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Histórias de Bailarinos

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Camila BlassCamila Fortunato Taylanne FerreiraThaline Fozzati Cisne Negro Cia. de Dança

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Para os nossos amores.

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ATO I

NASCIMENTO

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Primeiros Passos

Camila Blass

É dezembro. A cidade de São Paulo já está prepara-da para o Natal. O trânsito da Avenida Paulista fica praticamente parado por causa dos motoristas que diminuem a velocidade do carro para apreciar a de-coração natalina que rompe a densidade cinza de São Paulo. Crianças, adultos, pessoas de todas as idades ficam deslumbradas com a magia e clima natalinos.

Foi nesse local, há mais de trinta anos, em um do-mingo de manhã, que Hulda Bittencourt, passeando pela tradicional feirinha localizada no vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo), se depara com um quebra-nozes em formato de boneco de madeira. De repente, uma brilhante ideia surge na sua cabeça: Por

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que não montar o espetáculo “O Quebra-Nozes”?

A fundadora e diretora artística da Cisne Negro Cia. de Dança – uma das mais importantes companhias de dança do Brasil – jamais ousaria colocar a mão em um balé clássico de repertório, como Copélia, Lago dos Cisnes ou Giselle. Mas foi diferente com o conto natalino de Hoffman.

– Em “O Quebra-Nozes”, eu vi que tinha chances de viajar na história. E arrisquei – conta Hulda Bitten-court.

****

Uma banda toca cantigas de Natal. Crianças, todas arrumadinhas para a ocasião especial, se movimen-tam ansiosamente pelo saguão do Teatro Alfa. O in-tenso burburinho indica que hoje a casa está lotada.

Toca o terceiro sinal.

A neve cai no palco. Rapidamente somos levados a um novo lugar. Dezenas de bailarinos chegam à festa de Natal na casa da família Silberhaus.

As crianças alegram a ceia. Quem faz parte dessa brincadeira nas pontas dos pés são a doce Clara, que veste cor-de-rosa do laço no cabelo à sapatilha de ponta, e o peralta Fritz, filhos dos donos da casa. O clima da festa muda quando Drosselmeyer chega

fazendo truques de mágica e distribuindo presen-tes para a criançada. Sua afilhada, Clara, recebe o presente mais especial de todos: um boneco quebra--nozes.

– Eu tenho ele guardado num altar, que foi o meu inspirador – Hulda lembra com carinho do boneco que comprou naquele dia no MASP.

Quando montou essa peça pela primeira vez, para comemorar o aniversário do Estúdio de Ballet Cis-ne Negro, não imaginava o sucesso que “O Quebra--Nozes” faria e a tradição que se tornaria no fim de ano em São Paulo.

O melhor presente foi quando a diretora artística re-cebeu a ligação de um artista dando-lhe a notícia de que “O Quebra-Nozes” – que havia sido montado com qualidade profissional, mas para a escola – ha-via ganhado o prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor espetáculo do ano. Inicialmente, Hulda não acreditou, pensou que os críticos estivessem equivocados.

– Fiquei entusiasmadíssima com o entusiasmo dos críticos. Era uma comissão de críticos importantís-simos da época, pessoas maravilhosas que tinham eleito entre todo o universo da dança daquele ano “O Quebra-Nozes” como premiado da APCA.

A distinta senhora se sente empolgada e emociona-

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da com essa premiação, pois, durante nossa primeira entrevista, falou três vezes sobre essa conquista de que tanto orgulha-se.

– Aí, caiu a ficha. Meu Deus, mas esse trabalho pode-ria ser desenvolvido anualmente como em qualquer outra companhia, qualquer outro pedaço do mundo! Se você for para a França, qualquer cidade pequena, as pessoas estão quebrando nozes, se for pro Cana-dá, é isso, Turquia, também. Se os críticos gostaram, o público gostou, por que não montar novamente o espetáculo?

****

Após a festa de Natal ter terminado, a família Sil-berhaus vai dormir. Ratos invadem a sala onde Clara caiu no sono. Algo surpreendente acontece: o boneco quebra-nozes ganha vida e protege a menina dos ro-edores. Começa a batalha entre ratos e soldados. É a parte mais tensa do espetáculo, as crianças da plateia ficam vidradas.

Tem ratos pelo palco inteiro, inclusive voando pelo teto, fazendo traquinagens.

Todos os anos, a equipe da companhia busca novida-des para o espetáculo, como essa dos ratos voadores. Para isso, o trabalho é intenso e começa já no início do ano.

Em meu primeiro encontro com Hulda, em fevereiro, ela já estava na correria, atrás de novidades para a temporada de 2013. Tinha acabado de sair satisfei-tíssima da primeira reunião que tivera com o maestro que será o responsável por reger, dirigir, fazer toda a modelagem de “O Quebra-Nozes”. Já eram quase três horas da tarde e ela nem mesmo tinha almoçado.

– Estamos há trinta anos na estrada, vamos come-morar agora com um “O Quebra-Nozes” que prome-te. O maestro que vai trabalhar com a gente em “O Quebra-Nozes” deste ano acabou de sair daqui, eu peguei o prêmio ontem e hoje já estou pensando no prêmio deste ano.

Hulda Bittencourt se refere ao Prêmio Governo do Estado para a Cultura, o troféu cor de bronze, em formato de prédio – que ocupa o centro da mesa de vidro situada perto da janela do extenso escritório, localizado no penúltimo andar onde se concentram a escola e a companhia de Hulda, no bairro da Vila Madalena –, que havia ganhado dois dias antes dessa reunião e teve prazer em me mostrar.

Antes de sair o resultado, a tensão e a expectativa eram grandes entre a equipe da companhia. Trinta anos depois do prêmio APCA, “O Quebra-Nozes” foi novamente premiado como o melhor espetáculo do ano pelo voto popular.

– Eu acho muito importante o público votar, estamos

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todos em estado de graça e já trabalhando pesado.

****

Os ratos foram derrotados.

O boneco, transformado em príncipe, leva Clara ao Reino das Neves. Os flocos de neve também ganham vida e dançam uma belíssima coreografia do balé clássico. Bailarinas, vestidas com graciosos tutus – saia tradicional no balé – brancos e tiaras, preenchem o palco enfeitado pela floresta encoberta pela neve. Apesar de “O Quebra-Nozes” ser, na sua essência, um balé de repertório clássico, a companhia “Cisne Negro” se caracteriza por ser uma companhia de dan-ça contemporânea, o que dá à Hulda, aos bailarinos e a toda equipe maior liberdade para criar e ousar.

– Além de mostrar o nosso repertório, que é nacio-nal e internacional, com coreógrafos internacionais e nacionais, eu não trabalho só com um coreógrafo residente, nunca quis e nunca vou querer.

Essa diversificação tem relação direta com o modo com que a companhia foi criada. Hulda não tinha a menor intenção de ter uma companhia profissional. Porém, na antiga sede da escola, na Rua Macunis, no Alto de Pinheiros, começaram a aparecer meninos da educação física da USP (Universidade de São Pau-lo), atletas querendo fazer aula de balé.

– Tinha campeão de basquete, campeão de vôlei, campeão de vela, campeãs e campeãs. E todos que-riam dançar. Homens mesmo, de perna peluda. Aí eu falei: “O que faço com vocês? Eu não sei trabalhar com homem, não sei trabalhar com esportista. É uma experiência que eu nunca tive, mas que até posso ex-perimentar”. Aí comecei a experimentar. Pegar aque-las pernas peludas, torcer para fora, mandar tirar os pelos. Foi um Deus nos acuda.

O primeiro elenco da companhia – que misturava atletas com bailarinos – foi primordial para todo esse sucesso.

****

Clara parte com o príncipe para uma linda viagem ao Reino das Flores, onde a menina é coroada prin-cesa. Para festejar, há apresentações de dança árabe, espanhola e chinesa. Há guloseimas espalhadas pelo cenário. Começa a parte mais divertida do espetácu-lo. Crianças empolgam-se e dançam juntos com os bailarinos.

É nesse segundo ato em que é apresentada uma das mais conhecidas coreografias desse romance: a Valsa das Flores. Bailarinos dançam a música de Tchaiko-vsky que não sai da cabeça. Quem nunca ouviu essa melodia pelo menos uma vez na vida?

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“O Quebra-Nozes” está chegando ao fim. O casal de bailarinos dança o pas de deux da Fada Açucara-da. Mais graciosidade.

Apesar de ter obtido tantas conquistas no universo da dança, o balé nunca foi tão doce para Maria Hul-da Françoso Bittencourt.

Seu começo na dança era tudo o que seu pai não que-ria. O simples, porém severo, funcionário público desejava para sua filha uma brilhante carreira como doutora em alguma coisa. Sua carreira foi, e ainda é, brilhante, mas nunca vestindo jalecos ou roupas sociais. A doce filha optou pelas sapatilhas como seu uniforme de trabalho.

–Meu pai não queria de jeito nenhum. Filha bailari-na naquela época era sinônimo de você sabe o quê. Era difícil fazê-lo entender. Mas eu teimei. Sempre gostei e não tinha a menor chance de tirar da minha cabeça.

A futura bailarina não deixou de estudar para seguir sua paixão. Nem mesmo a negação do pai e as di-ficuldades financeiras conseguiram apagar a estrela que estava prestes a nascer.

– Tive muita dificuldade, porque para comprar uma sapatilha, a minha mãe tinha que tirar o dinheiro da feira, o meu pai não admitia a ideia. A minha mãe aprovava, porque ela achava que realmente eu tinha

que fazer o que eu gostava.

Experimentou diversas escolas, até cair nas mãos da-quela que foi a pioneira do balé clássico no Brasil, Maria Olenewa¹, que deu um importante empurrão na carreira de Hulda. Nessa época, já não era mais criança, precisava se sustentar sozinha, por isso co-meçou a dançar na TV.

– Quando a TV estava começando, eu já era, como se diz, quem fazia as coisinhas de televisão, “Cha-crete”. Por muito tempo dancei com quem está aí e brilha até hoje, a Maria Pia Finócchio2, que foi mi-nha diretora.

¹ Maria Olenewa (1896-1965) foi uma importante bailarina e coreógrafa russa, nascida em Moscou, que foi a primeira bai-larina da Companhia de Dança Anna Paylowa. Foi pioneira no balé clássico no Brasil. Em 1927, fundou a primeira esco-la de dança no país, a Escola de Dança do Theatro Munici-pal, atualmente Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, que pertence à Fundação Theatro Municipal do Rio de Janei-ro, que completou em abril de 2012, 85 anos de existência.2 Maria Pia Finócchio (1949) é a fundadora e presidente do Sin-ddança (Sindicato dos Profissionais da Dança do Estado de São Paulo). De 1963 a 1983, foi primeira bailarina do Teatro Muni-cipal de São Paulo. Ganhou diversos prêmios na área. Também já foi nomeada Embaixatriz do Turismo do Brasil no exterior, assessora cultural da Secretaria da Cultura do município de São Paulo e Juíza do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo.

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Hulda se apaixonou e se casou. Como seu marido era muito ciumento, teve de deixar o trabalho na TV.

– Para o meu marido, era quase um pecado uma na-morada bailarina.

Com ajuda da sua grande mestra Olenewa – que dei-xou para Hulda uma herança cultural artística exem-plar –, o seu novo ganha-pão foi dar aula em escolas de dança.

– Já que eu não dançava mais na TV, era um dinhei-rinho e muito divertido – diz Hulda, sempre com a postura de uma lady e firme com as palavras.

Com o tempo, veio a escola que hoje cuida com tanto zelo e eficiência, o Estúdio de Ballet Cisne Negro. E, cinco anos depois, a Cisne Negro Cia. de Dança, que hoje é uma das mais importantes companhias contemporâneas do Brasil e muito bem-conceituada mundo afora.

****

Clara volta à realidade. Percebe que tudo aquilo era um sonho. Será?

****

Hulda Bittencourt tem a agenda disputadíssima.

Mas, em meio a tantas reuniões, sempre consegue um tempo para cuidar com dedicação da escola. Muitas vezes, me deparei com ela nos corredores cuidando de uma coisinha aqui, outra coisinha lá. Age como a verdadeira dona da casa.

– A quantidade de espetáculos que foram feitos no ano passado pouca gente conseguiu fazer, é difícil.

Os olhos verdes por trás dos óculos ilustram o orgu-lho dos 110 espetáculos realizados apenas em 2012, sem falar dos tantos que foram realizados durante os mais de 36 anos de companhia. O número é gratifi-cante, principalmente por ser uma companhia parti-cular, que tem que andar com as próprias pernas.

– É uma companhia independente, que vive dos apoios culturais de empresas e de projetos de Lei Rouanet. É assim como temos vivido até agora.

Por mais instável que uma companhia independen-te possa ser, tem muitos benefícios. Um que agrada bastante Hulda é a liberdade que tem para criar, de trabalhar em cima daquilo que realmente gosta.

– Aqui respiramos arte 48 horas por dia.

****

As palmas não cessam. Os bailarinos agradecem no-vamente. Mas a plateia sente a necessidade de mos-

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trar mais o prestígio. Palmas.

A cortina vermelha se fecha.

ATO I I

CONCRETIZAÇÃO

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Dia-a-Dia

Camila Blass, Taylanne Ferreira, Thaline Fozzati

Segunda-feira. Inicia-se mais uma semana de traba-lho na Cisne Negro Cia. de Dança. Os bailarinos já estão se preparando para a aula, que hoje é de balé clássico, terminando de se arrumar e se alongando. Boris Storojkov já está pronto para começar o seu trabalho de professor. Nove horas da manhã. Começam os exercícios. Os dezesseis bailarinos da companhia, mais a assistente de direção Patrícia Alquezar, utilizam como apoio as barras espalhadas por toda a sala de ensaio para rea-lizar as sequências de passos.

Rapidamente, Boris passa as sequências para os bai-

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larinos, que memorizam com facilidade – alguns usam as mãos para decorar os movimentos que de-verão fazer com os pés – e repetem com maestria na barra. Fica perceptível, durante a aula, o quão profis-sionais são os bailarinos da “Cisne Negro”.

É final de verão em São Paulo e o sol penetra na sala, envolvida por largas janelas, deixando uma luz am-biente bastante agradável e a atmosfera serena.

Stephanie Alvarenga, que está em uma barra locali-zada no centro da sala, se alonga, aquece, conversa com outros bailarinos e, às vezes, anda de um lado para o outro para relaxar os músculos.

Morvan Teixeira está posicionado em frente à bar-ra mais próxima da escada, que dá acesso ao piso superior, ao lado da carismática bailarina Amanda Soares. Com a postura ereta e atento às explicações do mestre, o bailarino adora o aquecimento, a aula de balé clássico, apesar de preferir dança contempo-rânea.

Logo no início dos exercícios, já é possível ver o esforço físico escorrendo pelo corpo do bailarino – muito suor e músculos contraídos. Ele passa as mãos em cima da tatuagem do símbolo do infinito – um “oito” deitado – localizada atrás da orelha direita, para secar um pouco as gotas.

O bailarino Morvan tem mais quatro tatuagens. A do

braço esquerdo é “Mar Belo”, que era o significa-do do seu nome na antiga Grã-Bretanha. A palavra “Morvan” era usada como segundo nome, mas sua mãe gostou tanto que resolveu utilizá-la como nome único. No outro braço está tatuada a sigla M.I.A, que é a junção dos nomes da bisavó, da avó e da mãe do bailarino. Também tatuou a data do seu nascimento – 21 de julho de 1990 – e a frase “La Vie Bohème”, música do espetáculo “Rent” que ele tanto adora.

Se vivesse no passado, Morvan seria boêmio. Ele se enquadra nos ideais da revolução boêmia, que prega-va o amor e a liberdade – a liberdade de não ter de se preocupar com nada. E também adora cerveja.

Não há sequer um quilinho fora do lugar. O jovem bailarino, dono do cabelo mais moderno do grupo – em cima da nuca, tem o cabelo castanho-escuro ras-pado, na parte superior, é ajeitado despojadamente para o alto –, cuida bem de sua principal ferramenta de trabalho: o corpo. Além de dançar muito, faz au-las de natação e pilates.

Sua pior tristeza durante a carreira de bailarino está ligada ao corpo. No final de 2012, sofreu uma torção muscular no pé durante uma aula de balé. Teve que ficar cerca de vinte dias afastado, sem dançar.

– Foi a pior época para mim, porque, além de me machucar, engordei quatro quilos. Foi uma fase te-nebrosa da vida – lembra desanimado.

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A vontade de voltar a atuar nos palcos foi tão grande que nas férias fez intensivo de fisioterapia e conse-guiu ter alta dois dias antes de a companhia voltar ao trabalho, em janeiro. Antes de retornar comple-tamente, substituía um bailarino ou outro quando necessário. Chegou a fazer o espetáculo natalino “O Quebra-Nozes”, mas de forma leve, para não se ma-chucar ainda mais.

Coincidentemente, foi “O Quebra-Nozes” que im-pulsionou o ingresso de Morvan na companhia. Em 2009, foi um dos doze bailarinos contratados para participar do espetáculo junto aos integrantes do gru-po fixo. Fez diversos papéis, pois, por ser uma longa temporada – com duração de cerca de um mês com espetáculos diários –, é comum haver revezamento entre os bailarinos. Morvan dançou as coreografias “Dança Chinesa”, “Valsa das Flores” e interpretou os personagens Fritz, o Cozinheiro e o Rei dos Ratos, seu favorito por exigir mais a técnica contemporâ-nea.

Depois de quatro intensos meses de ensaio e de ter arrancado aplausos de milhares de pessoas, veio a maior recompensa.

– Terminada a temporada de “O Quebra-Nozes”, re-cebi o convite da Dona Hulda para integrar o elenco da companhia. – Em 2010, Morvan já fazia parte da “Cisne Negro”. Hoje é o bailarino homem com mais

tempo de casa.

Mas essa recompensa não foi tão gratificante quanto a que a carreira de bailarino lhe proporcionou recen-temente. Com muita dedicação, Morvan conseguiu alugar uma casa com seu dinheiro e decorar do jeito que queria.

– Quando eu consegui alugar a casa no meu nome, mobiliar meu quarto do jeito que eu queria, a cozi-nha... Aí eu achei que valia a pena, o estresse, o suor e o cansaço – conta o simpático bailarino com orgu-lho de si e do seu trabalho.

Desde cedo, o tranquilo Morvan foi um menino inde-pendente. No Rio de Janeiro, onde teve seu primeiro contato com a dança, já morava com alguns amigos.

Quando estava no ginásio, com quatorze anos de ida-de, o pessoal da Escola de Dança Alice Arja foi à escola pública em que Morvan estudava para fazer testes com o objetivo de dar bolsas para as crianças que desejavam dançar balé. Morvan foi um dos be-neficiados desse projeto social e, de 2004 a 2007, teve aula nessa instituição, onde formou sua base de balé clássico e iniciou seus primeiros passos na dan-ça contemporânea.

Passou a morar com a tia para ficar mais perto da escola. Contou com total apoio da parte principal da família e de amigos. Quando ia para festivais fora do

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país, recebia ajuda financeira dos pais das bailarinas e da diretora da escola. Como ele dançava muito, os gastos eram altos, não tinha como se bancar sozinho e com a ajuda apenas da família.

Para Morvan, São Paulo é onde tudo acontece para a arte no geral. É onde tem os maiores musicais, as maiores companhias de dança e mais opções de tra-balho para o bailarino. A cada ano surgem mais gru-pos e novos projetos de dança.

– Sempre tem uma audição ali, outra aqui. Aqui você não fica sem trabalhar. São Paulo é “o lugar” para a dança.

Em 2008, o bailarino partiu para a cidade visando trabalhar em uma companhia profissional. Antes de entrar na “Cisne Negro”, passou pela São Paulo Companhia de Dança3 . Porém, não teve seu contrato renovado por ser o bailarino mais novo – na época com dezessete anos – do elenco.

– Foi uma coisa que me fez crescer mais aqui dentro. Se eu tivesse continuado lá, eu não tinha crescido o que eu cresci aqui.

3A São Paulo Companhia de Dança foi criada em janeiro de 2008, pelo Governo do Estado de São Paulo, e atualmente é dirigida por Inês Bogéa. Também conhecida como SPCD, possui um amplo repertório, composto por mais de trezentas apresentações nacio-nais e internacionais, que vão do estilo clássico ao contemporâneo.

Morvan conta que, na época, o corpo da São Paulo Companhia de Dança era formado por 46 pessoas, enquanto na “Cisne Negro”, atualmente, são dezoito bailarinos, o que possibilita que todos possam dançar em quase todas as coreografias.

– Lá tem revezamento, você dança uma vez por mês, duas no máximo, e isso às vezes é complicado – ex-plica.

Morvan busca, durante toda a aula, adquirir boa qua-lidade técnica. Quem sabe um dia não será tão re-conhecido quanto os seus ídolos Marcelo Gomes e Girikilen.

Entre um exercício e outro, treina um passo não exi-gido por Boris. Quando eleva as costas para trás, pa-rece que vai quebrar, de tão curva. Um passo bem elaborado que só com muito treino, e com cuidado, pode ser feito de forma que não machuque a pessoa.

O bailarino tem o gosto por ensinar, por isso se en-xerga dando aula no futuro, o que já faz hoje, e tra-balhando como ensaiador. Ele tem um bom olho, de-cora rapidamente coreografias apenas assistindo-as pelo vídeo, e, por isso, acha que se dará bem nessa função.

Durantes os exercícios, Morvan fica incomodado com a calça preta larga, tenta amarrá-la acima do tor-nozelo, mas ela escorrega. Para fazer os exercícios

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no centro, resolve tirá-la e ficar apenas com o collant bege e as polainas pretas.

****

São 9h40. Hora de fazer os exercícios no centro da sala.

– Adágio4 – com o sotaque russo, Boris indica a Nil-za que música tocar no piano.

Nesse módulo da aula, os bailarinos são divididos em quatro grupos. Enquanto um deles está em cena, os outros bailarinos conversam entre si. Há um senti-mento de amizade entre eles, todos se ajudam e riem.

– Os bailarinos são a segunda família, a gente vive muito tempo juntos, é muita intimidade. A gente saia muito antes, mas como estamos namorando, precisa-mos dedicar tempo aos nossos namorados. Quando tem algum aniversário, acabamos nos encontrando – conta Stephanie Alvarenga.

O trabalho, apesar de difícil, aparenta ser uma enor-me diversão.

Stephanie parece estar confortável ali. Ela estudou

4 Originário da palavra francesa Adage, Adágio significa “des-canso ou devagar”. No balé clássico, esse termo representa exer-cícios executados lentamente no centro da sala.

no Estúdio de Ballet Cisne Negro desde os sete anos de idade e, aos dezoito, já formada pela escola, foi convidada pela diretora artística e fundadora da com-panhia Cisne Negro, Hulda Bittencourt, a fazer parte da companhia profissional.

– A dona Hulda sempre foi meio autoritária. E por eu ter nascido no berço dela, digamos, ela se sente mais responsável ainda, então, garanto que tomo mais pu-xão de orelha que todo mundo, porque ela meio que me vê não como filha, mas cria dela. Então, acho que ela tem mais intimidade para falar comigo, porque também estou aqui há anos. – A relação de Stephanie com a diretora artística sempre foi muito boa.

Foi quando entrou na companhia que Stephanie co-meçou a esboçar os primeiros passos na dança con-temporânea.

– Até então minha formação era balé clássico. Sem-pre dancei clássico, já tive algumas aulas, mas dan-çar mesmo contemporâneo foi aqui na companhia. – Apesar de a Cisne Negro ser mais voltada para o estilo contemporâneo, a jovem bailarina adora balé clássico.

Quando passou a trabalhar profissionalmente na companhia, Stephanie enfrentou momentos difíceis, pois ainda era muito imatura. – Eu não tinha consciência do profissionalismo de

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uma companhia e a Dany insistia muito. Ela falava: “Você já não é mais aluna, você é profissional”.

Hoje, é tranquilo, mas, no início, a bailarina sofreu. Ao longo dos anos, Stephanie construiu uma relação cordial com a diretora de ensaio Dany Bittencourt.

Dentre as conquistas que a carreira profissional de bailarina lhe proporcionou, se apresentar tantas ve-zes no exterior é uma das mais gratificantes para Ste-phanie.

– Eu gosto muito de dançar fora do país porque o pú-blico é muito receptivo. Não que aqui não seja, mas lá fora eles aplaudem muito. Você se sente muito va-lorizada. Para eles, ir ao teatro assistir balé é como, para nós, ir todo final de semana ao cinema – conta a bailarina, que hoje veste um collant preto, short da mesma cor, casaco amarrado na cintura e sapatilha rosa nos pés.

Outro prêmio da carreira de Stephanie na companhia foi ter ido ao Grand Prix de Nova York, junto com os bailarinos da companhia, porque – é um pouco difícil e bem concorrido, mas legal.

A garota de cabelo loiro preso em um coque alto, pele marcada por três tatuagens – um laço, uma frase em latim e um coração – e olhos verdes presta atenção nas dicas do professor Boris. Ela raramente é corri-gida. Sua experiência no balé lhe dá um ar confiante,

demonstrado na execução dos movimentos.

Essa experiência lhe permitiu interpretar seis vezes a Clara, a personagem principal do maior espetáculo da companhia Cisne Negro, o famoso e aguardado durante o ano todo, “O Quebra-Nozes”. No entanto, o começo não foi tão fácil.

– Eu fiz “O Quebra-Nozes” logo que eu entrei na companhia, com sete anos, fui convidada para fazer o anjinho. Depois disso, minha mãe me proibiu de participar do espetáculo. Era muito cansativo na épo-ca. Eram vinte dias, todos os dias, eu era pequena e muito ansiosa. Se era para estar no balé à uma da tarde, às oito da manhã eu já levantava e começava a me arrumar. Minha mãe falou: “Não, para com isso”.

Por causa da vontade da mãe, Stephanie deu um tempo nas apresentações do espetáculo, porém deixa claro que sempre contou com o incentivo dos pais.

– Mas meu pai achava que era apenas um hobby, tan-to que minha mãe pagava as aulas escondida.

Depois de fazer o anjinho, Stephanie ficou quatro anos sem encenar o espetáculo natalino, mas, quando ficou mais velha, voltou para os palcos. Deu vida a diversos personagens do espetáculo e, repetidas ve-zes, à protagonista Clara.

– É um papel que eu já peguei muito amor.

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O espetáculo ainda permite que Stephanie viva um desejo de ter uma festa de Natal igual a de “O Que-bra-Nozes”.

A jovem sempre teve uma família muito pequena, seus Natais são sempre em três pessoas, por isso, sempre sonhara em ter uma ceia animada, assim como na peça. Além disso, tem vontade de ver neve, sonho que nunca realizou.

Assim como em qualquer profissão, a dança não é fácil. Ao longo de toda a aula, os bailarinos fazem alongamentos para manter o físico aquecido e evitar problemas musculares.

Durante a carreira, Stephanie sofreu apenas uma le-são no ombro, nada grave. Pelo fato de a trajetória de bailarina ser curta por motivos ligados ao corpo, a garota já pensa no futuro profissional. Apesar de não ser apegada a crianças, hoje dá aula para meninas.

– Eu estou tendo muita dificuldade. Mas é muito le-gal, porque você consegue transmitir o seu conheci-mento e, ao mesmo tempo, elas transmitem coisas para você. Eu achava que ensinar era fácil, mas não é.

A bailarina conta que ensina não só balé, mas, tam-bém, disciplina:

– É uma coisa que eu aprendi desde pequena com

o balé. Por exemplo, você tem que ir com o cabelo bem feito, chegar no horário, se comportar. Eu sou uma pessoa melhor graças ao balé, eu tive muita dis-ciplina na minha vida e levei isso para a faculdade e para meus relacionamentos.

Paralelamente à dança, Stephanie é recém-graduada no curso de jornalismo. Curiosamente, os pais dela não a apoiaram muito, pois achavam que ela tinha que se esforçar na dança. Mesmo assim, a bailari-na seguiu em frente. Mas não fez estágio durante o curso e isso dificulta que ela siga na profissão de jor-nalista.

– Foi um momento em que eu tive que escolher: eu danço ou faço estágio? Não dava para fazer os dois. Não tinha como eu largar a minha profissão de baila-rina para ganhar menos como estagiária.

A jovem Stephanie mostra ser feliz com que o esco-lheu para si.

– Eu sinto que nós somos pessoas mais sensíveis até com o cotidiano. Por exemplo, quando eu toco em alguém, eu sinto algo legal que a maioria não sente. Dançar, para mim, é infinitamente uma válvula de escape.

A partir do momento em que sobe no palco, mes-mo que esteja se sentindo mal, Stephanie esquece o mundo ao seu redor e realmente entra na viagem que

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o balé proporciona.

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Os bailarinos têm pouco mais de dez minutos para beber água, repor as energias e ir ao banheiro.

Dany Bittencourt chega para ensaiar os jovens. O en-saio é puxado, mas, por ser contemporâneo, é mais livre e, consequentemente, deixa o clima mais alegre e divertido. Os bailarinos agora demonstram empol-gação. Estão mais falantes e brincam entre si.

A primeira coreografia que será ensaiada hoje é “Danças Concertantes” – o ensaio de “O Quebra--Nozes” inicia apenas no meio do segundo semestre do ano.

“Danças Concertantes” foi dançada pela última vez pela companhia em 2012 e foi apresentada de novo na turnê da Alemanha, que aconteceu no mês de abril de 2013. É uma dança contemporânea com linhas do balé clássico. A história do espetáculo é uma brinca-deira com o humor inglês.

Por vinte anos, Dany foi bailarina da companhia. Pa-rou apenas depois que gerou sua primeira filha – mas dançou até os quatro meses de gestação.

Entretanto, as atividades foram se acumulando – era mãe, esposa, assistente, diretora de ensaio e profes-

sora da escola. E, como o bailarino deve ser muito dedicado, deve focar na carreira, Dany chegou à con-clusão de que já havia dançado o suficiente.

– Saí do palco numa boa, realizada. Não fico com vontade de ainda estar lá. Eu acho que tudo passa, tudo tem que passar. Foi uma carreira muito boa, curti muito e ainda continuo curtindo.

Hoje, a mulher firme e decidida é braço direito de Hulda, sua mãe. Além de dirigir os ensaios, traba-lha como coreógrafa da companhia e professora do Estúdio de Ballet Cisne Negro. Foi ela que coreogra-fou importantes obras da companhia, como “Baobá”, “Em caso de...” e “Vem dançar”.

Dany deu vida à primeira Clara de “O Quebra-No-zes”. Dançou o espetáculo por tantos anos que pas-sou por quase todos os papéis. Se as músicas tocarem ao contrário, pode reconhecê-las sem nenhuma difi-culdade.

– Eu cuidei de todos os anos. Cuidei de todos os de-talhes dele: cenário, figurino, música, luzes, coisas de todos os tipos – conta a jovem senhora de olhos e cabelos castanhos.

Daniele Bittencourt Turzi ingressou na companhia Cisne Negro na adolescência, aos treze anos, para repor o lugar de um bailarino que havia se machuca-do em uma turnê que aconteceu na região Nordeste

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do Brasil. Estava de férias escolares e, como sabia a coreografia – só de assistir já havia decorado –, en-trou para tapar o buraco e não saiu mais de lá.

No entanto, seu primeiro passo na dança e na Cisne Negro aconteceu muito antes: quando tinha dez anos a menos de idade, começou a estudar no estúdio de dança. Não foi forçada pela mãe, mas, como a escola ficava no fundo da casa da família, a tentação era muito grande.

– Eu quis muito entrar no palco. Eu tinha três anos de idade e no Teatro Municipal de São Paulo não po-dia entrar crianças menores de cinco anos no palco, mesmo assim, eu entrei agarrada na minha irmã, que é quatro anos mais velha do que eu. Eu já queria estar no palco. Ainda hoje, Dany trabalha com tanto amor à dança quanto sentiu nesse dia que estava “vestidi-nha de palhaço”.

Muitos anos depois de ter calçado sua primeira sapa-tilha, partiu para o Canadá, onde dançou seis meses no Les Ballets Jazz e mais seis no Le Grand Ballet Canadien. No país, Dany teve um sério problema or-topédico, o que a impediu de dançar.

Para a sua sorte, recebeu um conselho valioso para procurar um médico brasileiro muito bom que tra-balhava com laser, que era uma novidade nos anos 1980. Ele garantiu que a bailarina se curaria.

– Minha mãe falou: “Não. Ninguém vai te operar, você não vai ficar boa, nem no Canadá quiseram te operar”. Eu disse: “não! Vou operar e ficar boa”.

Seis meses depois, Dany já estava nos palcos e na sala de ensaio da “Cisne Negro”, o mesmo lugar onde, atualmente, ensaia essa nova geração de talen-tos.

****

Agora é hora do ensaio da coreografia neoclássica “Sábia”, pas de deux – dança a dois – mais marcante da carreira da bailarina Patrícia Alquezar, que, sen-tada ao lado de Dany Bittercourt, e atenta aos passos das bailarinas Stephanie e Amanda e dos seus res-pectivos parceiros de dança – que se revezam no en-saio –, anota os detalhes da coreografia na folha que está apoiada na prancheta.

A atual professora e assistente de ensaio da Cisne Negro Cia. de Dança iniciou sua carreira aos sete anos de idade, quando, influenciada por uma prima, fez um teste na Escola de Bailado Municipal. Seu tipo físico colaborou para que ela fosse selecionada. Até hoje, com 47 anos, seu corpo é magro e tonifi-cado.

Quando se formou, aos dezesseis anos de idade, a jovem nascida em São Paulo ainda não sabia o que seria do seu futuro nos palcos. Mas, após um ano,

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uma grande oportunidade surgiu no seu caminho. Lembra-se com carinho da frase que ouviu do fale-cido maestro Ricardo Ordoñez após ter participado da audição para ingressar no Ballet da Câmara da Cidade de São Paulo.

– Ele chegou e falou: “Não preciso mais de bailarina, já escolhi uma. Mas vou ficar com você, pois detesto ver talento desperdiçado”.

A partir de então, muito feliz, Patrícia teve que lidar com o “regime militar” da companhia, o que fez com que ela adquirisse a disciplina indispensável para uma bailarina clássica.

– Desde a fitinha da sapatilha costurada até um fio de cabelo para fora, tudo deveria estar perfeito – lem-bra Patrícia que, até nos ensaios, aparecia com a pele clara maquiada, com pequenos brincos de brilhantes e roupas impecáveis.

Paralelo à carreira na dança, Patrícia ingressou no curso de administração na PUC-SP (Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo), no período notur-no. Mas a rotina era pesada, trabalhava no Ballet da Câmara de manhã, dava aulas à tarde e estudava à noite. Como odiava a faculdade, a filha mais “cabeça de vento” entre os três irmãos da família, resolveu se dedicar apenas ao balé.

– A dança é um sacerdócio, é sua vida. Ou você se

entrega ou não faz! Ser bailarina é duro. Não dá pra fazer balé e dizer: “Agora acabou, vou fazer outra coisa” – desabafa.

Nunca foi fácil ser artista no Brasil, principalmente na dança, que é a arte menos incentivada no país. Por isso, o bailarino tem que trabalhar em muitos lugares ao mesmo tempo.

– Eu não ganhei muito dinheiro com a dança, ganhei o suficiente para sobreviver com dignidade. Mas, fa-zer um pé de meia ou ficar rica? Isso nunca consegui.

Nem por isso, Patrícia deixa de acreditar na dança brasileira:

– Nós temos poucas companhias, mas de muita qua-lidade. Por ironia do destino, aqui somam talentos. Muitos vão embora e os que ficam sofrem. Os bai-larinos têm qualidade, talento, mas não têm o apoio que merecem.

Quando o Ballet da Câmara de São Paulo acabou, Patrícia resolveu “tentar a vida” na Europa. Com o dinheiro contado, pegou as malas, comprou a passa-gem e partiu em busca do sucesso. Pena que foi na hora errada, pois chegou ao continente em janeiro, meses antes de ocorrerem as audições. “E agora?”

Persistente, Patrícia conseguiu fazer um teste no Ballet Nacional de España, dirigido por Ray Barra.

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Passou.

O problema é que, por questões burocráticas, só po-dia começar a dançar em agosto. Com dificuldade de se manter financeiramente no país estrangeiro, deci-diu voltar ao Brasil. Porém, chegou aqui e teve que lidar com uma situação triste: o divórcio dos pais. Muito sensível emocionalmente, a bailarina abriu mão da oportunidade que havia conquistado na Es-panha.

Nesse período, fez curso de computação gráfica, que, na época, estava em ascensão, e descobriu um novo talento. O salário era bem melhor do que o de baila-rina. Mas, não conseguiu ficar enclausurada em um escritório, sentia-se como um bicho preso na gaiola. Sempre que possível, se pendurava na porta do ba-nheiro para exercitar-se.

Desde criança, Patrícia é muito agitada, precisa se mexer o tempo todo. Embora não esteja mais nos palcos, a delicada ensaiadora mantém a forma cor-poral, realizando, em média, três aulas por semana. Hoje, participou da aula de balé clássico, estilo de dança que “a escolheu”, devido ao biótipo do seu corpo, com os bailarinos da companhia.

Em uma visita casual ao amigo Ismael Guiser, foi convidada para lecionar aulas na escola de dança do rapaz e, em seguida, para fazer parte da Ismael Guiser Cia. de Dança. Patrícia relutou, mas a tenta-

ção para voltar a dançar era grande. Na companhia, teve a oportunidade de trabalhar com os coreógrafos respeitadíssimos no cenário da dança internacional Victor Navarro e Luis Arrieta.

Em 1993, o respeitado Fernando Bujones veio ao Brasil para selecionar bailarinos para formar uma companhia que realizaria uma temporada em solo brasileiro. Patrícia achou incrível.

–Imagina, um ícone mundial vir escolher bailarinos aqui no Brasil?

Porém, não enviou o vídeo necessário para participar da audição, devido ao ciúme de Ismael.

Na época que aconteceu o surto da Aids no Brasil, houve um grande espetáculo no Teatro Municipal de São Paulo, onde muitas companhias de dança parti-ciparam, para arrecadar fundos para vítimas da doen-ça. Muito envolvida emocionalmente por ter perdido um parceiro de pas de deux para a doença, Patrícia dançou no evento. Mesmo com a escuridão, conse-guiu avistar na plateia o ídolo Fernando Bujones.

Na noite seguinte, o telefone da sua casa tocou. Não deu outra, Patrícia foi convidada para participar da audição – que foi um fenômeno na época – para compor a companhia formada por bailarinos brasi-leiros. Pensou que fosse um trote.

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– Eles que me escolheram, porque eu não escolhi. É por isso que eu acredito no destino. A gente pode até desviar do caminho, mas ele diz, volta pra cá e te põe no teu lugar. O caminho é esse e o destino me escolheu.

Patrícia sentiu-se feliz e triste ao mesmo tempo, pois era leal ao maestro Ismael Guiser e não queria desa-pontá-lo.

– Eu jamais teria outra oportunidade desta na vida, era como ganhar na Mega Sena acumulada. Eles ba-teram na minha porta e eu não podia simplesmente fechá-la. Era o destino me chamando.

Com a voz suave, Patrícia lembra que, quando seu número de participação, o dezesseis, foi chamado dentre os finalistas, ficou imóvel.

– Foi uma experiência incrível, depois disso eu fala-va: “Já posso morrer, acabou. Estou realizada, che-guei ao topo do monte, eu consegui”.

Terminada esta temporada, Patrícia, desnorteada, voltou com “o rabo entre as pernas” para a Ismael Guiser Cia. de Dança. Apesar de o coreógrafo ter fi-cado meses sem falar com a bailarina, por tê-lo “tro-cado” por Fernando Bujones, a aceitou de volta. Mas sua permanência no grupo foi curta. Logo depois, Hulda Bittencourt, que havia visto Patrícia dançar, a convidou para fazer parte da Cisne Negro Cia. de

Dança.

– Aqui tive uma carreira longa e linda, de solista e de muitos primeiros papéis.

Foram diversos papéis ao longo dos dezoito anos na companhia, inclusive do espetáculo “O Quebra--Nozes”. Há cerca de quatro anos, passou a ser pro-fessora e ensaiadora da companhia.

– É muito legal ver um bailarino em cena e saber que eu o ajudei, o encaminhei, e vê-lo arrasando no palco, todo lindo, é emocionante. Eu choro, porque antes era “eu consegui”, agora é “conseguimos” – orgulha-se.

Apesar de ser difícil ter de lidar com “egos”, além do seu próprio, Patrícia ama o que faz. Emociona-se quando a companhia remonta alguma coreografia em que dançou no passado:

– Ver as dificuldades deles, a superação, e lembrar a emoção que eu senti quando dancei é incrível. – É preciso segurar o choro nos ensaios.

Acaba o ensaio da complexa coreografia “Sabiá”.

Rapidamente, Patrícia passa, com a voz tranquila e suave, as instruções para os bailarinos. Ela é sempre delicada ao corrigi-los. Muitas vezes, conta alguma coisa que arranca risos dos jovens. Sempre sorriden-

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te, ela é querida pelo elenco da companhia.

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Os bailarinos saem correndo para um breve intervalo de meia hora.

Morvan e os outros integrantes da “Cisne Negro” aproveitam para almoçar. Hoje a refeição dele foi bolo de batata com recheio de frango. O rapaz, que adora cozinhar, cuida muito da alimentação. Durante a semana não come arroz, pois faz uma dieta com base em proteína e carboidrato. Ele come muita car-ne branca para substituir a carne vermelha, que lhe faz mal.

Stephanie afirma que, para ser bailarino, é importan-te ter uma alimentação rigorosa e controlada, uma vez que o bailarino faz muito mais exercícios, até mais que uma pessoa que malha na academia, e gasta muito mais energia.

– A gente tem que comer muito carboidrato, porque a gente gasta muito, mas ao mesmo tempo, a gente tem que controlar pela questão do físico, que é muito exigente no bailarino, não é que nem um atleta – ex-plica a jovem bailarina.

– Mas a gente não pode deixar de comer, porque se-não a gente cai duro aqui. A gente precisa estar bem.

O intervalo também é usado para relaxar, pois a roti-na diária é muito desgastante. Quando consegue um tempo livre no intervalo, Amanda gosta de tomar um banho.

– Tem dia que a gente ensaia bastante, fica suado, aí tomo uma ducha para voltar a ensaiar outro balé, pois tem contato com a outra pessoa.

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O último ensaio de hoje é “Monger”, coreografia criada pelo coreógrafo israelense Barak Marshall, que o elenco da “Cisne Negro” ensaia há aproxima-damente quatro meses e está preparando para levar para a Alemanha. No Brasil, a coreografia se chama-rá “Senhora Margareth”. O espetáculo conta a his-tória de empregados que moram no porão de uma patroa abusiva.

É um balé bastante moderno, atual e contagiante. Amanda Soares dança concentrada no centro da sala de ensaio. Vestindo collant rosa claro, short e uma saia por cima, Amanda se destaca ao primeiro olhar. Com os cabelos médios de pontas claras presos a um coque, deixa à mostra seu brinco de pérolas falsas. Apesar de ter um tipo físico mediano, sua beleza dis-creta irradia por onde passa.

Natural do estado do Rio de Janeiro, Amanda come-çou a dançar balé clássico aos doze anos de idade.

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Passou por várias escolas e aprendeu diferentes mo-dalidades de dança, pois “bailarina tem que saber de tudo”. Passou por outras companhias, entre elas, a São Paulo Companhia de Dança e, desde 2011, está na “Cisne Negro”.

Com 25 anos de idade, Amanda mora desde 2009 na capital paulista – cidade para a qual se mudou em busca do seu sonho de dançar profissionalmente.

Dividiu apartamento com colegas de trabalho, mas, por passar muito tempo em intenso contato corporal, além de se considerar chata e sistemática, resolveu morar sozinha. Ela é caseira, mas, aos finais de se-mana, gosta de ir a bares com amigos, cinema, dança de salão e ficar com o namorado.

Com pouco tempo de carreira, a bailarina românti-ca e sonhadora já ganhou diversos prêmios. O maior deles veio aos dezoito anos, quando participava, pelo segundo ano, de um seminário de dança, idealizado por Gisele Santoro, em Brasília. Foi premiada com um estágio na Alemanha. O diretor queria conhecê--la pessoalmente, mas o fato de não oferecerem nenhuma ajuda de custo inviabilizou o encontro e adiou o sonho.

Apesar de tudo, a menina nunca se arrependeu de ter trilhado o caminho da dança e sempre lutou por aquilo que acreditou. Mas conta que nunca foi fácil.

– Sou guerreira, porque acreditei numa possibilidade e fui atrás. A gente passa por dificuldades, é difícil e eu nunca desisti. É uma luta constante ir adiante. – Depois de uma pausa, Amanda sorri. Em seguida, chora.

Atualmente, Amanda vive um momento importante da sua carreira.

– Aqui na companhia eu tenho participado mais, e eu acho que, com a idade e o amadurecimento da dança, eu tenho aproveitado mais o balé clássico em si.

Dona de olhos amendoados e um grande sorriso, a bailarina é apreciadora do espetáculo “O Quebra--Nozes”, que foi sua porta de entrada na companhia e de qual já participou em duas temporadas.

A temporada de 2012 foi a mais importante para a carioca, pois foi a primeira vez que seus pais assis-tiram juntos a uma apresentação encenada por ela.

– Meu pai só tinha me visto na minha formatura, em 2005, para ele, eu sempre fui a sua princesinha. En-tão, nesse “O Quebra-Nozes”, eu fiz essa princesa para ele, foi emocionante, eu fiquei muito feliz, foi especial – conta com um sorriso nos lábios.

A bailarina sempre seguiu o conselho da mãe, Débo-ra Aparecida Pessoa Soares, que dizia: “Siga os seus sonhos e seja feliz”. O incentivo era compartilhado

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também por seu pai, o bancário Sebastião Alexandre Soares, e o irmão caçula, Diego Pessoa Soares.

Nascida em 15 de novembro de 1987, Amanda é do signo de escorpião.

– Tenho uma personalidade forte, que é do meu sig-no, mas tenho também outro lado que esconde isso – conta.

De fato, os companheiros de trabalho a classificam como paciente, meiga e delicada, porém, muito fe-chada. Amanda não é de guardar rancor, mas se algo lhe desagrada, ela é enfática “eu não esqueço nun-ca”. Com o namorado, que é seu “porto seguro” e que se esforça para entender a profissão da bailarina, é até calma, busca resolver as divergências na base da conversa, sem “quebra-pau”. Também é paciente, dá prazo e, no máximo, busca explicações. Guarda para si, às vezes chora.

Três da tarde. O ensaio acaba. Os bailarinos saem em disparada. Amanda tem que correr para a Mooca, onde dá aulas de balé clássico, assim como a maioria dos integrantes da companhia, para complementar a renda. Chegou a estudar nutrição, em 2011, mas não concluiu devido a dificuldades financeiras. Pretende voltar a estudar, mas ainda não decidiu se será edu-cação física ou administração.

ATO I I I

LEMBRANÇA

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Eterno FritzCamila Fortunato

São dez horas da manhã de uma quinta-feira quando Marco Aurélio Nunes, ex-bailarino da Cisne Negro Cia. de Dança me recebe, com muita simpatia, em seu apartamento, localizado na rua Teodoro Sam-paio, em Pinheiros. Com alto astral, me acomoda na mesa redonda de vidro que divide a sala do moderno apartamento em dois ambientes. As paredes da sala de estar de Marco Aurélio são decoradas com qua-dros de fotos e cartazes do tempo em que ele dançava profissionalmente.

Marco Aurélio ficou conhecido na companhia por ter dado vida ao personagem Fritz, de “O Quebra--Nozes”. Interpretou o irmão levado da protagonista

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Clara pela primeira vez aos vinte anos de idade. Vin-te anos mais tarde, por ocasião do aniversário de 25 anos da companhia, foi convidado por Hulda Bitten-court para encenar novamente o personagem.

– Eu brinco com as pessoas que foi uma façanha ter entrado no figurino, que era o mesmo que eu usava nas primeiras apresentações. Falei para a Hulda que, se ela um dia for jogar essa calça fora, ela tem que me dar para eu colocar em um quadro na parede.

A calça de qual Marco Aurélio se refere pertencia ao guarda-roupa pessoal de Hulda Bittencourt e foi usa-da pelo personagem Fritz desde a primeira vez que o espetáculo “O Quebra-Nozes” foi encenado em São Paulo, há quase trinta anos.

– A jaqueta se desfez, desmantelou, mas a calça é a relíquia, da relíquia, da relíquia. Não tem onde ras-gar mais.

Confortável em seu apartamento, Marco Aurélio veste uma bermuda de sarja cinza chumbo, uma fina camisa de algodão branca com decote em “v” e tênis esportivos. O ex-bailarino conta que teve seu primei-ro contato com a dança aos dezessete anos de idade, quando entrou na Cultura Inglesa.

Por conta das aulas extracurriculares de teatro musi-cal, o menino encenou “José do Egito”, seu primeiro trabalho de muitos que ainda estariam por vir em sua

carreira.

Devido aos musicais, o bailarino foi convidado por Edson Claro para dançar no Grupo de Dança Casa Forte, onde Marco descobrira seu verdadeiro talen-to: a dança. Os dois anos que permaneceu no grupo colaboraram para que, em 1984, Marco Aurélio re-cebesse o convite de Hulda Bittencourt para parti-cipar da audição para ingressar na Cisne Negro Cia. de Dança.

– A Cisne Negro era uma companhia pequena, como a maioria das companhias daquela época, mas, por força de vontade de Hulda Bittencourt, essa mulher que realmente é muito forte, muito batalhadora da dança, a gente conseguiu fazer algumas coisas muito interessantes nesse período.

Nos importantes cinco anos que Marco Aurélio dan-çou profissionalmente pela companhia, teve a opor-tunidade de trabalhar com grandes nomes da dança, como Victor Navarro e Ana Maria Mondini.

Quando o paulistano entrou na companhia de Hul-da, causou estranhamento, pois era um rapaz baixo, que se destacava em meio a tantos bailarinos altos, que compunham um “padrão”. Porém, sua estatura colaborou para a diversidade da companhia. Ainda hoje, Marco é conhecido como o “baixinho da Cisne Negro”.

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– Chegou um ponto em que a companhia começou a remontar alguns balés que tinham o meu perfil.

O ex-bailarino, que usa óculos que destaca seu olhar sério, conta que a “Cisne Negro” remontou “Gad-get”, de Vitor Navarro, que é uma coreografia extre-mamente técnica e difícil. Foi a primeira vez que o nome dele saiu em uma crítica de jornal.

O bailarino estreou na “Cisne Negro” no período em que a companhia estava caminhando para um bom momento.

– Em vez de viajar de ônibus com os figurinos fedi-dos no fundo, a gente ia de avião.

Os bailarinos começaram a ter melhores condições de trabalho. Isso porque, foi na década de 1980 que realmente começou a profissionalização forte da dança. Nesse período, começaram a surgir as primei-ras leis de fomento à arte no Brasil. Entre elas, a Lei Sarney – legislação federal de incentivo fiscal à pro-dução cultural implantada em 1986.

Marco Aurélio Nunes entrou na Cisne Negro Cia. de Dança para fazer a temporada do espetáculo “Do Homem ao Poeta”, que é um divisor de águas na companhia.

– Era um balé de uma hora e dez minutos no qual nenhum dos doze bailarinos saia do palco em mo-

mento algum. O espetáculo não possuía cenário, o que possibilitava que nós nos apresentássemos em qualquer lugar.

A obra, que tinha música de Carmina Burana, fez com que o elenco da “Cisne Negro” viajasse mun-do afora. Nessa época, o Brasil tinha recém-saído de uma ditadura militar, e o fato de a companhia viajar para o exterior era algo incrível.

A “Cisne Negro” estava no auge, mas a situação econômica do Brasil era preocupante, o país estava passando por um processo de hiperinflação e de tur-bulências políticas. Por isso, Marco Aurélio decidiu que era a hora certa para aprimorar seus estudos no exterior, uma vez que a sua formação na dança era prática, não tinha um “diploma” que comprovasse a profissão de bailarino.

Na época, as escolas incentivavam os bailarinos homens, pois eram raros, uma vez que havia muito preconceito, o que facilitou com que Marco Aurélio fosse contemplado com uma bolsa de estudos – ofe-recido pelo Conselho Britânico – para cursar dança moderna e coreografia em Londres. Por um ano, teve oportunidade de ser aluno de uma escola, cujas aulas eram baseadas na técnica de dança da famosa bai-larina Marta Graham5 . Voltar a estudar exigiu uma 5 Marta Graham (1894-1991) foi coreógrafa, professora e teve

grande influência na dança moderna revolucionando o gênero e tornando-se conhecida como a “mãe da dança moderna”.

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humildade muito grande de Marco Aurélio, que na época já era experiente na dança.

Após o término do curso, no início dos anos 1990, quando estava no auge de sua forma física de baila-rino, Marco Aurélio resolveu dançar na Alemanha, que, para ele, é onde tem o melhor mercado de bai-larinos do mundo. Ainda jovem, se aventurou pelo país, onde ficou hospedado em casa de amigos e, mesmo sem falar uma única palavra em alemão, cor-ria atrás das audições.

Pensou em voltar para o Brasil, mas a situação do país ainda estava complicada, assim como a da Cisne Negro Cia. de Dança.

– Eu realmente tenho que tirar o chapéu para a Hul-da, porque ela segurou bem a onda. Ela perdeu mui-tos bailarinos para novas companhias que se forma-ram. Os melhores da companhia saíram de repente, todos juntos, para dançar em outra companhia, que contava com patrocínio.

Na Alemanha, Marco Aurélio Nunes passou a fazer parte do elenco da Badisches Staatstheater Karls-ruhe, composto por sessenta bailarinos. Foi uma mu-dança radical – na “Cisne Negro”, eram doze pesso-as –, porém, fundamental para a sua carreira.

– Era uma companhia que tinha hierarquia, então de-morei um ano para conseguir meus primeiros solos

e papéis. Até consegui fazer o personagem Puck, da peça “Sonho de Uma Noite de Verão”, foi muita ra-lação.

Diferentemente de outras companhias alemãs, onde os ensaios eram ministrados em inglês, nesta, o idio-ma falado era o francês. Aos poucos, o bailarino foi aprendendo o francês e o alemão.

Como a companhia ficava em uma cidade do sul da Alemanha, “isolada e até um pouco provinciana”, eram montados espetáculos grandiosos, de chamar a atenção. Foi nesse momento que Marco Aurélio Nunes deu seus primeiros passos como bailarino em grandes óperas e operetas, além dos musicais.

Em um dos musicais dançados por Marco Aurélio, a belga Madeleine Bath, que estava na plateia, se en-cantou pelo bailarino e o convidou para fazer parte da sua companhia, a Theater Krefeld Mönchenglad-bach.

– “É você que eu quero. Você vai ser o primeiro bai-larino da minha companhia.” Eu disse assim: “Ahãa-aa?” – Marco Aurélio lembra com carinho das pala-vras daquela mulher que foi especial na sua carreira.

– Ela já tinha um papel, planejado especialmente para mim, de um balé que ela queria fazer, que é tipo uma lenda medieval e um personagem traquinas. E ela viu essa energia em mim e me chamou para fazer

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parte. – Papel que tinha o mesmo astral do menino Fritz.

Madeleine Bath sempre montava espetáculos em que o bailarino “baixinho” podia encenar. Além do mais, a coreógrafa confiava tanto no talento do rapaz que sempre pedia a opinião dele. Eles trabalhavam de “maneira democrática”. Democracia que Marco Aurélio raramente viu durante a carreira na dança.

– A dança não é democrática, porque é uma arte que exige muita disciplina, disciplina quase militar. En-tão, não dá para você falar: “hoje vou fazer aula, hoje não; ou, hoje vou fazer sozinho”. A sua vontade in-dividual é secundária. Você tem de estar lá naquele horário, cumprir uma tabela de exercícios, de pre-paração física que, normalmente, não é você quem decide.

Desde sempre, Marco Aurélio soube que a carreira de bailarino seria curta e que precisaria de uma se-gunda opção para sobreviver quando chegasse a hora de interromper a carreira. Então, em 1996, após ter sofrido uma lesão nas costas, aos 36 anos, decidiu pendurar as sapatilhas.

– Eu não queria nunca que acontecesse o que eu vi acontecer lá na Alemanha, em grandes companhias, onde bailarinos que tinham 35, quarenta anos de ida-de ficavam em segundo plano, no fundo do palco, quando não eram demitidos.

Marco Aurélio temia ser um velho bailarino com o corpo deteriorado pelo esforço exagerado.

– Eu achava que tinha feito uma carreira legal, im-portante, bonita. Queria sair por cima. Assim fiz.

Deixou a carreira internacional, que durou seis anos, e voltou para o Brasil, perdido e sem saber o que fazer.

– Quando a gente para de dançar, a cabeça entra em parafuso. Você é acostumado a ficar seis, oito, dez horas por dia dentro de uma sala de aula e, de repen-te, se vê em um apartamento. Eu não me preparei psicologicamente. – Foi uma fase difícil para Marco Aurélio, que buscou sempre manter a forma.

Em 1997, a diretora da “Cisne Negro” fez um convite para que ele retornasse à companhia, mas, dessa vez, não como bailarino, e, sim como assessor internacio-nal, devido a sua formação em inglês e conhecimen-to conquistado no exterior. A partir daí, a companhia voltou aos momentos de glória, se apresentando em vários países e trazendo coreógrafos estrangeiros para montar os espetáculos no Brasil.

Apesar de não ter experiência com produção, Marco Aurélio conseguiu cumprir com maestria o desafio. Herdou a organização e o conhecimento da diretora artística.

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– A Hulda tem prazer em receber os “filhotes”. Acho que faz bem pra ela saber que aquilo que foi semeado lá atrás continua. Eu tenho muita gratidão.

Apesar da brilhante carreira de bailarino, Marco Au-rélio Nunes nunca contou com o apoio dos falecidos pais. Menino de classe média, foi educado para ser médico, advogado ou engenheiro. Para o seu azar, era bom aluno e um filho exemplar – só começou a beber na Alemanha “porque a cerveja era mais barata que água”, brinca.

– Eu me lembro quando eu contei para meu pai que eu estava pensando em seguir carreira de bailarino, foi justamente no momento que eu precisei trancar a faculdade para poder viajar. A reação foi a pior pos-sível. Nada violento, não fisicamente, mas o meu pai falou que o que eu estava fazendo não prestava, que não era profissão. Ele achava que eu ia parar embai-xo da ponte, ser mendigo. – A partir desse dia, o pai cortou a mesada do menino e só faltou expulsá-lo de casa.

– Meu pai achou que seria uma forma de me pressio-nar pra que eu voltasse a ser aquele menino que eu era. Mas surtiu o efeito oposto.

Marco Aurélio tinha certeza que amava dançar. Para viver seu sonho, foi morar em república e passou a se sustentar sozinho. O dinheiro era contado. Foi um momento difícil.

Anos depois, a convite do filho, seu pai foi assistir “O Quebra-Nozes”.

– A reação dele foi boa, ele achou legal. Eu tenho a impressão que, como “O Quebra-Nozes” exige que o fator interpretação seja muito forte, ele digeriu bem, ele não crispou.

Para Marco, existe uma troca mútua entre ele e a dança. Sem nenhum arrependimento da vida que le-vou durante anos, o ex-bailarino se orgulha de ter passado por tudo que passou. A dança o levou onde ele tinha que chegar. Julga o fim da carreira, aos 33 anos, precoce, mas não se arrepende de ter parado.

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APLAUSOS

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68 69Geysa e Everto no pas de deux de “A Bela Adormecida”, em 2012.

Hulda Bittencourt na inauguração da atual sede da Cisne Negro Cia. de Dança, na Rua das Tabocas.

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Dany Bittencourt, Patrícia Alquezar, Raymundo Costa. Fabio Pinheiro e Boris Storojkov no Teatro Municipal de São Paulo.

Dany Bittencourt, sua mãe Hulda e a irmã Giselle Bittencourt, responsável pela administração do Estúdio Cisne Negro.

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Ao lado de Raony, Nice encena o pas de deux do Pássaro Azul.

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Hulda Bittencout acompanhada por suas filhas, Giselle e Dany, na inauguração da atual sede do estúdio e da companhia “Cisne Negro”.

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A apresentação do espetáculo natalino “O Quebra-Nozes”, em 1983.

Patrícia Alquezar no espetáculo “Por Que”, de Ismael Guizer, em 2008.

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Na foto a cima, Gisele Aparecida ao lado das irmãs Aldenir e Aldeni-ce e da Gisele Dantas. A baixo, a coreografia de sapateado.

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Stephanie Alvarenga no papel de Clara, de “O Quebra-Nozes”,em 14 de dezembro de 2008.

Amanda Soares em ensaio na sala da Cisne Negro Cia. de Dan-ça, em 2013.

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Ao lado do parceiro de dança, Morvan Teixeira levanta a perna no espetáculo Revoada , em Nova York, em 2011.

Marco Aurélio Nunes na coreografia Destino, apresentada no Royal Festival Hall de Londres.

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Emocionada, Geysa agradece Fernanda Bianchini, fundadora da associação

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Bailarinos da Cisne Negro Cia. de Dança em aula de balé clássi-co na sede da companhia, em 2013.

Bailarinos da Cisne Negro Cia. de Dança em aula de balé clássi-co na sede da companhia, em 2013.

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A cortina se fecha. A cortina se fecha.

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