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  • HISTRIA DA CARDIOLOGIA

    O Significado Simblico do Corao e o Lado Humano

    da Medicina

    Celmo Celeno Porto

    Trechos da Introduo da obra DOENAS DO CORAO: Preveno e Tratamento 1a. Edio de autoria de Celmo Celeno Porto 1998 Editora Guanabara Koogan

    Disponvel em : http://publicacoes.cardiol.br/caminhos/02

    Esta inusitada introduo tem um claro objetivo: chamar a ateno para o fato de que a medicina moderna no pode ser reduzida a uma profisso tcnica. necessrio revalorizar seu lado humano, e nada melhor para isso do que dar destaque ao significado simblico do corao.

    Ver o paciente da maneira mais ampla possvel o grande desafio do mdico moderno, no ficando restrito aos grficos e imagens que os aparelhos constroem para ele. Deste modo, inclusive o significado simblico do corao no pode ser menosprezado, porque atravs dele que os aspectos emocionais e culturais, sempre presentes nas doenas cardiovasculares, podem ser mais bem compreendidos.

    Os conhecimentos tcnicos atuais em breve estaro superados, enquanto os fenmenos culturais que vm ocorrendo ao longo da histria da humanidade acompanharo o homem enquanto ele existir, influenciando na sade e na doena.

    A medicina do futuro a que faz a sntese de todos os conhecimentos, conciliando a tcnica com o lado humano, aqui representado no pelo corao anatmico, simples bomba propulsora da corrente sangunea, mas pelo significado simblico adquirido em nossa civilizao.

    O significado simblico do corao no uma criao de pintores, poetas ou escritores, mas sim um arqutipo espcie de parte herdada da mente que habita nosso inconsciente e influi na nossa maneira de ver os acontecimentos, principalmente as doenas que pem em risco nossa vida (Jung, 1978; Clarke, 1992).

    Nasceu em pocas remotas e est presente em diferentes culturas, em inmeros mitos e manifestaes (Lewinsohn; Nager, 1993; Helman, 1994).

    Em uma caverna de Oviedo, na Espanha, denominada El Pindal, h um mamute retratado com um corao pinta do em seu centro, que data de 15.000 anos antes de Cristo (Fig. I.1) (Lyons, 1997).

  • O homem que l habitava, ao reproduzir o corao daquele animal, estava por certo a consider-lo como o "centro da vida", local que deveria atingir com sua lana para abat-lo. Se desejarmos fazer uma bela comparao, podemos colocar ao lado da silhueta do mamute a obra-prima de Matisse A queda de caro pintada em 1947.(Fig. I.2).

    Em ambas as obras, o corao o rgo que mereceu figurar no centro da composio pictrica, representado quase da mesma maneira, apenas insinuando sua forma anatmica, deixando entrever sua importncia, responsvel que pela circulao do sangue ou da energia vital.

    Tal como fez o annimo artista da era paleoltica, o nico rgo representado por Matisse na figura que fundiu um homem e um pssaro foi o corao, a indicar que nele estava o "centro vital" da figura mitolgica.

    As Origens do Smbolo do Amor

    Esse smbolo que at hoje representado por uma seta trespassando um corao, surgiu na ndia h cerca de 6.000 anos. L encontramos a figura de um jovem lanando uma seta nos coraes de Shiva (Deus Masculino) e de Shakti (Deusa do Amor). Este mesmo smbolo renasceu na Grcia 4.000 anos depois, com o nome de Cupido, que atravessou os sculos chegando at ns, caracterizando o corao como a "sede do

  • amor". Nos troncos de rvores, nos cadernos juvenis, nos cartes postais continua presente o corao trespassado por uma seta, indicando que ainda o consideramos a sede do amor.

    Se buscarmos a vertente religiosa, componente importante do inconsciente coletivo de todos os povos, vamos encontrar na Idade Mdia, entre os anos 1100 e 1250, o surgimento do culto ao corao de Jesus e de Maria, transferindo para este rgo o "local onde nasce e vive a f em Deus".

    Como se v na figura nascida no ano 1100 e preservada no Mosteiro da Visitao em Turim, na Itlia, a interpretao catlica juntou ao corao, em sua forma simblica, a coroa de espinhos que o circunda, as lanas que o trespassam, a cruz que emerge dele e as chamas da f em Jesus Cristo.

    Na mesma linha, o corao de Maria, me de Cristo, comeou a ser venerado, no sculo XVII, atravs de So Jos Eudes. Mas, em vez da coroa de espinhos, passou a circundar o corao de Maria uma coroa de rosas.

    Na cultura crist medieval a coroa de espinhos retrata o mito do heri sacrificado, lembrando a humilhao, o martrio e a crucificao, enquanto a coroa de rosas simboliza a pureza e a aceitao (Ramos, 1993).

    Estes smbolos permanecem at hoje. Em muitas casas costuma-se ter na parede principal da sala de jantar, ao lado da Santa Ceia, as imagens do Sagrado Corao de Jesus e do Sagrado Corao de Maria.

    Fato interessante, muito significativo do ponto de vista do simbolismo do corao, o ex-voto, datado de 1770, que se encontra na igreja de Lichtental, na Alemanha. Pode-se ver nele no apenas a forma simblica, mas o corao anatmico com a aorta pulmonar e a rvore coronria perfeitamente representadas.

  • Se incursionarmos em outras civilizaes, vamos ver que a tradio do sacrifcio do corao era comum nos rituais religiosos entre os habitantes do Mxico e da Amrica Central.

    Para que o Deus Quetzolcoatl o Deus Sol pudesse vencer sua batalha diria contra a Lua e as 400 estrelas, sobrepujando a escurido, tinha de ser alimentado continuamente com a comida mais sagrada: o corao e o sangue humano. A abertura do trax com um golpe rpido e preciso com uma faca de pedra, para a retirada do corao ainda pulsando e banhado de sangue, era o ponto culminante do ritual que se repetia todas as vezes que abatiam fenmenos colocando os astecas em risco, tais como terremotos e tempestades.

    A fuso do significado simblico com os padecimentos provocados pelas doenas do corao era inevitvel.

    Alimentada por mitos, cultos religiosos, smbolos afetivos, incluindo o que temos de mais importante na vida o amor, a f, a prpria sobrevivncia no h porque estranhar a estreita relao entre os distrbios emocionais e as doenas cardacas (Groddeck, 1969; Landy, 1977; Helman, 1981).

    Se tomarmos a clssica figura do Atlas de Netter (1987), que procurou caracterizar o carter constritivo da dor isqumica, e a compararmos com o gesto do homem que sente no corao a dor da separao, na tela de Munch, de 1896, exatamente com o ttulo de "A Separao", podemos ver como so semelhantes os gestos e, talvez, o prprio sofrimento. Um provocado por isquemia miocrdica e outro pela perda da amada (Figs. I.9 e I.10).

    De uma maneira muito clara compreendi o significado simblico do corao na minha prtica mdica, quando um paciente portador de bloqueio atrioventricular total de etiologia chagsica voltou ao meu consultrio dois meses aps o implante de um marcapasso artificial, dizendo "Doutor, quero que retire este aparelho porque no estou agentando a dor de viver com o corao amarrado!" Percebendo que suas palavras traduziam um verdadeiro sofrimento e na tentativa de compreend-lo melhor, dei-lhe uma caneta e uma folha de papel e pedi que me mostrasse em um desenho como sentia o seu corao. Sem titubear, delineou o corao simblico, com um relgio ao lado, do qual tirou um "fio" que foi "enrolando" no corao (Fig. I.11). Logo a seguir, pedi ao cirurgio que realizou o implante do marcapasso para me mostrar como explicava tal procedimento ao paciente. De uma maneira rpida e objetiva o colega fez um crculo, um gerador de estmulos, do qual nascia um fio cuja ponta (em forma de seta) ia se fixar dentro de uma cavidade (o corao). E explicava: "O marcapasso um aparelho muito simples. Tem um gerador do tamanho de um relgio. Dele sai um fio que vai at o corao, onde d um pequeno choque, fazendo o corao bater certinho" (Fig. I.11).

  • O paciente partiu daquele inocente esquema e o interpretou culturalmente, transformando o gerador em um relgio de verdade que marca o passar do tempo, ou seja, a vida. O crculo que representava a cavidade ventricular tomou a forma do corao simblico e o fio mudou o trajeto, simples na explicao do cirurgio, mas que na compreenso do paciente, passou a ser um arame que envolvia (amarrava!) o corao.

    Compreendi claramente o sofrimento do paciente e mais ainda o lado humano da medicina.

    melhor sntese que conheo da fuso do corao anatmico com seu significado simblico o bico-de-pena colorido de Michael Graf. Como se pode ver em um corao anatomicamente bem feito, ele incluiu, alm de relgios e manmetros indicadores dos fenmenos rtmicos e pressricos, um homem e uma mulher, rostos humanos, flores, borboletas, sol, vboras e um sem-nmerode figuras abstratas. Tudo isso em um cenrio surrealista a representar coisas reais e imaginrias, realidades e sonhos, tal como a vida de todos ns. As doenas do corao tambm despertam medos, fantasias, desfazem sonhos, modificam a vida interior de quem as sofre.

    Na verdade, o paciente tudo isso na prtica de todos os mdicos. Se estivermos atentos a todos estes aspectos, nosso trabalho vai adquirindo caractersticas que recolocam nossa profisso no lugar de honra que sempre teve no corao de nossos pacientes.

    Para finalizar e acentuar ainda mais o inusitado desta introduo, gostaria de ler o famoso poema "Para Ser Grande", de Fernando Pessoa, de duas maneiras, tal como ele o fez e o que o poema pode significar.

  • Para ser grande, s inteiro: nada Teu exagera ou exclui: S todo em cada coisa. Pe quanto s No mnimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda No mnimo que fazes Brilha, porque alta vive.

    Para ser mdico, s inteiro: nada Teu exagera ou exclui (Nem o consciente, nem o inconsciente) Nem o racional, nem o emocional) S todo em cada coisa. Pe quanto s (Seja o exame clnico ou um transplante cardaco) Assim em cada paciente a medicina toda Brilha, porque alta vive.

    Referncias Bibliogrficas

    1. Clarke, J.J.: In Search of Jung. Historical and Philosophical Enquiries. Routledge, London, 1992.

    2. Groddeck, G.: La Maladie, LArt e Le Symbole. Ed. Gallimard, Pavi, 1969.

    3. Helman, C.G.: Cultura, Sade e Doena. 2.a ed., Artes Mdicas, Porto Alegre, 1994.

    4. Helman, J.: The Thought of the Heart. Spring Publ., Dallas, 1981.

    5. Jung, C.G.: Man and his symbols. Pan Books, London, 1978.

    6. Landy, D.: Culture, Disease and Healing. MacMillan Publ., New York, 1977.

    7. Lewinsohn, R.: Histria Universal do Corao. Ed. Livros do Brasil, Lisboa, s/data.

    8. Lyons, A.S., Petrucelli, H.: Histria da Medicina. Editora Manole, So Paulo, 1997.

    9. Nager, F.: The Mitology of the Heart. Ed. Roche, Basel, 1993.

    10. Netter, F.H.: The Ciba Collection of Medical Illustrations. 1987.

    11. Pessoa, F.: O Eu Profundo e os Outros Eus. 19.a ed., Ed. Nova Fronteira, 1980.

    12. Ramos, D.G.: A Psique do Corao. Ed. Cultrix, 1990.