histÓrias de antepassados e - martins fontes · veias com a mesma força dos rios que serpenteiam...
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UM
H I S T Ó R I A S D E
A N T E P A S S A D O S
Eaté mesmo no dia em que nasci, era para ter morrido.
Encarei a morte inúmeras vezes em meus 35 anos, mas
ainda estou viva.
Não sei explicar, mas sei que Deus tem um objetivo para mim.
Talvez Seu objetivo seja que eu governe e lidere o país para longe
do abismo de corrupção e violência. Ou talvez Seu objetivo seja que me
torne uma boa mãe para minhas filhas.
Fui a décima nona criança de meu pai, em um total de 23, e a úl-
tima de minha mãe. Ela era a segunda esposa de meu pai. Quando ficou
grávida de mim, estava esgotada fisicamente por causa dos sete filhos
que já havia trazido ao mundo. Também estava deprimida por ter per-
dido o carinho de meu pai para sua nova esposa, a sétima, a mais jovem
de todas. Sendo assim, mamãe queria que eu morresse.
Nasci no pasto. No verão, minha mãe e um grupo de criadas fa-
ziam a jornada anual para pastorear o gado e as ovelhas no ponto mais
alto das montanhas, onde a grama era mais doce. Era sua chance de
escapar da casa por algumas semanas. Cuidava de toda a operação, reu-
nindo a quantidade suficiente de frutas secas, castanhas, arroz e óleo
para sustentar o pequeno grupo de viajantes durante os cerca de três
meses em que estariam fora. Os preparativos para a viagem eram fonte
de muita animação. Mamãe preparava a bagagem e planejava cada de-
talhe antes de o comboio de cavalos e jumentos partir para as terras
altas.
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Ela amava essas viagens. Conforme cavalgava pelos vilarejos, a ale-
gria de estar temporariamente livre das algemas do lar e dos afazeres
domésticos, podendo respirar o ar fresco da montanha, era evidente
para todos.
Existe um provérbio local que diz que quanto mais poderosa e
apaixonada uma mulher, mais bonita fica em cima de um cavalo com
sua burca. Dizem também que nenhuma mulher ficava mais linda sobre
o cavalo do que minha mãe. Tinha alguma coisa na maneira como se
apresentava — sua postura ereta, sua dignidade.
Todavia, no ano em que nasci, 1975, ela não estava em clima de
celebração. Treze meses antes, parada embaixo dos grandes portões
amarelos de nossa hooli, como chamávamos a casa (era uma estrutura
térrea larga e vasta com paredes feitas de barro), mamãe assistiu a uma
festa de casamento. Vinha como um cortejo, serpenteando montanha
abaixo e passando pelo centro do vilarejo. O noivo era o marido de mi-
nha mãe. Papai resolveu ter uma sétima esposa, uma menina de apenas
14 anos.
Cada vez que se casava novamente, mamãe ficava arrasada — ape-
sar de papai gostar de brincar dizendo que, a cada nova esposa, mamãe
ficava ainda mais bonita. De todas as esposas, a que meu pai mais amava
era minha mãe, Bibi jan, que significa “bela querida”. Mas na cultura do
vilarejo montanhoso de meus pais, amor e casamento raramente signi-
ficavam a mesma coisa. O casamento era para família, tradição, cultura
e obediência, todos considerados mais importantes do que a felicidade
individual. Não se esperava que fossem sentir ou precisar de amor. Só
causava problemas. Acreditavam que a felicidade se encontrava no cum-
primento do dever sem questionamentos.
Mamãe ficou em pé no grande terraço de pedras, segura atrás dos
portões da hooli, enquanto um grupo de mais de dez homens a cavalo
trotava encosta abaixo. Papai vestia sua melhor shalwar kameez, uma
longa túnica e calça, colete marrom e chapéu de pele de cordeiro. Ao
lado de seu cavalo branco — com borlas de lã rosa, verde e vermelha
penduradas no freio decorado —, havia vários outros levando a noiva e
suas familiares, todas vestindo burcas brancas. Acompanhavam a noiva
ao seu novo lar, que dividiria com minha mãe e as outras mulheres que
também chamavam meu pai de marido. Meu pai — um homem baixo
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com olhos não muito afastados e uma barba bem-aparada — sorria com
graça e apertava as mãos dos moradores que vieram parabenizá-lo e
presenciar o espetáculo.
— Wakil Abdul Rahman está aqui — exclamavam uns para os
outros. — Wakil Abdul Rahman chegou em casa com a nova e linda
esposa! — Seu público o amava e não esperava menos.
Wakil (que significa representante) Abdul Rahman — meu pai —
era membro do parlamento afegão e representava o povo de Badakhshan,
o mesmo povo que represento hoje. Desde os antepassados mais antigos
que podemos identificar em nossa família, a política local e o serviço
público vêm sendo nossa tradição e honra. A política corre em minhas
veias com a mesma força dos rios que serpenteiam todo o território de
Badakhshan. Antes de meu pai e eu nos tornarmos membros do parla-
mento, o pai de meu pai, Azamshah, foi líder comunitário e ancião da
tribo.
Em Badakhshan, os distritos de Darwaz e Koof, onde minha famí-
lia e meu sobrenome têm origem, são tão remotos e montanhosos que
até hoje o percurso de carro até lá leva três dias, partindo de Faizabad, a
capital da província. Isso quando o clima está bom. No inverno, as pe-
quenas passagens na montanha ficam completamente fechadas.
O trabalho de meu avô era ajudar as pessoas com problemas sociais
e práticos, conectando-as ao governo central em Faizabad e trabalhando
com a administração provincial para prover serviços. Nunca entrou em
um avião ou dirigiu um carro. A única maneira de levar os problemas
pessoalmente até as autoridades governamentais em Faizabad, passando
pelo distrito montanhoso de Darwaz, era a cavalo ou jumento, uma
viagem que geralmente levava de uma semana a dez dias.
É claro que meu avô não era o único a fazer essa viagem. Se qual-
quer morador tivesse de se conectar com cidades maiores, só havia uma
forma: a cavalo ou a pé. Era como os fazendeiros compravam sementes,
doentes chegavam ao hospital, familiares separados pelo casamento se
visitavam. Viajar só era possível nos meses de primavera quente e verão,
e mesmo nesse período apresentava grandes perigos.
A Atanga era o maior risco de todos. Atanga é uma montanha
enorme às margens do rio Amu Darya. Esse rio de águas verdes-claras é
o que separa o Afeganistão do Tadjiquistão. Era tão perigoso quanto
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lindo. Na primavera, à medida que a neve derretia e as chuvas caíam, as
margens inundavam, criando uma série de correntes rápidas e letais.
A travessia da Atanga era uma série de degraus de madeira bruta
amarrados nas laterais da montanha para que as pessoas subissem de um
lado e descessem do outro. Os degraus eram pequenos, frágeis e escor-
regadios. Um simples tropeço ou erro, e a pessoa caía direto no rio para
ser carregada ao encontro da morte.
Imaginem voltar de Faizabad com mercadorias que acabaram de
comprar, sejam 7 quilos de arroz, sal, óleo ou outro mantimento precio-
so que tinha de durar para toda a família durante o inverno inteiro.
Cansados de uma semana de caminhada, vocês teriam de arriscar suas
vidas negociando com uma travessia mortal que provavelmente já teria
sacrificado muitos de seus amigos e familiares.
Meu avô não suportava ver seu povo morrendo dessa maneira ano
após ano e fez tudo o que pôde para forçar o governo a construir uma
estrada decente e uma travessia mais segura por onde passar. No entan-
to, mesmo sendo mais rico do que a maioria das pessoas em Badakhshan,
era apenas um oficial local de um vilarejo remoto. (Apesar de hoje ser
um distrito, Koof era considerado um vilarejo.) No final das contas,
viajar até Faizabad era o máximo que podia fazer. Não possuía nem os
meios nem o poder para viajar até Cabul, onde o rei e o governo central
tinham sua base.
Ciente de que nenhuma mudança ocorreria até o fim de sua existên-
cia, vovô decidiu que filho mais novo assumiria o papel ativista. Meu pai
era apenas um garoto quando meu avô começou a prepará-lo para um
futuro na política. Anos mais tarde, após meses de negociações sólidas, um
dos maiores sucessos de papai no parlamento seria a realização do sonho
de meu avô com a construção de uma estrada na travessia de Atanga.
Há uma história célebre sobre a estrada e o encontro de papai com
o rei Zahir Shah para discutir o projeto. Papai se colocou na frente do
rei e disse:
— Shah sahib, a construção dessa estrada vem sendo planejada há
anos, mas não tomam atitudes. Você e seu governo planejam e falam,
mas não cumprem as promessas.
Naquela época, o parlamento era composto por representantes
eleitos, porém o rei e seus cortesãos ainda comandavam o país. Era raro
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fazer uma crítica direta ao rei, e apenas um homem corajoso e incauto
tentaria fazer isso. O rei tirou os óculos e olhou para papai por um bom
tempo e com dureza, antes de declarar severamente:
— Wakil sahib, lembre-se de que está em meu palácio.
Meu pai entrou em pânico, achando que tinha ido longe demais.
Deixou o palácio rapidamente com medo de ser preso na saída. Toda-
via, um mês depois, o rei mandou seu ministro de trabalhos públicos
para Badakhshan a fim de encontrar meu pai e planejar a construção da
estrada. O ministro chegou, observou a montanha e disse que era im-
possível. Não havia mais nada a dizer; retornaria para casa em breve.
Papai concordou sabiamente e o convidou a fazer um curto passeio a
cavalo antes de ir. O homem concordou e cavalgaram juntos até o topo
da travessia. Quando saltaram, papai pegou o cavalo do ministro e des-
ceu rapidamente, puxando seu próprio cavalo. Deixou o ministro per-
noitar sozinho na montanha para dar uma ideia de como os moradores
que ficavam presos na travessia se sentiam.
Na manhã seguinte, papai voltou para buscar o ministro. Estava
furioso, quase morto de tanta picada de mosquito, e ficou acordado a
noite toda com medo de ser devorado por cachorros selvagens e lobos.
Contudo, agora compreendia perfeitamente como a vida era dura para
o povo local. Concordou em trazer engenheiros e dinamite para que a
via pudesse ser criada. A travessia que papai construiu em Atanga ainda
está lá, e esse feito da engenharia salvou milhares de vidas ao longo dos
anos.
No entanto, muito antes de a via ser construída e de meu pai se
tornar membro do parlamento, meu avô nomeou o pequeno Abdul
Rahman como arbab, um líder do vilarejo. Mesmo aos 12 anos de ida-
de, isso efetivamente lhe fornecia os poderes de um ancião de tribo. Foi
designado para lidar com os problemas de terra, família e disputas de
casamento dos moradores. As famílias que queriam uma boa união para
as filhas vinham até ele para pedir conselho na escolha de maridos apro-
priados. Não demorou muito para que começasse a negociar projetos de
construção de estradas, a criar fundos e a se reunir com oficiais da pro-
víncia em Faizabad. Apesar de pouco mais que uma criança, tinha o
apoio do povo local, portanto esses oficiais estavam preparados para li-
dar com ele.
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Esse início deu uma base tão sólida ao meu pai em relação aos
problemas de nossa comunidade que quando amadureceu estava pronto
para liderar. E o momento foi perfeito, pois era o começo da real demo-
cracia no Afeganistão. Nos dez anos entre 1965 e 1975, o rei decidiu
estabelecer um parlamento democrático e permitir que as pessoas se
envolvessem no processo de tomada de decisões votando em seus mem-
bros locais no parlamento.
O povo de Badakhshan sentia que havia sofrido anos de negligên-
cia do governo central e se animou diante da oportunidade de final-
mente ser escutado. Quando chegaram as eleições, meu pai venceu e foi
o primeiro afegão nascido em Darwaz no parlamento. Representava um
dos povos mais pobres não só do Afeganistão mas do mundo. Uma
grande responsabilidade.
Contudo, há pessoas que têm orgulho, que se agarram a seus valo-
res. Pessoas que podem ser tão bravias e raivosas quanto o clima instável
da montanha, mas também tão frágeis e fortes quanto as flores selvagens
que crescem no granito às margens dos rios.
Abdul Rahman, sendo uma delas, sabia disso mais do que qual-
quer um e assumiu seu novo papel com muita dedicação.
No dia em que ia se apresentar ao parlamento pela primeira vez, em
Cabul, o povo local se reuniu em nossa casa no vilarejo de Koof para ouvir
seu discurso. Naqueles dias, o rádio era o único contato com o mundo lá
fora. Papai herdou o rádio de meu avô; era um aparelho russo de madeira
pesada com controles de bronze. Era o único rádio em nosso vilarejo.
Ninguém em Koof, exceto meu irmão mais velho, Jamalshah, sa-
bia ligar o rádio ou pelo menos aumentar o volume. Mamãe estava ex-
plodindo de orgulho por seu marido ser membro do parlamento. Abriu
os portões da hooli e deixou que o público escutasse o discurso. Chamou
Jamalshah para ligar o rádio para ela.
Não estava em lugar nenhum. Em pânico, ela correu pelo vilarejo
chamando por ele, mas não o encontrou. O discurso já ia começar, e
uma multidão se reunia na hooli. Primos, anciãos do vilarejo, mulheres
e crianças, algumas das quais nunca tinham visto um rádio — todos
queriam ouvir seu novo representante falar ao parlamento. Ela sabia que
não podia decepcionar meu pai, mas não fazia a mínima ideia de como
a bugiganga funcionava.
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Aproximou-se do rádio e testou todos os botões, mas nada funcio-
nou. A multidão a assistia com nervosismo, o que a fez sentir cada vez
mais pânico e medo. Começou a chorar. Seu marido seria humilhado, e
a culpa era dela. Se ao menos tivesse encontrado Jamalshah. Onde esta-
va o garoto? Por pura frustração, deu um soco em cima do rádio. A
batida funcionou incrivelmente e o negócio se engasgou e começou a
funcionar.
Mamãe não acreditou na sorte que teve. Mesmo assim, ninguém
ouvia nada, pois o volume estava muito baixo. Não tinha ideia do que
fazer. Sua amiga, a quarta esposa de meu pai, sugeriu que trouxessem os
alto-falantes. As mulheres não sabiam para que serviam ou como fun-
cionavam, mas já tinham visto os homens usando-os. Carregaram os
alto-falantes e os colocaram ao lado do rádio. Fizeram o que puderam
para conectá-los. Funcionou. As sessões parlamentares eram transmiti-
das ao vivo. O vilarejo todo ouviu o discurso de meu pai. Mamãe estava
radiante de alegria.
Papai logo ganhou a reputação de ser um dos homens mais traba-
lhadores do parlamento do rei. Apesar de Badakhshan continuar deses-
peradamente pobre, foi uma boa época para o Afeganistão. A nação es-
tava segura, a economia e a sociedade, de forma geral estáveis, porém os
países vizinhos não podiam aceitar isso com facilidade. Era o auge da
Guerra Fria, e a importância estratégica e geográfica do Afeganistão já
estava definindo o destino trágico que viria mais tarde.
Meu pai era franco, direto e trabalhador, respeitado não somente
em Badakhshan mas em todo o país por sua generosidade, honestidade,
fé e forte crença nos valores do islamismo tradicional. Contudo, não
agradava a algumas pessoas na corte do rei por se recusar a bajular as
elites e a entrar nos jogos políticos que eram um deleite para tantos de
seus companheiros de trabalho. Era um político antiquado, que acredi-
tava na nobreza do serviço público e de ajudar os pobres.
Passou vários meses em Cabul lutando por estradas, hospitais e
escolas. Teve sucesso em levantar fundos para completar alguns proje-
tos, mas outros escaparam de suas mãos. Os governantes sediados em
Cabul não viam importância em nossa província e era difícil conseguir
investimentos para projetos maiores, algo que irritava meu pai
constantemente.
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Mamãe se lembrava de passar um mês inteiro organizando a che-
gada de papai antes do recesso parlamentar anual. Preparava tipos dife-
rentes de doces e frutas secas, limpava a casa, mandava os serventes
buscarem madeira na montanha para tudo o que inevitavelmente teria
de cozinhar. Toda noite, uma grande fila de jumentos carregados de
madeira entravam pelos portões da hooli. Mamãe dava instruções sobre
a altura e o tamanho das pilhas no depósito de madeiras no canto do
jardim. À sua própria maneira, trabalhava tanto quanto papai. Só acei-
tava a melhor qualidade e sempre buscava a perfeição. Mas papai mal
agradecia por isso. Era capaz de ser um tirano aterrorizante em casa. Os
hematomas de mamãe eram prova disso.
Cada uma das esposas representava uma união política. Casando-
-se com a filha favorita de uma tribo próxima ou de alguém poderoso
da região, consolidava e assegurava, estrategicamente, a base de poder
de seu próprio império local. O pai de minha mãe era um ancião im-
portante no distrito vizinho e havia lutado contra o vilarejo de meu pai.
Casando-se com minha mãe, ele assegurou um tratado de paz local.
Amava algumas de suas mulheres, divorciou-se de duas, ignorava a
maioria. Teve o total de sete esposas ao logo da vida. Mamãe era a favo-
rita, sem sombra de dúvida. Era pequena, tinha rosto bonito e oval e
pele clara, olhos grandes e negros, cabelos compridos, escuros e brilho-
sos e sobrancelhas em arcos bem-definidos.
Era nela que confiava mais, era ela quem guardava a chave do cofre
e dos depósitos de alimentos. Era ela a responsável pela coordenação do
preparo da comida nos grandes jantares políticos. Era ela quem coman-
dava serviçais e outras esposas para que cozinhassem remessas infinitas
de arroz pilau aromatizado, gosht (um cozido de carneiro) e pão naan na
cozinha da hooli.
Uma fila de criadas e irmãos se estendia da entrada da cozinha até
a casa de hóspedes, que ficava ao lado da nossa e era onde meu pai en-
tretinha os convidados. Passavam panelas extremamente quentes de um
para o outro. As mulheres não podiam entrar nessas áreas exclusivamen-
te masculinas. Em nossa cultura, uma mulher casada não deve ser vista
por um homem que não seja da família. Então, nessas ocasiões, meus
irmãos, que nunca precisavam cuidar da casa, tinham de ajudar.
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Papai queria tudo perfeito para celebrações como essas. O arroz
tinha de ficar solto, cada grão individualmente separado. Se ficava, sor-
ria com satisfação por sua sorte e pela escolha excelente de esposa. Se
encontrasse alguns grãos unidos, seu rosto fechava-se. Pedia licença aos
convidados, entrava na cozinha, e, sem dizer nada, pegava minha mãe
pelos cabelos, arrancava a panela de metal de suas mãos e dava uma
pancada em sua cabeça com a panela. As mãos de mamãe — com cica-
trizes e deformações por causa de outros espancamentos — subiam à
cabeça em uma tentativa de se proteger. Às vezes ficava inconsciente,
porém logo se levantava e, ignorando os olhares assustados das criadas,
passava cinza quente na cabeça para estancar o sangramento e se certifi-
cava de que os grãos da próxima leva de arroz ficassem perfeitamente
separados.
Suportava aquilo porque, no seu mundo, os espancamentos signi-
ficavam amor.
— Se um homem não bate na mulher, não a ama — explicou para
mim. — Ele tem expectativas comigo e só me bate se eu o decepciono.
Sei que isso pode soar estranho para ouvidos modernos, mas era no
que genuinamente acreditava, e isso a sustentava.
Obedecer meu pai não era uma coisa que fazia por causa de um
senso de dever e medo. Era feito por amor, pois ela o adorava verdadeira
e completamente.
Portanto, no dia em que a esposa número sete veio para casa, ma-
mãe assistiu com tristeza conforme a procissão de casamento percorreu
o vilarejo. Ficou em pé no terraço ao lado de uma criada que moía fari-
nha com cuia e pilão gigantes de madeira. Essa tarefa não cabia à mamãe
porque era a senhora da casa. Mas, naquele dia, pegou o pilão e bateu
contra a cuia de madeira com fúria, engolindo o choro. A autopiedade,
mesmo em um dia como aquele, não era um luxo ao qual podia se per-
mitir. Era responsável pelo preparo do banquete da nova esposa e tinha
de garantir que a primeira refeição da jovem naquele lar tivesse os me-
lhores aperitivos e guloseimas, dignos do status do lar de Abdul Rah-
man. Se não preparasse um banquete delicioso, ele ficaria com raiva.
No entanto, havia uma parte da cerimônia que era só dela. Como
esposa principal, tinha de receber os convidados e colocar o punho fir-
memente em cima da cabeça da nova esposa para mostrar sua superio-
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ridade e a submissão da outra, na posição de esposa na escala mais baixa.
Protegida pelos portões da hooli, mamãe observou três mulheres — a
mãe, a noiva e sua irmã — receberem ajuda para descer dos cavalos.
Removeram as burcas, e a beleza das duas jovens ficou à mostra para
que todos vissem. Ambas tinham cabelos compridos e negros até a cin-
tura. Mamãe colocou o punho com firmeza e calma na cabeça da mu-
lher, que ficou surpresa. Papai tossiu e riu, e a outra menina ficou cora-
da de constrangimento. Minha mãe escolheu a mulher errada e colocou
o punho na cabeça da irmã. Tapou a boca, consternada, mas já era tar-
de, os convidados já haviam entrado para começar o banquete. Sua
única oportunidade de mostrar oficialmente para essa jovem quem
mandava naquela casa foi arruinada.
Agora, 13 meses depois, mamãe dava à luz em uma cabana remota
na montanha. Sofrendo pela falta de atenção do homem que amava,
estava sozinha e infeliz. A jovem esposa tinha dado à luz um menino
três meses antes, um garotinho saudável e saltitante chamado Ennayat.
Tinha olhos lindos, grandes como dois pires. Mamãe não queria mais
filhos e sabia que aquele seria o último. Durante a gravidez toda, ficou
enjoada, pálida e exausta. Seu corpo simplesmente sucumbiu à geração
de uma criança. A mãe de Ennayat, por outro lado, ficou reluzente e
ainda mais linda com a alegria da primeira gravidez. Seus seios ficaram
firmes e as bochechas, coradas.
No sexto mês de sua própria gravidez, mamãe ajudou a trazer En-
nayat ao mundo. Quando seus pulmões se encheram pela primeira vez
e ele anunciou sua chegada com um berro alto, Bibi jan abraçou a bar-
riga e rezou em silêncio para que também desse à luz um menino. Era
sua chance de retomar a atenção de meu pai. Na cultura do nosso vila-
rejo, as meninas eram consideradas um nada, algo sem valor. Até hoje as
mulheres rezam para ter filhos homens porque apenas eles dão status e
alegram os maridos.
Mamãe se contorceu de agonia por trinta horas. Estava quase in-
consciente quando nasci, mas tinha energia para demonstrar consterna-
ção com a notícia de que era uma menina. Quando me levaram a ela,
mamãe se virou e se recusou a me segurar. Era totalmente diferente de
Ennayat. Ele era um embrulho de saúde com bochechinhas rosadas. Eu
estava azul, cheia de manchas e tão pequena que mal estava formada.
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Mamãe ficou tão fraca que quase morreu após o parto. Ninguém se
importava se a menina ia sobreviver; enquanto se concentravam em
salvar minha mãe, fui enrolada em um pano e colocada do lado de fora,
sob o sol escaldante.
Fiquei lá quase um dia inteiro, berrando. Ninguém veio. Estavam
realmente esperando que a natureza fizesse seu papel e que eu morresse.
Meu rosto ficou tão severamente queimado que as cicatrizes ainda eram
visíveis na minha adolescência.
Quando ficaram com pena e me levaram para dentro, mamãe es-
tava melhor.
Surpresa por eu ter sobrevivido e horrorizada pelo estado do meu
rosto, mamãe mal conseguia respirar de tanto pavor; a frieza inicial se
transformou em instinto materno. Ela me pegou no colo e me abraçou.
Quando finalmente parei de berrar, ela choramingou em silêncio e pro-
meteu que nenhum outro mal seria feito contra mim. Sabia que, por
algum motivo, Deus escolheu que eu vivesse e que devia me amar.
Não sei por que Deus me salvou naquele dia. Ou por que me sal-
vou nas outras várias ocasiões desde então, quando eu podia ter morri-
do, mas ele me salvou.
Mas eu sei que Ele tem um propósito para mim. E sei também que
de fato me abençoou por ter me elegido a filha favorita de Bibi jan da-
quele momento em diante, forjando um laço inquebrável entre mãe e
filha.
Queridas Shuhra e Shaharzad,
Aprendi cedo como é difícil ser criança no Afeganistão,
principalmente uma menina.
As primeiras palavras que uma filha recém-nascida
geralmente escuta são as de comiseração para a mãe. “É uma
menina, uma pobre menina.” Não é exatamente um “bem-vinda
ao mundo”.
Depois, quando a menina chega na idade de ir para a escola, o
problema é receber ou não permissão para estudar. Sua família será
corajosa ou rica o suficiente para mandá-la para a escola? Quando
um irmão cresce, representa a família, e seu salário ajuda a
sustentá-la, portanto todos querem educar os filhos homens. Mas em
nossa sociedade, as meninas geralmente se casam e se juntam à
família do marido, então várias pessoas não veem um motivo para
educá-las.
Quando a menina faz 12 anos, parentes e vizinhos podem
começar a fazer comentários sobre por que ainda não se casou.
“Alguém pediu sua mão em casamento?” “Tem alguém pronto para
se casar com ela?” “Talvez não seja uma boa menina, por isso
ninguém quer se casar com ela.”
Se a família não se importa com fofocas e deixa que a menina
escolha com quem vai ser casar quando fizer 16 anos, a idade
mínima legal para o matrimônio — ou se concorda com a escolha
feita pelos pais —, então pelo menos em parte vai ter uma vida
feliz.
Mas se a família está sob pressão financeira, dá ouvidos ao
falatório e casa a filha antes dos 15, essa garotinha que ouviu o
“pobre menina” no nascimento vai se tornar mãe. E se dá à luz uma
menina, a filha vai escutar as mesmas palavras, “pobre menina”, no
nascimento. Isso se repete para as filhas das filhas e para suas filhas.