental. '

A outra ampliação concerne à nobreza; Desejo falar aquida velha nobreza militar ou feudal atada a seus valores tradicichnais. Por muito tempo, essa nobreza havia desdenhado, como vi-mos, a cultura erudita e latina, contentando-se com um vernizbastante superficial - um pouco de literatura vernácula, algu-mas artes de entretenimento - ostentadas sobre as velhas virtu-des cavalheirescas, valentia, honra, generosidade. Os nobres davelha nobreza, bem pouco numerosos, que freqüentavam já a 'universidade, eram geralmente, na Idade Média, caçulas, destina-dos à Igreja ou reconvertidos para os ofícios da justiça.

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A".

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Com o Renascimento, as coisas mudaram um pouco, pri-meiramente na Itália, depois a Norte dos Alpes. De feto, muitosnobres permanecem sem qualquer Vergonha, por isso, comuma cultura bastante precária, às vezes até mesmo iletrados, en-quanto outros estudavam simplesmente para procurar integraras fileiras do clero ou aquelas, já bem providas, da toga. No en-tanto, vê-se então renascer a figura ~ que, no século XII, haviasido conhecida - do curialis educado, do 'cortesão' que, embo-ra guardasse um certo desprezo pelos diplomas e pelos aspec-tos mais técnicos das práticas escolares e acreditava não sacri-ficar nada dos charmes tradicionais da vida cavaleiresca (exer-cícios esportivos ou militares, artes mundanas de entretenimen-to, erotismo cortês), não desprezava a freqüência à universida-de, pelo menos de maneira efêmera, tomar de empreitada umaviagem de estudos, geralmente em torno de Paris ou da Itália,colecionar livros,iniciar-se nas novas disciplinas - belás-artes^ la-tinas e gregas, eloqüência e poesia, curiosidades naturais, talvez,para os mais devotos, as Sagradas Escrituras restituídas em suapureza original. Baldassar Castiglione (1478-1529), cavalheirode Mântua, que passou o essencial de sua existência nos cursosprincipescos de Mantoue e de Urbino, não se esqueceu de in-troduzir' essa dimensão cultural no retrato ideal que seu livrodo cortesão (1524).- o qual conheceria um grande sucesso emtoda a Europa da, Renascença - desenhara do aristocrata moder-no:

"Eu reprovo os Franceses - a galofobia era, desde Petrarca,um üos lugares comuns do humanismo italiano - dessesque julgam que as letras prejudicam a profissão das armas,e eu considero que não há ninguém a quem convém maisser um letrado do que um homem de guerra [ isto é, umnobre ]. Eu desejo, portanto, que essas qualidades combi-nadas e auxiliando uma à outra (o que seria bastante con-veniente), sejam encontradas em nossos cortesões."6

6 - Baldassar Castiglione, Lê livre du courtisan. Paris:Garnier/Fkmmariòn, 1991. p. 87

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Essa ampliação dos estudos para catègorias^soclals novM ,não se explica apenas como uin fenômeno de moda, mas teste-munha uma forte posição social do grupo das pessoas de saberao mesmo tempo que um grande poder de atração de uma cut rtura erudita, sem díjvida modernizada em certos aspectos, masfundamentalmente fiel, em princípio, às suas origens medievais.

Do tempo dos doutores àquele dos humanistas, pratica^mente não teria havido, portanto, ruptura - quando muito, mo-dernização, adaptação, abertura, sem as quais não haveria dinâ-mica social. Os últimos séculos da Idade Média já haviam dese-1

nhado, e por um tempo bastante longo, o lugar de que nossassociedades ocidentais disporiam para os saberes abstratos epara todos aqueles que tinham por profissão assegurar sua con-servação, sua difusão e, eventualmente, sua aplicação.

i Sem dúvida seria possível caracterizar o processo históri-co dessa escolha. Sem dúvida, poderíamos reprovar os homensde saber da Idade Média - e a seus herdeiros até o final do An-tigo Regime - por haver, por seus preconceitos e egoísmos, re-primido a inovação científica e técnica, retardado o crescimen-to econômico, reforçado, sem medida, as restrições políticas ereligiosas. Deixamos para o leitor julgar. Nós procuramos sim-plesmente ensaiar neste livro, sem nos atermos a qualquer apre-ciação moral, a descrição da emergência e da afirmação na cenasocial de um grupo de homens cujo destino ilustra, de uma cer-ta maneira, aquilo que pode ser o lugar e o alcance da culturana história.

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