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HOMEM CONTEMPORÂNEO METÁFORAS DA PSICOLOGIA E DA ARTE Henrique António Muga 2008

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A relação entre a arte e a psicologia através das épocas.

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Page 1: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

HOMEM CONTEMPORÂNEO

METÁFORAS DA PSICOLOGIA E DA ARTE

Henrique António Muga

2008

Page 2: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

2

ÍNDICE

Agradecimentos

Nota prévia

Introdução

Do transcendente ao imanente: emergência da psicologia

Da representação do objecto à auto-representação: da arte clássica à arte moderna

3

4

6

6

8

1. Máquina energética, animal irracional

1.1. Modelo psicanalítico

1.2. Romantismo, simbolismo, expressionismo, dadaísmo, surrealismo,

action-painting, teatro espontâneo e teatro do absurdo

10

10

21

2. Corpo falante, máquina de reacções

2.1. Modelo dos tipos e dos traços

2.2. Modelo behaviorista

2.3. Cubismo, abstraccionismo e funcionalismo

32

32

36

37

3. Bom selvagem

3.1. Modelo humanista

3.2. Pop art, arte cinética, op art, arte psicadélica, arte de acção,

arte do comportamento, body art, arte pobre, land art e organicismo

42

42

46

4. Cientista, computador

4.1. Modelo cognitivista

4.2. Arte conceptual

54

54

56

5. Performer, músico de jazz

5.1. Pós-modernidade e modelo sistémico-informacional

5.2. Arte pós-moderna

60

60

67

A concluir 73

Referências bibliográficas 74

Page 3: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

3

AGRADECIMENTOS

Para além do reconhecimento formal em causa, pretende-se neste ponto dar a conhecer aos

leitores todos aqueles que mais contribuíram para este trabalho.

Assim, começo por agradecer ao grande mestre inspirador deste ensaio, o psicólogo

Cândido Agra, cujas lições sobre “ética, ciência e estética” lançaram as sementes deste

trabalho.

Foi no terreno da leccionação da disciplina de Psicologia da Arte que tais sementes

germinaram, rebentaram e cresceram. As questões, pesquisas e criações dos meus ex-

alunos constituíram o adubo que alimentou e fortaleceu o processo da maturação. A todos

muito obrigado; à Sílvia Pinho, estudante de Artes Visuais - Fotografia, um bem-haja

especial pela gentil cedência dos direitos de autor do seu expressivo desenho.

Nas várias fases da poda e enxertia, o contributo de três historiadores de arte e

companheiros de missão foi fundamental. Ao Samuel Guimarães agradeço a leitura do

texto numa fase inicial, os seus comentários e as sugestões de novas referências

bibliográficas. Ao Fernando Peixoto, as apaixonadas lições informais sobre o teatro, a sua

história e interligação com a psicologia. Ao Francisco Jesus, a minha enorme gratidão pela

paciência para ler de forma atenta, profunda e rigorosa o texto numa fase final, pelas

precisas correcções, oportunas sugestões e inspiradoras reflexões.

Page 4: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

4

NOTA PRÉVIA

Embora formalmente separadas pelo espírito positivista moderno, a ciência e a arte

mantêm afinidades, convergências temáticas, trocas de conceitos e práticas, e confluências

discursivas. Com efeito, a análise dos discursos da psicologia e da estética sobre o Homem

evidencia, a par das especificidades inerentes à natureza de cada um dos conhecimentos e à

sua evolução paradigmática, não só influências mútuas como perspectivas intersectadas.

Analisar tais relações ou, mais precisamente, cruzar os modelos de personalidade com as

correntes artísticas contemporâneas, é o objectivo deste ensaio; pretende-se reflectir sobre

a forma como o ser humano é representado ao longo do século XX e relevar as imagens do

psiquismo contemporâneo.

O sentido dos discursos partilhados por estas duas áreas do saber é traduzido em metáforas.

A metáfora (do grego metaphorá, que significa “transporte”) é, em termos gramaticais, um

tropo – o emprego de uma palavra ou frase em sentido figurado – no qual a significação de

uma palavra se transporta para outra em virtude da relação de semelhança que se

subentende. As dezenas de conceitos que actualmente encontramos radicam na clássica

definição de Aristóteles, segundo o qual a metáfora consiste em dar a algo um nome que

pertence a algo mais. Para David Leary (1994) a metáfora é não só uma figura de

linguagem, a primeira entre muitas, mas também uma forma de pensamento. Analisando o

valor heurístico das metáforas na história do pensamento e da ciência ocidentais, este autor

defende a tese de que “a linguagem e o pensamento humano são fundamentalmente

metafóricos”. A partir da noção aristotélica, Leary define a metáfora como um processo

que “consiste em dar a uma coisa o nome ou descrição que pertence por convenção a algo

mais, com base nas semelhanças entre as duas”.

Assim, metaforizar é ver algo a partir do ponto de vista de outra coisa, é pensar num

fenómeno em termos que são vistos como sugestivos de outra coisa. Trata-se de uma figura

linguística tradutora de uma forma de pensamento criativo, já que permite encarar um

fenómeno através de uma nova de perspectiva, que associa várias imagens independentes

numa só composição. Portanto o recurso à metáfora parece-nos triplamente adequado ao

objectivo proposto: em primeiro lugar, a metáfora constitui uma característica fundamental

Page 5: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

5

do psiquismo humano; depois, ela permite fundir numa mesma imagem, discursos

emergentes de abordagens diferentes; finalmente, porque possibilita uma nova e mais

ampla perspectiva sobre o psiquismo do Homem contemporâneo.

O ensaio começa com uma introdução na qual se enquadra, por um lado, a emergência da

psicologia como o culminar de uma caminhada do transcendente até ao imanente, em

direcção à “individualidade” e, por outro, a passagem da arte clássica à arte moderna

enquanto mudança de paradigma estético, com um deslocamento da representação do

objecto para a auto-representação. Depois são propostos cinco grupos de metáforas numa

perspectiva diacrónica coincidente com os modelos de personalidade desenvolvidos pela

psicologia ao longo do século XX, e de forma tão sincrónica quanto possível com as

correntes artísticas contemporâneas.

Importa referir que tanto ao nível da psicologia como da arte, o campo de análise se

circunscreve essencialmente ao mundo ocidental; para além disso, não se pretende fazer

uma abordagem exaustiva e profunda dos modelos de personalidade1 e muito menos das

correntes e movimentos artísticos contemporâneos.

A semente deste ensaio foi lançada no contexto de uma disciplina curricular de mestrado,

designada “Ética, ciência e estética”, leccionada por Cândido Agra, corria o ano de 1995.

Germinou e começou a desabrochar no terreno da leccionação da disciplina de “Psicologia

da arte” junto de estudantes de cursos superiores artísticos, num ensejo de os ajudar a

compreender a personalidade humana por analogia com a arte. Simultaneamente foi-se

tornando cada vez mais evidente e clara a grande capacidade da arte, como refere Rudolf

Arnheim (1992), para interpretar a experiência humana ou, segundo o historiador Ernst

Gombrich (1995), de expressar uma época. Assim, espera-se que a actual configuração do

trabalho possa ser útil não só a estudantes tanto de artes como de psicologia, como a todas

as pessoas interessadas em aprofundar o conhecimento sobre o ser humano

contemporâneo.

Page 6: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

6

INTRODUÇÃO

Tanto a psicologia como a arte moderna surgem no culminar de um mesmo processo, uma

caminhada em direcção ao indivíduo, que elege, segundo o filósofo francês Michel

Foucault (1966), pela primeira vez, no campo do saber ocidental, o ser humano como

objecto de estudo e compreensão. É o enquadramento da emergência da psicologia e da

arte moderna em tal processo que se procura delinear a seguir.

Do transcendente ao imanente: emergência da psicologia

O conhecimento humano evoluiu, de acordo com o epistemólogo do século XIX, Augusto

Comte (referido pelo filósofo Julián Marías, 1973), ao longo de três estados: teológico,

metafísico e positivo.

O estado teológico ou fictício é um estado provisório e preparatório, no qual a inteligência

procura as causas e os princípios das coisas através de explicações míticas ou religiosas, e

passa por três fases: a fetichista, na qual se personificam as coisas e se lhes atribui um

poder mágico ou divino; a politeísta, em que a alma é retirada das coisas materiais e

transferida para uma série de divindades, cada uma das quais representando um grupo de

poderes; e a monoteísta, em que todos esses poderes divinos são reunidos e concentrados

numa só entidade, chamada Deus. É um período em que predomina a imaginação e

corresponde à infância da humanidade.

No estado metafísico ou abstracto, fase de transição, o espírito humano continua a procurar

os conhecimentos absolutos mas torna-se essencialmente crítico; equivale à crise da

adolescência no desenvolvimento individual. Procurando explicar a natureza dos seres, já

não recorre a agentes sobrenaturais, mas a entidades abstractas (o princípio, a essência,

etc.), algo distinto das coisas, embora mais próximo delas; os poderes previamente

concentrados em Deus são deslocados para uma nova entidade geral, a Natureza.

Por fim, o estado positivo ou real, é definitivo. Agora a imaginação fica subordinada à

observação e à experimentação; o espírito humano apoia-se nas coisas, no que é dado e

busca apenas os factos e as suas leis; é, por exemplo, abrindo e observando os cadáveres

1 Por norma, apenas para os autores exteriores ao campo da psicologia – área de referência do autor do ensaio

– será apontada a respectiva formação ou actividade principal.

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que se passa de uma medicina das essências para uma medicina das espécies. O espírito

positivo é relativo e nunca absoluto; o saber tem que se aproximar incessantemente do

limite ideal fixado pelas nossas necessidades, e a sua finalidade é a previsão racional.

Passa-se assim de um espaço transcendental, em que se procura descrever os fenómenos

com base num discurso ora teológico, ora metafísico, para o espaço do imanente, visando

compreender a realidade de forma científica.

A tal caminhada do saber não é alheia a revolução da estratégia do poder operada ao longo

do século XIX. Analisando o saber ao nível da rede de relações com o poder (poder

enquanto relação de forças, que está em toda a parte e não apenas localizado numa

instituição ou Estado), Foucault (1975) defende que a forma de governo que mantinha a

ordem social com o direito de conduzir à morte, dá lugar ao "biopoder", uma forma de

governo que faz viver, que gere a vida.

O poder deixa de ser exercido pela soberania e passa a ser exercido por dispositivos

corporizados em técnicas disciplinares: a repartição dos espaços vitais e dos indivíduos

por esses espaços (até ao século XVIII, a vida não era repartida; na habitação as divisões

das casas não tinham funções fixas, não havia espaços especializados; a partir de então a

estrutura da casa mudou, cada divisão assume uma determinada função, e a introdução do

corredor permite aos ocupantes deslocar-se sem ter de atravessar as várias divisões; ao

nível trabalho, e como ironizava o engenheiro norte-americano Frederick Taylor, o “pai”

da organização científica do trabalho, no final do século XIX, as fábricas eram uma grande

feira, havia que colocar “o homem certo no lugar certo”; no campo da “lixeira humana”, a

repartição dos criminosos, dos loucos, dos pedintes, etc., que partilhavam o mesmo espaço,

materializa-se no surgimento da cadeia, do manicómio e do asilo); a organização do

tempo, isto é, uma repartição económica da vida do indivíduo (é a ideia bem moderna de

que há um tempo para tudo, de que há, por exemplo, um tempo para aprender e um tempo

para trabalhar); o controlo das actividades e a vigilância consiste na sujeição do corpo a

automatismos e à disciplina; o exame sintetiza as outras técnicas, articulando o poder e o

saber; visa a norma e produz a vontade e a necessidade de conhecer o indivíduo. Ilustrativa

e paradigmática desta caminhada em direcção ao indivíduo e fundamental na emergência

da psicologia é a reforma penal operada em meados do século XIX: a pena expiatória,

aplicada até então em função da gravidade do acto criminoso, dá lugar à pena correctiva,

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8

que pune em função das causas, das características do indivíduo concreto; por exemplo, o

pirómano ou o cleptomaníaco (conceitos emergentes no campo da medicina mental e

tradutores de semelhante reforma), têm uma pena diferente da de uma pessoa sem tais

patologias; torna-se pois necessário conhecer a indivíduo.

Portanto, o positivismo e o biopoder visam a cientificidade e a individualidade. Como

consequência, assiste-se não só à separação das ciências entre si, como à separação da

ciência em relação à estética e à ética, e ao afastamento de todas elas face ao senso comum.

É nesta procura da individualidade que emerge, nos finais do século XIX, a psicologia

como, de resto, as demais ciências humanas. A individualidade da psicologia é traduzida

essencialmente no constructo “personalidade”. Trata-se de um termo classicamente

originário do teatro – no latim, persona significa a máscara de teatro, no etrusco, phersu é

uma figura inteiramente mascarada, e no teatro grego, persona é o actor colocado atrás da

máscara. A filosofia escolástica adopta o termo personalitas para traduzir o que é

específico da pessoa. Objecto central da psicologia, o estudo da personalidade foi regido,

ao longo do século XX, por vários discursos, diferentes modelos e múltiplas teorias, que

seguidamente se apresenta e relaciona com as correntes artísticas contemporâneas.

Da representação do objecto à auto-representação: da arte clássica à arte moderna

Associada à rotura positivista no campo da ciência, opera-se uma outra ao nível da estética,

marcando a transição da arte clássica para a arte moderna. Com efeito, de acordo com

Foucault (1966), enquanto que a arte clássica constitui uma representação fiel do objecto, é

realista, mimética, pelo contrário, a arte moderna é essencialmente abstracta, constitui uma

representação subjectiva do próprio artista e, consequentemente, o ser humano torna-se

objecto de representação.

Paradigmática desta revolução estética é a obra de Diego Velásquez, As meninas, de 1656

[1]. Trata-se de uma das pinturas mais complexas e intrigantes da história da arte, contendo

um visível e um invisível. O visível é a princesa Margarida ao centro do quadro, rodeada

por damas de companhia e outras personagens da corte, e um artista a pintar uma tela. Esta

está voltada de costas para nós, não vemos qual o motivo da representação, é o invisível;

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pelo olhar do pintor e demais personagens o objecto da pintura encontra-se na posição do

espectador, somos nós; se olharmos para o espelho que reflecte a tela verificamos que o

motivo é o rei Filipe IV e esposa. Temos portanto representada, simultaneamente, a arte

clássica e a arte moderna, ou seja, um pintor a representar um objecto e, ao mesmo tempo a

representar-se a si próprio e representar-nos a todos nós.

1. Diego Velázquez, As meninas, 1656

As formas e os conteúdos da auto-representação evoluíram naturalmente com a própria

evolução do ser humano e da técnica, cristalizando-se em inúmeras correntes e

experiências estéticas. Centrando-nos sobretudo na contemporaneidade, analisamos a

expressividade das principais correntes artísticas, à luz da teoria, crítica e história da arte,

em paralelo com os modelos de personalidade.

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1. MÁQUINA ENERGÉTICA, ANIMAL IRRACIONAL

A caminhada do transcendente ao imanente em direcção ao indivíduo, conduz às forças

activas que actuam no interior da pessoa, às profundezas do inconsciente, ao mundo do

sonho e à natureza irracional do ser humano. Tal aventura inicia-se tanto na área da

psicologia, pela batuta da psicanálise nos finais do século XIX, como no campo artístico,

um século antes.

1.1. MODELO PSICANALÍTICO

É pela mão de Sigmund Freud – descendente de família judia residente na Áustria, médico,

fundador da Psicanálise – que o mito do Homem racional capaz de lutar contra os instintos

animalescos, é posto em causa, originando a terceira ferida narcísica da humanidade pós-

renascentista; depois do golpe desferido pela teoria heliocêntrica evidenciando que afinal

não habitamos o centro do universo, e do atentado Darwinista à crença numa origem

divina, surge a tese freudiana de que não mais somos amos e senhores de nós próprios mas

sim dominados pelo inconsciente.

Na viragem do século XIX para o século XX a revolução industrial, iniciada em Inglaterra

um século antes, expandia-se a pleno vapor por toda a Europa e América, acompanhada

por fenómenos migratórios do campo para a cidade. A inadaptação à máquina, os acidentes

de trabalho, a necessidade de adaptação a novos hábitos e contextos de vida, originam

pequenas psicopatologias quotidianas (lapsos linguísticos, actos falhados, etc.) e neuroses

que requerem um modelo explicativo e de intervenção. Imbuído precisamente pelo modelo

da máquina a vapor, Freud faz do psiquismo uma máquina composta por três instâncias2: o

2 Esta organização do psiquismo constitui a segunda tópica, que Freud elaborou a partir de 1920, em

substituição da primeira tópica, apresentada em 1900, e na qual distingue os sistemas inconsciente

(constituído por conteúdos recalcados – desejos sexuais inaceitáveis, impulsos imorais, motivações violentas,

experiências vergonhosas, medos, etc.), pré-consciente (conhecimentos e recordações não actualizados, mas

acessíveis à consciência) e consciente (situado na periferia do aparelho psíquico, recebendo ao mesmo tempo

as informações do mundo exterior e as provenientes do interior).

A reformulação da primeira tópica deveu-se à tomada em consideração cada vez mais intensa das defesas

inconscientes, o que não permite fazer coincidir os pólos do conflito defensivo com os sistemas previamente

definidos: recalcado – inconsciente / ego – pré-consciente e consciente (cf Laplanche e Pontalis, 1967).

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11

id, o ego e o super-ego [2]. O id, componente biológica e origem de toda a personalidade, é

a parte obscura e irracional da personalidade, a sede das pulsões que se chocam entre si

pretendendo exteriorizar-se, e funciona de acordo com o princípio do prazer – visa a

satisfação imediata e total dos desejos. O ego, componente racional da personalidade, serve

de intermediário entre os impulsos do id e as interdições do mundo exterior, sendo regido

pelo princípio da realidade – analisa as condições mais favoráveis para que os impulsos

possam ser satisfeitos com segurança, garantindo a unidade e integridade do indivíduo. O

super-ego, componente moral da personalidade, é composto pela consciência, que impede

a prática de actos moralmente reprováveis, e pelo eu-ideal, que motiva à realização de

actos morais e a ser perfeito. Tendo objectivos opostos, estas instâncias relacionam-se de

forma conflituosa, gerando ansiedade, um estado de tensão que precisa de ser reduzido3,

entrando em acção os mecanismos de defesa4.

2. Aparelho psíquico (S. Freud)

3 Em analogia com o princípio da conservação da energia inerente à Física, Freud conceptualiza o psiquismo

como uma complexa rede de neurónios, produtora de energia que tem de ser libertada. 4 Alguns dos principais mecanismos de defesa teorizados por Freud são a repressão (operação psíquica

tendente a fazer desaparecer da consciência um conteúdo – ideia, afecto, etc. – desagradável ou inoportuno),

a formação reactiva (atitude ou hábito psicológico de sentido oposto a um desejo recalcado e constituído em

reacção contra ele – o pudor a opor-se ao exibicionismo, por exemplo), a regressão (retorno a um período de

vida anterior menos frustrante), a negação (processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um dos

desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-se dele negando que lhe

pertença), a racionalização (reinterpretação de um comportamento ou sentimento para torná-lo mais

aceitável e menos ameaçador), e a sublimação (processo através do qual a energia sexual é derivada para um

alvo não sexual ou em que visa objectos socialmente valorizados, como a actividade artística e a investigação

intelectual) (cf Laplanche e Pontalis, 1967).

EGO

SUPER-EGO

ID

Inconsciente

Consciente

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Como qualquer máquina, o aparelho psíquico necessita de energia: é a líbido, de origem

sexual e reservada no id, na fronteira entre o somático e o psíquico, que faz mover o

psiquismo. A forma como esta energia é investida, a natureza da relação com o objecto5, dá

origem às fases de desenvolvimento psico-sexual – oral, anal, fálica, latência e genital – ao

longo da infância, cujas marcas vão determinar a personalidade adulta [3].

Fase oral (até aos 18 meses): a líbido é investida na zona oral; a satisfação biológica que a sucção provoca é

acompanhada de prazer, que a criança vai querer repetir mesmo na ausência do seio; problemas vivenciados

nesta fase, como os inerentes a um desmame precoce, dão origem a uma personalidade adulta de tipo oral –

dependência dos outros para obter estima, reacção aos obstáculos através de comportamentos ligados à boca

(comida, bebida, fumo, beijo).

Fase anal (18-36 meses): com o treino da higiene, a criança apercebe-se do valor simbólico que as fezes e a

urina têm na relação com os pais (por exemplo, a retenção levará os pais a ficar mais tempo junto dela); têm

origem nesta fase o carácter anal (parcimonioso, petulante e pedante) e o carácter uretral (ambicioso e

competitivo).

Fase fálica (3-6 anos): desperta a curiosidade sexual e surge o conflito edipiano6 – desejo inconsciente que o

filho experimenta por sua mãe, a par de uma manifestação de hostilidade face ao pai; com a superação do

complexo de Édipo, os investimentos nos pais são abandonados e substituídos por identificações7; a

personalidade fálica caracteriza-se pelo exibicionismo, narcisismo, hipersensibilidade e necessidade de

realização.

Fase de latência (6-11 anos): a pulsão sexual fica adormecida; é um período de intensa aculturação, em que

se desenvolvem novas atitudes, como a vergonha e a ternura, e que está na origem do ascetismo.

5 A relação de objecto ou relação objectal designa o modo de relação do indivíduo com o seu mundo,

relação que é o resultado complexo e total de uma determinada organização da personalidade, de uma

apreensão mais ou menos fantasmática (o fantasma ou a fantasia é uma encenação imaginária em que o

indivíduo está presente e que figura, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a

realização de um desejo) dos objectos e de certos tipos privilegiados de defesa.

O conceito foi aprofundado, na década de 1930, pela neo-psicanalista austríaca Melanie Klein, ao nível do

primeiro ano de vida da criança, defendendo que neste período as relações de objecto atravessam duas

posições: posição paranóide – nos primeiros quatro meses, a projecção simultânea das pulsões agressivas e

das pulsões libidinais nos objectos (principalmente a mãe) cliva-os em dois, o «bom» e o «mau» objecto;

posição depressiva – a partir dos quatro meses, a criança passa a ser capaz de apreender a mãe como objecto

total, simultaneamente bom e mau; enquanto que antes a criança temia ver os objectos perseguidores atacar o

ego, agora ela receia destruir e perder o objecto amado; esta angústia é combatida através de defesas

maníacas (como a omnipotência, a idealização, a identificação projectiva, etc.) e superada quando o objecto

amado é introjectado de forma estável e tranquilizadora (cf Laplanche e Pontalis, 1967). 6 Freud recupera o mito grego da tragédia de Sófocles, segundo a qual Édipo, filho de Laios, rei de Tebas,

matou o seu pai e casou incestuosamente com a sua mãe Jocasta. 7 A identificação é o processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um

atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa; a personalidade

constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações. A identificação abrange na linguagem corrente

uma série de outros conceitos psicológicos, como imitação, empatia, simpatia, contágio mental, projecção,

etc. O termo projecção designa a operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou

coisa, qualidades, sentimentos e desejos que ele ou recusa ou desconhece em si mesmo. O termo é utilizado

num sentido mais geral em neurofisiologia e em psicologia para designar a operação pela qual um facto

neurológico ou psicológico é deslocado e localizado no exterior, quer passando do centro para a periferia,

quer do sujeito para o objecto (cf Laplanche e Pontalis, 1967).

Page 13: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

13

Fase genital (a partir da puberdade): retorno da energia libidinal aos órgãos genitais, e procura de um

companheiro para a satisfação das necessidades sexuais; o desenvolvimento de uma personalidade genital

implica a superação da ambivalência das primeiras fases (sucção-mordedura, retenção-evacuação, pai-mãe),

permitindo o pleno desenvolvimento do amor.

3. Fases do desenvolvimento psico-sexual (S. Freud)

Alvo principal dos mais críticos, a sexualidade infantil é para Freud muito importante; com

ela passa-se da animalidade para a humanidade, de um corpo que funciona de modo

instintivo para um corpo regulado de forma simbólica e imaginária.

Portanto, a razão de todo o comportamento é o desejo inconsciente, o qual não é mais do

que a pulsão sexual, a procura de prazer. Esta tese, defendida por Freud numa primeira fase

(marcada pelas obras Interpretação dos sonhos, de 1900, e Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade, de 1905) é, contudo, posta em causa sobretudo após a I Guerra Mundial; o

confronto com o facto de os sujeitos com traumas8 de guerra tentarem esquecer os

acontecimentos traumáticos ao nível consciente, mas no sonho voltarem repetitivamente a

lembrar-se de tudo, leva-o a questionar a explicação dos sonhos9 com base no princípio do

prazer; aliás constata que esta repetição negativa funciona também em actos,

nomeadamente na neurose de destino (como no caso de uma paciente, de 35 anos, que

namorava apenas com marginais que ela sustentava e a faziam sofrer – uma repetição do

trauma infantil, uma fixação negativa à figura do pai alcoólico), e que mesmo a própria

vida psicológica normal é algo repetitiva (há uma tendência a repetir as mesmas histórias,

os mesmos amores e os mesmos erros)10

. Assim, na obra Para além do princípio do

prazer, de 1920, Freud elege a compulsão à repetição como o princípio geral do

8 O trauma é um acontecimento da vida de um indivíduo que se define pela sua intensidade, pela

incapacidade em responder-lhe de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogénicos duradouros na

organização psíquica. 9 O trabalho do sonho engloba duas operações: a produção dos pensamentos do sonho (a partir de estímulos

corporais e de restos diurnos) e a sua transformação em conteúdo do sonho. Esta segunda operação recorre a

quatro mecanismos principais: condensação (uma representação única representa por si só várias cadeias

associativas, em cuja intersecção se encontra), deslocamento (o facto de a acentuação, o interesse, a

intensidade de uma representação ser susceptível de se soltar para passar a outras representações

originariamente pouco intensas), consideração à figurabilidade (exigência a que estão submetidos os

pensamentos do sonho – eles sofrem uma selecção e transformação que os tornam aptos a serem

representados em imagens, sobretudo visuais), e elaboração secundária (remodelação do sonho destinada a

apresentá-lo sob a forma de uma história relativamente coerente e compreensível) (cf Laplanche e Pontalis,

1967). 10

Ao nível da criação artística, Giorgio Di Genova (1994) aponta quatro artistas contemporâneos – Piet

Mondrian, Alberto Giacometti, Giuseppe Capogrossi e Andy Warol – como exemplos de compulsão de

repetição.

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14

funcionamento da psique. No caso das experiências traumáticas, há inicialmente uma

repetição compulsiva e regressiva ao que aconteceu; posteriormente há uma repetição

restitutiva, que elabora o acontecimento vivido, visando o restabelecimento do equilíbrio, e

a religação11

à situação anterior ao trauma. Os principais traumas da vida humana são o

nascimento, o desmame, e as feridas narcísicas inerentes ao conflito edipiano12

; estes

traumas dão origem à pulsão de morte, o thanatos – tendência para levar os seres vivos a

um estado anterior à própria vida, traduzindo-se no ódio, na agressividade e culpabilidade

(é a pulsão oposta ao eros ou pulsão de vida – pulsões sexuais e de auto-conservação,

garantia da continuidade da espécie e da coesão interna do cosmos). São estes os

acontecimentos que é necessário organizar – construir mentalmente a ausência da mãe,

perceber que não mais vai haver quem nos pegue ao colo, elaborar o narcisismo13

– para

alcançar o equilíbrio psíquico.

Portanto, a motivação deriva não só da procura do prazer, mas também dos traumas, das

perdas, dos pontos de desligação. Trata-se de uma forma indirecta da procura de prazer, de

um prazer associado ao thanatos e ao nirvana; o prazer de nirvana14

representa a tentativa

de eliminar totalmente as tensões, a procura do prazer máximo, absoluto e imediato;

diferencia-se do prazer de constância, que é a tentativa de manter a um nível tão baixo ou,

pelo menos, tão constante quanto possível, a quantidade de excitação do aparelho psíquico.

11

Trata-se de um mecanismo que encontra um paralelo ao nível da religião; o termo “religião” (do latim “re-

ligare”) significa precisamente a religação do Homem à divindade, no caso da católica, depois da desligação

inerente ao pecado original e consequente expulsão do paraíso. Embora com outro foco de atracção, também

o ioga põe em jogo um mecanismo semelhante. Proveniente do sânscrito, yoga significa unir(-se), juntar(-se);

assim, na tradição hindu, o ioga visa a auto-realização, que ocorre quando a consciência se volta para o

interior e se une com a sua fonte – o self. 12

Numa perspectiva mais universalista (desenvolvida nas obras Totem e Tabu, de 1913, e Moisés e o

Monoteísmo, de 1939), Freud vê no complexo de Édipo a matriz da civilização: a culpabilidade consequente

ao assassínio do pai primitivo (mito criado por Freud) ou do profeta (Moisés) é a base de uma nova

organização social. Toda a religião é fundada sobre a ideia de pecado, isto é, o sentimento de culpa por não

se atingir um padrão determinado; todo o pecado pode ser expresso em termos da desobediência ao Pai ou de

profanação da Mãe. Também nos mitos, que representam sob disfarce os mais primitivos anseios e receios da

humanidade, o incesto e a castração são os temas principais. As interdições totémicas (não matar o totem, não

ter relações com um indivíduo do mesmo totem) e a sublimação a que obrigam são o motor da cultura e do

progresso. 13

A elaboração psíquica designa o trabalho de integração das excitações no psiquismo e em estabelecer

entre elas conexões associativas. O narcisismo, por referência ao mito de Narciso, o amor que se tem pela

imagem de si próprio, é diferenciado por Freud em narcisismo primário (estado precoce em que a criança

investe toda a sua líbido em si mesma) e narcisismo secundário (o retorno ao ego, da líbido retirada dos seus

investimentos objectais); assim, elaborar o narcisismo implica transformar a energia libidinal, derivando-a

para outros objectos ou ligando-a a novos afectos (cf Laplanche e Pontalis, 1967). 14

O nirvana é um conceito budista difundido no ocidente pelo filósofo alemão Arthur Shopenhauer, no

século XIX, que significa a extinção do desejo humano, o aniquilamento da individualidade que se funde na

alma colectiva, um estado de quietude e felicidade perfeita, e que a meditação e o ioga ajudam a alcançar.

Page 15: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

15

Contudo, a satisfação do desejo nunca é total; o acesso à civilização é sempre repressivo

porque exige a sublimação dos desejos individuais; o processo de aculturação implica o

adiamento da satisfação pulsional, uma vida imaginária sem a presença do objecto do

desejo, a dessexualização. Se, do ponto de vista marxista, tal repressão é determinada pela

infra-estrutura económica, que explora e aliena as massas, a sublimação é um precioso

aliado produzido por aquela, ao mesmo tempo que a mantém e reproduz.

A realização do desejo sem esquecer o real é o objectivo da terapia psicanalítica. Assente

inicialmente no método catártico15

, a terapia criada por Freud utiliza a associação livre, a

análise da transferência e a interpretação16

como técnicas para atingir o latente, modificar

a estrutura da personalidade e produzir uma nova metáfora do desejo.

Em suma, Freud defende uma visão determinista da personalidade, inscrita no passado,

nomeadamente na primeira infância: o poder da nossa história é sempre actual, pois os

primeiros acontecimentos da nossa vida continuam a pesar sobre nós. Advoga um

dinamismo psicológico alimentado pela líbido, pelos impulsos inconscientes, pela procura

do prazer; o comportamento manifesto é uma metáfora, um símbolo, uma sombra do

inconsciente. Trata-se de uma perspectiva pessimista da vida humana, dominada pela

culpabilidade, pela frustração dos impulsos e consequente tensão, ansiedade e conflito: o

15

O método catártico é um método de psicoterapia em que o efeito terapêutico procurado é uma «purgação»

(catharsis), uma descarga adequada dos afectos patogénicos; o tratamento permite ao indivíduo evocar e até

reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afectos estão ligados e ab-reagi-los (isto é, libertar-se deles

através de uma descarga emocional); trata-se de um processo inspirado em Aristóteles, segundo o qual a

catarse constitui o efeito produzido pela tragédia (a imitação de uma acção virtuosa que, por meio do temor e

da piedade, suscita a purificação de certas paixões). Este método foi utilizado por S. Freud entre 1880 e 1895,

período em que a terapêutica psicanalítica se define progressivamente a partir de tratamentos operados em

estado hipnótico; este, de acordo com J. Breuer, é um estado de consciência análogo ao criado pela hipnose

(sono artificial provocado quer por um medicamento quer por sugestão), e no qual os conteúdos de

consciência emergentes pouco ou nada entram em ligação associativa com o restante da vida mental (cf

Laplanche e Pontalis, 1967). 16

O método da associação livre consiste em exprimir indiscriminadamente todos os pensamentos que

acodem ao espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra, número, imagem de um sonho), quer de

forma espontânea; visando contrariar a auto-censura, ela permite a utilização do imaginário. A transferência

designa o processo pelo qual os desejos inconscientes se actualizam sobre determinados objectos no quadro

de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente no quadro da relação analítica. A

interpretação é o destaque, pela investigação analítica, do sentido latente existente nas palavras e nos

comportamentos; tem a ver com o simbólico, traz à luz as modalidades do conflito defensivo e tem em vista o

desejo que se formula em qualquer produção do inconsciente (cf Laplanche e Pontalis, 1967).

Page 16: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

16

ser humano é um ser insatisfeito17

, carente e rebelde porque tendo provado na sua infância

o fruto da árvore da vida, ele sabe que é bom e nunca o esquece.

É precisamente contra o determinismo, o mecanicismo, o pansexualismo e o pessimismo

de Freud que se insurgiram dois dos seus primeiros e mais importantes discípulos, Alfred

Adler e Carl Jung.

Alfred Adler, igualmente austríaco, funda em 1911 a Psicologia Individual e enfatiza,

referem Melvin Marx e William Hillix (1963), a vontade de poder como a mais importante

força motivadora na vida dos homens (por vezes o sexo é um sintoma dessa vontade). É

nas condições de vida da criança (que não é um pequeno animal sexual cujos desejos

incestuosos devam ser reprimidos, mas um pequeno e impotente organismo, cujas

necessidades têm de ser satisfeitas por adultos poderosos), na reacção psicológica à

inferioridade orgânica ou imaginada que se encontram as raízes da vontade de poder. A

compensação dessa inferioridade explica a natureza de muitos sintomas neuróticos (como

o complexo de inferioridade ou o complexo de superioridade) e ajuda a determinar o estilo

de vida da pessoa. Por outro lado, Adler transfere a ênfase dos instintos biológicos inatos

para as relações sociais dentro da família, como a rivalidade entre irmãos, a ordem de

nascimento, etc. Embora as experiências infantis sejam importantes, elas não são

determinantes, a pessoa tem livre arbítrio e capacidade de moldar o seu próprio

desenvolvimento; a meta principal é a superioridade ou perfeição, isto é, tornar a

personalidade um todo completo.

Carl Jung, suíço, funda em 1914 a Psicologia Analítica. Abandonando a abordagem

clínica e recorrendo ao estudo dos mitos e das produções artísticas em diferentes eras e

diversas culturas, Jung (referido por Duane Schultz e Sydney Schultz, 2001) amplia o

redutor conceito freudiano de líbido, definindo-a como uma força dinâmica mais

generalizada. Esta energia psíquica opera de acordo com três princípios: o princípio dos

opostos (todos os aspectos da psique têm o seu oposto, e essa oposição gera energia

psíquica), o princípio de equivalência (a energia nunca é perdida, mas deslocada de uma

parte da personalidade para a outra) e o princípio da entropia (há uma tendência na

personalidade para o equilíbrio).

17

Importa realçar mais uma influência da filosofia zen, que considera como uma das características básicas

Page 17: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

17

Enquanto que Adler minimiza o papel do inconsciente, Jung amplia-o mais do que Freud,

dotando-o de uma dimensão histórica e universalista. Com efeito, Jung conceptualiza a

personalidade como um conjunto de sistemas distintos mas interactuantes, sendo os

principais, o ego, o inconsciente pessoal e o inconsciente colectivo. O ego é a concepção

que a pessoa tem de si mesma, a mente consciente em contacto com a realidade. O

inconsciente pessoal é o reservatório de material que já foi consciente, mas foi reprimido

ou esquecido por ser perturbador ou insignificante. Situado a um nível mais profundo está

o inconsciente colectivo, uma região obscura e nebulosa que contém a herança filogenética,

as experiências herdadas de espécies humanas e pré-humanas, sob a forma de arquétipos.

As estruturas arquetípicas são temas, símbolos, imagens, padrões recorrentes,

predisposições para perceber ou actuar de uma determinada maneira. Entre os múltiplos

arquétipos18

há quatro mais desenvolvidos que outros e que influenciam a psique mais

consistentemente: a persona, a anima, o animus, a sombra e o eu ou self. A persona é a

máscara apresentada por um indivíduo à sociedade, a parte dele próprio que deseja tornar

pública e que pode ou não servir à função de esconder a personalidade real. A anima e o

animus representam o reconhecimento por parte de Jung de que os humanos são

essencialmente bissexuais; a anima é a parte feminina do psiquismo do homem, e o animus

a parte masculina da psique da mulher; a complementaridade da nossa natureza é bem

ilustrada pelo símbolo do Yin-Yang [4]19

. A sombra é o lado obscuro da personalidade, a

parte do inconsciente colectivo herdada dos ancestrais pré-humanos, os instintos animais

básicos e primitivos; pode revelar-se sob a forma de comportamentos imorais, mas também

através da espontaneidade, criatividade e emoção. O eu representa os esforços do Homem

para alcançar a unidade, a totalidade, a integração de todas as partes da personalidade,

expressando-se visualmente no símbolo da mandala ou círculo mágico; o eu emerge

apenas quando os demais sistemas psíquicos se tornam suficientemente separados para

exigir uma integração, o que ocorre apenas por volta da meia-idade – um período de rotura,

da existência, a insatisfação, cuja fonte é o desejo. 18

Um arquétipo importante do povo luso é denominado por saudade. Como escreve A. Fernandes Fonseca

(1990), foi Teixeira de Pascoais, na segunda década do século XX, quem melhor definiu este arquétipo psico-

social português, a partir do sincretismo sentimental entre dois contrários: a lembrança presa no passado e a

esperança projectada no futuro; efectivamente, a saudade, como motivação e génese de um pensamento

reflexivo e como expressão de um comportamento que cultiva o passado para se projectar no futuro, parece

corresponder a “um estar no mundo” tipicamente português. 19

O lado direito, escuro, representa aspectos femininos (anima) e o lado esquerdo, claro, representa aspectos

masculinos (animus); o ponto de cor oposta em cada um dos lados indica a expressão das características do

arquétipo oposto.

Page 18: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

18

em que o foco da personalidade muda de externo para interno, numa tentativa de equilibrar

o inconsciente e o consciente, visando a integração dos opostos e a individuação.

Opondo-se ao determinismo da infância defendido por Freud, e à semelhança de Adler,

Jung defende que a personalidade não é apenas influenciada pelo passado mas também

pelo futuro, não é somente determinada pelo que fomos mas igualmente pelo que queremos

ser20

.

4. Yin-Yang

Entre outros neopsicanalistas, referidos por Schultz & Schultz (2001), destacam-se Karen

Horney e Erich Fromm, ambos inseridos na orientação social da psicanálise, na linha de

Adler.

Karen Horney, nasceu na Alemanha e desenvolveu a sua teoria – Psicanálise Humanista –

a partir da década de 1930, altura em que emigrou para os Estados Unidos. Contestando

Freud nas suas teorias sobre a psicologia feminina (que as mulheres tinham inveja do pénis

e imagens inferiorizadas do seu corpo, ao que ela contrapõe a inveja do útero por parte dos

homens), Horney enfatiza a necessidade de segurança. Esta depende do facto de a pessoa

ser amada e desejada quando criança; quando essa segurança é enfraquecida, é induzida a

hostilidade, a qual pode ser reprimida pela criança em virtude de uma sensação de

desamparo ou medo dos pais; reprimi-la leva à ansiedade básica – uma sensação de estar

só e indefeso num mundo hostil. As formas de protecção contra a ansiedade básica – obter

afecto, ser submisso, obter poder, afastar-se dos outros – podem tornar-se impulsos ou

tendências neuróticas: aproximar-se das pessoas (personalidade submissa), movimento

contra as pessoas (personalidade agressiva), e afastamento delas (personalidade

desprendida). O objectivo da vida é a realização do self, uma ânsia inata de crescer, cujo

processo podemos moldar e mudar conscientemente.

Erich Fromm, nasceu na Alemanha e emigrou para os Estados Unidos nos anos 30, à

semelhança de Horney, com quem teve um grande caso, tendo desenvolvido as suas teorias

a partir dos anos 40. Para Fromm o dilema humano básico é a liberdade versus segurança;

no decorrer da história, à medida que as pessoas foram ganhando cada vez mais liberdade,

20

Encontramos uma posição semelhante na poética de Fernando Pessoa, segundo o qual “vivemos no

passado e no futuro, dormimos no presente”.

Page 19: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

19

foram-se sentindo mais solitárias e alienadas; a Idade Média, uma época de pouca

liberdade individual, foi a última era de solidariedade e segurança. O desenvolvimento de

um indivíduo assemelha-se ao desenvolvimento da humanidade: à medida que a criança

vai crescendo, ganha cada vez mais independência e liberdade à custa da segurança dos

elos maternais básicos. Da tensão entre a vontade de ter liberdade e de ter segurança

resultam seis necessidades psicológicas: de ligação, de transcendência, de criar raízes, de

identidade, de uma estrutura de orientação e de um objecto de devoção, emoção e estímulo.

A meta máxima e inata da vida é a realização das nossas potencialidades.

Um retorno a Freud é a proposta que o francês Jacques Lacan desenvolve entre os anos 40

e 70. Baseado na dialéctica de Hegel, na antropologia de Lévi-Strauss e na linguística de

Ferdinand Saussure, Lacan (1966) estrutura o espaço habitado pelo ser falante em três

registos: o imaginário, o simbólico, e o real.

O imaginário é o registo em que se situa o ego, é o lugar das identificações e das relações

duais. O ego da criança, em virtude da prematuração biológica, constitui-se a partir da

imagem do seu semelhante (ego especular). Ou seja, entre os seis e os dezoito primeiros

meses, a criança, ainda num estado de impotência e de descoordenação motora, antecipa

imaginariamente a apreensão e o domínio da sua unidade corporal através da identificação

com a imagem do semelhante como forma total, nomeadamente do outro que desempenha

as funções de mãe; ilustra-se e actualiza-se pela experiência concreta em que a criança

apercebe a sua própria imagem num espelho – fase do espelho – matriz e esboço do que

há-de ser o ego.

O simbólico é o campo da linguagem, regendo o inconsciente do sujeito. A linguagem é a

causa e o efeito da cultura, onde a lei da palavra interdita o incesto e nos torna diferentes

dos animais. O simbólico é o significante, significante mais real do que aquilo que

significa, que precede e determina o significado, é o grande “Outro” (por relação com o

pequeno “outro” representado pelo semelhante) que antecede o sujeito. A linguagem

constrói o sujeito, aporta-lhe uma qualidade heurística – com a linguagem simbólica pensa-

se e relaciona-se com outros seres; estruturado como uma linguagem, operando

combinatoriamente pelos mesmos processos que geram a metonímia e a metáfora, o

inconsciente é o discurso do Outro, o desejo é o desejo do Outro.

Page 20: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

20

O real é aquilo que, carecendo de sentido, não pode ser nem simbolizado nem integrado

imaginariamente; é o que não pode ser expresso como linguagem, não se pode representar,

porque ao re-presentá-lo se perde a sua essência, isto é, o próprio objecto. O real está

sempre presente, mas continuamente mediado pelo imaginário e pelo simbólico; é aquilo

que só pode ser aproximado, jamais capturado.

Em suma, nas miragens do eu, o imaginário; na dependência do dizer, o simbólico; na

emergência sem mediação, o real como causa. Estes três registos são condensados por

Lacan no neologismo “parlêtre” – parler (falar), lettre (letra), être (ser) – e articulados

topologicamente segundo a fórmula do Nó Borromeano21

[5], um nó composto por três

círculos entrelaçados e inseparáveis, cuja propriedade única reside no facto de que ao

cortar qualquer um deles os outros dois se desligam; assim, este nó ilustra não só a

concatenação dos três registos e a reciprocidade das suas lógicas, como a inexistência de

uma hierarquia entre eles, e a sua actuação de maneira conjunta e em uníssono. O

inconsciente não acontece num plano subjacente à consciência; pelo contrário, os planos

inconsciente e consciente relacionam-se numa dialéctica de transformação contínua. Esta

relação de dobragem entre os dois planos é ilustrada através da Fita de Moebius22

, na qual

existe uma continuidade ente o interior e o exterior, sem interrupção.

Este retorno à psicanálise clássica, deslocando o determinismo biológico e individual

freudiano para o determinismo linguístico e antropológico, constitui uma abordagem com

uma grande influência na concepção pós-modernista do psiquismo humano, como veremos

mais à frente.

5. Nó Borromeano

Para já podemos concluir que, apesar de os neopsicanalistas procurarem equilibrar o peso

atribuído por Freud e por Lacan ao passado com a valorização do futuro, o determinismo

com o livre arbítrio, e a ditadura do inconsciente com o poder do consciente, ressalta do

modelo psicanalítico uma representação do ser humano cuja história se encontra inscrita no

passado individual e da humanidade, um ser conceptualizado a partir da dinâmica de

21

O Nó Borromeano deriva o seu nome da figura inscrita no brasão de uma nobre família de Itália, os

Borromeanos, que assim selava a sua indissolúvel amizade com outras grandes famílias italianas. 22

A Fita de Moebius é um espaço topológico obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita após

efectuar meia volta numa delas. Deve o seu nome ao matemático e astrónomo alemão August Ferdinand

Moebius, que em 1858 trabalhou este objecto, iniciando assim um novo ramo da matemática, a topologia –

estudo das propriedades de uma superfície que permanecem invariantes quando a superfície sofre uma

deformação contínua.

Page 21: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

21

factores internos onde a dimensão inconsciente e irracional joga um papel decisivo, um ser

ambivalente, conflituoso, ansioso, neurótico, psicótico, em suma, uma “máquina

energética”, um “animal irracional”.

1.2. ROMANTISMO, SIMBOLISMO, EXPRESSIONISMO, DADAÍSMO,

SURREALISMO, ACTION-PAINTING, TEATRO ESPONTÂNEO E TEATRO DO

ABSURDO

Apesar de todas as dissidências e críticas, Freud é considerado um dos pais da

modernidade – pela possibilidade que deu ao indivíduo de falar livremente, à semelhança

do que fez Carl Marx ao nível social – e a psicanálise continua a ser a mais elaborada

teoria da mente humana, e é o modelo psicológico mais interligado a correntes artísticas,

tanto anteriores como contemporâneas e posteriores. Assim, podemos identificar na teoria

psicanalítica influências das poéticas romântica e simbolista, um grande paralelismo com

as suas contemporâneas tendências expressionistas, e repercussões directas ao nível do

dadaísmo, surrealismo, informalismo, teatro espontâneo e teatro do absurdo.

Uma primeira influência na psicanálise encontramo-la no Romantismo, corrente artística

dominante entre os finais do século XVIII e meados do século XIX. Liberto de um cliente

preciso, trabalhando para si mesmo, refere a historiadora Antonella Sbrilli (1995), o artista

romântico abandona os temas tradicionais da pintura – deuses e ninfas, cenas bíblicas,

episódios da história – substituindo-os pelo seu mundo íntimo. Tal como na filosofia do

indivíduo e da natureza de Kant e de Schelling, na poesia de Goethe e de Leopardi, e na

música de Schubert e de Beethoven, também na pintura se afirma o primado do indivíduo e

do sentimento. Ao nível da pintura, a nova estética da interioridade é materializada, entre

outros, pelo suíço Heinrich Füssli (artista que pinta o que sente, prolongando a sua análise

até às zonas mais íntimas do eu, até ao fantástico, ao inconsciente, ao irreal), pelo alemão

Caspar David Friedrich (cujas paisagens reflectem os estados de alma da poesia lírica

romântica do seu tempo) e pelo inglês Joseph Turner (cujas obras constituem visões de um

mundo fantástico banhado de luz).

Page 22: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

22

Um outro elemento importante do mundo romântico é a recuperação da Idade Média,

época de formação das nacionalidades, e sentida como um período de religiosidade pura,

por oposição à Antiguidade pagã e ao presente materialismo. Daí a corrente neogótica no

romance, no teatro, na arte figurativa e na arquitectura. No caso desta, o historiador

Arnaldo Grau (1996) salienta o edifício do Parlamento em Londres (1835), de Charles

Barry e Augustus Pugin, e a Sagrada Família em Barcelona (iniciada em 1884), de Antoni

Gaudí, obra paradigmática da procura romântica dos elementos rústicos, primitivos e da

realização espontânea.

A influência da poética romântica na psicanálise parece bem evidente. No gabinete de

Freud, em Viena, havia uma reprodução da pintura O pesadelo (1791), de Heinrich Füssli

[6]: a imagem mostra ao mesmo tempo, o sujeito da visão (uma mulher deitada a dormir) e

as causas dessa visão (incubo e égua) e, com ela, Füssli abre o caminho para a pintura

moderna do inconsciente.

6. Heinrich Füssli, O pesadelo, 1791

Também no Simbolismo das últimas décadas do século XIX a visão do mundo é orientada

para a valorização da realidade interior. Como escreve a historiadora Maurizia Torza

(1995), para traduzir a complexidade do espírito do Homem moderno, o artista simbolista

recorre à mediação de símbolos, signos evocativos, carregados de mistério e de

indeterminação, que se prestem a múltiplos significados e interpretações. A literatura

simbolista, que tem como guias espirituais Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Verlaine,

liberta-se do naturalismo, propondo novos mitos na pintura e demonstrando uma percepção

aguda dos valores então emergentes no campo das artes figurativas.

Um dos primeiros e mais importantes pintores simbolistas é o francês Odilon Redon; no

álbum de litografias Dans le Rêve (1879), Redon introduz o não-acabado, o vago, o

esfumado, potenciando assim o mistério e a sugestão; extrapola do mundo natural o

pormenor, que é reproduzido como fragmento muitas vezes isolado no vazio, num meio

sobrenatural, criando uma tensão inquietante, qual metáfora da alma bipolar que o

Page 23: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

23

simbolismo carrega – uma alma que oscila entre o naturalismo e o espiritualismo, entre o

cientismo e as soluções fideístas23

.

Para muitos artistas o simbolismo não é só um ideal artístico, mas também uma prática de

vida, uma ética que despreza a existência burguesa, monótona e vulgar. É o caso do

parisiense Paul Gauguin que, depois de ter repudiado a velha e corrompida Europa, parte

para a Oceania em busca de uma pureza original e primordial. A intensidade pura dos

filhos da natureza é representada através de formas simplificadas e de grandes manchas de

cores vivas e contrastantes.

Partilhando inicialmente das ideias de Gauguin, o holandês Vincent Van Gogh desenvolve

um simbolismo que constitui uma resposta desesperada ao mal-estar íntimo que o

persegue, expresso através de cores vivas aplicadas em linhas sinuosas, turbilhões ou

volutas, abrindo assim o caminho do expressionismo. Na mesma senda e visando estudar a

"anatomia da própria alma”, o norueguês Edvard Munch recorre à dureza das cores, à

pesada sensualidade das linhas de contorno e às ousadas perspectivas para criar analogias e

metáforas do conflito psíquico, da angústia, da culpa e da frustração.

No campo do teatro, a interioridade é escrita e encenada por dois dos pais do teatro

moderno, o sueco August Strindberg e o russo Konstantin Stanislavski. Com efeito, e como

observa o historiador Fernando Peixoto (2006), a dramaturgia de Strindberg, o seu “Teatro

Íntimo”, desmascara todo um mundo onde a hipocrisia e a crueldade estão sempre

presentes, com tons carregados de angústia e de uma certa morbidez, exercendo uma

grande influência no expressionismo alemão; por sua vez, Stanislavski cria os verdadeiros

fundamentos da arte de representar através do “método psicotécnico”: o actor deve

aprofundar o conhecimento interior da personagem que lhe cabe interpretar, compreender

as preocupações e contradições da personagem, transpondo-as para a sua própria

personalidade, num processo de transferência psicológica.

7. Edvard Munch, O grito, 1895

Partilhando com a psicanálise uma grande parte do mesmo contexto espacio-temporal, o

Expressionismo reflecte a crise de valores que a Europa do capitalismo enfrenta e o

sentimento de perda da tradição, através da destruição da harmonia clássica e da

23

O fideísmo é uma doutrina filosófica que atribui, com vista ao conhecimento de algumas verdades, maior

Page 24: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

24

recuperação das linguagens primitivas. Assim, refere o historiador Sandro Sproccati

(1995), a arte expressionista cria uma contradição entre o conteúdo expresso e o

significante utilizado: os temas tratados estão ligados à actualidade, constituem uma

denúncia da civilização moderna e da sociedade burguesa; em contrapartida, a forma é

simplificada, deformada, brutalizada, remetendo para modelos arcaicos ou infantis.

Nascendo sob o signo do maior mito da época – a renovação radical da existência e da

psicologia humanas – o expressionismo constitui-se como o primeiro grande movimento

artístico de vanguarda, e manifesta-se em todos os domínios da actividade criativa.

Ao nível da pintura, meio onde nasce o movimento, eivado das influências de Van Gogh e

de Edvard Munch, o expressionismo organiza-se em torno de três grupos principais: o

grupo francês Les Fauves (As Feras) e o grupo alemão Die Brücke (A Ponte), no início do

século XX; a partir da década de 1910, a formação russo-bávara Der Blaue Reiter (O

Cavaleiro Azul). O fauvismo foi assim apelidado pela violência do trabalho dos seus

membros, caracterizado pela ferocidade cromática e distorção formal; porta-bandeira do

movimento, Henri Matisse, entende a cor não como um dado exterior à consciência

humana mas como um sentimento, e a realidade como um fantasma do quadro. O Die

Brücke tem como grande mentor Ludwig Kirchner que, elegendo igualmente a cor como

meio por excelência da pintura, defende a subjectividade psicológica e a recusa de regras,

fazendo a apologia da transgressão incessante de cada obra, na medida em que é singular,

saída de uma psique individual. O Der Blaue Reiter cujo nome, como refere a historiadora

Sílvia Ferrari (2001), denuncia a permanência dos laços com a cultura simbolista, visa dar

voz à interioridade do indivíduo, uma interioridade concebida como o centro de uma força

espiritual e não das pulsões violentas que tinham inspirado os grupos anteriores, e envereda

pela reconquista da pureza da natureza e por uma dimensão lírica da cor, ou pela emoção

livre da superfície abstracta. É especialmente o caso do russo Vassily Kandinsky, cuja

pintura é construída como uma partitura musical, onde cada cor representa um estado de

espírito particular – a cor é tecla, o olhar é o martelo e a alma o piano de muitas cordas;

distanciando-se da representação da realidade através da clivagem progressiva da imagem,

Kandinsky inaugura o Abstraccionismo. Fora do campo da pintura, também adere ao grupo

Der Blaue Reiter o músico Arnold Schönberg; dando continuidade à rotura introduzida por

Gustave Mahler, Schönberg ousa pôr em causa as normas da tonalidade e da harmonia,

importância à fé do que à razão.

Page 25: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

25

inaugurando a música atonal, uma linguagem musical baseada em doze notas só

relacionadas entre si – dodecafonia.

Se na pintura o expressionismo conheceu o apogeu antes da I Guerra Mundial, o grosso da

actividade expressionista na literatura, na arquitectura e no cinema veio depois dela.

Embora já no início do século a arquitectura Art Nouveau – caracterizada pelas curvas e

formas agitadas e pela exuberância decorativa – constituísse a expressão da personalidade

dos seus autores (como, entre outros, o belga Victor Horta e o francês Gustave Perret), é

sobretudo na década de 1920 e na Alemanha que a arquitectura reflecte o espírito

expressionista. Tal espírito, aponta Ferrari (2001), confere aos edifícios uma ênfase teatral,

realça-lhes a monumentalidade, dramatiza os espaços, decompondo-os e acentuando os

seus elementos funcionais. Entre os demais destaca-se Erich Mendelsohn, cuja obra

valoriza a plástica do conjunto, com um grande impacte óptico.

8. Erich Mendelsohn, Esquiço da Torre Einstein, 1920

No cinema, a mais jovem de todas artes, o expressionismo encontra um terreno de

aplicação muito fértil. O filme O Gabinete do Doutor Caligari [9], do alemão Robert

Wiene, constitui porventura aquele que melhor cria uma atmosfera expressionista, através

da arquitectura e dos cenários em que decorre esta história de crimes e de loucura, da

representação teatral dos personagens e do exagero da caracterização.

9. Robert Wiene, Fotograma do filme O Gabinete do Doutor Caligari, 1919

De todas as correntes, a dadaísta e a surrealista são certamente as mais coincidentes e

estreitamente imbricadas com a Psicanálise. O Dadaísmo surge durante a I Guerra

Mundial, na neutral Suíça, metamorfoseando-se no surrealismo na década de 1920. De

acordo com o historiador Walter Guadagnini (1995), o dadaísmo é mais um espírito ou

atitude comum em relação ao fazer ou pensar arte do que uma corrente, dado que a sua

marca de distinção é a autonomia criativa de cada um dos artistas envolvidos nessa

aventura; aliás, o termo dada, segundo o romeno Tristan Tsara, um dos principais mentores

do movimento, não significa nada, tal como nada há a propor, mas antes a destruir.

A poética dadaísta assenta na ironia corrosiva em relação aos estatutos que regem o

mundo, na subversão da linguagem artística tradicional, na reinvenção da relação entre os

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26

objectos e as palavras adequadas para os definir, e na eleição da casualidade e do

inconsciente como motores primeiros da criação artística. Tal atitude concretiza-se através

da adopção de técnicas combinatórias, como a colagem, o assemblage (justaposição de

elementos dispares, acumulação de todo e qualquer tipo de material na obra de arte), a

fotomontagem, e da invenção de novas técnicas, como o ready-made e o rayograph. O

ready-made (já feito), inventado pelo francês Marcel Duchamp, é uma obra de arte

constituída simplesmente por objectos extraídos do quotidiano sem qualquer intervenção

por parte do artista; a célebre Fonte (um urinol invertido), de1917, traduz uma pesquisa

baseada no deslocamento do objecto do seu local e da sua função naturais. Os rayographs,

do nova-iorquino Man Ray, são fotografias feitas sem a utilização da máquina fotográfica,

pelo contacto entre os objectos e o papel sensível, em que o objecto se converte em

sombra, vestígio imaterial; deste modo, a fotografia deixa de ser um simples meio de

reproduzir o real, para se assumir também como um meio de o reinventar.

A aventura dadaísta, numa fase mais construtiva, de sistematização da alienação e da

transgressão, origina o Surrealismo. Influenciado pelas teorias freudianas (as forças

ocultas do inconsciente, a sexualidade) o poeta francês André Breton, um dos signatários

do Manifesto do Surrealismo (1924), exalta a liberdade de imaginação, eleva à categoria de

método operativo o conceito de automatismo psíquico (correspondência imediata entre o

inconsciente e a acção pictórica ou poética, sem qualquer controlo da consciência, por

forma a exprimir o verdadeiro desenvolvimento do pensamento) e exorta à oposição a tudo

aquilo que manifeste aspecto de realidade, e à fidelidade à dissonância, ao exagero, ao

sonho e à loucura.

É o que fazem, entre outros, artistas como o italiano Alberto Giacometti ao desenvolver

uma escultura que se situa na fronteira entre o objet trouvé e a encenação dos impulsos

mais recônditos do inconsciente, os espanhóis Juan Miró ao criar uma série de imagens

saídas das profundezas do inconsciente, executando obras onde a quantidade de signos e de

formas orgânicas gera um universo mágico e extraordinariamente lírico, Salvador Dalí ao

tomar a liberdade de fazer a introspecção da própria loucura, através do método paranóico-

crítico (objectivação de interpretações delirantes e ambíguas), e Luis Buñuel ao subverter a

narrativa e os conteúdos cinematográficos (veja-se O cão andaluz, 1928, estruturado em

quatro temas freudianos – a cegueira, o fetichismo, o desejo e a infância – apoiados numa

Page 27: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

27

flutuante, incoerente e absurda narrativa, qual metáfora do inconsciente). Também entre

nós, como refere o historiador e crítico de arte José-Augusto França (1998), o surrealismo

foi acolhido com muito entusiasmo; tendo contactado em Paris, na década de 30, com

Duchamp, Miró, Picabia, o poeta e pintor António Pedro, introduziu o surrealismo em

Portugal, movimento ao qual aderiram, entre outros, António Dacosta, Mário Cesariny,

Alexandre O’Neil, Raul Perez e Cruzeiro Seixas.

10. Raul Perez e Cruzeiro Seixas, Meu jardim justiceiro (Cadavre-exquis), 1975

O fim da vida de Freud coincide com a maturidade do surrealismo; referindo-se aos

pintores surrealistas, o pai da psicanálise dizia “são loucos a 95%” e, a propósito das suas

obras, “se nas pinturas clássicas procuro o inconsciente, na pintura surrealista procuro o

consciente”.

O conceito central da teoria surrealista – o automatismo psíquico – viria a ser retomado de

forma mais profícua pela Action-painting e pelo Informalismo depois da II Guerra

Mundial. Segundo o historiador e crítico de arte Giulio Argan (1984), no segundo pós-

guerra todas as actividades artísticas e culturais são influenciadas pela filosofia da “crise”,

o existencialismo24

. É pois eivada da angústia e dor inerentes ao pós-guerra que nasce, nos

Estados Unidos (para onde tinham imigrado vários surrealistas europeus e para onde se

deslocaram os centros de valorização da arte), a corrente artística da action-painting,

também denominada por expressionismo abstracto. O termo action-painting, criado pelo

crítico de arte Harold Rosenberg, designa uma pintura não descritiva, cujo tema é o próprio

acto de pintar e cujo resultado é o conjunto de gestos que o artista imprime na tela para

exprimir as suas pulsões emotivas. Trata-se de uma arte que visa estabelecer uma relação

directa entre o inconsciente e o gesto criativo, permitindo o livre fluir do material

linguístico sem qualquer controlo ético ou estético, pelo que recorre a técnicas que

favorecem a intervenção do acaso. Jackson Pollock, um dos principais obreiros deste

24

Procedente da Filosofia da Vida, do pensamento de Husserl e de Heidegger, o existencialismo encontra no

filósofo francês Jean Paul Sartre, na década de 1940, um dos mais importantes representantes; como refere o

filósofo Jostein Gaarder (1998), Sartre defende que a existência humana é anterior ao seu significado, que a

existência precede a essência; o Homem não possui nenhuma natureza eterna, por isso estamos condenados a

improvisar; não existem nem valores eternos nem normas pelas quais nos possamos orientar, a liberdade

humana impõe-nos que existamos de modo autêntico, aqui e agora.

Page 28: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

28

movimento (que contou também com Franz Kline, Willem De Kooning, entre outros),

salpica (a técnica do dripping) telas estendidas no chão, andando à volta delas e fazendo

jorrar a tinta directamente de latas perfuradas, instaurando com a tela uma relação mais

física do que visual.

11. Hans Namuth, Jackson Pollock, 1950

Na Europa, a tendência gestual assume um carácter mais moderado e reflexivo; o crítico

francês Michel Tapié inventa o termo art informel, eliminando o realce dado pelos

americanos ao conceito de action e destacando o efeito dessa mesma acção: a abolição da

forma. O alemão Hans Hartung, um dos pais espirituais do movimento europeu, cria uma

pintura caracterizada por manchas de tinta – tachisme – onde o impulso criativo

desenfreado se converte numa negação da figuração, associada à impossibilidade de um

controlo racional da mente. Enfatizando o valor da matéria pictórica, o francês Jean

Dubuffet aplica os materiais mais correntes como a gravilha – arte bruta – sobre telas

monocromas, mostrando a espontaneidade das crianças e dos doentes mentais, a

instintividade mais pura, imune a qualquer contaminação racional. Perseguindo um ideal

de arte como instrumento de denúncia social e de reflexão filosófica existencialista, o

irlandês Francis Bacon desenvolve uma pintura em que deforma de um modo raivosamente

gestual as imagens figurativas.

No Japão a action-painting assume um carácter de violenta performance. Em vez de

pincéis ou brochas, os artistas japoneses, como Saburo Murakami, utilizam o seu próprio

corpo coberto de tinta para o imprimir na tela, ou perfurar e destruir a tela, transformando o

gesto em violação.

No campo da escultura, a angústia existencial inerente à pintura informalista traduz-se pela

renúncia à nitidez da matéria e ao polimento das superfícies; por exemplo, as esculturas do

italiano Arnaldo Pomodoro apresentam uma superfície acidentada, sulcada de cortes

profundos que lembram feridas.

Ao nível do teatro, duas correntes fazem eco das teorias psicanalíticas, o teatro espontâneo

e o teatro do absurdo. Tal como a psicanálise, o Teatro Espontâneo surge num contexto

terapêutico, mas, ainda que influenciado por aquela, adopta uma perspectiva mais positiva

Page 29: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

29

sobre o ser humano e desenvolve-se num contexto grupal e em ambientes naturais. Criado,

a partir da década de 1930, por Jacob Moreno – médico romeno, descendente de família

judia, tendo vivido na Áustria e posteriormente nos Estados Unidos – o teatro espontâneo

ou teatro do improviso é um jogo dramático no qual os participantes amadores improvisam

acontecimentos do dia a dia ou os seus problemas pessoais. Através da representação,

apoiada no papel (como forma de expressão e de actualização do eu), na espontaneidade

(como fonte de criatividade), na catarse25

, no encontro face a face e na interacção com o

público, os participantes expressam de forma autêntica os seus sentimentos e emoções, e

desenvolvem a sua capacidade para lidar com os problemas.

Com uma grande implantação, tanto da América como na Europa, o teatro assente na

espontaneidade conhece diversas orientações teóricas e constitui a base de abordagens quer

terapêuticas – psicodrama, teatro terapêutico – quer de desenvolvimento pessoal, grupal e

comunitário.

O Teatro do Absurdo desenvolve-se essencialmente na Europa do pós-guerra, nas

décadas de 1950 e 1960. Com raízes na patafísica26

de Alfred Jarry, é influenciado pelo

surrealismo, pela dramaturgia de Antonin Artaud, criador do Teatro da Crueldade (em

reacção contra o teatro restringido ao universo da palavra, destinado a servir o gosto

burguês daqueles que vivem no conforto, nos anos 30 Artaud propõe um teatro feito de

silêncios, de magia, de gestos e dimensões espaciais, em que não há distância entre o palco

e a plateia, entre os actores e o público, um teatro profundamente integrado com a própria

vida, na qual tudo é cruel – o esforço, a existência activa, o amor, a morte, a ressurreição –

um teatro com o qual o espectador possa identificar-se e viver momentos de transe, nos

quais se sinta violentado física e psicologicamente) e pela filosofia de Albert Camus, um

25

É neste princípio que radica uma das grandes diferenças entre o teatro espontâneo e o seu contemporâneo

teatro épico. Desenvolvido pelo dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, também o teatro épico, científico,

ou político, tem um intuito didáctico, embora num nível sociológico (visa desmistificar as relações da

sociedade, esclarecendo o público e suscitando a acção transformadora); contudo, Brecht defende que a

catarse deve ser evitada, porque hipnotiza o espectador, impedindo-o de desenvolver uma atitude crítica em

relação à peça; assente no princípio do distanciamento (do actor que sai do papel, dos factos quotidianos

apresentados como distantes no tempo e no espaço e, consequentemente, do público), o teatro científico não

expulsa as emoções do palco, antes as eleva ao nível do raciocínio. 26

A patafísica, por definição, o que está junto do que existe depois da física, é a ciência que tem por missão

explorar os campos negligenciados pela física e pela metafísica. Assente no pressuposto de que no universo

tudo é anormalidade, pelo que a regra é a excepção da excepção, a patafísica, desenvolvida por Alfred Jarry

nos finais do século XIX, define-se como a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as

excepções.

Page 30: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

30

humanismo fundado na consciencialização do carácter absurdo da condição humana,

absurda porque incapaz de compreender racionalmente o mundo.

Tendo como principal objectivo representar no palco a crise social que a humanidade vivia,

os valores morais burgueses assentes na hipocrisia, a falta de criatividade do Homem (que

condiciona toda a sua vida àquilo que julga ser o mais fácil e menos perigoso, negando-se

a ousar, arranjando desculpas para justificar uma vida medíocre), a dramaturgia do absurdo

caracteriza-se por uma forte carga irónica, por tramas que parecem carecer de significado,

com diálogos repetitivos e falta de sequência dramática, pela intensificação das neuroses e

loucuras das personagens, pela criação de atmosferas oníricas.

Os pais e principais dramaturgos do teatro do absurdo são o irlandês Samuel Becket, cuja

obra principal, Esperando por Godot, de 1952, constitui uma metáfora da esperança inútil,

e o romeno Eugène Ionesco, cujas obras (entre as quais se destacam A Cantora Careca, de

1950, e O Rinoceronte, de 1959) espelham a solidão e a insignificância da existência

humana, ridicularizam situações banais, falam do absurdo e do irreal como partes

integrantes da realidade.

Também nos meados do século XX a cinematografia americana sofreu uma grande

influência da psicanálise. Com efeito, assinala Marc Vernet (1975), desde o método

terapêutico inicialmente utilizado por Freud (a catarse) até aos conceitos psicanalíticos

(importância da história infantil, conflito edipiano, recalcamento, deslocamento,

compulsão à repetição, etc.) foram recorrentemente adaptados ao cinema americano de

ficção, tanto ao nível dos processos narrativos como dos efeitos especiais – veja-se, por

exemplo, A Casa Encantada e Marnie (A. Hitchcock, 1945 e 1964), Feras Sangrentas (R.

Walsh, 1947) e Bruscamente no Verão Passado (J. L. Mankiewitz, 1959).

De resto o cinema narrativo é considerado um dispositivo com objectivos semelhantes aos

da terapia psicanalítica. Assim, para o filósofo Edgar Morin (1956), o mundo imaginário

que o cinema constitui é o lugar por excelência de manifestação dos desejos, sonhos e

mitos do Homem. Contudo, ressalva Félix Guattari (1975), enquanto que a psicanálise é

reservada a elites seleccionadas, o cinema transformou-se numa gigantesca máquina de

modelar a líbido social, uma espécie de “divã dos pobres”.

Page 31: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

31

Concluindo, em perfeita sintonia com a psicanálise, todas estas correntes artísticas

assentam numa poética da interioridade, na valorização de uma realidade ora intimista e

sentimental, ora inconsciente, erótica e onírica, ora saudosista, conflituosa e angustiosa, ora

absurda e paradoxal. Derrubando o mito do Homem racional capaz de lutar contra os

instintos animais, erguem um ser a partir da sua ascendência animal (um “animal

irracional”), um animal confrontado com a domesticação e mecanização inerente ao

progresso do capitalismo, um ser torturado por conflitos e guerras, espectador de uma

existência absurda, angustiante e neurótica, um poço de energia automaticamente gerada

num campo de pólos opostos (uma “máquina energética”) dinâmico e polimorfo.

Page 32: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

32

2. CORPO FALANTE, MÁQUINA DE REACÇÕES

Coexistindo temporalmente com a perspectiva intra-orientada, voltada para o inconsciente,

e assente numa abordagem meta-psicológica, fenomenológica, deparamo-nos, tanto na

psicologia como na arte, com uma orientação centrada no exterior, racionalista e

estruturada numa abordagem científica, psicométrica.

2.1. MODELO DOS TIPOS E DOS TRAÇOS

Depois do interior profundo, a partir da década de 1920 o discurso sobre a personalidade

deslocou-se para o exterior superficial, ou seja, da abordagem intrapsíquica da psicanálise

passou-se a uma explicação centrada no corpo, com as teorias biotipológicas e dos traços.

Tendo como principal pressuposto a determinação genética da personalidade, apesar do

papel reconhecido aos factores ambientais, o modelo dos tipos e dos traços demarca-se do

psicodinâmico pela ênfase colocada na dimensão consciente da personalidade e por uma

metodologia assente sobretudo na observação de pessoas emocionalmente saudáveis, tendo

como objectivo determinar as dimensões comuns da personalidade humana e o seu grau de

variação nas pessoas individuais.

A lógica subjacente às Teorias dos Tipos, ou seja, a explicação do funcionamento

psíquico e dos traços do carácter relacionando-os com o funcionamento e as estruturas do

corpo, remonta à antiguidade clássica greco-romana. Como refere Jacques-Philipe Leyens

(1985), Hipócrates (médico grego, considerado o “pai da medicina”) no século IV a.C. e

Galeno (médico grego) no século II d.C. propuseram quatro tipos de temperamento,

baseados nos fluidos (humores) corporais que controlariam a mente humana: sanguíneo –

um tipo animado, optimista e agradável no convívio, cujo fluido abundante é o sangue;

colérico – tipo rápido, excitável e por vezes agressivo, com predomínio da bílis; fleumático

– tipo lento, mole e frio, cujo fluido abundante é o fleuma ou muco pulmonar; melancólico

Page 33: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

33

– tipo triste e pessimista, tendo como fluido dominante a bílis preta27

. Os traços inerentes a

estes quatro tipos foram enriquecidos pelo filósofo alemão Immanuel Kant no século

XVIII e, um século depois, Wilhelm Wundt (fisiologista alemão, considerado o fundador

da psicologia experimental) introduziu dois eixos – “emoções fortes / emoções fracas” e

“emoções rápidas / emoções lentas” – defendendo que as pessoas podem situar-se em mais

do que um quadrante [12].

12. Sobreposição dos sistemas de Hipócrates, Galeno, Kant e Wundt

Na mesma linha, mas partindo da aparência exterior do corpo, se inscrevem os estudos

fisiognomónicos – a procura de decifrar a alma através da análise do rosto – que se

desenvolveram a partir do século XVI. Situado junto da cabeça, contendo quatro dos

principais órgãos dos sentidos, o rosto surge como um intermediário entre o interior e o

exterior, como um frontispício da alma. Influenciada inicialmente pela magia e astrologia,

a fisiognomonia adopta mais tarde uma perspectiva racionalista (onde se destaca Johann

Gaspar Lavater, no século XVII, que procurou estudar as proporções da ossatura para daí

tirar inferências psicológicas), conduzindo à abordagem antropológica nos finais do século

XIX, em especial na vertente criminal desenvolvida por Cesare Lombroso.

Procurando ultrapassar o carácter ligeiro e subjectivo destas abordagens, na década de

1920, o psiquiatra alemão Ernest Kretschmer (1926) procura encontrar relações estáveis

entre características físicas e mentais, definir tipos claros e rigorosos, recorrendo ao exame

visual e antropométrico para estudar as primeiras, e ao diagnóstico psiquiátrico, para as

segundas. Propõe então três tipos morfológicos, fazendo-lhes corresponder três tipos de

personalidade [13].

TIPOS SOMÁTICOS

TIPOS PSICOLÓGICOS

27

Estes quatro tipos de temperamentos foram bastante populares na Idade Média, tendo sido usados mais

tarde para classificar diferentes povos: assim, os italianos eram sanguíneos, os árabes coléricos, os ingleses

fleumáticos e os russos melancólicos.

Page 34: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

34

LEPTOSSÓMICO

. Estatura alta

. Costas estreitas

. Musculatura pouco desenvolvida

. Cara alongada, nariz pontiagudo

. Cabelo abundante

ESQUIZOTÍMICO

. Introvertido

. Pouco sociável

. Hipersensível

. Crítico e perspicaz

. Voluntarioso

ATLÉTICO

. Estatura média

. Musculatura muito desenvolvida

. Ombros largos

. Membros e sistema piloso muito desenvolvidos

. Crânio pontiagudo na parte superior

. Maçãs do rosto proeminentes e nariz chato

VISCOSO

. Afirmativo

. Explosivo-fleumático

. Activo

. Dominador e corajoso

. Perseverante nos objectivos a alcançar

PÍCNICO

. Estatura baixa

. Membros e pescoço curtos

. Acumulação de gorduras no ventre

. Cara mole e grande

. Nariz largo

. Olhos pequenos e enfiados

. Pele rosada

. Calvície precoce

CICLOTÍMICO

. Instável (alegre, por vezes triste)

. Sentimental

. Sociável

. Afável e mole

. Apreciador do conforto

13. Tipologia de E. Kretschmer (adaptada)

Outras teorias biotipológicas foram desenvolvidas na década de 1940 pelo norte-americano

William Sheldon e pela Escola Holando-Francesa (Heymans, Wiersma e Le Senne), esta

unicamente psicológica, mas assentando ambas nos mesmos fundamentos. Trata-se de uma

abordagem em que o psíquico é representado a partir do físico, o interior a partir do

exterior, onde o indivíduo é visto como um corpo físico que fala por si, como um “corpo

falante”, numa lógica do estilo "mostra-me o teu corpo, dir-te-ei quem és"28

. O facto de a

maioria das pessoas raramente corresponder a um ou outro tipo, e o pressuposto da

determinação hereditária da personalidade são os grandes calcanhares de Aquiles das

teorias biotipológicas.

28

Encontramos a mesma lógica na Quirologia, que procura revelar traços significativos da maneira de ser a

partir da forma e textura das mãos, das linhas e montes que atravessam a palma; idêntico pressuposto está

presente na Grafologia – enquanto extensão do próprio corpo, a escrita evidencia traços temperamentais e da

personalidade do seu autor.

Page 35: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

35

O abandono do estudo morfológico e o enfoque sobretudo no psíquico, conduziu às

Teorias dos Traços a partir da década de 1930. Como refere Amâncio Pinto (2001), as

teorias dos traços pretendem determinar o perfil ou matriz dos traços característicos de

uma pessoa, o que a diferencia de outra e a torna única. Um traço é uma predisposição

consistente e duradoura para responder de maneira semelhante a estímulos diferentes, é um

modo característico da pessoa pensar, sentir, reagir e se comportar, é a unidade estrutural

básica da personalidade. A personalidade é constituída por um conjunto de traços, que

caracterizam o comportamento geral das pessoas.

As primeiras teorias dos traços eram constituídas por listas de adjectivos (traços mais ou

menos centrais, inerentes a diversos domínios), sendo a personalidade definida pela sua

enumeração; posteriormente, Hans Eysenck e Raymond Cattell usaram a análise factorial

para determinar as dimensões ou factores subjacentes da personalidade.

No início da década de 1960, Robert McCrae e Paul Costa desenvolveram uma alternativa

aos modelos da estrutura de personalidade de Eysenck e de Cattell, o modelo dos cinco

factores [14].

(1) Extroversão: representa o grau de interacção social, o nível de actividade e de estimulação; os valores

altos e baixos da escala são representados pelos adjectivos “loquaz - calado”, “franco - secretivo”, “sociável -

recolhido”.

(2) Amabilidade: refere-se à orientação interpessoal ao longo de um contínuo que vai da compaixão ao

antagonismo, expresso em actos e pensamentos; os adjectivos opostos representativos são “amigável -

hostil”, “não ciumento - ciumento”, “gentil - obstinado”.

(3) Consciência: identifica as pessoas organizadas, persistentes, com uma motivação dirigida para objectivos;

os adjectivos opostos são “responsável - incerto”, “escrupuloso - sem escrúpulos”, “exigente - descuidado”.

(4) Neuroticismo: avalia os indivíduos ansiosos e instáveis, propensos a pensamentos irrealistas e

dificuldades de ajustamento; os adjectivos representativos são “ansioso - calmo”, “excitável - sereno”, “tenso

- ponderado”.

(5) Abertura à experiência: identifica a tolerância, a abertura à exploração do desconhecido e da experiência

em si; os adjectivos opostos são “polido - rude”, “inteligente - não inteligente”, “sensível - não sensível

artisticamente”.

14. Modelo dos cinco factores (R. McCrae e P. Costa)

A instabilidade temporal dos traços do perfil de personalidade, constitui uma das grandes

limitações desta abordagem; por outro lado, o peso atribuído à genética significa que este

Page 36: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

36

modelo mantém uma visão determinista da personalidade; o determinismo que Freud

localiza na primeira infância, é aqui situado a montante do nascimento. Constitui uma

perspectiva essencialmente centrada na pessoa, dando pouca atenção ao meio físico e

social, sendo posta em causa pelas teorias situacionistas e interaccionistas que à frente

trataremos, e pelo modelo behaviorista que abordamos a seguir.

2.2. MODELO BEHAVIORISTA

Contemporâneo do modelo dos traços, o modelo behaviorista29

, opera uma revolução

copérnica na abordagem da personalidade, ao deslocar a explicação da pessoa para o meio

ambiente; a personalidade não é entendida como algo interno à pessoa, resultante da

hereditariedade ou habilidades pessoais, mas antes como o resultado das influências do

meio. Tal atitude radica na teoria da evolução de Darwin e, mais directamente, na tradição

funcionalista americana dos finais do século XIX; iniciado por William James e John

Dewey, entre outros, o funcionalismo procura, com um espírito prático, estudar a função

do comportamento na sua adaptação ao meio, ou seja, as relações funcionais ou de

dependência entre antecedentes e consequentes do comportamento; opondo-se ao

estruturalismo que se centra nos elementos mentais, o funcionalismo acentua os processos

mentais como função da adaptação do indivíduo ao meio30

.

Formado na escola funcionalista, o norte-americano John Watson funda o behaviorismo na

segunda década do século XX. Num texto antológico, de 1930, Watson expressa bem a

atitude behaviorista na abordagem da personalidade: “Dêem-me uma dúzia de crianças

saudáveis … e o meu mundo especializado para as fazer crescer, e eu garanto-vos que

tomo uma ao acaso e a educo para se tornar qualquer tipo de especialista que eu queira –

doutor, advogado, … e também, é claro, pedinte ou ladrão, independentemente dos seus

talentos, … tendências, habilidades, vocações e raça dos seus progenitores”. Segundo

Watson, como referem Schultz & Schultz (2001), não há lugar para impulsos, mecanismos

29

O termo “behaviorista” é uma adaptação ao português do original em inglês behaviorist, sendo também

utilizada a sua tradução – comportamentalista. 30

É nesta lógica funcionalista que surge, nos finais do século XIX, pela mão do engenheiro norte-americano

Frederick Taylor, a Organização Científica do Trabalho; aplicando uma lógica cartesiana à análise do

trabalho, Taylor estuda os movimentos e tempos inerentes às tarefas e divide as tarefas em funções, criando a

especialização e a padronização, adaptando de forma mecanicista o operário ao posto de trabalho.

Page 37: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

37

de defesa, motivações ou necessidades, pois não podem ser observadas e manipuladas de

maneira objectiva: a personalidade é meramente um conjunto de respostas aprendidas por

meio de estímulos, padrões de comportamentos observáveis ou sistemas de hábitos.

A teoria de Watson foi continuada, desenvolvida e testada por meio de pesquisas

laboratoriais com ratos e pombos, pelo compatriota B. Skinner, entre as décadas de 1940 e

1980. Para Skinner o conceito de personalidade não passa de uma ficção explicativa; não

faz sentido dizer, por exemplo, que uma pessoa é ou não sociável, porque ser sociável

depende da situação em que ela se encontra; uma pessoa pode ser sociável quando se

encontra no meio de um grupo de amigos e pouco sociável numa situação familiar. A

personalidade resume-se ao comportamento, cujas causas são externas ao organismo. O

comportamento é sempre uma resposta aos estímulos do meio, quer aos que antecedem o

comportamento (através do condicionamento reactivo31

, somos condicionados a reagir de

uma determinada forma aos diferentes estímulos), quer aos que se lhe sucedem (o nosso

comportamento opera uma resposta – reforço ou punição – no meio, que vai condicionar os

comportamentos futuros – condicionamento operante); as pessoas comportam-se de forma

diferente porque têm histórias diferentes de reforços e punições.

Estamos pois perante uma imagem do ser humano como um organismo vazio, determinado

e condicionado pelo meio e pelas circunstâncias que o rodeiam (um “animal de hábitos”),

meio ao qual reage mecanicamente (uma “máquina de reacções”).

2.3. CUBISMO, ABSTRACCIONISMO E FUNCIONALISMO

A lógica funcionalista e racionalista subjacente aos modelos behaviorista, dos tipos e dos

traços, manifesta-se também e de forma igualmente intensa na arte da primeira metade do

século XX, nomeadamente na pintura, na arquitectura, no design e no urbanismo. Assim, a

par da poética assente na interioridade, na angústia, na nostalgia do passado, no absurdo,

desenvolve-se uma vertente da pesquisa artística que se volta com uma confiança positiva

31

O conceito do “condicionamento” foi criado pelo fisiologista russo Ivan Pavlov por volta de 1900. Nas

suas célebres experiências com cães, o animal adquiriu uma resposta condicionada (salivar) perante um

estímulo neutro (som de uma campainha), depois deste ter sido repetidamente associado à comida.

Page 38: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

38

para o presente, assente numa abordagem racional vinculada ao progresso técnico, em prol

de uma arte socialmente útil.

Ao nível da pintura, a análise racional da natureza é desenvolvida por duas correntes

principais: o cubismo e o abstraccionismo. Insatisfeitos com a aparência impressionista32

da realidade, os cubistas, influenciados pelos ensinamentos de Paul Cézanne, procuram a

estrutura oculta das coisas, a base geométrica da natureza. Assim, o francês Georges

Braque e o espanhol Pablo Picasso, os pioneiros do Cubismo, adoptam um modo de

representação que analisa e decompõe os objectos, como se girassem à sua volta, revelando

as suas múltiplas facetas. Como observa Sbrilli (1995a), trata-se de uma forma extrema de

realismo e de um modo de inserir na pintura a dimensão tempo, a sucessão, a duração (o

indivíduo não está parado diante dos objectos) e de um desejo de multiplicar os pontos de

vista na obra de arte, também presente na música de Igor Stravinsky e na prosa de James

Joyce, Virgínia Woolf e Gertrude Stein.

15. Georges Braque, Casas em L’Estaque, 1908

Também os Abstraccionistas assentam a sua análise na base geométrica da natureza,

nomeadamente os neoplasticistas como o holandês Piet Mondrian. Na sua pesquisa de uma

arte de relações puras, de uma pintura que exprima apenas as relações formais que o

naturalismo ocultara sob os objectos, Mondrian reduz os seus quadros aos elementos

fundamentais da percepção visual: a linha vertical, a linha horizontal, as cores primárias

inseridas em zonas rectangulares ou quadradas, mais o branco e o preto, respectivamente

como fundo da tela e como corpo das linhas. Estes elementos evocam as coordenadas

basilares da experiência humana: a linha horizontal representa o plano do solo e o eixo

formado pelo olhar; a linha vertical traduz a posição erecta e as dimensões “alto-baixo”,

com todas as suas conotações simbólicas ao nível lógico, moral e religioso.

32

Os impressionistas, como os franceses Claude Monet e Auguste Renoir, procuram, nos finais do século

XIX, reproduzir apenas a sua verdade perceptiva e sensível, captar o instante de uma realidade em constante

movimento e que, a cada mutação da luz, muda de aspecto e de verdade. Em sintonia com as contemporâneas

teorias da visão da cor (a teoria componente, de Young-Helmholtz e a teoria oponente, de Hering), os

pontilhistas, como os franceses Georges Seurat e Paul Signac, aplicam as cores puras na tela com pequenas

pinceladas, deixando a sua mistura para o olho do espectador.

Page 39: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

39

Simultaneamente, na arquitectura são dados os primeiros passos do Funcionalismo,

sobretudo pelo norte-americano Louis Sullivan (cuja máxima, “a forma segue a função”,

significa que em toda a verdadeira experiência de arquitectura, a forma é determinada pela

função) e pelo austríaco Adolf Loos, consolidando-se na década de 1920, em particular no

contexto de dois movimentos europeus paralelos que partilham o interesse pela abstracção

pictórica e a adesão ao pensamento socialista: De Stijl na Holanda e a Bauhaus na

Alemanha.

Directamente influenciado pelo neoplasticismo, De Stijl (O Estilo), grupo fundado em

1917 por arquitectos, como Theo van Doesburg e Gerrit Thomas Rietveld, pintores e

artífices, proclama como o verdadeiro estilo a linguagem formal, construtiva, abstracta e

isenta de qualquer ornamentação. Como refere o historiador Jürgen Tietz (2000), a redução

da linguagem aos seus dados objectivos exprime uma necessidade de concreto que não é

mais do que a consciência da época; a arte deve saber responder às revoluções da técnica e

às novas exigências sociais, submetendo-se ao conceito do útil. A primeira obra de

arquitectura De Stijl é a Casa Schröder, concebida por Rietveld em 1924: numa forma

paralelepipédica limpa de toda a ornamentação supérflua, os planos de parede são

autónomos, prolongando-se para além das juntas; contudo, as grandes revoluções são a

cobertura plana, que substitui o tradicional telhado de duas ou quatro águas, e a planta

livre, que substitui a tradicional sequência de espaços fechados, permitindo assim ser

modificada pelo morador de modo flexível.

A Bauhaus (Casa da Construção), escreve a historiadora Vittoria Coen (1995), é uma

escola de artes e ofícios fundada por Walter Gropius em 1919, para fazer face ao problema

da operacionalidade artística no domínio do produto industrial e do objecto de uso, e tendo

como ideário a união entre as diferentes artes e a extinção das barreiras entre artistas e

artesãos. O edifício da Bauhaus [16], projectado por Gropius em 1926, constitui a

materialização da ideologia funcionalista inerente à escola: volumes simplificados e

livremente associados, planos totalmente brancos e reduzidos ao essencial, grandes

superfícies envidraçadas. A Bauhaus foi fechada em 1932 pela acção dos nacional-

socialistas em ascensão, tendo Walter Gropius e Mies van der Rohe emigrado para os

Estados Unidos, onde continuaram a obra funcionalista à escala dos arranha-céus.

16. Walter Gropius, Maqueta da Bauhaus, Dessau, 1926

Page 40: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

40

No velho continente, a par e após estas duas experiências, o funcionalismo confunde-se

marcadamente com a obra teórica e prática do arquitecto franco-suíço Le Corbusier. O seu

conceito de casa como “uma máquina de viver” é concretizado através de cinco princípios

básicos – edifício assente sobre pilotis (entre os quais se pode circular), cobertura em

terraço/jardim, fachadas livres (da função de suporte, de ornamentos e de hierarquias),

janelas em banda horizontal (criando uma osmose entre o interior e o exterior), e planta

livre (da estrutura de suporte, eliminando o espaço compartimentado em divisões) – que

são aplicados pela primeira vez na célebre Villa Savoye, em Poissy (1929-1930); ao nível

da habitação colectiva, a ideologia funcionalista é implementada na Unidade de

Habitação, em Marselha (1947-1952) – um complexo de 370 habitações que procurava

satisfazer todas as necessidades dos seus habitantes num único edifício, incluindo um

hotel, um centro comercial, um jardim infantil, uma piscina, e um jardim no terraço. A sua

preocupação em adaptar a arquitectura à escala humana condu-lo à criação do Modulor –

um sistema de medidas, baseado na razão de ouro, nos números de Fibonacci33

, e nas

dimensões médias humanas, que visa estabelecer uma relação directa entre as proporções

do edifício e as do Homem [17].

17. Le Corbusier, Modulor, 1948

Em síntese, encontramos no funcionalismo (corrente dominante na prática da arquitectura

internacional – International Style – da primeira metade do século XX) uma abordagem

racionalista da arquitectura, assente na simplicidade de formas, no retorno aos volumes

elementares – cubo, cilindro, esfera – adoptando como ideário o comum, a regra, a

classificação e a tipificação, visando criar máquinas de habitar adaptadas às medidas e às

necessidades humanas.

Esta visão mecanicista da natureza humana está igualmente presente numa das mais

importantes teorias do cinema, a teoria da montagem, desenvolvida pelo alemão Sergei

33

Leonardo de Pisa, mais conhecido por Fibonacci, monge do século XIII, criou uma série de números de tal

forma que cada número é igual à soma dos dois que lhe antecedem (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, …), descobrindo

que esta série está presente na conformação do corpo humano, nas flores, nas conchas marinhas espiraladas,

etc. Edouard Lucas, no século XIV demonstrou que a razão entre dois números consecutivos tende a

estabilizar-se em 0,618, a razão de ouro, que fora usada pelos egípcios na construção da pirâmide de Gizeh e

pelos gregos para construir o Parthenon.

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41

Eisenstein na década de 1920. Como assinala o teórico Andrew Tudor (1985), a dialéctica

eisensteiniana defende a criação artística, enquanto montagem, a partir da interacção de

opostos contraditórios; o processo tese-antítese-síntese é a linha base onde assenta a teoria

da montagem. Através do conflito (gráfico, de planos, de amplitude de volumes, espacial,

de luz, de ritmo), o espectador é levado para fora de si próprio, electrificado, conduzido ao

êxtase; e é através da sua resposta emocional que o espectador compreende o conteúdo

temático do filme. Esta vontade de controlar o pensamento do espectador através de

choques emocionais, encontra posteriormente uma excelente réplica na filosofia da

“direcção de espectadores” (mais do que direcção de actores) que Hitchcock desenvolve

nas suas realizações.

Concluindo, se, como defendem os modelos biotipológico, dos traços e behaviorista, o

psiquismo e o comportamento humano são regulados a partir do exterior – ora a partir do

corpo cuja morfologia inscreve um modo de agir (um “corpo falante”34

), ora a partir dos

estímulos ambientais aos quais o Homem reage mecanicamente (uma “máquina de

reacções”), adquirindo hábitos (um “animal de hábitos”) – então um ambiente cientifica e

funcionalmente desenhado constitui o meio ideal para a adaptação do Homem em direcção

ao progresso.

Page 42: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

42

3. BOM SELVAGEM

Depois da angústia existencial do segundo pós-guerra, a década de 1960 é marcada por um

clima generalizado de contestação, um conjunto de revoluções sociais, políticas,

económicas e culturais. É um renovar da esperança nas promessas da modernidade ou,

como refere Birgit Pelzer (2004), a utopia de transformar o destino colectivo, libertando o

indivíduo dos constrangimentos dos aparelhos e do trabalho. Tal libertação, ao nível da

psicologia, é materializada e construída pelo modelo humanista, e em termos artísticos por

um vasto e diverso conjunto de movimentos e manifestações.

3.1. MODELO HUMANISTA

O desenho de uma concepção do ser humano mais optimista do que a psicanalítica e a

behaviorista é realizado pela psicologia humanista. Assim, imbuído por ideais

renascentistas (o antropocentrismo, a unicidade do ser humano, a evolução e o progresso),

iluministas (o deísmo35

, a bondade natural do Homem, a liberdade, a tolerância) e

existencialistas (a autenticidade, o hic et nunc), desenvolve-se nos anos 60 o modelo

humanista, pela mão de dois obreiros principais, ambos norte-americanos – Carl Rogers e

Abraham Maslow.

Numa abordagem fenomenológica, centrada no presente e no self (eu), Carl Rogers

entende que a personalidade só pode ser entendida a partir do nosso próprio ponto de vista,

isto é, baseada nas nossas experiências subjectivas. Na obra Tornar-se pessoa, de 1961,

propõe uma filosofia de existência assente no conceito de “vida plena”.

Segundo Rogers, as pessoas são motivadas por duas tendências ou necessidades básicas: a

necessidade de auto-actualização e a necessidade de consideração positiva. A necessidade

de auto-actualização é o desejo de realizar as potencialidades pessoais, de actualizar o self

para tornar-se uma pessoa em pleno funcionamento. O self (conceito central na teoria

34

Ao nível artístico, o corpo há-de tornar-se, na década de 60, o próprio instrumento da arte, com o

happening e a performance, e o próprio material artístico da body art.

Page 43: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

43

rogeriana) é o auto-conceito, a imagem do que somos, resultante da diferenciação entre o

que é parte de nós e o que são as pessoas, objectos e acontecimentos à nossa volta; o self

ideal é a imagem do que gostaríamos de ser; quanto menor a distância entre o eu e o eu

ideal mais felizes seremos. A necessidade de consideração positiva é o desejo de

aceitação, aprovação e amor por parte dos outros; esta necessidade pode impedir a

exploração das nossas próprias capacidades se pensarmos que ao fazê-lo vamos ter

desaprovação. A adaptação psicológica deriva da congruência entre o auto-conceito e a

experiência, do equilíbrio entre a necessidade de realizar o potencial e a necessidade de

aprovação dos outros.

A vida plena não é um estado fixo, de virtude, contentamento, nirvana ou felicidade; é um

processo e não um estado de ser, uma direcção e não um destino; pressupõe a liberdade e

não o determinismo. É uma abertura crescente à experiência, uma auto-actualização

constante; implica flexibilidade, criatividade e a ausência de rigidez, de preconceitos, de

imposição de uma estrutura à experiência. A vida plena é aceitar os outros (a natureza

humana é essencialmente digna de confiança, construtiva e positiva) e compreendê-los de

forma empática, sem avaliação. É ter confiança em si mesmo, ser congruente, ser

autêntico; é sair detrás das fachadas, eliminar atitudes de defesa e de duplicidade. A vida

plena é viver plenamente cada momento, é mergulhar em cheio na corrente da vida.

Desmistificando a terapia psicanalítica (para Rogers a relação terapêutica não é

necessariamente diferente de outras formas de relação), a terapia rogeriana - Terapia

Centrada na Pessoa - baseia-se na não-directividade (é a pessoa e não o terapeuta quem

determina a mudança), na aceitação positiva e incondicional do cliente e na empatia. Por

considerar que a desadaptação não está no interior da pessoa mas na relação com os outros,

a intervenção desenvolve-se preferencialmente em grupo – os denominados Grupos de

Encontro. Sendo um modelo terapêutico voltado sobretudo para a auto-actualização, criou

as bases para as actuais abordagens de intervenção designadas por “desenvolvimento

pessoal”.

De resto a filosofia rogeriana teve um grande impacto ao nível das teorias pedagógicas,

nomeadamente nas Correntes Não Directivas, que na década de 1960 procuraram aplicar

na escola os princípios de Rogers: não-directividade, auto-gestão, confiança no aluno (o

centro da sala de aula), responsabilidade e liberdade.

35

O deísmo é uma concepção filosófico-religiosa que admite a existência de Deus como criador de todas as

Page 44: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

44

Na mesma linha, Abraham Maslow opõe-se tenazmente à ideia criada pela religião de que

o Homem é fundamentalmente pecador, e ao pressuposto freudiano de que a natureza

fundamental do Homem é constituída por instintos que, se não puderem exprimir-se, levam

ao incesto e ao assassínio, e defende a natureza animal do Homem, fazendo notar que as

emoções anti-sociais – hostilidade, inveja, etc. – resultam da frustração dos impulsos mais

profundos do amor, da segurança, da posse, que são em si mesmos desejáveis.

Considerando a psicologia anterior muito pessimista e voltada para o sofrimento, Maslow

propõe uma psicologia optimista e voltada para o amor e a auto-realização; a teoria da

personalidade que desenvolveu não tem origem em casos clínicos, mas em pesquisas com

adultos criativos, independentes e realizados.

Pressupondo que todas as pessoas nascem com as mesmas necessidades instintivas que as

capacitam a crescer, a desenvolver e a realizar o seu potencial, Maslow (referido por

Schultz & Schultz, 2001) propõe uma hierarquia de cinco necessidades inatas que activam

e direccionam o comportamento humano: necessidades fisiológicas, de segurança, de

afiliação e amor, de estima, e de auto-realização [18].

18. Hierarquia de necessidades (A. Maslow)

coisas, mas nega a sua intervenção no mundo, que seria regulado por leis inalteráveis.

Fisiológicas

Segurança

Afiliação e amor

Estima

-realização

Auto-

Page 45: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

45

As necessidades fisiológicas são aquelas cuja satisfação é indispensável à sobrevivência,

tais como respirar, dormir, comer e abrigar-se. A necessidade de segurança é o desejo de

protecção, ordem e estabilidade, e a ausência de medo e ansiedade. A necessidade de

afiliação e amor é o desejo de pertencer a grupos, de conviver, de dar e receber afecto,

fugindo ao isolamento. A necessidade de estima é satisfeita de duas formas: precisamos de

estima e respeito da nossa parte, sob a forma de sentimento de auto-valorização, e por parte

de outras pessoas, sob a forma de reconhecimento, status ou sucesso social. A auto-

realização depende da realização e cumprimento máximos das nossas potencialidades,

talentos e capacidades.

O funcionamento da pirâmide de necessidades obedece às seguintes regras: quanto mais

baixa na hierarquia, maior será o seu poder e prioridade (contudo a ordem pode variar para

diferentes pessoas, como por exemplo no caso dos grevistas de fome); as necessidades

inferiores têm de ser, pelo menos parcialmente, satisfeitas antes que as superiores se

tornem influentes; os vários tipos de necessidades surgem em diferentes fases da vida (as

fisiológicas e de segurança emergem na infância, as de afiliação e de estima surgem na

adolescência, e a de auto-realização apenas na meia-idade).

Maslow propõe um segundo tipo de necessidades inatas – as necessidades cognitivas; estas

englobam o desejo de conhecer e de entender, e surgem no final da primeira infância,

expressando-se pela curiosidade natural das crianças. As necessidades cognitivas situam-se

fora da hierarquia, sobrepondo-se às cinco descritas: encontrar um sentido no nosso

ambiente é fundamental para interagir com o mesmo de um modo emocionalmente

saudável e maduro, e satisfazer as outras necessidades. Sugere ainda que as pessoas

necessitam de experiências esteticamente agradáveis – necessidades estéticas; quando

estas não são satisfeitas, o desenvolvimento completo da personalidade fica prejudicado.

Na fase final da sua vida, Maslow (referido por James Fadiman e Robert Frager, 2004) vai

para além do indivíduo, do pessoal, defendendo a importância da dimensão espiritual da

experiência humana, e a necessidade de uma Psicologia Transpessoal; uma teoria viável e

precisa da personalidade deve incluir não apenas as profundezas, mas também as alturas

que cada indivíduo é capaz de atingir36

.

36

A psicologia transpessoal enquadra-se no modelo perene, cujas origens próximas remontam à filosofia

perene de A. Huxley, de 1940, e que tem duas premissas essenciais: existe uma realidade ou unidade

transcendente que liga todos os fenómenos, aparentemente separados; o self individual é apenas um reflexo

Page 46: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

46

Em suma, tanto Rogers como Maslow defendem uma perspectiva do Homem como um ser

naturalmente bom, racional, um ser em situação, em evolução e desenvolvimento

constante, aspirando a uma vida plena, a ser autenticamente o que realmente é e não uma

imagem imposta por uma sociedade hipócrita feita de máscaras e fachadas.

A influência iluminista nesta concepção do ser humano foi já referida no início;

regressamos agora às ideias de um dos seus principais mentores – o filósofo suíço Jean-

Jaques Rousseau do século XVII – para adoptar uma metáfora desta representação do

Homem. Pressupondo que o Homem nasce bom e que a sociedade é que o corrompe,

devendo portanto retornar à natureza, Rousseau defende que a origem do mal está na

sociedade civil, numa organização social assente na competitividade, na desigualdade, na

injustiça e na corrupção, advogando uma sociedade organizada a partir dos direitos

naturais convertidos em direitos civis, assente na natureza selvagem do Homem e na

vontade dos homens.

Assim, a imagem do “bom selvagem” parece-nos perfeitamente adequada para traduzir a

ética da autenticidade, do beyourself, da libertação face a todos os tipos de autoridade

(moral, religiosa e política) em direcção à auto-realização, a uma vida plena e à felicidade.

3.2. POP ART, ARTE CINÉTICA, OP ART, ARTE PSICADÉLICA, ARTE DE ACÇÃO,

ARTE DO COMPORTAMENTO, BODY ART, ARTE POBRE, LAND ART, E

ORGANICISMO

Na passagem dos anos 50 para os anos 60, refere a historiadora Paola Jori (1995), as

experiências artísticas caracterizam-se por um incontível desejo de renovação e por uma

nítida oposição a qualquer dogmatismo e ao conceito de autoridade; aspira-se a uma

liberdade total e alarga-se o campo dos instrumentos expressivos, o que explica a

proliferação de movimentos e manifestações artísticas. Contudo, e em sintonia com a

de uma unidade maior, transpessoal (nós provimos dessa unidade e baseamo-nos nela; entretanto, alienamo-

nos das nossas origens e precisamos de retornar a ela para sermos humanos plenamente saudáveis e inteiros).

Tentativa de união das psicologias individualistas ocidentais com as psicologias espirituais do oriente, a

psicologia transpessoal estuda o potencial mais alto da humanidade, as experiências unitárias, espirituais e

transcendentes. Ken Wilber, um dos seus importantes mentores, na obra The spectrum of consciousness,

1977, defende que o crescimento visa a superconsciência, através da cura de uma série de dicotomias:

consciente-inconsciente, persona-sombra, mente-corpo, organismo-ambiente.

Page 47: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

47

psicologia humanista, todas elas partilham a valorização do presente e o ensejo de

desmistificar a arte, de a aproximar da vida e de a centrar no espectador.

Paradigmática deste clima revolucionário é a Pop Art, corrente iniciada a partir de meados

da década de 1950 em Inglaterra, onde um grupo de intelectuais e artistas unidos em torno

do Institute of Contemporary Art of London, se bate pela valorização da cultura popular de

então: as bandas desenhadas, os filmes, a publicidade, a música. Produtos da cultura de

massas, exteriores ao território artístico, estas manifestações convertem-se em obras de

arte, em especial do outro lado do Atlântico. Com efeito, as imagens publicitárias dos

objectos de consumo diário e os mitos cinematográficos e musicais são os protagonistas

das obras de Andy Warhol37

, os restos e os detritos de uma sociedade consumista, o que é

desprezado, ascende ao universo artístico pela mão de Robert Rauschenberg, as bandas

desenhadas ampliadas são citadas por Roy Lichtenstein, os objectos do quotidiano são

supradimensionados, deformados e dotados de uma vida própria por Claes Oldenburg.

Utilizando a repetição, o aumento, a fragmentação, a mudança de proporções, os artistas

pop lançam um olhar irónico ao consumismo ou, nas palavras de Argan (1984), à tendência

própria da sociedade de consumo para consumir “em efígie”, ou seja, mais a aparência das

coisas do que elas próprias; é uma sociedade cuja dinâmica é caracterizada, de acordo com

o filósofo alemão Herbert Marcuse (1955), pela dessublimação repressiva, isto é, uma

cultura que convida o id ao gozo imediato, que o incita a não adiar a descarga catártica,

uma sociedade que possibilita uma maior liberdade e satisfação das necessidades, mas essa

liberdade actua como um poderoso instrumento de dominação, adquirindo a função de

manipulação e controlo dos indivíduos, das suas consciências, dos seus desejos e das suas

necessidades.

A ênfase colocada no presente, a valorização do quotidiano exterior (depois de longas

décadas de uma poética assente na interioridade do artista), a representação de uma

natureza que, nas palavras do filósofo Roland Barthes (1980), já não é a paisagem ou o

humano mas o social e o gregário (uma primeira ameaça à ideia de pessoa, que o pós-

modernismo se encarregará de tornar real), abala consideravelmente as barreiras entre a

arte e a vida, entre a arte e o público.

37

Importa também referir o cinema underground produzido por Warhol, em oposição ao cinema industrial de

Hollywood. Trata-se de um cinema amador, sem grandes preocupações com as filmagens, que propõe séries

Page 48: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

48

19. Roy Lichtenstein, M-Maybe, 1965

Tal como o movimento pop também a Arte Cinética e a Op Art contestam a arte elitista, e

pretendem fazer com que a arte exista para todos, procuram um tipo de arte centrada no

espectador. Inspirada nas primeiras experiências cinéticas de László Moholy-Nagy na

Bauhaus, escreve Ferrari (2001), a arte cinética constitui-se como movimento oficial na

Europa central do início da década de 1960. Trata-se de um movimento levado a cabo por

grupos – Grupo T de Milão, Grupo Zero de Dusseldorf, GRAV de Paris – porque o espírito

contestatário que os anima opõe-se à comercialização da arte e ao vedetismo dos artistas, à

atitude do artista que se confessa na tela. Reivindicando uma atitude científica, elaboram

obras dotadas de movimento próprio, accionadas por motores e ímanes, ou que exigem a

intervenção do público; deste modo não só as obras renunciam à sua estaticidade

tradicional, como os espectadores deixam de ter um papel passivo e passam a intervir na

obra de arte.

Igualmente centrada no espectador, a op art explora apenas o movimento virtual. As obras

do húngaro Víctor Vasarely, da inglesa Bridget Rilley ou do venezuelano Jesus Raphael

Soto jogam com associações cromáticas e formais que se combinam em reentrâncias e

saliências, ou se fluidificam em ondulações hipnóticas, de acordo com a posição do

observador.

20. Víctor Vasarely, Parede de alumínio (pormenor), 1963

A exploração de novas sensibilidades, como resposta à necessidade de uma revolução dos

modos perceptivos, está também presente nas experiências psicadélicas da segunda metade

dos anos 60. Como refere o crítico de arte Simón Marchán Fiz (1986), a Arte Psicadélica

colhe influências orientais (nomeadamente a valorização da natureza e da sensibilidade

corporal) e surge associada ao movimento hippie (movimento contra a cultura estabelecida

e a corrupção universal da sociedade adulta, cujo lema principal se sintetiza no «Do your

own thing» e nos slogans «Free land», «Solar energy», «Flower power», etc.), procurando

reproduzir, transmitir e estimular a natureza e essência das experiências psicadélicas. A

de imagens obsessivamente fixas e repetidas; por exemplo, Sleep (1963-1964) mostra, durante seis horas, um

homem a dormir.

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49

arte, considerada como uma auto-confirmação do eu, é inserida na vida quotidiana, desde a

pintura do próprio corpo, até à criação (em interacção com o cinema e a arte lumínica) de

ambientes psicadélicos.

A crescente permeabilidade entre os campos artísticos, a democratização das novas

tecnologias da comunicação e consequente alteração da relação artista-público, a rejeição

da obra de arte enquanto mercadoria comercial, e a valorização do transitório, do precário e

da fluidez do tempo, escreve Pelzer (2004), alicerçam uma das últimas vanguardas

artísticas deste período, a Arte de Acção. Com antecedentes históricos em certas

experiências dadaístas e surrealistas e a influência mais próxima do músico norte-

americano John Cage (desde o início da década de 1950, cria eventos musicais em que

associa a música38

e a dança à pintura ou à poesia), a arte de acção ganha corpo nos finais

da mesma década, com os happenings do também norte-americano Allan Kaprow. Os

happenings são acontecimentos, eventos de vários tipos, como a execução de uma acção

quotidiana ou a produção de um objecto em especial, que envolvem ao mesmo tempo o

artista e o público; são um tipo de representação que centra a atenção não só no

comportamento humano mas também no meio circundante, no environment, palco do real e

do vulgar. Celebrando a ideia de experiência colectiva, dialógica, acessível a todos, os

happenings, assinala Marchán Fiz (1986), pretendem arrancar o público dos seus

preconceitos habituais, dos seus condicionamentos, das intencionalidades socializadas da

percepção e do comportamento. Enquanto que as acções dos dadaístas queriam chocar o

público, os happenings procuram incluí-lo, convertendo-o em co-autor, ao mesmo tempo

que o artista se torna um experimentador social.

Um dos movimentos mais activos do accionismo foi o Fluxus, grupo fundado no início da

década de 1960 pelo lituano Georges Maciunas, com o intuito de agrupar artistas de todo o

mundo (contou, entre outros, com os germânicos Wolf Vostel e Joseph Beuys, o coreano

Nam June Paik e a japonesa Yoko Ono) para repensar a música, o teatro, a dança e as artes

plásticas. Em declarada oposição ao objecto artístico tradicional e ao sistema museológico

vigente, os artistas do fluxus expressam-se sobretudo através de acções improvisadas,

38

A estética musical de Jonh Cage, refere Ana Almeida (2007), expande o âmbito musical a todos os sons

que já existem na própria vida (sons ready-made) e é bem ilustrada pela obra musical e filosófica 4’33’’,

onde as ideias de silêncio, de indeterminação e acaso são também contempladas.

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50

happenings, performances (por vezes organizadas em festivais), publicações, etc.,

valorizando a criação colectiva, misturando diferentes artes, fundindo a arte e a vida.

Esta arte de acção, aponta Marchán Fiz (1986), abandona progressivamente os seus

elementos de improvisação para se centrar num processo de acções que obedece a

premissas previstas de antemão, conduzindo nos finais dos anos 60, à Arte do

Comportamento e à Body Art. As experiências “comportamentais”, que englobam

psicodramas, jogos de papéis, situações de estados psíquicos de perigo, terror, etc., visam

dissolver os padrões habituais de comportamento e provocar formas plásticas de treino e

aprendizagem perceptiva e vivencial, reflexiva e criativa, da consciência individual e

social.

O relevo da experiência corporal na arte do comportamento deu origem à body art. O

happening já utilizava o corpo humano, mas como instrumento e não como material; com a

body art, o corpo passa a ser o objecto da arte e o artista a própria obra de arte. Com

inspirações múltiplas – psicanálise, antropologia, fenomenologia e cinestesia – a body art

manifesta-se de diferentes formas, desde a simples exposição do corpo (o germânico Timm

Ulrichs, principal representante da arte do eu, expõe-se numa vitrine como obra de arte),

por vezes metamorfoseado (a dupla inglesa Gilbert & George transformam-se em

esculturas vivas recorrendo à maquilhagem para acentuar a imobilidade mímica), até às

acções masoquistas sobre o corpo (a francesa Gina Pane realiza violentas performances

retalhando o próprio corpo com uma lâmina ou abraçando rosas cujos espinhos lhe

arranham os braços, o austríaco Rudolph Schwarzkogler faz simulações de autocastração).

É a imagem social do corpo que está em causa; como explica Marchán Fiz (1986), a body

art nega o corpo-fetiche da propaganda comercial, contesta a exploração do corpo como

força de trabalho, e elege-o como veículo de libertação.

A poética da body art, espalha-se tanto nas experiências plásticas como na dança e no

teatro. Ao nível do teatro, o polaco Jerzy Grotowsky, figura de primeiro plano nas

pesquisas teatrais dos anos 60, reconduz o processo de representação a um conjunto de

fraseados corporais extraídos da própria vida; a recitação baseia-se apenas numa

gestualidade sumária e seca – o que justifica o apelido de Teatro Pobre – capaz de

envolver o espectador de forma mais directa, já que o texto seria um obstáculo à

autenticidade do espectáculo.

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51

21. Rudolph Schwarzkogler, Aktion, 1965

Também de “pobre” foi apelidada a pesquisa de um grupo de artistas italianos nos finais da

década de 1960. Influenciados por Joseph Beuys (defendendo que tudo é arte e que todos

somos artistas, desenvolve desde os anos 50 uma obra motivada pela descoberta do estado

primordial das coisas e pelo restabelecimento de uma relação harmónica com a natureza),

os protagonistas da Arte Pobre ou Arte Povera associam e transformam materiais

presentes no dia a dia da sociedade moderna, desde a madeira aos materiais sintéticos e

tecnológicos, convertendo-os em obras de arte. Assim, por exemplo, Michelangelo

Pistoletto, na sua Vénus dos Trapos (1968), associa um monte de trapos multicolores com

uma clássica estátua de Vénus de costas para o espectador; o grego Jannis Kounellis, em

1969, expõe 12 cavalos, convertendo o espaço de uma galeria num estábulo. Despojando a

arte da auréola da nobreza e de misticismo que a rodeava, a arte povera torna-se um

instrumento de emancipação colectiva, através da consciencialização do espectador sobre a

situação estética, social e ambiental da sociedade tecnológica e consumista.

A arte pobre, considera Marchán Fiz (1986), tem como corolário e como réplica

anglosaxónica a Land Art. Derrubando de vez os muros dos museus e das galerias, a land

art elege os contextos naturais – montanha, mar, deserto – como espaço de intervenção.

São sobretudo os artistas norte-americanos que se aventuram em regiões mais ou menos

selvagens para aí executarem obras gigantescas, que nascem em simbiose com a natureza e

que à natureza acabarão por voltar. Um caso emblemático é a Spiral Jetty que Robert

Smithson realiza em 1970 no Grande Lago Salgado do Utah, uma grande espiral de terra,

apenas visível totalmente de cima, destinada a ser coberta pela água. Noutros casos são os

materiais selvagens que invadem as galerias, como acontece na obra de Richard Long.

22. Richard Long, White water line, 1990

Enquanto que a génese preparatória da obra é demorada, a sua duração pode ser mínima,

dependendo das condições meteorológicas, sendo o carácter efémero desta arte

compensado pelo seu registo em vídeo e fotografia. Apesar da inspiração minimalista de

muitas das enormes composições geométricas, os artistas ecológicos assumem uma atitude

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neo-romântica: ao isolar-se do mundo civilizado para realizar obras não comercializáveis,

negam ao mercado da arte a possibilidade de transformar o original em mercadoria.

Estando em causa um protesto contra a paisagem contaminada pela civilização tecnológica

e consumista, pugna-se pelo retorno à natureza, instaurando novas relações com ela.

Tal como as intervenções da arte de acção, a land art recupera a pré-renascentista

dependência da arte face ao lugar. Com efeito trata-se de intervenções artísticas,

happenings, esculturas, etc., projectadas para um local específico – site specific. Deste

modo, refere Pelzer (2004), o ambiente torna-se inseparável da obra, o contexto material e

simbólico torna-se objecto artístico. Tal significa, na abordagem que a historiadora norte-

americana Rosalind Krauss (1985) faz da escultura, a expansão do objecto artístico no

campo e a sua fusão com a arquitectura e a paisagem.

A dependência do lugar, as preocupações com o Homem, o ambiente e a natureza têm

igualmente eco na arquitectura das décadas de 1950 e 1960. Assim, em oposição à

normalização do Estilo Internacional e à impessoalidade do cubismo e do funcionalismo,

desenvolve-se uma arquitectura cada vez mais livre nas opções formais e adequada às

necessidades individuais dos seus utentes, um estilo normalmente designado por

Organicismo. Como refere Grau (1996), a arquitectura orgânica entende o edifício como

um organismo vivo e não como uma máquina de viver, e obedece às seguintes directivas:

predomínio do sinuoso sobre o rectilíneo e o anguloso, utilização de materiais nobres e da

região, adaptação do conjunto às imposições da paisagem.

Depois de alguns dos principais mentores do movimento moderno terem já desde os finais

da década de 40 enveredado nesta direcção (Frank Lloyd Wright projecta o Museu de

Guggenheim de Nova Iorque [23] baseado numa espiral ascendente, Le Corbusier desenha

a Capela de Notre-Dame-du-Haut em Ronchamp, com uma morfologia feita de audaciosas

sinuosidades e de saliências imponentes, e Alvar Aalto assina o projecto do Baker

Dormitory do Massachusetts Institute of Technology de Cambridge conferindo-lhe uma

dupla ondulação, no plano e no perfil), a partir dos finais dos anos 50 são construídos

edifícios inspirados em organismos vivos: o Terminal TWA do aeroporto J. F. Kennedy

(1956-1962), do finlandês Eero Saarinen, com a forma de um pássaro que se eleva aos céus

com as suas asas abertas; o Teatro Filarmónico de Berlim (1956-1963), projectado pelo

alemão Hans Scharoun, tem a sala de concertos estruturada com um órgão de audição; a

Page 53: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

53

Ópera de Sydney (1957-1973), da autoria do dinamarquês Jorn Utzon, exibe doze

imponentes coberturas elípticas que sobressaem como conchas abertas ou velas inchadas

pelo vento e prontas para navegar.

23. Frank Lloyd Wright, Museu Guggenheim, Nova Iorque, 1956-1959

Concluindo, tanto por parte da psicologia humanista como das inúmeras correntes artísticas

da década de 1960, releva-se uma representação do Homem como um criativo ser orgânico

revoltado contra a mecânica capitalista, contra a sociedade consumista e o ritmo das

cidades modernas, contra a artificialidade e a injustiça da civilização, um ser que deseja

viver plenamente o momento presente em harmonia com os outros e com a natureza, em

síntese, um “bom selvagem”.

Page 54: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

54

4. CIENTISTA, COMPUTADOR

Paralelamente à abordagem crítica e centrada no ambiente exterior, inerente à metáfora do

“bom selvagem”, desenvolve-se uma perspectiva idealista cujo enfoque é o interior do

psiquismo, a cognição. Esta abordagem é conceptualizada pela psicologia cognitivista e

pela arte conceptual.

4.1. MODELO COGNITIVISTA

A abordagem cognitivista da personalidade constitui um retorno ao interior do psiquismo,

psiquismo já não movido por impulsos, emoções ou necessidades, mas antes regulado pela

razão e pelo pensamento. Efectivamente, estamos perante um modelo centrado nos

processos através dos quais as pessoas percebem, avaliam, aprendem, pensam, tomam

decisões e solucionam problemas. É uma abordagem que colhe influências nos modelos da

computação; como referem Fadiman e Frager (2004), o psicólogo Allen Newell e o

cientista da computação Herbert Simon defendem, em 1958, a tese de que os humanos

codificam informações simbólicas de entrada, recodificam-nas, tomam decisões sobre elas

e armazenam parte delas na memória e, por fim, descodificam e devolvem informações

simbólicas; ou seja, a mente funciona como um sistema de processamento de informações,

é um computador.

O modelo cognitivista da personalidade foi iniciado pelo norte-americano George Kelly

nos anos 50, e desenvolvido nas décadas seguintes pela via cognitivista do behaviorismo -

a teoria da aprendizagem social.

A referência aos aspectos cognitivos da personalidade não é nova; os vários modelos

anteriores reconhecem o seu papel na compreensão da personalidade. A inovação de

George Kelly é que ele descreve todos os aspectos da personalidade, inclusive os

componentes emocionais, em termos de processos cognitivos. Na sua Teoria do

Constructo Pessoal, referida por Schultz & Schultz (2001), Kelly defende que

Page 55: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

55

interpretamos e organizamos os eventos e as relações sociais da nossa vida num sistema ou

padrão; essa interpretação ou construção pessoal39

da experiência representa a nossa visão

singular da realidade, o padrão no qual nos situamos, sendo mais importante do que a

própria realidade; é com base nesse padrão que fazemos previsões sobre nós mesmos,

sobre os outros e sobre os eventos, e assim orientamos o nosso comportamento.

Kelly considera que as pessoas agem como os cientistas: estes elaboram teorias e

hipóteses, que testam na realidade; caso os resultados da experimentação sustentem a

teoria, ela será mantida; quando os dados não a confirmam, ela terá de ser descartada ou

modificada. Como cientistas, todos nós elaboramos teorias – constructos pessoais – por

meio das quais tentamos prever e controlar os eventos da nossa vida; um constructo é uma

hipótese intelectual elaborada para explicar e interpretar os eventos da vida. Como os

cientistas, estamos constantemente a testar os constructos que desenvolvemos

relativamente às várias pessoas e situações; quando eles se revelam falsos ou inadequados,

substituímo-los por novos constructos, num processo fluido e em movimento.

A diversidade de respostas face a estímulos semelhantes leva os neobehavioristas a

questionar os aspectos internos do comportamento, isto é, a abandonar a orientação

mecanicista inicial (estímulo - resposta) e a adoptar uma orientação cognitivista. A Teoria

da Aprendizagem Social, aqui representada pelo canadiano Albert Bandura, mantém a

tese skinneriana de que o comportamento é aprendido e o reforço é fundamental para a

aprendizagem; contudo a interpretação da natureza do reforço é diferente.

Assim, de acordo com Bandura (referido por Schultz & Schultz, 2004) o comportamento

nem sempre é aprendido através do reforço directo; adquirimos comportamentos através da

observação do comportamento de outras pessoas – aprendizagem por observação ou

aprendizagem por modelagem – e das suas consequências – reforço vicariante. Isto é,

adquirimos comportamentos que vemos ser reforçados quando exibidos por determinados

modelos. A aprendizagem por observação é determinada pelos processos de atenção,

retenção, produção e processos motivacionais. O self é um conjunto de processos

39

Também no campo da psicologia social, como referimos noutro contexto (Muga, 1995), se propõe que a

realidade é socialmente construída, isto é, que a percepção e o comportamento são influenciados pelas

estruturas cognitivas; estas são organizações mentais, socialmente partilhadas, de objectos, situações,

acontecimentos, sequências de acções, etc., como por exemplo: o estereótipo, a representação social, o

esquema causal, o script.

Page 56: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

56

cognitivos relacionados com o pensamento e a percepção; os processos cognitivos são

mecanismos mediadores entre estímulo e resposta, e exercem o controlo do

comportamento por meio da auto-regulação.

O papel do pensamento na auto-regulação do comportamento é também realçado por

outros autores. Na linha da tese desenvolvida pelos russos Vygotsky e Luria nos anos 20,

de que existe uma relação complexa entre linguagem, pensamento e comportamento, e de

que o iniciar ou a inibição de comportamentos voluntários são regulados pela linguagem

(os autores estabelecem um paralelo entre o desenvolvimento da linguagem e o

comportamento: inicialmente é a linguagem dos outros que controla e dirige; depois é a

linguagem falada do próprio indivíduo que constitui o regulador efectivo do

comportamento; finalmente, o papel auto-regulador é assumido pela linguagem interior), o

norte-americano Donald Meichenbaum (1977, referido por B. Cunha, 1982) conceptualiza

o pensamento como uma linguagem interiorizada que regula os comportamentos. Um

modelo desenvolvido a partir dos anos 80 por Bandler e Grinder, resultante do cruzamento

entre a psicologia cognitivista, a linguística, a cibernética e a informática – Programação

Neuro-Linguística – defende que ao longo da existência programamo-nos para pensar,

sentir e agir de determinada maneira, que essa capacidade depende da actividade

neurológica, e que a linguagem é estruturada e reflecte a forma como pensamos.

Portanto, a imagem do Homem que ressalta do cognitivismo é a de um ser pensante, um

“cientista” que constrói teorias sobre a realidade e que se sobrepõem à mesma (não existe

uma realidade objectiva mas sim construções dessa realidade), a de um “computador”

auto-programável, cujo hardware e software determinam a sua relação com o meio.

4.2. ARTE CONCEPTUAL

O deslocamento do exterior para o interior operado pela psicologia cognitivista encontra

um estreito paralelo no deslocamento do objecto para o conceito, inerente à Arte

Conceptual. A par dos inúmeros movimentos e experiências dos anos 60, essencialmente

centrados no exterior e na fisicalidade do objecto tangível, a partir de 1965, na América e

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57

na Europa, impõe-se uma concepção de arte de cariz radicalmente idealista: o que importa

não é a aparência objectual da obra, mas a ideia, o conceito que está por detrás, que a

precede e lhe dá forma.

Como assinala Marchán Fiz (1986), a arte conceptual é o culminar da estética processual,

uma estética que de certo modo define toda a arte contemporânea; desde que a arte

substitui o princípio mimético pelo sintáctico-formal que se interessa pela reflexão sobre a

sua própria natureza, sobre os fenómenos originários de índole perceptiva, e procura

legitimar conceptualmente as suas práticas. Inspirada em fontes várias, desde a poética

dadaísta de Duchamp (que considerava a arte não tanto uma questão de morfologia como

de função, não tanto de aparência como de operação mental), a pintura inquietante e

ilusionista do belga René Magritte, até à obra teórica e prática do francês Yves Klein (em

1958 propõe uma “exposição do Vazio”, que consistia numa galeria totalmente vazia),

passando pela fenomenologia do filósofo francês Merleau-Ponty, a arte conceptual

intersecta-se com a arte da acção (nomeadamente com as experiências do grupo Fluxus), a

body art, a land art e o minimalismo americano (as instalações de Robert Morris, Dan

Favin e Sol LeWitt reduzem o objecto às suas formas geométricas essenciais, pretendendo

evidenciar as estruturas primárias do conhecimento).

A arte conceptual, arte ideia, arte projecto, situa-se na vanguarda do processo de auto-

conhecimento e auto-reflexão da prática artística. A superação da lógica da obra como

entidade física, objectual e formal, conduz à emancipação do artista da escravidão do

objecto; o artista deixa de produzir objectos e limita-se a analisar a arte e a linguagem em

geral. Um dos principais ideólogos do conceptualismo puro, o americano Joseph Kosuth,

defende que uma obra de arte é uma espécie de proposição, apresentada dentro do contexto

da arte como um comentário sobre arte; deste modo, uma obra de arte, tal como a lógica e

as matemáticas, é uma tautologia40

, isto é, a ideia de arte (ou obra) e a arte são uma mesma

coisa. Igualmente da linha conceptualista pura, o grupo inglês Art & Language, limita a

sua acção à intervenção teórica, evitando sujar as mãos com pincéis ou cores, declarando

que o artista da sociedade multimédia trata exclusivamente de problemas filosóficos.

Expoente máximo do conceptualismo rigoroso, o nova-iorquino Lawrence Weiner elabora

por escrito teoremas analíticos sobre a hipótese da obra e da arte em geral.

Page 58: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

58

24. Lawrence Weiner, Art meets science, 1992

No conceptualismo moderado, refere Sproccati (1995a), a obra continua a existir como

objecto físico, mas pretende igualmente manifestar uma ideia ou ilustrar um conceito. O

próprio Kosuth, a par do seu purismo ideológico não se liberta completamente da

fisicalidade da obra e da relação entre a linguagem e a percepção visual; a sua obra mais

conhecida, Uma e três cadeiras, de 1966, é composta por uma cadeira, a fotografia da

mesma e um texto com a definição de cadeira extraída do dicionário; com ela o autor

pretende confrontar três modos diferentes de representar a realidade: o verbal (o mais

aculturado), o icónico (imagem mental) e a presença física (exemplo). Na mesma linha, as

instalações do italiano Claudio Parmiggiani constituem reflexões sobre a história da

pintura ou da linguagem em geral; na instalação Sinédoque41

, de 1976, o autor expõe um

quadro original de Dosso Dossi, de 1530, dedicado ao mito de Júpiter pintor, extrapola

uma das suas partes para uma tela, coloca um banco com tintas e pincéis, e convida

psicologicamente o espectador a substituir o protagonista.

Igualmente dos valores conceptuais se tinge a poesia dos anos 60 e 70, a denominada

Poesia Visual. Ao contrário da poesia concreta da década anterior, que cria composições

apenas com palavras (ao alterar a estrutura sintáctica do verso tradicional, através da

eliminação de preposições, conjunções, pronomes, etc., cria-se uma poesia concreta, feita

quase exclusivamente de substantivos e verbos), a poesia visual joga com o encontro e a

interpenetração de palavras e imagens, podendo englobar também a linguagem sonora, a

linguagem matemática, etc., com um claro predomínio do elemento plástico sobre os

restantes.

25. Mirella Bentivoglio, (Am)tiamo, 1970

Também a arquitectura dos anos 60 se aventura no terreno do conceptualismo. Como

aponta Ferrari (2001), vários arquitectos realizam projectos que prescindem da sua

execução, apresentando-se como audaciosas utopias. É o caso do austríaco Friedrich

40

Conceito lógico, a tautologia é uma proposição dada como explicação ou como prova, mas que apenas

repete em termos idênticos ou equivalentes o que já foi dito. 41

Conceito linguístico, a sinédoque é um tropo, fundado na relação de compreensão, em que se emprega o

nome do todo pela parte ou da parte pelo todo.

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59

Kiesler que concebe a Endless House, uma casa que parece um casulo sobre pilares, em

que o espaço flui livremente, sem interrupções. O grupo inglês Archigram projecta uma

cidade móvel – Walking City, 1964 – dotada de apêndices que parecem patas de insecto e

se deslocam em função das suas necessidades [26]. Os seus projectos de conjuntos

habitacionais, observa o arquitecto Victor Consiglieri (2000), propõem formas imagéticas

de «não edifícios», o que libertaria o Homem das limitações do edifício monumental.

26. Grupo Archigram, Walking City, 1964

Como refere Argan (1984), o conceptualismo reduz a arte a um acto de pensamento, a um

puro conceito, ameaçando, como previa Hegel, a própria existência da arte e a sua

promoção, a par da ciência e da filosofia, ao espírito absoluto. Tal não se verificou, mas

constituiu o ponto culminante do modernismo, do vanguardismo, e a ponte para o pós-

modernismo.

Concluindo, se, como defende Marchán Fiz (1986), a arte conceptual acentua mais do que

qualquer outra tendência a actividade do espectador (a arte torna-se um processo

permanente: os índices oferecidos pela obra, os elementos sinaléticos, o inacabado,

provocam e impulsionam o processo produtivo da recepção-criação), então o estatuto de

cientista a que a psicologia cognitivista promove o ser humano, parece ser a única

possibilidade de comunicação artista-público.

Assim, a par da representação do “bom selvagem”, nos anos 60 e início dos 70, evidencia-

se uma imagem do Homem como ser conceptual, um “cientista”, um “computador”.

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60

5. PERFORMER, MÚSICO DE JAZZ

O período desde os anos 70 até aos nossos dias tem sido o palco de mudanças de tal modo

profundas e globais, que é cada vez mais clara a consciência de que entrámos numa nova

fase histórica – a era pós-moderna.

Já nos anos 50 e 60, observa Steinar Kvale (1999), eram discutidos temas pós-modernos no

seio da arquitectura, da crítica literária e da sociologia; durante a década de 70 vários

filósofos franceses (nomeadamente Lyotard, Foucault, Baudrillard, Derrida, Lipovetsky)

aderiram à discussão da pós-modernidade, e nos anos 80 a temática alarga-se ao grande

público. Começamos por identificar alguns traços da idade e do pensamento pós-moderno,

para depois reflectir sobre a possibilidade de uma ciência da individualidade e da

personalidade; no ponto dois debruçamo-nos sobre a arte pós-modernista.

5.1. PÓS-MODERNIDADE E MODELO SISTÉMICO-INFORMACIONAL

Apesar da divergência de opiniões parece haver algum consenso em considerar como pós-

moderna a era subsequente às revoluções dos anos 60 e que se materializa a partir da

década de 70, desde logo ao nível económico, político e social. Assim, para o crítico

marxista norte-americano Fredric Jameson, a pós-modernidade assenta na lógica cultural

do capitalismo tardio (o capitalismo financeiro ou pós-industrial, no qual a força da

economia se desloca da produção mecânica para a indústria da informação, e da produção

para o consumo), uma lógica conservadora, incapaz de promover a transformação social.

Gilles Lipovetsky prefere o termo hiper-modernidade, pois considera que mais do que uma

rotura com a modernidade, se assistiu a uma intensificação de determinadas características

das sociedades ocidentais modernas: individualismo, consumismo, ética hedonista,

fragmentação do tempo e do espaço. Ou seja, a hiper-modernidade é a cultura do excesso,

do sempre mais, do “hiper” – hipermercado, hiperconsumo, hipertexto, etc.; todas as coisas

se tornam intensas e urgentes, o movimento é uma constante e as mudanças ocorrem num

ritmo quase esquizofrénico determinando um tempo marcado pelo efémero.

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61

Para além da crise das ideologias políticas também a crença iluminista na emancipação e

progresso através da ciência é posta em causa. A ciência não dá resposta aos novos

problemas, como a sida, o desemprego, a toxicodependência, o aumento do fosso entre os

países ricos e pobres, o terrorismo, etc.; a par das condições sociais, a crise do paradigma

científico moderno é também o resultado de condições teóricas. Jean-François Lyotard, na

obra A condição pós-moderna, de 1979, entende a condição pós-moderna como a perda da

crença positivista na verdade definitiva e universal, e o desenvolvimento de uma

concepção do saber em permanente construção e relativista. Trata-se da crise do paradigma

newtoniano e da emergência de um novo paradigma; como refere o sociólogo português

Boaventura Santos (1995), as implicações da mecânica quântica e os avanços dos

conhecimentos da microfísica, da química e da biologia dos últimos vinte anos levam a

uma nova concepção da matéria e da natureza: a ordem e a necessidade dão lugar à

desordem, à criatividade e ao acidente; o determinismo e o mecanicismo são substituídos

pela imprevisibilidade, espontaneidade e auto-organização.

Um outro traço marcante do saber pós-moderno, salienta Agra (1986), é o rompimento das

fronteiras disciplinares em proveito da livre circulação de informação. A ciência torna-se

um sistema aberto42

, estabelecendo trocas entre domínios múltiplos através de importações

(de termos, conceitos, problemas), interferências, traduções e confluências; acompanhando

a informatização da sociedade, o novo estatuto do saber é marcado pela linguagem (as

ciências e as técnicas de ponta recaem sobre a linguagem – teorias linguísticas, cibernética,

informática, telemática); a ciência torna-se um nó da rede informacional.

Consequentemente, as novas disciplinas emergentes, ao invés de ser definidas por uma

região ou objecto específico, nascem mais da fecundação de uma disciplina por outra; os

exemplos são variados – astrofísica, bioquímica, neuropsicologia, etnopsiquiatria, etc.; a

ciência torna-se híbrida.

Tal hibridismo conduz à queda da oposição entre as ciências humanas e as ciências

naturais (cada vez mais as abordagens dominantes nas ciências humanas são modeladas

42

De acordo com a Teoria Geral dos Sistemas, iniciada pelos trabalhos do biólogo austríaco Ludwig von

Bertalanffy em meados da década de 1950, um sistema é um conjunto de elementos, dinamicamente

relacionados, que desenvolvem uma actividade para atingir um determinado objectivo; tratando-se de um

sistema aberto, ele opera sobre dados, informação, matéria do meio (inputs) e fornece informação, matéria,

ao meio (outputs).

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62

pelos esquemas das ciências exactas – a teoria da informação pela termodinâmica, a teoria

dos sistemas pela biologia – enquanto que a nova física foge para a desordem, o

improvável, a metafísica), entre a ciência e o senso comum, a ciência e a estética, a ciência

e a ética.

A nova configuração do saber é bem ilustrada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e

Félix Guattari na obra Mil Platôs, de 1980, através da metáfora do “rizoma”. Em analogia

com a botânica (o rizoma é uma estrutura de planta cujos brotos podem ramificar-se em

qualquer ponto, assim como engrossar e transformar-se em bolbo ou tubérculo, ou seja, o

rizoma tanto pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independentemente da sua

localização na estrutura da planta) o rizoma constitui uma metáfora do sistema

epistemológico onde não há raízes, isto é, proposições mais fundamentais do que outras;

modelo epistemológico no qual a organização dos elementos não segue linhas de

subordinação hierárquica, mas em que qualquer elemento pode afectar ou incidir noutro; a

estrutura do conhecimento não deriva, por meios lógicos, de um conjunto de princípios

primeiros, mas sim simultaneamente a partir de todos os pontos sob a influência de

diferentes observações e contextualizações.

No novo paradigma emergente também a natureza das relações entre o sujeito e o objecto

do conhecimento, entre o observador e o observado, adquire uma nova configuração.

Porque, frisa Boaventura Santos (1995), como é demonstrado pelo princípio da incerteza

de Heisenberg inerente à mecânica quântica, não conhecemos do real senão a nossa

intervenção nele, o objecto estudado é uma continuação do sujeito pensante e todo o

conhecimento é auto-conhecimento; como refere Edgar Morin (1977, citado por Agra,

1986), o observador também faz parte do sistema observado e o sistema observado faz

também parte do intelecto e da cultura do observador-sistema. O objecto torna-se sujeito, e

o sujeito torna-se objecto; deste modo, a positivista separação sujeito-objecto dá lugar à

fusão sujeito-objecto.

Chegamos assim a um dos slogans do pensamento pós-moderno, “a morte do sujeito”, o

desaparecimento do self, a fragmentação do eu. Baseados na teoria da desconstrução de

Jacques Derrida (é o desfazer do texto – enquanto fonte primária dos discursos políticos

sociais e culturais, enquanto meio de transmissão das ideias dos actores sociais e reflexo

Page 63: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

63

dos seus pensamentos – a partir do modo como foi originalmente organizado ao nível

estrutural e lógico, por forma a revelar os seus significados ocultos e, assim, encorajar a

pluralidade de discursos, interpretações e verdades), vários psicólogos têm procurado

desconstruir a concepção substancializada do self no centro do mundo, ser unificado e

agente autónomo. Assim, de acordo com Patti Lather (1999), o sujeito unificado, reificado

e essencializado, assumido pelo discurso humanista, foi substituído por um sujeito

provisório, contingente e construído, um sujeito cuja auto-identidade é constituída e

reconstituída relacionalmente. Na linha de Lacan, Lars Lovlie (1999) interpreta o

desaparecimento do eu como a morte da ideia de um agente autónomo e intencional e a

emergência de um indivíduo anónimo submetido ao jogo da estrutura e ao poder da

narratividade, uma parte do texto no mundo; o self é um conjunto de performances

dramáticas, uma proliferação de papéis, uma progressiva mostra de (sur)faces. É, na

perspectiva de Neil Young (1999), um “self cebola”, uma colecção de papéis sociais

adoptados e abandonados, de identidades descartadas ou transcendidas. Numa perspectiva

ecológica, Mike Michael (1999) defende que o que morreu foi o self interior e

essencializado, o qual, pela emergência da consciência ecológica, se expande e difunde na

natureza, actuando através de narrativas e mitologias derivadas das próprias localidades e

paisagens43

.

27. Sílvia Pinho, Sem Título, 2007

A “morte do sujeito” evidencia-se também ao nível da nova estratégia do poder, que visa

cada vez mais controlar a vida sem controlar o indivíduo. Como refere Agra (1986), a

actual intervenção do biopoder exerce-se sobretudo ao nível da infra-individualidade

(através da bioprogramática – a política que antecipa o indivíduo, o prevê e decide por ele),

e ao nível da ultra-individualidade (através da biodemografia – a política das populações,

traduzida nos bancos de dados, nas câmaras de vigia, na intervenção comunitária).

43

Ao nível patológico, a questão das fronteiras do eu é também para Didier Anzieu (1985, referido por

Margarida Medeiros, 2000) uma questão central dos finais do século XX; assim, numa abordagem eto-

psicanalítica, Anzieu afirma que, enquanto no final do século XIX as patologias dominantes eram a neurose

histérica e a neurose obsessiva, o que se verifica hoje é a incidência nas patologias narcísicas e nos estados

limites: incertezas sobre a fronteira entre o Eu psíquico e o Eu corporal, entre o Eu real e o Eu ideal, entre o

que depende de si e o que depende dos outros, com bruscas flutuações destas fronteiras, acompanhadas de

quedas em profunda depressão; sentimento estranho de não habitar a sua própria vida, de ver o seu corpo e o

seu pensamento a funcionar de fora, de ser o espectador de algo que é e não é ao mesmo tempo a sua própria

existência.

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64

Consequentemente, o indivíduo é cada vez menos objecto de saber, cada vez se sabe

menos sobre ele, é um ser cada vez mais misterioso.

Em suma, a partir dos anos 70 a ciência da individualidade e da personalidade tem vivido

um estado crítico, a sua possibilidade de existência afigurando-se como muito limitada. A

reacção a este estado de agonia manifesta duas tendências, opostas relativamente ao campo

de alcance, mas tendo em comum o retorno a modelos do passado. A primeira deriva da

descrença em teorias globais, capazes de oferecer uma explanação abrangente da

personalidade, conduzindo a abordagens de domínio limitado, a “teorias de faixa estreita”.

A segunda tendência adopta uma atitude inversa, procurando explicações abrangentes,

sistémicas, assumindo uma atitude eclética e de compromisso entre modelos anteriores.

Ao nível das teorias de domínio limitado da personalidade, Schultz & Schultz (2001)

destacam três abordagens. A Teoria da Necessidade de Realização, desenvolvida pelo

norte-americano David McClelland, é uma abordagem neopsicanalítica que evoca a ideia

de redução de tensão; a necessidade de realização é um impulso que fornece energia e

direcção ao comportamento em praticamente todas as situações.

Revisitando a abordagem dos traços, o norte-americano Marvin Zuckerman tem vindo a

trabalhar na Teoria da Busca de Sensação. A busca de sensação é um desejo de

sensações e experiências variadas, novas, complexas e intensas e pela disposição de correr

riscos. A busca de sensação apresenta quatro componentes: (1) busca de excitação e

aventura – desejo de participar em actividades físicas que envolvam velocidade, perigo,

novidade e desafio da gravidade, tais como salto com pára-quedas, mergulho com

aqualung ou bungee jumping; (2) busca de experiências – procura de experiências novas

por meio de viagens, música, arte ou estilo de vida não conformista; (3) desinibição –

necessidade de envolvimento em actividades sociais não inibitórias; (4) susceptibilidade ao

tédio – aversão a experiências repetitivas, a trabalhos de rotina, a pessoas previsíveis e uma

reacção de descontentamento inquieto quando exposta a situações deste tipo.

A Teoria do Desânimo Aprendido, desenvolvida pelo norte-americano Martin Seligman,

reflecte influências behavioristas e cognitivistas. O desânimo aprendido é uma condição

que resulta da percepção de que não temos controlo sobre o nosso ambiente. O modelo de

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65

atribuição da falta de controlo a uma determinada causa, pode ser optimista ou pessimista:

enquanto que os optimistas atribuem os seus fracassos a causas externas, instáveis e

específicas, os pessimistas dão a si mesmos, explicações internas, estáveis e globais.

Consequentemente, se um estilo explicativo optimista tende a aumentar a sensação de

controlo e a motivação para reagir em situações futuras, um estilo pessimista difunde o

desânimo a todas as áreas da vida, podendo levar à depressão e a doenças físicas.

A par das “teorias de faixa estreita” têm sido desenvolvidas “teorias de banda larga”,

teorias ecléticas que procuram conjugar modelos anteriores. É o caso das teorias

interaccionistas, cuja abordagem tenta reunir o melhor da teoria dos traços e da teoria

behaviorista da aprendizagem social, na explicação e previsão do comportamento. Como

refere Amâncio Pinto (2001), as teorias interaccionistas são teorias ecléticas que

consideram o comportamento como o resultado da interacção entre traços e predisposições

da pessoa por um lado, e as circunstâncias da situação por outro, que em conjunto

influenciam ou condicionam o modo como o comportamento se exprime. As situações

podem ser psicologicamente fortes ou fracas: as situações fortes são bem definidas e

estruturadas e fornecem indicações bastante precisas para guiar e orientar o

comportamento; as situações fracas estão organizadas de forma ambígua e as indicações

são menos claras e precisas. Se a teoria dos traços é capaz de prever melhor o

comportamento nas situações psicologicamente fracas, o situacionismo consegue prever

melhor nas situações fortes. Por outro lado, há pessoas mais receptivas a agir de acordo

com disposições pessoais, enquanto outras são mais propensas a agir em função das

variáveis situacionistas; as primeiras revelam maior consistência comportamental do que as

segundas ao longo do tempo e em diferentes situações.

Na mesma linha, mas menos revivalista e mais consentânea com o novo paradigma

epistemológico, traduzindo a permeabilidade entre os domínios científico, ético e estético,

situa-se a Teoria Geral do Sujeito Autopoiético, desenvolvida por Cândido Agra desde

os anos 90. Partindo do conceito “poiesis”44

, e do pressuposto de que o sistema psíquico é

44

O termo poiesis é de origem grega, e significa acção criativa, produtora (diferenciando-se da praxis, acção

que não produz um objecto como resultado – ética e política); associada a esta acção está a palavra techné, da

qual derivam as palavras técnica e arte (esta, tal como a técnica também estava sujeita a regras na antiga

Grécia); assim, poiético significa produtor criador, mas sujeito a regras.

Page 66: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

66

complexo (isto é, tem a capacidade de auto-organização e auto-regulação), Agra (1995)

coloca a questão: como é que nos produzimos a partir da interacção entre a massa

biológica (código genético aberto) e os factores sociais? O psiquismo é o vazio, nós é que

o preenchemos, auto-criando-nos. O que pode preencher o vazio psicológico? É o sentir;

criamo-nos dando sentido às nossas determinantes biológicas e sociais.

Como explicita a discípula Celina Santos (1998), há quatro estádios ou níveis de auto-

criação: (1) o nível etológico – o simples fazer, a acção pura, governada pelo estrato

fisiológico; (2) o nível etológico-ético – o ethos torna-se teknê e é integrado tecnicamente,

implicando o saber sobre as circunstâncias do acto, acto reflectido, tornado objecto de

saber, dobrado de sentido através da linguagem e da expressão, ou o fazer-saber; (3) o

nível ético-etológico – no qual já existe uma primeira dimensão auto-referencial do acto,

que faz emergir o sujeito através da dobra do saber-fazer sobre si próprio, o saber do saber-

fazer; (4) o nível ético – estádio em que o sujeito do acto ou o poder do acto é integrado

por uma função projectiva do fazer; o acto-poder ou a liberdade do agir inscreve-se numa

política geral de acção, acto-projecto orientado pela finalidade última, pelo agir ético.

O acto psicológico é tripartido, engloba o conhecimento, o julgamento, e a sensibilidade;

estas três dimensões vão-se diferenciando à medida que se sobe na hierarquia. Em todos os

níveis há o biológico e o social, isto é, o social já está no biológico; não há liberdade, o que

há é a libertação permanente. O processo de auto-criação é um processo de permanente

desconstrução da ideia de si próprio e consequente reprogramação.

Em conclusão, o discurso em torno do Homem pós-moderno apresenta-nos uma

multiplicidade de imagens: um ser provisório, contingente, improvisador, em permanente

construção num ambiente incerto; um ser relacionalmente constituído no seio da rede de

No pensamento moderno, o conceito foi primeiramente aplicado nos anos 70 pelos biólogos e filósofos

chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela aos sistemas biológicos (para traduzir a complementaridade

entre estrutura e função, e o jogo das determinações e das indeterminações, da necessidade e do acaso), tendo

depois sido alargado aos sistemas sociais e humanos.

É a partir deste conceito que F. Varela (1984, citado por Jorge Vala, 1993) cria uma bela metáfora sobre o

Homem como “músico de jazz”, músico que “toma um par de acordes que podem parecer aleatórios e que a

partir daí cria uma verdadeira fuga e improvisação, que tem uma beleza e harmonia próprias, que não está

desligada do tema proposto pelo seu encontro com o ambiente, mas que não o reflecte, como se seguisse uma

partitura”.

Page 67: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

67

comunicação enciclopédica; um ser complexo que se (re)cria no interface entre o biológico

e o social; em suma, um “performer” com múltiplos papéis, “um músico de jazz”.

5.2. ARTE PÓS-MODERNA

Analisando a arte pós-moderna em relação com a arte moderna – relação que se entende de

rotura e negação, mas também de intensificação de algumas tendências – podemos relevar

várias dimensões.

Antes de mais, a típica obsessão modernista pela inovação dá lugar ao retorno ao passado,

à citação, à referência, à apropriação; esta nova atitude tende a intensificar a crise autoral,

já denunciada nos finais dos anos 60 por Roland Barthes e Michel Foucault; a “morte do

autor” tem como contrapartida a expansão do papel do receptor, o aumento do

protagonismo do consumidor.

O retorno ao passado, acompanhado do derrube das últimas barreiras e hierarquias entre

linguagens e géneros artísticos, dá origem a uma arte caracterizada pelo eclectismo,

nomadismo e hibridismo.

Simultaneamente, a modernista procura dos fundamentos universais da arte dá lugar à

diversidade e à contradição; com a diminuição da importância da procura da verdade, a

arte converte-se num jogo irónico-parodiante, uma celebração do nonsense cuja regra

assenta no “vale tudo”.

Por último, a morte das ideologias e das crenças cavada nos anos 60, e a substituição da

abordagem elitista da arte moderna por um desejo de ligação com grandes audiências e de

ligação da arte com a vida, coloca em posição dominante os mass media; a “perda da aura”

do objecto artístico já denunciada pelo crítico alemão Walter Benjamim nos anos 30 (perda

da autenticidade e carácter único da obra, devida à reprodução em série e sua difusão em

massa, nomeadamente da fotografia e do cinema) é assim intensificada pelo poderoso

aparelho comunicacional mediático emergente; o domínio da indústria cultural e da

civilização mediática faz com que, refere Argan (1984), a função consumo prevaleça sobre

a função produtiva e o carácter estético se desloque da informação para o modo como ela é

recebida.

Page 68: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

68

Estas dimensões estão bem patentes nalgumas das principais correntes e pesquisas

artísticas das últimas décadas.

Paradigmática da negação do modernismo e do retorno ao passado é a arquitectura pós-

moderna. Em manifesta reacção contra o funcionalismo e o formalismo sóbrio e

homogéneo do movimento moderno, a partir dos anos 70 arquitectos como os norte-

americanos Charles Moore, Robert Venturi e Michael Graves, o italiano Aldo Rossi e o

espanhol Ricardo Bofill, actualizam os códigos da arquitectura clássica numa linguagem

lúdica, parodiante e provocante: como observa Ferrari (2001), as colunas parecem ter

perdido a estabilidade, os capitéis são enriquecidos com lâmpadas de néon, as superfícies

redescobrem a fantasia das cores, os materiais são associados sem qualquer coerência

formal ou funcional.

A preferência pela composição articulada, aliada às ousadias formais que a utilização do

computador possibilita, conduz na década de 80 ao Desconstrutivismo; com influências

das teorias de Derrida e de Lacan, o processo de desconstrução, refere Consiglieri (2000),

assenta no rompimento com todas as regras e códigos do passado, substituindo-os pelo

paradoxo da razão, pelas pregas do conhecimento – dobra – e pelo movimento topológico,

traduzindo-se na decomposição dos conceitos nas suas componentes. Esta corrente

arquitectónica, desenvolvida essencialmente pelos norte-americanos Peter Eisenman (numa

linha mais conceptual, trabalha a dialéctica da presença e da ausência, do sólido e do vazio,

do exterior e do interior) e Frank Gehry (numa vertente escultural, modelada pela

fragmentação e com referências aos nós borromeanos), caracteriza-se pela utilização de

paredes tortas, vigas inclinadas, ângulos desencontrados, fachadas torcidas, planos

interpenetrados, expressando um desafio à gravidade e à estabilidade; a fragmentação e

desestruturação do espaço traduzem o desmoronamento das noções de autoridade,

objectividade e certeza.

28. Frank Gehry, Museu Guggenheim, Bilbau, 1993-1997

Partindo do ambiente da vida diária e em reacção a um urbanismo segregacionista, emerge

na mesma década uma nova manifestação artística – o Grafitismo. Como assinala Ferrari

(2001), estamos perante uma nova realidade pictórica, que surge nos corredores do

metropolitano e nas paredes dos bairros degradados de Nova Iorque, onde se propagam os

Page 69: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

69

tags, espécie de assinatura com que os jovens tentam apenas deixar a sua marca, sem

qualquer intenção de fazer arte. Quando o fenómeno ganha amplitude, os grafitos passam

rapidamente das paredes do Bronx para as galerias de Manhattan, perdem a agressividade

original e adoptam um vocabulário mais elaborado. É o caso das sintéticas, fluorescentes,

dinâmicas e alegres imagens de Keith Haring, ou das figuras consagradas da banda

desenhada convertidas em protagonistas de composições de grande dimensão, por Ronnie

Cutrone.

29. Keith Haring, Sem Título, 1980

É também na esfera do espaço público e como expressão da tentativa de restaurar a função

social da arte que surge nos anos 80 a Arte Pública, uma forma de arte política e activista.

Trata-se, escreve a artista plástica Carla Cruz (2005), de uma forma de arte que se encontra

em espaço público, que trata de questões públicas, e que envolve o público. Herdeira dos

happenings dos anos 50, e das intervenções situacionistas45

e de natureza site specific dos

anos 60, a arte pública, sobretudo a partir da década passada, não só intensifica a relação

com a audiência, como transforma os sítios em lugares e assume o papel de instrumento de

participação democrática. Por exemplo, em Londres, no início da década de 1990, surgiu o

Movimento Reclaim The Streets, um grupo de activistas formado para lutar contra o

império do automóvel; numa das intervenções organizada por várias células, as pessoas são

convocadas junto a uma saída de transportes públicos, o trânsito é cortado com barricadas

e camiões com potentes amplificadores e é feita a festa – uma fusão de Carnaval e

revolução, a construção de momentos extraordinários, demonstrativos de como a vida

poderia ser vivida de forma diferente.

Apelidada de obra de arte pública total pela historiadora Laura Castro (2005) é o conjunto

de intervenções realizado em Gibellina. Após ter sido destruída por um tremor de terra em

1968, esta localidade siciliana foi objecto de uma refundação orientada por urbanistas,

arquitectos, pintores, artistas murais, escultores, decoradores, num vasto projecto iniciado

dois anos mais tarde e que teve importantes desenvolvimentos na década de 80. Entre estes

destaca-se o projecto liderado por Alberto Burri, intitulado Il Cretto [30], que consiste

45

A Internacional Situacionista é uma corrente artística revolucionária dos anos 50 e 60, motivada pelo

desejo de ultrapassar as formas vigentes de arte e colocar todas as energias ao serviço da revolução. Entre

outras acções, destacam-se as situações construídas em contextos urbanos, como jogos, derivas

psicogeográficas, visando reinterpretar certos lugares ou deslocá-los da sua história.

Page 70: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

70

numa plataforma de 12 hectares de cimento branco, instalada sobre a colina, no local da

cidade destruída; a plataforma é formada por várias placas separadas por corredores

estreitos que funcionam como evocações das vias e praças da cidade antiga. Para além da

natureza do projecto, a sua condição de arte pública é bem patente no conjunto de

colaborações envolvidas, desde o exército, que participou na destruição das ruínas e na

preparação do terreno para a implantação da plataforma, passando pelos emigrantes

italianos na América, que contribuíram com fundos, até às cimenteiras italianas que

forneceram o material.

30. Alberto Burri, Il Cretto, Gibellina, 1984

Da mesma forma que se intersecta com a política, a arte pós-moderna cruza-se também

com a ciência e a técnica. Paradigmática desta união é a Bioarte ou Arte Biológica.

Inspirada na biologia e na ciência, apresenta abordagens derivadas da vida e inteligência

artificial, da robótica e da genética. Um dos projectos mais divulgados, nomeadamente

pelas questões éticas e autorais que suscita, é o GPK Bunny, que o brasileiro Eduardo Kac

desenvolveu em 2000, um coelho fluorescente verde, criado através da engenharia

genética. No mesmo ano, os australianos Oron Catts e Ionat Zurry e o israelita Guy Bem-

Ary desenvolveram um projecto de cultivo de tecido orgânico para material das suas

esculturas. Ensaiando respostas para o retrato do Homem do século XXI, num projecto de

2002, a portuguesa Marta de Menezes rompe com a larga tradição pictórica, escultórica ou

fotográfica, e recorre à iconografia genética e neuronal, através da ressonância magnética

funcional, para revelar o perfil da actividade cerebral; na era actual, com a manipulação

genética, a cirurgia estética, e a identidade virtual, os traços de um rosto já não expressam

necessariamente as dimensões mais características de uma pessoa. Na área da robótica é de

referir o recente projecto dos “robots pintores” do também português Leonel Moura, cujo

manifesto propõe o abandono da centralidade do artista humano e de qualquer pretensão

moralista e de qualquer propósito de representação.

31. Marta de Menezes, Retratos funcionais: Patrícia tocando piano, 2002

Tal como na bioarte, o peso das novas tecnologias tem marcado a natureza de outras

tendências recentes. Com efeito, o interesse crescente pelos novos domínios de

Page 71: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

71

investigação abertos pela câmara de vídeo, pelo computador, pela cibernética, abre

caminho à vídeoarte, à arte computadorizada e à ciberart.

Um híbrido resultante do cruzamento do cinema, da televisão e da música, a Vídeoarte

implanta-se nos anos 80 como um género autónomo, com um código expressivo próprio.

Não é cinema, argumenta Ferrari (2001), porque não sente a necessidade de narrar; pelo

contrário, a arte vídeo subverte os tempos da narrativa, acelerando-os ou afrouxando-os a

seu belo prazer; também não apresenta imagens articuladas em sucessões lógicas, mas

imagens que se repetem, se sobrepõem, se sucedem freneticamente, na mais absoluta

liberdade de associação. As vídeo-instalações do coreano Nam June Paik, o pioneiro desta

manifestação artística, cruzam a arte vídeo com a escultura e com a arquitectura, criando

espaços totalmente virtuais; a rapidez das intersecções visuais e sonoras produz uma

espécie de desvario sensorial, que evoca as condições de vida da era pós-moderna.

32. Nam June Paik, L’Olympe de Gouges in La fée électronique, 1989

Como na vida diária, o computador tem introduzido mudanças significativas e aberto

inúmeras possibilidades no domínio da arte, quer enquanto instrumento de criação ao

serviço de diferentes géneros artísticos, quer enquanto polarizador e criador de novas

expressões artísticas.

Assim, ao serviço do cinema, o computador permite criar efeitos especiais que alteraram

tanto a ficção científica como o cinema de animação; no teatro, o computador tem

possibilitado inovações no tratamento da iluminação e da cenografia; na dança

contemporânea, permite a criação de uma interacção entre os movimentos reais dos

bailarinos e uma coreografia virtual.

Mas é sobretudo enquanto instrumento de criação e suporte de comunicação que o

computador tem vindo a revolucionar o panorama artístico, estando na origem de novos

géneros artísticos. Enquanto arte criada em ambiente gráfico computacional com recurso a

processos digitais pode designar-se genericamente por Arte Computadorizada ou Arte

Digital. Um caso específico desta nova configuração artística é a Infopoesia. Herdeira da

poesia visual, a poesia digital constitui uma nova linguagem poética, derivada dos

procedimentos electrónico-digitais subjacentes. Como refere o poeta experimental

português Ernesto de Melo e Castro (1998), a infopoesia utiliza simultaneamente signos

Page 72: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

72

verbais e não-verbais (a palavra, o som e a imagem estática ou em movimento) para,

através de instrumentos informáticos, criar estruturas poemáticas de alta complexidade

visual e semântica.

A par da revolução ao nível dos processos criativos e da natureza do objecto artístico,

também a sua relação com o público adquire uma nova configuração. Habitando

essencialmente o espaço cibernético (Cyber-art), em galerias e museus virtuais, a Arte

Virtual alarga o seu público à escala planetária, exponenciando a interacção com o fruidor,

por vezes em tempo real. Por exemplo, para comemorar a entrada no 3º milénio, o

mexicano Rafael Lozano-Hemmer desenvolveu um projecto na cidade do México, uma

imensa escultura de luz controlada pela internet; qualquer visitante da sua página web

podia participar no evento, mudando a orientação dos focos, convertendo-se em co-autor

da peça. No domínio da interactividade virtual, importa referir o projecto europeu

desenvolvido entre várias universidades e centros de arte moderna, o Museum of Pure

Form; mediante a tecnologia da realidade virtual, permite interagir com esculturas de

forma háptica, possibilitando tocar objectos normalmente apenas ao alcance dos olhos.

Em suma, a arte pós-moderna move-se num tempo alargado, do mais antigo ao mais

futurista, num espaço ilimitado, do local ao planetário, num campo desterritorializado pelas

migrações e contaminações entre diferentes instrumentos, linguagens e expressões

artísticas e pelas interpenetrações com a ciência, a política, a ética e a vida.

A multiplicidade de imagens sobre o ser humano mostra-nos um ser cuja identidade

transita entre a actividade neuronal e a intervenção ética, uma identidade fragmentada entre

o passado e o futuro, diluída entre o real e o virtual, o interior e o exterior, um ser efémero

que se desconstrói e reconstrói permanentemente, um passivo consumidor e um activo

criador no planetário espaço virtual.

Oriundas do território artístico, as metáforas do “performer” e do “músico de jazz”

relevadas do discurso psicológico, parecem-nos traduzir igualmente as representações do

Homem prevalentes na arte pós-moderna.

Page 73: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

73

A CONCLUIR

Em termos de uma breve síntese conclusiva deste ensaio podemos relevar duas ideais

principais.

Em primeiro lugar, constata-se que, a par das especificidades inerentes aos discursos e às

evoluções paradigmáticas da psicologia e da arte, as influências e confluências entre elas

são múltiplas, evidenciando-se não só a psicologização da estética contemporânea, como

defende o historiador e crítico de arquitectura Mark Jarzombek (2000), mas também a

estetização da psicologia, num processo de progressiva convergência em direcção à

realização da totalidade e unidade do saber.

Em segundo lugar, as representações da psicologia e da arte sobre o Homem

contemporâneo parecem gravitar em torno de duas inspiradoras metáforas, a biológica e a

mecânica, ou seja, a metáfora do "animal" e a metáfora da "máquina". O ser humano é

pensado, ora como um animal irracional, um animal de hábitos, um corpo falante, um bom

selvagem, ora como uma máquina energética, uma máquina de reacções, um computador.

Após um longo período de análises segmentadas, dicotómicas – corpo-mente, emocional-

racional, consciente-inconsciente, passado-futuro – nas últimas décadas têm sido tentadas

abordagens integradas, sistémicas, multifacetadas, pós-disciplinares, que fazem do Homem

pós-moderno um sistema aberto, um complexo híbrido, um "animáquina", um ser que

procura integrar as peças do puzzle que a modernidade pulverizou, que procura dar sentido

aos territórios cujas fronteiras se volatizaram, que procura lidar com a desordem e a

incerteza através da improvisação, um ser em contínua auto-organização e recriação, um

ser autopoiético, um performer, um músico de jazz.

Page 74: Homem Contemporâneo - Metáforas Da Psicologia e Da Arte

74

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