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Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do Esprito Santo

N

o so poucas as transformaes no campo da arte no decorrer do sculo XX. Neste sentido que se aponta para a necessidade de verificao das experimentaes artsticas entre Modernismos e Arte Contempornea, segundo orientaes tericas que determinem que, na diversidade de movimentos e tendncias, os postulados e rigidos pela histria da arte sejam reexaminados. Trabalhar com as obras de alguns poucos artistas poderia ser insuficiente. De outra forma, buscar uma abrangente produo atravs de uma seleo numerosa e diversificada de artistas seria dispersivo e talvez no fosse concludente. As obras e artistas abordados neste trabalho mostram-se importantes para a discusso das propostas modernistas e contemporneas apresentadas, com a inteno de, na disparidade de suas pesquisas, discutir as particularidades de suas produes, suas formaes e suas influncias, assim como aquilo que os aproxima. Deve-se observar a familiaridade nas obras com novas propostas, com a busca de uma nova condio da produo artstica em relao s tendncias internacionais, mas sem perder o contato com o nosso meio, no intuito de levantar questes pertinentes s prticas artsticas no Brasil, formao de nossos artistas e a estrutura esttica e ideolgica de suas obras. Parte-se deste conjunto de questes para fechar um crculo de experincias que reposicionem o sujeito, autor, em suas relaes com a obra, o pblico e o meio artstico no sculo XX e incio do sculo XXI.

UniVersidade Federal do esprito santo ncleo de educao aberta e a distncia

Histria da arte 4

modernismos e arte contemporneaAlexandre Emerick Neves

Vitria2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTOPresidente da Repblica Dilma Rousseff Ministro da Educao Fernando Haddad Secretrio de Educao a Distncia Carlos Eduardo Bielschowsky DED - Diretoria de Educao a Distncia Sistema Universidade Aberta do Brasil Programa Pr-Licenciatura Joo Carlos Teatini de Souza Clmaco Reitor Prof. Reinaldo Centoducatte Pr-Reitor de Ensino de Graduao Profa. Maria Auxiliadora Corassa Diretor-Presidente do Ncleo de Educao Aberta e a Distncia - ne@ad Prof. Reinaldo Centoducatte Coordenadora do Sistema Universidade Aberta do Brasil na UFES Prof Maria Jos Campos Rodrigues Direo Administrativa do Ncleo de Educao Aberta e a Distncia - ne@ad Prof Maria Jos Campos Rodrigues Diretor Pedaggico do ne@ad Julio Francelino Ferreira Filho Diretora do Centro de Artes Cristina Engel de Alvarez Coordenao do Curso de Artes Visuais Licenciatura na Modalidade a Distncia Maria Gorete Dadalto Gonalves Reviso de Contedo Maria Regina Rodrigues Reviso Ortogrfica Jlio Francelino Ferreira Filho Design Grfico LDI Laboratrio de Design Instrucional ne@ad Av. Fernando Ferrari, n.514 CEP 29075-910, Goiabeiras - Vitria - ES (27)4009-2208

Laboratrio de Design Intrucional LDI coordenao Heliana Pacheco Jos Otavio Lobo Name Ricardo Esteves Gerncia Susllem Tonani Editorao Rayza Mucun Paiva Marianna Schmidt Imagens Banco de Imagens Fotografia Marianna Schmidt Capa Rayza Mucun Paiva Marianna Schmidt Impresso Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

N518h

Neves, Alexandre Emerick. Histria da arte 4 / Alexandre Emerick Neves. - Vitria : UFES, Ncleo de Educao Aberta e a Distncia, 2011. 206 p. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 1. Arte - Histria. I. Ttulo. CDU: 7(091)

A reproduo de imagens de obras em (nesta) obra tem o carter pedaggico e cientifico, amparado pelos limites do direito de autor no art. 46 da Lei no. 9610/1998, entre elas as previstas no inciso III (a citao em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicao, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crtica ou polmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra), sendo toda reproduo realizada com amparo legal do regime geral de direito de autor no Brasil. Copyright 2010. Todos os direitos desta edio esto reservados ao ne@ad. Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordenao Acadmica do Curso de Licenciatura em Artes Visuais, na modalidade a distncia.

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sumrio6 Apresentao

Modernismos11 13 19 29 35 37 42 49 53 59 63 Um incio de conversa: o novo como valor Arte e expresso: Fauvismo e Expressionismo Esttica funcionalista: Cubismo e Futurismo Revoluo e sonho: Dadasmo e Surrealismo Para alm do cubo-futurismo: a ebulio modernista em Paris Ecloso e consolidao do Modernismo no Brasil Formalismos abstracionistas Vanguarda e Revoluo: a Vanguarda Russa entre o Construtivismo e o Suprematismo De Paris para Nova York: Expressionismo Abstrato O Informalismo europeu O esprito construtivo no Brasil

Arte Contempornea71 75 83 87 97 99 104 113 126 134 143 149 151 155 163 166 Um reincio de conversa: outros critrios Os anos de 1960: efervescncia da dcada A figura tona e o retorno do real Mdia, massa, consumo: a Pop Arte e o mundo de imagens Novo Realismo europeu O cenrio brasileiro: mobilizao em Opinies e Propostas Nova Objetividade Brasileira: tomada geral da vanguarda no Brasil Arte e seu lugar: ativao do espao do mundo Arte do corpo, tempo e espao presentes Esvaziamento plstico e desmaterializao da obra A grande tela Arte e tecnologia: aproximaes Sensrio-motor, sistemas e mecanismos: Op Art e Arte Cintica Fotografia e arte O tempo, enfim, representado: Filme de artista Imagem presente, durao e instantaneidade: Videoarte

190 Concluso

apresentaoMenos preocupado com direcionamentos cronolgicos e construes historicistas, e mais atento a condues tericas em aproximaes conceituais, este livro busca acompanhar a caracterstica expanso do sculo XX com fora centrpeta em direo ao sculo XIX. Prope-se, portanto, um itinerrio sinuoso com algumas providenciais ancoragens de maior acuidade para lembrar certos nomes e eventos, analisar obras e comentar ideias basilares para as discusses suscitadas. Convictos da necessidade de acompanhar as fugidias transformaes do mundo industrializado, os artistas de mpeto arrojado compem as vanguardas europeias do incio do sculo XX. Os movimentos surgidos desse esprito programaticamente moderno foram chamados de Modernismos e alcanaram pleno desdobramento com as tendncias abstracionistas, o que se pretende debater de modo sucinto, porm objetivo, na primeira parte deste livro. As restries tcnicas e de formatao impostas a este estudo o induziu nfase na abordagem de pinturas e esculturas, tornando escassos, por vezes ausentes, os exemplos em gravura, cermica, desenho e arquitetura.|8| Apresentao

Adotando o nome de Arte Contempornea, a segunda parte rene as tendncias e os grupos de artistas que trabalham, a partir de meados do sculo XX, na consolidao das transformaes no campo da arte, mas, sem dvidas, admitindo outros critrios para a elaborao, exposio, assimilao e circulao das obras de arte, para alm dos consolidados na Histria da Arte. Junto s categorias tradicionais as colagens, assemblages, objetos, instalaes e vdeos alcanam plena aceitao no cenrio artstico, concomitantemente ao desenvolvimento de novos conceitos, temas e teorias e assimilao de tcnicas, materiais e estratgias, ampliando os limites da atuao artstica. Com isso, a arte trabalha com as aproximaes e dessemelhanas entre o espao expositivo do museu e o espao do mundo, dos significativos fatos da Histria e da vulgaridade dos eventos cotidianos, atenuando as zonas fronteirias entre as manifestaes artsticas e as demais atividades humanas.

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Modernismos

modernismos

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Modernismos

Um incio de conversa: o novo como valorCom os avanos artsticos no Renascimento, em particular o uso da perspectiva por Brunelleschi, o espao foi concebido como entidade mensurvel, e, com a teoria das propores, a escala humana passava a reg-lo. Embora o filsofo e historiador francs Hubert Damisch realce que a perspectiva no tenha tido consequncias to intensas para a arte do Renascimento quanto para matemtica1, sendo apenas uma grande inovao tcnica de execuo da pintura, esta e outras inovaes compartilham e contribuem com o momento de ascenso da arte como um campo de conhecimento, isso pela natureza mental do trabalho artstico que intensifica suas bases tericas, gerando um meio de investigao formador de conhecimento, pautado na realidade visual ou histrica, como atestam os textos inaugurais de Alberti e Leonardo. o momento de formulao daquilo que passaria definitivamente a ser o sistema de representao do espao, e que dominaria a arte ocidental desde ento. Para o socilogo da arte Pierre Francastel, a arte ocidental se tornou uma arte essencialmente do espao2. A viso que dava ao humano a posio central e o toma como medida do universo expressa pelo domnio do espao na obra de arte. Movido pelos ideais modernos no sculo XIX, o artista passa a observar as coisas comuns do seu tempo. Com a clebre pintura A Morte de Marat, de 1873, o pintor neoclssico Jacques Louis David j conseguia uma imagem que tratava a carne da figura de modo mais franco, sem a transformar em mrmore, mostrando-a no imediato registro do ocorrido, a saber, o assassinato de um lder revolucionrio, um corpo que guardava ainda algum resqucio de vida, retratado na situao normal em que se banhava. Alm disso, com a imagem do martrio2 1

Ernest Van Alphen, Lances de Hubert Damisch, in: Arte e Ensaios n 13, p. 98.

Pierre Francastel, Arte figurativa, passim.

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do lder o artista se mostra atento no somente aos valorosos eventos do passado ou usa de alegorias, mas dirige-se histria de seu tempo, trata a pintura como atualidade. Tido como um pioneiro da crtica de arte ainda no sculo XIX, o poeta francs Charles Baudelaire faz do elogio ao pintor Constantin Guys um louvor ao moderno. Em lugar do culto ao passado, o presente como referncia anuncia a intensa busca pelo novo. A representao do passado no exige pressa, o artista se atm pacientemente aos detalhes. O presente como referncia fugidio, escapa com facilidade, exige novas tcnicas, solicita a espontaneidade do esboo. Sendo j vencida a busca do passado, e tendo no presente aspectos do imediato que se tornar passado, o moderno adquire um aspecto negativo, medida que o que se colocaria como moderno teria logo que ser negado. Seguindo as proposies baudelaireanas, o professor francs de Literatura Antoine Compagnon v a histria da arte como histria das obras que foram3

Antoine Compagnon, Os cinco paradoxos da modernidade, p. 8.

modernas em seu tempo3. Esta relao com o presente aponta para a busca da novidade, o fascnio do novo. Mesmo se artistas da primeira gerao modernista como Edouard Manet ou os impressionistas no estivessem preocupados com o novo, mas apenas com o presente, como sugere Compagnon, suas atitudes desencadeariam o mpeto modernista que indica o novo como valor.

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Arte e expresso: Fauvismo e ExpressionismoO termo Expressionismo aparece de modo geral como um indicador de que certa arte tem nfase no contedo expressivo da forma, tornando patentes os aspectos subjetivos expressos pela imagem. Como antecedentes distantes, podemos lembrar A Crucificao pintada por Mathias Grnewald entre 1512 e 1516, a terribilit do Juzo Final de Michelangelo na Capela Sistina, ainda a srie de Pinturas Negras, pintadas pelo espanhol Francisco de Goya, entre 1819 e 1823, e a impactante pintura A Balsa da Medusa, de 1818-19, de Thodore Gricault. Mais imediatos so os casos de Van Gogh e a identificao de sua arte com a prpria existncia, o humor sombrio de James Ensor e os temas existencialistas das pinturas de Edward Munch. Mas o termo Expressionismo sedimentou-se na Histria da Arte para nomear uma tendncia da arte alem do incio do sculo XX, embora Giulio Carlo Argan visse o Expressionismo como um fenmeno europeu mais amplo, abrangendo simultaneamente o movimento dos Fauves (Feras) na Frana e o movimento alemo Die Brcke (A Ponte), ambos formados em 1905. O pensamento do filsofo francs Henri Bergson fomenta a criao dos fauvistas, assim como as ideias do filsofo alemo Friedrich Nietzsche incitam os jovens artistas de seu pas. Bergson v a conscincia como tomada de posio sobre a realidade, uma ativa relao entre sujeito e objeto, pois perceber agir, da os fauvistas trabalharem as imagens das coisas como comunicao da atividade da conscincia sobre o mundo. Para Nietzsche, a conscincia tambm relao direta com a realidade, portanto, existncia, mas a realidade histrica exige uma vontade de existir livre da opresso da prpria realidade histrica, do enquadramento do presente e dos traumas do passado.

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O Fauvismo se desenvolve notadamente nas obras dos pintores Henri Matisse, Albert Marquet, Kees van Dongen, Raoul Dufy, Andr Derain, Otto Friesz, George Braque e Maurice Vlaminck. Imerso no sinuoso percurso da pintura modernista de busca de uma estrutura pictrica autnoma, particularmente em relao s contribuies do Neo-Impresionismo e de Paul Czanne, e entendendo que a atividade artstica engendra o domnio de uma linguagem especfica, o Fauvismo aprofunda-se no carter investigativo da funo plstico-construtiva da cor, entendida como elemento estrutural da viso, e com isso, procura solucionar o dualismo entre sensao (cor) e construo (forma, volume e espao). O Fauvismo pode ser considerado em oposio ao decorativismo vazio do estilo Art Nouveau, posicionando-se entre a estrutura do real que impressiona a retina e a realidade interior do sujeito que apreende a realidade visual. Somente uma das maiores personalidades artsticas do sculo XX, Matisse, poderia criar uma obra como A dana, de 1910. Uma grande composio de formas e cores sintticas constri uma imagem rtmica e envolvente. A atmosfera intuitiva advm de uma pintura to intensa quanto simples, e que explora a sensibilidade humana na busca de harmonias universais. Assim, as figuras sinuosas de cores vibrantes pairam sobre os serenos campos cromticos verdes e azuis. Em relao ao Expressionismo, deve-se levar em considerao o tratado esttico de Wilhelm Worringer, Abstraktion und Einfhlung (Abstrao e empatia), de 1907, que pertence escola psicolgica alem do incio do sculo XX. Worringer combina os dois essenciais princpios psicolgicos que enlaam a criao artstica, precisamente a abstrao e aquilo que veio a ser precariamente traduzido por empatia. Esses princpios podem ser discutidos em obras como Marcella, de 1910, pois nela Ernst Ludwig Kirchner apresenta alguns elementos formais que, de um|16| Modernismos

modo geral, viriam a se identificar com a plstica expressionista, figuras alongadas e distorcidas, linhas angulosas, traos incisivos e imprecisos e colorido vigoroso e arbitrrio, o que, de certa forma, limitou o entendimento da esttica expressionista a uma apreciao formal. Mas o que uma pintura como essa de Kirchner revela, de fato, que sua estrutura plstica est a servio de uma expressividade que desequilibra o conjunto, desfigura a personagem e desgasta as linhas, e que a realidade visual dos motivos foi praticamente implodida para dar vistas a uma realidade interior, no da figura retratada ou do autor da imagem, mas da confluncia das subjetividades do retratado e do retratante, que deve ser dada na conscincia do espectador. Em outras palavras, o artista projeta suas angstias e paixes sobre a modelo e as coisas que as retrovertem para o espectador em adoo direta do processo de einflung, para o qual a obra de arte um meio de identificao do eu com o mundo.Henri Matisse, A dana, 1910

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Ernst Ludwig Kirchner, Marcella, 1910

Para usar uma linguagem mais semiolgica, podemos dizer que enquanto o Fauvismo basicamente se concentra no significante o Expressionismo concentra-se no significado. Com isso, a deformao se d a partir do contedo que se quer exprimir. O quadro abaixo identifica de modo reduzido o embate entre a expresso do significado no Expressionismo e impresso do significante no Fauvismo:|18| Modernismos

Impresso ExpressoSensitivo Emotivo Do exterior para o interior Do interior para o exterior Impresso do objeto na conscincia Projeo da conscincia sobre o objeto Realidade como campo de conhecimento Realidade como campo de ao Gesto cognitivo Gesto existencialista

Contrrios tradio da representao realista, e mesmo ao sensorialismo impressionista, no grupo de jovens artistas reunidos na Alemanha, em 1905, adotando o nome Die Brke, encontram-se Karl SchmidtRottluff, Ernest Ludwig Kirchner, Erich Heckel, Flitz Bleyl. Em 1906, aderem ao grupo Emil Nolde, Max Pechstein, Axel Gallen, Cuno Amiet, mais tarde, em 1908, a vez de Kees van Dongen se juntar ao grupo e, em 1910, Otto Muller. Esses artistas lanaram seus ideais de cunho revolucionrio em Programm em 1906. Engajada, a arte no capta, mas cria a realidade (anti-impressionista) incidindo sobre a realidade histrica e suas contradies, por vezes, alcanando a dimenso de crnica da vida cotidiana. Os signos assumem significado no ato artstico por meio da tcnica de pinceladas ligeiras, gestos incisivos, aspecto de inacabado, muitas vezes grosseiro, apresentando certo Primitivismo contra o belo estabelecido, levando deformao ou distoro subjetiva dos objetos, assim como operam a atribuio de significado pela cor que no apenas preenchem ou constroem as formas e figuras, mas carregam-nas de aspectos subjetivos. Ainda de estirpe expressionista, porm menos engajado que A Ponte, o grupo Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), em 1911 rene Vassili Kandinsky, Franz Marc, Gabriele Mnter, August Macke, Alexei von Jawlensky e Paul Klee, e apresenta propostas estticas de inclinao no figurativa na explorao do contedo semntico das formas, naHistria da Arte 4 |19|

busca da espontaneidade perdida pela influncia do gesto mecanicista na sociedade industrializada, uma retomada espiritual contra a extremada racionalidade de inclinao clssica. O esprito do Expressionismo alemo do incio do sculo XX reverbera ainda em 1913 com a tendncia conhecida como Nova Objetividade, contando com o empenho de Max Beckmann, Otto Dix e George Grosz para aprofundar a crtica poltica e social na Alemanha desgastada pelo conflito mundial. Suas pinturas partem de imagens diretas da realidade urbana do ps-guerra, uma reao cnica contra a boa pintura de esttica idealizante.

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Modernismos

Esttica funcionalista: Cubismo e FuturismoEmbora no se possa estabelecer uma linha evolutiva coesa, os desdobramentos das relaes entre forma e espao na pintura asseveram-se na pesquisa plstica impressionista e tomam novos rumos nas inquietantes investigaes de Paul Czanne, mas o rompimento definitivo com o espao gerado pela perspectiva renascentista - monocular, fixa e instantnea - vem com o Cubismo, e, a partir da, o compromisso da obra desvia-se da representao do espao real para a apresentao real do espao plstico, sendo a esttica cubista uma investigao sobre a estrutura funcional da obra de arte. Em 1907, Pablo Picasso pinta Les Demoiselles dAvignon (As senhoritas de Avignon), sua obra de ruptura, para muitos a obra inaugural do Cubismo, e que, sem dvidas, apresenta elementos revolucionrios para a arte ocidental, como a referncia direta estrutura formal de uma mscara africana no rosto de uma das senhoritas. Acontece que Georges Braque estava na mesma poca se dedicando exaustivamente a estudos baseados na obra de Czanne que culminariam na srie de pinturas de paisagens de LEstaque. Foi de grande importncia a primeira exposio retrospectiva de Czanne, em outubro de 1907, com 56 quadros, organizada pela Socit du Salon d`Automne. A srie de Braque foi exposta na galeria Kahnweiler de Paris, em 1908, ocasio na qual o crtico francs Louis Vauxcelles usa o termo Cubismo para se referir aos quadros de modo depreciativo, isto em funo da geometrizao das formas em suas pinturas. interessante como Braque faz uso da tcnica de passage que conduz o olhar por caminhos diversos sobre a pintura pelas mltiplas vistas em perspectivas distintas, com as quais os planos pictricos parecem atravessar-se.

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Pablo Picasso, Les Demoiselles dAvignon,1907

perceptvel, desde as obras cubistas inaugurais ou cezanneanas, a observao a algumas importantes contribuies da poca como a filosofia de Henri Bergson sobre a durao e a simultaneidade, as teorias fsicas sobre quarta dimenso e a geometria moderna no-euclidiana. Soma-se ateno aos avanos da cultura europeia o emprego de elementos trazidos das artes ditas primitivas e infantis como recusa a certos padres eruditos sedimentados na Histria da Arte.

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Modernismos

Como a primeira pesquisa de grupo surgida com o Modernismo, estabelecida pela intensa colaborao entre Picasso e Braque, o Cubismo Analtico, de 1910 a 1912, apresenta ainda certo aspecto cezanneano, sobretudo na soma de pesquisa tcnica e busca terica, pois concebe a fuso plstica entre figura e fundo com a decomposio dos objetos e do espao, mas acrescenta a justaposio de mltiplos pontos de vista como fator deflagrador da simultaneidade, como relao espao-temporal. Afastando-se de uma figurao representacional, no se deve mais perguntar obra o que significa, mas como funciona. Se os elementos formais no esto disposio da representao da realidade visvel, a cor alcana qualidades plsticas e materiais, como substncia do quadro, e assim a paleta extremamente reduzida a tons essencialmente terrosos para que prevaleam as questes formais vindas de motivos corriqueiros, particularmente com a adoo da natureza-morta como tema neutro. Para alm da ruptura com a noo de profundidade, e em consonncia com ela, o Cubismo Analtico elimina a sucesso de planos e consequentemente a diferenciao entre figura e fundo. Com o tempo espacializado na fragmentao do espao percorrido e do corpo rodeado, a vista oferecida a da confluncia entre as partes e o todo. O tempo dado como simultaneidade, mais que um corte imvel do tempo a pintura cubista oferece um corte imvel da durao, pois Bergson esclarece que a durao essencialmente uma continuidade do que no mais no que 4. No estamos nos deslocando de fato pelo espao em torno dos objetos e das pessoas, mas com a ideia de deslocamento como embate entre a realidade e a conscincia, o espao e as coisas que o habitam so expandidos e contrados, fragmentados e deformados para nos apresentar, em simultaneidade, vrios aspectos dos objetos e do ambiente condensados, de modo que o espao suprime o tempo como durao. No a figura que se esfora em mover-se,Histria da Arte 4 |23|4

Henri Bergson, Durao e simultaneidade, p. 57.

tampouco poderia ser o espao, estes so deformados pela representao do movimento do olho, o olhar como elemento dinmico potencialmente concebido pela conscincia que se tem das coisas, e no uma representao da realidade visvel. Menos o olhar retiniano que captura o movimento e a variabilidade do mundo e mais um inquieto e ativo olho-conscincia. A partir de 1910, pintores como Juan Gris, Fernand Lger e Robert Delaunay aproximam-se de Picasso e Braque, buscando no apenas dar continuidade s suas pesquisas, mas a encontrar desdobramentos segundo orientaes pessoais, e logo se tem a adeso de escultores como Raymond Duchamp-Villon, Jacques Lipchitz e Alexander Archipenko. O estilo cubista se difunde entre artistas e intelectuais pelo mundo, alcanando a dimenso de movimento, tanto que em 1912 os pintores Albert Gleizes e Jean Metzinger publicam Du Cubism, e, em 1913, a vez de Os Pintores Cubistas do poeta e crtico francs Guillaume Apollinaire, trabalho que ganha ares de manifesto, e, em 1916, foi publicado em forma de artigo O surgimento do Cubismo, do marchand e crtico Daniel-Henry Kahnweiler. Para o crtico contemporneo Yve-Alain Bois justamente Kahnweiler o nico a compreender plenamente a relao entre o Cubismo e a arte africana, o carter estrutural e formativo em Violo, obra que, em 1912, coincide com o final da fase Analtica e incio da fase Sinttica. Esta obra apresenta definitivamente uma formulao diferente da continuidade do espao plstico, continuidade que garantia que os objetos representados no se perdessem no mundo dos objetos reais. Para Bois trata-se da superao do antigo medo de ver os limites da arte ficarem indefinidos, medida que o espao real invadia o5

Yve-Alain Bois, A pintura como modelo, p. 86.

espao imaginrio da arte5. Bois afirma que o Cubismo apresenta uma ruptura definitiva com a tradio artstica ocidental, pois As senhoritas de Avignon guarda ainda certas relaes plsticas com as novidades for-

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Modernismos

mais das pesquisas de artistas ps-impressionistas, particularmente em relao ao sintetismo de Paul Gauguin. Realizado a partir de recortes de cartolina, a primeira verso do Violo consiste no primeiro papier coll de Picasso, tcnica empregada tambm por Braque. O Cubismo Sinttico, a partir de 1912, no buscava a abstrao, pois o adensamento da fragmentao trata, de fato, de um recurso para aproximar-se do objeto, uma aproximao extremada a ponto de serem aderidos s pinturas fragmentos da realidade: a colagem. Com a colagem, na qualidade de objeto, o quadro se apresenta potencialmente acolhedor aos cacos da realidade material que o cerca, a imagem rompe com o plano do quadro com o uso de materiais diversos como papis, tecidos, cordas, associados a texturas ticas como pontilhados, hachuras e tracejados, acrescidos de um novo interesse pela cor. Em sua primeira colagem, na pintura Natureza morta com cadeira de palha, de 1911-12, Picasso usa um pedao de corda como um fragmento do real, enquanto o assento em palha da cadeira , na verdade, o recorte de uma imagem impressa colada tela, acentuando o jogo entre iluso e realidade, entre objeto representado e objeto real, entre a tcnica artesanal e a tcnica industrial, entre o espao do quadro e o espao do mundo, e, por fim, entre o mundo do quadro e o quadro no mundo. Como transbordamentos da ideia da colagem, as assemblages so carregadas da ideia de antes e depois, no como transio de etapas sucessivas, mas, segundo David Sylvester, metamorfose que traz a noo do antes e depois da transformao. Diferente da colagem, que supe um suporte que receba os recortes de papel, fotografias e tecidos, ou ainda matrias e objetos, a assemblage resulta da associao de objetos inteiros ou em partes que configurem um objeto diferenciado. Sylvester afirma que, desde a colagem, o cubismo leva os materiais artsticos do refinamento para a vulgaridade, do hermtico para o trivial6. a repreHistria da Arte 46

David Sylvester, Sobre modernidade, p. 469.

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sentao de qualquer coisa feita a partir de qualquer coisa, da realidade visvel esmiuada pela conscincia do autor e apresentada fragmentada no campo pictrico com a colagem para a assemblage como uma realidade plstica construda com cacos da materialidade do mundo vasculhado pelo artista. David Sylvester acentua ainda como as assemblages cubistas tm7

David Sylvester, Sobre modernidade, p. 468.

como caracterstica trazer matria morta para vida7, inserindo o material de refugo no contexto artstico. O que perdeu sua utilidade reanimase pelo uso para fins artsticos. Para entendermos melhor este assunto, podemos lembrar que para o filsofo alemo Martin Heidegger o apetrecho ou utenslio caracteriza-se por ser funcional e esconder-se justamente em seu uso, assim uma ferramenta aparece na forma de refugo quando perde seu fim utilitrio e desaparece novamente na assemblage cubista, no em sua funcionalidade de utenslio, mas como material plstico na obra com suas propriedades intrnsecas; cor, textura, forma, volume. Isto fica claro quando, por exemplo, um guidom e um selim de

Pablo Picasso, Cabea de Touro, 1945

bicicleta tornam-se uma Cabea de touro na obra de Picasso, de 1942.

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Modernismos

Em consonncia com a ateno dos artistas cubistas s transformaes do mundo moderno, em 1909, o poeta Filippo Tommaso Marinetti publica o Manifesto Futurista no jornal parisiense Le Figaro, demonstrando o interesse em difundir as revolucionrias ideias futuristas da Itlia para o mundo, orquestrando a volta da presena italiana na arte internacional e, de certa forma, agindo contra o predomnio parisiense nas vanguardas, j que Roma e as demais cidades italianas eram lembradas pelo glorioso passado artstico e cultural. Em 1910, vm o Manifesto dos Pintores Futuristas e o Manifesto Tcnico da Pintura Futurista, consolidando sua empreitada em 1912 com a primeira exposio dos futuristas em Paris. Agressivo e negativo, o Futurismo emerge como um ataque aos valores eternos da arte e da cultura. Tendo a mquina como signo do moderno, os futuristas elegem a velocidade como smbolo do esprito do homem tecnolgico. Artistas como Carlo Carr, Umberto Boccioni, Giacomo Balla, Luigi Russolo, Giorgio Morandi e Gino Severini adotam a fragmentao cubista, mas como princpio de dinamismo. Apreendem tambm o mtodo divisionista do Neo-Impressionismo, alm de revolucionar o tradicional uso dos movimentos sequenciais e das linhas de fora. Assimilada a desconstruo do espao ilusionista e a reconstruo do espao plstico, a pintura e a escultura futurista buscam esquivar-se da estaticidade da imagem cubista. No acrescentam em sua inteireza a discusso relativa ao tempo, e sim um aspecto do dado temporal; a velocidade. o tempo sugerido pela mquina, o acelerado tempo de produo em contraponto ao artesanal, o dinamismo das cidades transpassadas pelos veculos motorizados, tudo sugerindo um fluxo temporal agitado. Mas, como no Cubismo, a imagem surge de uma unicidade composicional e, ainda que referencie a velocidade, as vrias visesHistria da Arte 4 |27| Pablo Picasso, Violo, 1912

recorrentes como nas cenas de patas de um cachorrinho caminhando apressadamente, raios luminosos fracionados em espiral, diversos momentos da passagem de um automvel esto postos lado a lado no espao plstico do quadro. Difere da estaticidade da imagem cubista por alcanar um equilbrio dinmico pela construo rtmica do espao plstico. Com o artifcio da sequncia na arte narrativa, observamos vrias cenas de um mesmo evento distribudas pela composio. Nas pinturas e esculturas futuristas, vemos a um s tempo vrios momentos de um mesmo acontecimento, retratando no o homem ou a mquina especificamente, as coisas ou o mundo em particular, mas o retrato da velocidade como aspecto de seu tempo. O Futurismo alcana uma imagem emblemtica, no com vrias figuras compondo cenas narrativas, desenvolvidas no espao em situaes temporais, mas os corpos ou um mesmo corpo apresentando movimentos consecutivos, engendrando uma s imagem. Paradoxalmente, congelando o fluxo temporal na imagem das coisas e do espao em unssono, evidencia o vertiginoso dinamismo do mundo moderno, que impressiona a retina e surpreende a conscincia. Tratando-se de trnsito pelo espao fcil lembrar-se da escultura Formas nicas na Continuidade do Espao, de 1913, de Umberto Boccioni, pois o fator determinante para o evento sugerido a velocidade operadora de uma8

Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p. 441.

sntese das anatomias do corpo e do espao8, cuja identidade assume uma forma nica. Voltando ao exemplo da pintura, o futurismo empreende a juno entre instantaneidade e pregnncia, pois o tema no o momento ou o conjunto de momentos da ao, mas a velocidade com que essa ao se desenvolve. Representar um pssaro evoluindo no ar no uma tarefa das mais difceis para um artista, mas como representar a velocidade de suas manobras em pleno voo? Em Vo de andorinhas, de 1913, Giaco-

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mo Balla parece buscar uma resposta. Uma andorinha plenamente detalhada em seus aspectos descritivos, ainda que em sequncia, no parece um recurso satisfatrio para este artista italiano de vanguarda. Para o tempo de uma narrativa, a sequncia pareceu pertinente, mas esmiuar a temporalidade chegando velocidade como motivo requer mais que a representao do espao naturalista ou a disposio sequencial dos gestos para ser plasticamente trabalhada. Na obra de Balla, o corpo condensado com o espao uma tentativa de juntar instantaneidade e pregnncia, assim como alguns traos de pinceladas so aplicados transpassando espontaneamente a composio como sugesto do percurso no espao. David Sylvester nos lembra da ideia de forma frouxa, a preocupao do pintor ps-impressionista Pierre Bonnard com a disposio dos corpos em se transformarem segundo sua relao com o espao no percurso e durao da ao. Balla nos apresenta uma massa corprea de andorinhas e espao.Giacomo Balla, Vo de Andorinhas, 1913

Histria da Arte 4

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Revoluo e sonho: Dadasmo e SurrealismoO esprito vanguardista alcana um absoluto empenho contestatrio durante a Primeira Guerra Mundial com o Dadasmo. Em 1916, em Zurique, o poeta romeno Tristan Tzara e o escritor alemo Hugo Ball fundam com a colaborao do pintor e escultor Hans Arp o Cabar Voltaire, com o intuito de reunir todos que estivessem dispostos a ironizar e a desmistificar os valores estabelecidos. O acaso, o nonsense e a ironia seriam os ingredientes para que os dadastas permanecessem sem programa. Assim surgiria o conceito de antiarte, uma atividade livre e questionadora sem a responsabilidade de propor qualquer novo caminho. Aos primeiros dadastas logo se uniram os alemes Max Ernest, que migraria para o Surrealismo, e Kurt Schwitters, que viria a se tornar um dos maiores expoentes dadastas com suas colagens intituladas Merz. Cubista, a colagem foi transformada em meio nobre de expresso9, como foi definida por Mario Pedrosa. A colagem cubista revoluciona a pintura, mas ainda como uma revoluo positiva, no nega a pintura, antes a recupera, propondo-lhe uma possibilidade de sobrevida. O Cubismo fez da colagem um acrscimo matria pictrica. Para Maurice Raynal somente com o Dadasmo que a tcnica da colagem deixa as aspiraes plsticas e seu vulto se impe como elemento destruidor da pintura10. A pesquisa de Schwitters com a colagem culmina com o Merzbau: sua imensa assemblage construda durante dez anos, de 1923 a 1932, com coisas pinadas de sua vida diria sem qualquer lgica associativa, como testemunho de uma existncia sem necessariamente constituir uma histria de vida. Simultaneamente, em Nova York, renem-se o pintor e fotgrafo Man Ray e os pintores Marcel Duchamp e Francis Picabia, que, junto ao fotgrafo e galerista Alfred Stieglitz editam a revista 291, tratandoHistria da Arte 4 Na pgina anterior, Umberto Boccioni, Formas nicas na Continuidade do Espao, 1913 |31|10 9

Mrio Pedrosa, Colagens cubistas, colagens dadastas, in: Otlia Arantes. (Org.). Modernidade c e l, p. 243.

Mrio Pedrosa, Colagens cubistas, colagens dadastas, in: Otlia Arantes. (Org.). Modernidade c e l, p. 243.

de assuntos pertinentes ao esprito dadasta, como a crise da cultura ocidental com as guerras e a posio contrria ao racionalismo cubista e s demais continuidades vanguardistas. Falando de suas influncias, impressionado com a literatura de Raymond Roussel em Impresses da frica, Marcel Duchamp afirma que era muito melhor ser influenciado por um escritor do que por outro11

Janis Mink, Marcel Duchamp: arte como contra-ataque, p. 29.

pintor11. Mas, deixando claro suas intenes de ruptura com a arte histrica, esclarece que no contato com a pintura modernista importante realmente foi a descoberta de Matisse12. Influncia que pode ser medida observando-se a composio de Matisse que privilegia a disposio em crculo das figuras em A alegria de viver, de 1905-06, recurso com o qual o artista alcana plena feio com A dana II, de 1910, consagrando o movimento como tema, e, mais que isso, a harmonia. Uma obra como Sonata, uma pintura de Duchamp de 1911, traz a proximidade com o dinamismo da composio apresentada nas obras do mestre modernista.

Marcel Duchamp, Engenheiro do tempo perdido: entrevista a Pierre Cabanne, p. 3412

Pierre Cabanne, Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido, p. 56-57.13

Em conversa com Pierre Cabanne13, Duchamp esclarece a influncia do cinema e certa mecanizao do gesto em Nu descendo uma escada n 2, de 1912-16. Duchamp apresenta uma ao corriqueira de movimento repetitivo, mas ativa uma mudana na estrutura do corpo da figura feminina desmembrando-o ritmicamente. Mesmo representado por Duchamp ainda nos termos da pintura, para Argan essa distoro

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Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p. 438.

formal tem proximidade com o tipo tecnolgico de funcionamento14. Funcionamento dado no tempo, que dura, traz na imagem fragmentada a idia de um fluxo temporal operado tecnologicamente. Na imagem duchampiana de uma ao comum, o que parece desnuda a prpria ao, mais que isso, o movimento que mescla o orgnico e o mecnico, o tempo vital e o maquinal esmiuados na conscincia do homem atento ao seu tempo. A escada, portanto, aparece como elemento indutor

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de movimento e repetio. Com O grande vidro ou A noiva despida por seus celibatrios, mesmo, de 1915-23, Duchamp desnuda a prpria pintura, a superfcie subtrada pela transparncia do vidro, e com ela a frontalidade, assim o tema se dispersa em uma relao arbitrria. Afastando-se da autonomia formalista almejada para a obra de arte modernista, Duchamp parece aproximar-se das ideias do fsico e matemtico Henri Poincar, privilegiando as relaes dadas, e no as coisas em si, entendendo Poincar que fora destas relaes, no h uma realidade conhecida15. Mas o que certamente intriga Duchamp foge s relaes internas das imagens formalistas, o tipo de movimento ofertado pelas mquinas. As impressionantes imagens de mquinas estranhas, de funcionamento precrio e imaginativo encontradas por Duchamp em Impresses da frica certamente lhe despertou o interesse por esse tipo de funcionamento, pelo tempo dado pelo movimento mecnico. Com Moinho de caf, de 1911, Duchamp pinta sua primeira mquina, uma pequena pintura sobre carto imaginada para decorar a cozinha de seu irmo Raymond Duchamp-Villon. Duchamp declara ser a partir dele que passou a pensar que podia evitar todo o contato com a pintura-pictrica tradicional16. Os sinais claros de movimento, incluindo uma seta indicativa da direo do giro, denunciam a importncia dada por Duchamp ao movimento. Passando pelas frequentes imagens de trituradores de chocolate, podemos associar a pequena pintura de moinho de caf com a Roda de bicicleta, executado por Duchamp em 1913-14. Trata-se de um readymade. Paralelamente s tcnicas revolucionrias do Cubismo, Duchamp apresenta a estratgia do readymade, em princpio uma negativa a qualquer tcnica artstica, das tradicionais tcnicas pictricas ou escultricas s inovaes tcnicas modernistas, sendo, em sntese, a apropriao e o deslocamento de um objeto pronto. Do giro sugerido na pintura pelaHistria da Arte 4 |33|16 15

Janis Mink, Marcel Duchamp: arte como contra-ataque, p. 43.

Marcel Duchamp, Engenheiro do tempo perdido: entrevista a Pierre Cabanne, p. 61.

forma do moinho e pelos elementos grficos, Duchamp chega roda posicionada em seu eixo como um componente potencialmente cintico pousado sobre um objeto referencial de repouso. Com o Surrealismo, o nonsense dadasta alcana um carter de movimento programtico com apoio na teoria do inconsciente: a psicanlise. Em 1924, Andr Breton lana o Primeiro Manifesto Surrealista, e, em 1925, acontece a Primeira Exposio Surrealista, com a presena de Hans Arp, Giorgio de Chirico, Max Ernest, Man Ray, Joan Mir, Pablo Picasso e Pierre Roy. Em 1928, a Segunda Exposio Surrealista conta com a participao de Marcel Duchamp e Francis Picabia. O movimento se expande e alcana sucessivamente a adesoMarcel Duchamp, Roda de Bicicleta, 1913

de Yves Tanguy com suas paisagens inabitveis, estranhas ou incmodas, de Ren Magritte, de Salvador Dali e de Alberto Giacometti. Provando sua forte presena e influncia no cenrio artstico, o movimento promove, em 1936, a exposio Dadasmo e Surrealismo no Museu de Arte Moderna de Nova York, e, em 1939, a Exposio Internacional do Surrealismo em Paris. A busca de modelos alternativos na arte dos loucos, das crianas e dos primitivos salienta como os artistas surrealistas pretendiam alcanar uma arte desprovida de quaisquer preconceitos estabelecidos pelo filtro da razo. Para alm da tendncia figurativa plena com paisagens inabitveis, estranhas ou incmodas, formas e figuras distorcidas e fantasmagricas em narrativas desconcertantes nas quais imperam o onrico, a fantasia e, por vezes, a morbidez, a pintura surrealista se desdobra na tendncia signica ou abstracionista. Essa tendncia buscava certo lirismo com grafismos e formas remetentes ao mundo infantil, linhas e figuras referentes s culturas ingnuas, e principalmente as marcas advindas de gestos livres na busca pelo automatismo psquico. A livre associao de imagens fomentou o uso de tcnicas variadas,

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Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada n 2, 1912-16 Histria da Arte 4 |35|

como fotomontagens ou fotocolagens, assim como a juno inusitada de coisas levou assemblages como o Telefone-lagosta, de 1936, de Salvador Dal, artista que, apesar de muito conhecido por suas pinturas de jogos e trocadilhos visuais, produziu objetos e esculturas que contam com algumas de suas melhores obras. Instaurando um jogo de atrao e repulsa, a artista Meret Oppenheim nos oferece seu Objeto, de 1936, a saber, um conjunto de ch com xcara, pires e colher completamente cobertos com uma delicada pele de gazela chinesa, explorando, de modo magnfico, a ideia psicanaltica de fetiche. Tambm notvel a experimentao fotogrfica por parte de Man Ray, fazendo uso dos dispositivos de modo inusitados, explorando o potencial potico e expressivo do meio, ou criando imagens ambguas de figuras a partir de poses desconcertantes, sobreposies e distores que possibilitam sensaes e sentimentos inesperados a partir da realidade, o que se pode conferir com Minotauro, fotografia de 1934.

Meret Oppenheims, Objetos com Pele, 1936 |36| Modernismos

Para alm do cubo-futurismo: a ebulio modernista em parisDecididamente, aquele que buscava ser moderno encontrava suporte no ambiente parisiense do incio do sculo XX. Artistas de todas as nacionalidades, crenas e convices configuravam em torno das figuras de Picasso, Braque e Matisse, o que ficou conhecido como Escola de Paris. Assim foi com o russo de origem judaica Marc Chagall, que trouxe a fora expressiva da criatividade de seu povo atravs das fbulas em suas pinturas. Explora o cromatismo fauve em encenaes fantasiosas e cenas onricas, nas quais o lirismo o elemento conducente das lembranas e sentimentos do folclore russo judaico. Ao contrrio de Chagall, o italiano Amadeo Modigliani no apresenta qualquer nostalgia em suas pinturas, prefere interpretar a cena parisiense e seus grandes personagens, tornando-se um grande retratista modernista. A estilizao de suas figuras com linhas marcadas e formas alongadas que so materializadas pelas cores densas, gera composies elegantes, a despeito da atmosfera bomia transmitida. Algumas obras-primas da escultura derivam de pesquisas modernistas, o caso da Maiastra, obra do artista romeno Brancusi, de 1912, que alude fbula romena de um pssaro capaz de assumir novas formas indeterminadamente. Argan afirma que Brancusi lhe confere uma forma nica e invarivel, que inclui todas as variaes possveis17. O crtico italiano demonstra o entendimento de Brancusi quanto relao entre a forma e a luz, esta ltima a grande responsvel pela variao. Brancusi no busca figurar diretamente a mudana, mas a infinita possibilidade de transformao, e o que se destaca aqui o modo diferenciado como o artista suprime a pose, j que, ao no sugerir um instante pregnante, prope uma forma fundadora deHistria da Arte 4 |37|17

Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p. 463.

improvveis poses, instauradora de diversificados instantes, concepo na qual, voltando a Argan, a obra no um discurso, mas uma18

Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p. 463.

palavra que diz tudo18.

Constantin Brancusi, Maiastra,1912

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Ecloso e consolidao do Modernismo no BrasilA exposio de pinturas expressionistas de Anita Malfatti, em 1917, em So Paulo, tida como um marco incipiente para as transformaes artsticas no Brasil, pois, at ento, prevaleciam os ditames acadmicos com algumas poucas excees, a saber, certa influncia do Impressionismo nas paisagens de Arthur Timteo da Costa e, com maior mpeto, nas obras de Eliseu Visconti, a despeito da estadia de alguns de nossos principais artistas naquela que era a cidade difusora dos avanos no pensamento artstico e cultural do mundo ocidental: Paris. A importncia dessa exposio pode ser medida pelas crticas decorrentes, primeiro a severa recusa de Monteiro Lobato s inovaes apresentadas pelas obras da pintora, e em seguida pela defesa fervorosa de Oswald de Andrade ousadia da artista. Idealizada pelo pintor Di Cavalcanti e viabilizada pelo comerciante, intelectual e colecionador de arte Paulo Prado, a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de So Paulo, de 13 a 17 de Fevereiro de 1922, reuniu obras diversas, como as esculturas de Victor Brecheret e as pinturas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Osvaldo Goeldi, e Vicente do Rego Monteiro, em meio a msicos e a poetas. Entre os principais intentos do grupo estavam a renovao da linguagem plstica somada a uma temtica aproximada cultura nacional. O alvo principal dos ataques, portanto, seria a Academia e sua arte oficial. Sem grande impacto de imediato, alguns reflexos da Semana foram gradativamente ocorrendo, o suficiente para preparar a consolidao do modernismo em nosso meio. A publicao da revista Klaxon, editada por Mrio de Andrade, pode ser lembrada entre alguns esforos. Um reforo considervel a adeso de Tarsila do Amaral ao grupo, que, em 1923, pinta A negra, incorporando plstica cubista aspectos cromHistria da Arte 4 |39|

ticos peculiares ao nosso meio e elementos temticos nacionalistas. A negra uma obra que demonstra a possibilidade de mescla do atualizado aprendizado formal com o intuitivo recurso a imagens memoriais. Em seguida, excursiona junto com o grupo modernista pelas cidades histricas mineiras e volta contagiado pelos valores estticos pr-acadmicos e da cultura popular, resultando na srie Pau-Brasil, que se torna particularmente conhecida pelo jogo vvido dos rosas e azuis junto geometrizao ps-cubista, com aspectos temticos que enfatizam o momento de transio entre a vida rural e a urbana. Na dcada de 1930, entretanto, a artista assume uma vertente social, pintando obras como Operrios e 2 classe, apresentando uma paleta fria e terrosa e aparncia formal sbria e contida. Mas a fase mais comentada foi a Antropofgica, ecoando certos aspectos j encontrados em A negra, mas trazendo ques19

Walter Zaine, Histria geral da arte no Brasil, p. 543.

tes compondo certa originalidade nativa19 encontradas no Manifesto Antropfago, de 1928, teorizado por Oswald de Andrade e materializado nas pinturas de Tarsila, particularmente em Abaporu, de 1928, que traz a corporeidade volumosa e sinuosa e os elementos da mata que configuram o aspecto mgico e mtico do saber popular. A ideia central da antropofagia a assimilao crtica das influncias estrangeiras, que devem ser revertidas, por analogia, digeridas, em imagens tipicamente brasileiras, segundo a contaminao pelas caractersticas nativas. Outro reforo importante a chegada do artista russo Lasar Segall, que realiza uma exposio que refora a presena do Modernismo em 1924. No Rio, a esttica expressionista de Oswaldo Goeldi, apesar de um esforo quase individual, servia no apenas para manifestar a renovao esttica modernista, mas tambm para consolidar a presena da gravura em nosso meio, que viria a se consolidar com a atuao de artistas como Lvio Abramo e Marcelo Grassmann. No campo da escultura a presena de Brecheret seria emblemtica, particularmente a partir da execuo do

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Monumento s Bandeiras em comemorao ao IV centenrio da cidade de So Paulo. Bruno Giorgio, Alfredo Ceschiatti, Mrio Cravo Jnior e Maria Martins so alguns dos grandes artistas que consolidaram, de modos diversificados, a escultura modernista no Brasil.Tarsila do Amaral, Abapuru, 1928

Histria da Arte 4

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Aps os primeiros esforos na dcada de 1920, certas mudanas j eram notadas de modo significativo no cenrio artstico do Rio e de So Paulo. O surgimento de associaes de artistas modernos exemplifica esta questo. Desde 1932, o pintor Edson Motta liderava no Rio um grupo independente que reagia ao ensino acadmico da Escola Nacional de Belas Artes, o Ncleo Bernardelli, que contava com artistas importantes como Milton Dacosta e o pintor de marinhas estilizadas em reas de cores sintticas Jos Pancetti. Em So Paulo, o Clube dos Artistas Modernos, liderado pelo pintor Flvio de Carvalho, propunha uma postura menos elitista, algo aproximado postura da Sociedade Pr-Arte Moderna que surge em 1932, e da Famlia Artstica Paulista. Entretanto, um grupo que se reunia no ateli do prdio Santa Helena, e que contava com a presena de Alfredo Volpi, Mrio Zaine e Aldo Bonadei, aos quais se associou Anita Malfatti, que vai reunir esforos de artistas de origem proletria e praticamente autodidatas de formao. Outro fato que corrobora a ideia de uma nova fase da arte moderna no Brasil a criao do Salo de Maio, em 1937. No ano seguinte o Salo conta com a presena de artistas ingleses, com destaque para o pintor Bem Nicholson, e, em 1939, o Salo tem sua ltima verso apresentando artistas estrangeiros renomados como Alexander Calder, Alberto Magnelli e Joseph Albers. Mas a primeira presena institucional de peso da arte moderna no Brasil ocorreu no Salo Nacional de 1932, que ficou conhecido como Salo Revolucionrio, pois nele sobressaem as pinturas de Candido Portinari e de Ccero Dias. Isto foi possvel porque Rodrigo Melo Franco, amigo de alguns modernistas, assumiu o Ministrio da Educao aps a Revoluo de 1930 e nomeou o arquiteto modernista Lcio Costa para a direo da Escola Nacional de Belas Artes e o escritor Manuel Bandeira para a presidncia do Salo.|42| Modernismos

Foi justamente a adeso de Portinari que veio a causar desconforto entre os acadmicos. Por isso, Mario de Andrade o teria tratado como o mais moderno dos acadmicos20. Portinari tornou-se o grande nome da segunda gerao modernista, a ponto da era Vargas nas artes ser to associada a Villa-Lobos quanto a Portinari, significando que no se estava mais num ambiente de ruptura, mas de sedimentao dos ditames modernistas. A presena de Portinari consolida a fase social do modernismo brasileiro, com suas sries de retirantes, operrios e trabalhadores do campo, como em O Lavrador de Caf, de 1939. As diversas encomendas de murais do o tom da presena de Portinari no Brasil, como os afrescos do edifcio do Ministrio da Educao e Sade, no Rio de Janeiro, realizados entre 1936 e 1944, e mesmo no exterior com os quatro grandes murais pintados, em 1941, na Biblioteca do Congresso em Washington.20

Roberto Pontual, Entre dois sculos, p. 110.

Candido Portinari, O Lavrador de Caf, 1939 Histria da Arte 4 |43|

Formalismos abstracionistasAcompanhando as cogitaes vindas com o Cubismo e com o Futurismo, podemos lembrar como o Impressionismo asseverou a investigao dos elementos constitutivos da linguagem artstica, nesse caso, mais precisamente pictrica. A busca de uma verdade visual no realismo de Gustave Courbet em meados do sculo XIX parece sincera, mas para uma conscincia impressionista que integra olho, mente e mo, como a de Claude Monet, no pode haver uma verdade absoluta, seno circunstancial e efmera. Na ligeireza do que passageiro, na espontaneidade em captar a imagem retiniana, a cor e suas possibilidades, a pincelada e o gesto, a composio e a atmosfera alcanam uma disposio sistemtica de estudos a que se pode chamar de pesquisa: so estmulos para o dilogo necessrio entre a arte e o mundo modernos. Os modos de representao, gradativamente, tornam-se mais importantes que o mundo e as coisas representados. No que os elementos da linguagem no existissem ou no fossem dominados antes, mas esses sempre estiveram subservientes, pelo dever da representao, s ideais, conceitos e valores que solicitavam arte imagens que os difundissem. Em relao aos tratados e comentrios, Harold Osborne lembra como a crtica de arte, at finais do sculo XIX, debruava-se sobre as definies pormenorizadas dos aspectos descritivos das cenas representadas, o que no somente auxiliava na apreciao das obras por parte dos observadores, como tambm difundiam as obras em uma poca em que a circulao de imagens restringia-se s cpias executadas por grava21

Harold Osborne, A apreciao da arte, p. 240.

dores21. O cuidado maior com a eloquncia da cor e da forma e com a da linha e dos planos aprofunda-se com a crtica formalista no incio do sculo XX, em paralelo produo artstica modernista. O grau mximo desta valorizao dos aspectos formais da linguagem dado pela

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abstrao, quando perguntas basilares na observao de obras de arte como o que representa?, o que quer dizer? ou o que isto?, no tm respostas concludentes, a no ser por definirem a constituio prpria da imagem, como representa cor, quer dizer equilbrio ou forma. Para o crtico formalista norte-americano Clement Greenberg, o contedo deve ser to completamente dissolvido na forma que a obra de arte ou literria no possa ser reduzida no todo ou em partes a algo que no seja ela prpria22. A ideia de Greenberg est pautada no pensamento de filsofo alemo Immanuel Kant, particularmente em sua Crtica da razo pura. O que se pe em questo no a existncia de um contedo, mas seu teor. Um contedo que, por meio do esttico, do rigor tcnico e da forma, nos remete ao prprio esttico. Trata-se do purismo formalista: a ideia de que a obra de arte deva eliminar tudo o que no lhe seja prprio. Assim, uma arte abstrata no deveria empenhar-se em representar o Rei, o Papa, nem o General ou o grande burgus, tampouco a paisagem ou os objetos do mundo, devendo, portanto, ser autorreferente. A questo do contedo no formalismo nos remete diretamente abstrao, convergindo para algo que Greenberg reconhecia como novo na histria: a cultura de vanguarda. A vanguarda surgira, ento, como socorro a uma situao limite qual a tradio acadmica no teria respostas positivas, sendo a vanguarda a nica cultura viva23. Para Greenberg o que distanciaria o pblico geral da arte23 22

Clement Greenberg, Vanguarda e kitsch, in Glria Ferreira e Ceclia Cotrim, Clement Greenberg e o debate crtico, p. 29.

elevada seria o desconhecimento das regras do jogo, demasiadamente cultas para a massa. Mas eram ainda quadros e esculturas que eram apresentados, objetos reconhecidamente artsticos que, por si s, garantiam, ainda que no uma assimilao aprofundada dos contedos formais, certa estabilidade em estar diante de algo que seguramente era arte.Histria da Arte 4

Clement Greenberg, Vanguarda e kitsch, in: Glria Ferreira e Ceclia Cotrim. Clement Greenberg e o debate crtico, p. 31.

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O realismo do escritor francs Gustave Flaubert o levou a prever uma arte que se situaria a meio caminho entre a lgebra e a msica, o que para ele seria algo intil para a humanidade. Para iniciarmos a apreciao de obras de arte abstratas devemos comentar a pesquisa pioneira do artista russo Wassily Kandinsky, pois justamente baseado na natureza abstrata da msica que este pintor escolhe os nomes de suas primeiras pinturas abstratas da srie Improvisaes. De 1910 at meados da dcada de 1920, Kandinsky trabalha em sua fase tida como lrica ou musical, assim chamada pelas pinceladas, linhas e formas soltas, caractersticas que lembram os rabiscos infantis, parecia estar interessado em uma experincia esttica original. Uma aquarela de 1910, tida como a primeira pintura abstrata, evidencia como o artista prefere a ideia de campo noo de espao, predominando as cores leves e vibrantes, mas com acentuao cromtica, como a mancha vermelha circular no lado superior esquerdo do quadro Com arco negro, de 1912, logo acima de uma grande mancha azul amorfa, assim, as oposies tornam-se rtmicas e dinmicas. Kandinsky evidencia suas inquietaes em Do espiritual na arte, publicado em 1912, teorizando uma intencionalidade pura que surge durante o fazer, gerando formas que no tm origem na realidade visvel e no se apiam em smbolos ou valores preestabelecidos, referenciando os contedos semnticos das cores e das formas, explorando seus valores intrnsecos, como a leveza e a sensualidade das linhas sinuosas em oposio ao vigor dos traos angulosos. A partir da dcada de 1920, Kandinsky adota uma fase mais formalista, as linhas e formas geomtricas demonstram a nfase na busca da estrutura da linguagem, aparecem cores mais sbrias em harmonias construtivas, resultando em composies mais formais e estticas. A autonomia buscada leva-nos de modo nada linear aos crculos cromticos de Robert Delaunay, com a forma do suporte chegando a|46| Modernismos

coincidir com a disposio em semicrculos das cores, estamos pensando em Primeiro disco, de 1913-14, a tela tida como um disco em si. Aproximao que se pode ampliar provocativamente para um dos pintores preferidos de Greenberg, Kenneth Noland, em particular com a pintura Whirl, de 1960, pois seus crculos concntricos coloridos alcanam, para alm da caracterstica vibrao cromtica, um sentido rotatrio pelo aspecto disperso das soltas pinceladas azuis que envolvem a composio central. Os gestos das danarinas avermelhadas em A Dana, de Matisse, podem ser lembrados, pois engendram a dinmica forma circular do conjunto, mas na abstrao de Noland as manchas de cor aparecem como sutis indcios de movimento, ausentando-se os corpos das figuras emancipa-se a presena da cor na pintura abstrata. Cabe lembrar que junto a Morris Louis, Jules Olitski e Frank Stella, Noland compe a exposio Abstrao Ps-Pictria organizada por Greenberg em 1964. A proposta adotada entre 1917 e 1928 pelos pintores Theo van Doesburg e Piet Mondrian, o escultor Georges Vantongerloo, e os arquitetos Jacobus Pieter J. Oud, Thomas Gerrit Rietveld e Cor van Eesteren, ficou conhecida como Neoplasticismo ou De Stijl. Parte de certa revolta moral contra a violncia e nacionalismos, particularmente evidenciados nos manifestos futuristas, e apia-se na dimenso intelectual do fazer artstico em busca de uma arte pura e universal (purismo geomtrico), sustentando-se na filosofia de Spinoza que intui que a tica s pode ser demonstrada por meios geomtricos, harmnicos, e de Schoenmaekers que prope penetrar na natureza de tal modo que se nos revele a construo interna da realidade. Para tanto, impe um reducionismo tcnico com a eliminao da pincelada emotiva e sensual, das curvas provindas da confuso espiritual do barroco, de todas as formas histricas carregadas de valores simblicos e subjetivos. Como resultado, tem-se umaHistria da Arte 4 |47|

estrutura constante com linhas elementares - verticais e horizontais -, cores primrias azul, amarelo, vermelho, branco (luz) e preto (ausncia de luz) -, e formas quadrangulares bsicas, com o estabelecimento de relaes mtricas de propores. Por volta de 1925, Van Doesburg reintroduz linhas obliquas s suas pinturas, gesto que Mondrian entende como algo mais que um deslize formal, um regresso s foras arbitrrias das paixes e do individualismo, raiz dos males modernos, acarretando a definitiva quebra da aliana entre os dois principais promotores do Neoplasticismo. Mondrian mantm-se fiel aos pressupostos que prope uma pintura pura e elementar, at mudar-se para Nova York, em 1940, ocasio na qual suas pinturas passam a dialogar com o ritmo e as luzes da cidade que parecem embaladas pelo som do jazz. Victory Boogie-woogie, de 1942-44, uma de suas ltimas pinturas. Nela, as faixas pretas so substitudas por um repicado de cores que intuem uma guinada no exerccio esttico de Mondrian, o que fica em suspenso devido a sua morte em 1944. As pesquisas abstracionistas foram aplicadas de modo exemplar na referencial escola de arte modernista: a Bauhaus. O saber artesanal um legado das categorias tradicionais de obra de arte que perdura at o modernismo. Thierry de Duve comenta como o modelo deixado pela Bauhaus para as escolas modernas de arte valorizava o uso criativo doThierry de Duve, Quando a forma se transformou em atitude e alm, in: Arte & Ensaios n 10, p. 96.24

saber artesanal24. A histria da Bauhaus pouco extensa, tendo seu Manifesto e Programa estabelecidos por Walter Gropius em 1919. Em 1925 construda a escola Bauhaus em Dessau, um marco do funcionalismo arquitetnico. J em 1932 acontece a transferncia para Berlim, e logo em seguida, em 1933 acontece seu fechamento definitivo pelo nazismo. Os arquitetos Walter Gropius, Ludwig Mies van der Rohe, Hannes Mayer, o escultor Lszl Moholy-Nagy, o arquiteto e designer Marcel Breuer, o pintor e designer Johannes Itten, e os pintores Paul Klee e Wa-

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Piet Mondrian, Victory Boogie-Woogie, 1943-44

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ssily Kandinsky so alguns dos colaboradores com esta escola de arte moderna que viria a ser o modelo a ser observado em todo o mundo. Passava-se por oficinas variadas de artesanato para familiarizao com o comportamento dos materiais, suas qualidades intrnsecas e possibilidades expressivas, para ento serem trabalhados em associao aos aprendizados tericos. Da relao entre arte e indstria instaurada com a Bauhaus nasceria o desenho Industrial.

Marcel Breuer, Cadeira Wassilly 1925

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Vanguarda e Revoluo: a Vanguarda Russa entre o Construtivismo e o SuprematismoNa Rssia, as vanguardas artsticas se entrecruzam Revoluo contra o antigo regime dos Czares, na luta pela implementao de uma sociedade moderna, industrializada e mais justa, seguindo os ditames comunistas. Com isso, busca-se dar um fim utilitrio a uma arte de alcance social, a arte como instrumento de ambientao e educao para o povo. Tendo frente Vladmir Tatlin, artistas como Naum Gabo, Anton Pevsner, Aleksandr Rodtchenko e El Lissitski so alguns dos que enfrentam, a partir de 1914, essa tarefa vanguardista e revolucionria do Construtivismo. J em 1913 se faz sentir a influncia do cubo-futurismo de Mikhail Larinov e Natlia Gontcharova na obra de Kazimir Malevitch, artista que, a partir de 1917, est atento associao entre revoluo e vanguarda, mas prefere entender a arte como atividade espiritual, dissociada de funes polticas e sociais. Malevitch trilha um percurso para libertar a arte do peso do universo da representao, v na geometria uma supremacia sobre o mundo das aparncias, ao que chama de Suprematismo. Em sua primeira fase, adota formas geomtricas simples em cores uniformes, geralmente o preto, vermelho, amarelo, verde e azul sobre fundo branco. J na fase seguinte, adere a formas e composies mais complexas, incorporando cores diversas, criando situaes espaciais e movimento. Em 1915 acontece a ltima Exposio Futurista de Quadros: 0-10, com a apresentao do folheto Do Cubismo e Futurismo ao Suprematismo, difuso dos conceitos suprematistas de Malevitch, materializados na obra Quadrado Negro, de 1914-15. Com ela, Malevitch diz alcanar o nvel zero da forma e o vazio do sentimento. Em 1917-18, elabora aHistria da Arte 4 |51|

srie Branco sobre Branco, com a qual o mentor do suprematismo diz ter rompido definitivamente com a barreira da cor, e, com isso, a superao do espao representacional animado por objetos. A ateno forma na vanguarda russa revela como a ideia de formalismo no modernismo no unvoca, podemos mesmo falar em formalismos. O formalismo russo, ele mesmo diversificado, basta lembrar as divergncias estticas e polticas entre Malevitch e Tatlin, tem com suas diversas vertentes forte influncia no mbito do modernismo europeu. Eticamente, o engajamento poltico-social do programa ideolgico de arte pela vida dos construtivistas difere do conceito puramente esttico de arte pela arte suprematista de Malevitch. Tatlin e seus partidrios apresentavam-se imbudos do esprito da era industrial somado ao mpeto vanguardista em busca de uma nova sociedade. Esteticamente, tambm h grandes divergncias, pois a proposta de unio das formas artsticas pintura, escultura e arquitetura - pregada pelos construtivistas, representada de modo exemplar pelo Monumento Terceira Internacional, de Tatlin, a saber, um grande edifcio em espiral de ferro e vidro que giraria sobre seu eixo, projetado em 1919, mas que nunca foi executado, prope a unio entre o plstico e o utilitrio. O monumento de Tatlin francamente contrrio ao purismo formal suprematista. Do Construtivismo russo derivam objetos cuja lgica no a da pintura ou da escultura em particular, mas um hbrido dessas categorias histricas acrescidas de certa proximidade com o objeto industrial, comportando, ainda, aspectos de organizao e lgica construtiva arquitetnica, que admitem propor escalas monumentais, levando os artistas a usar termos como coluna, monumento e construo para nomear suas obras. Estamos nos referindo a obras como Coluna, que Naum Gabo constri em 1923. O uso pelos construtivistas russos de materiais reconhecidos peloThierry de Duve, Quando a forma se transformou em atitude e alm, in: Arte & Ensaios n 10, p. 96.25

crtico e historiador de arte italiano Giulio Carlo Argan como reais25,Modernismos

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assim como a apropriao de tcnicas industriais, so indcios da percepo da transformao material do mundo e sua aparncia, assim como dos modos de produo, assimilao e circulao das coisas no mundo em interaes sociais diversificadas. O uso de tcnicas e materiais industriais, buscando apropriar-se das qualidades intrnsecas desses materiais, incorpora o espao real ao uso dos materiais reais no conceito de construo, os materiais e as tcnicas que constroem a realidade fsica da cidade moderna so as mesmas tcnicas e os mesmos materiais que constroem as obras de arte modernas, estabelecendo-se a geometria como padro formal que alicera as construes. As demandas instauradas por novas relaes sociais, desenvolvimento tecnolgico, reviso ou restaurao culturais, os papis da mulher, do jovem, das ditas minorias, no teriam nas categorias tradicionais de obras de arte e nas suas tcnicas e materiais, o meio mais acessvel ao dilogo. A obra de arte vista como objeto no mundo um largo passo para que o ambiente onde este objeto esteja inserido adquira suficiente considerao para que os sentidos evocados pela obra passem pela orientao do lugar, o que exploraremos mais adiante. No final da dcada de 20, d-se o encerramento do apoio estatal arte abstrata, pois o governo decide que o abstracionismo no serve de veculo aos ideais comunistas, oficializando o academicismo de carter panfletrio chamado Realismo Socialista, dando fim associao entre Revoluo e Vanguarda.Naum Gabo, Coluna, 1923

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Kazimir Malevitch, Quadrado Negro, de 1914-15

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De Paris para Nova York: Expressionismo AbstratoAssim como um fotgrafo foi marcante para a recepo do Impressionismo, a postura de Alfred Stieglitz foi fundamental para instaurar, em Nova York, um centro de vanguarda. Stieglitz abre a Galeria 291 (Photo-Secession Gallery, Fifth Avenue 291), que recebe, em 1908, a primeira exposio de um artista moderno em Nova York com desenhos de Rodin. Ainda em 1908, expe Matisse, e, em 1911, Picasso. J em 1914, a vez do escultor romeno Constantin Brancusi. Mas com o Armory Show, uma grande mostra organizada, em 1913, por Arthur B. Davis, o cenrio americano comea a manifestar suas inquietaes. Davis rene no arsenal do 69 Regimento mais de 1800 obras europias: desde Goya e Ingres, Impressionismo e Ps-impressionismo, at as vanguardas, menos o Futurismo. Tudo isso acrescido da representao norte-americana. Para a imprensa, a arte moderna pareceu revolucionria e perigosa, particularmente com o grande impacto de Nu descendo uma escada, de Marcel Duchamp. Mas a fora do modernismo europeu ainda no repercutia de modo a apresentar um desdobramento tipicamente americano. A tendncia realista prevalece, alcanando seu auge com o Realismo Social na dcada de 1930, alimentado pelo Craque de 1929 e pela Grande Depresso, chamando a ateno aos aspectos sociais. Trata-se de um realismo de carter urbano na soma de reportagem e comentrio social, tendo Bem Shahn, Reginald Marsh, Moses, Raphael Soyer, William Gropper e Isabel Bishop como nomes da pintura, e Dorothea Lange, Walker Evans, e Margaret Bourke-White na fotografia. Na construo de uma identidade para sua cultura, surge uma tendncia chamada Cena Americana, que adere tradio do realismo americano em oposio abstrao europeia. Um importante nome EdwardHistria da Arte 4 |55|

Hopper, com pinturas de cenas suburbanas e provincianas em recortes de densas atmosferas psicolgicas, obtidas por misteriosos jogos de luz. Alguns pintores regionalistas como Grant Wood, Thomas Hart Benton e John Stuart Curry trazem imagens de fazendas e paisagens rurais, uma clara busca de identidade nacional. Novos representantes como o pintor Andrew Weyth e o ilustrador Norman Rockwell acentuam a referncia ao ideal de famlia e vida domstica norte-americana dos anos 50, que alcanam a mdia de massa em seriados de TV, ideal representado de modo crtico no cinema com o filme Beleza americana. somente na dcada de 1940, em paralelo s tendncias realistas, que se consolida a ideia de uma Escola de Nova York em oposio Escola de Paris, orientada em torno de Picasso e Matisse, que veio de fato a surgir com a ampla tendncia abstracionista chamada de Expressionismo Abstrato. So evidentes as diversas influncias das vanguardas europeias como as abstraes orgnicas de Juan Mir e as improvisaes de Kandinsky, podendo-se salientar, em particular, o conceito de automatismo psquico surrealista, que sustenta uma gestualidade livre. Mas, para alm dos estudos de Sigmund Freud, os nova-iorquinos aderem ideia de inconsciente coletivo e seus arqutipos que so discutidos pela psicologia analtica do psiquiatra suo Carl Jung. As referncias s culturas africanas trazidas pelas vanguardas europias so acrescidas dos apetrechos ritualsticos dos ndios norteamericanos e expandidas at as citaes ao misticismo e caligrafia oriental, tudo isto somada moderna influncia do ritmo e sonoridade local das improvisaes do Jazz, uma mescla de influncias prpria vocao cosmopolita da metrpole, evidente tambm na diversificada sonoridade dos nomes que compem o elenco de artistas associados ao movimento, entre eles William Baziotes, Willem de Kooning, Arshile Gorky, Adolph Gottlieb, Hans Hofmann, Lee Krasner, Franz Kline,|56| Modernismos

Robert Motherwell, Barnett Newman, Jackson Pollock, Ad Reinhardt, Mark Rothko, Clyfford Still, e Mark Tobey. Caracteristicamente, as obras apresentam grandes composies, tendo a escala como fator de impacto, o que evidencia o processo no embate direto com a obra no fazer artstico. Evidenciado o processo, desponta o carter gestual, elemento contrastante com a padronizao mecnica, valorizando o ritmo e a espontaneidade na explorao dos aspectos pictricos fundamentais (mancha, cor, textura) e as qualidades intrnsecas das tintas e dos materiais (dureza, elasticidade, opacidade...), uma reduo da imagem aos elementos da linguagem como veculos de expresso dos estados interiores do homem. O crtico Harold Rosenberg cunha o termo Action Painting (pintura de ao) para se referir a obras como as de Jackson Pollock, pinturas de dimenso ritualstico-corporal com seus respingos como signos de energia e movimento, harmonia e ritmo, ou as pinturas semiabstratas de Willem De Kooning, que apresentam pinceladas violentas que partem as figuras, nas quais a nfase na imagem feminina do tipo pinup torna desconcertante o apelo sexual. Refere-se tambm a Franz Kline, artista que pinta signos monumentais como golpes de tinta preta em superfcies brancas, gesto de inciso espacial com macrosignos de aspecto caligrfico-pictricos. O que os aproxima a evidncia na imagem da ao processual, a pintura referencia sua prpria elaborao: o enrgico ato genitivo da obra. As pinturas de Pollock nos remetem ao gesto do artista como uma dana pelo estdio, trnsito pela tela esticada no cho, deixando rastros acumulados de tinta em camadas estratificadas na superfcie como uma trama sgnica. Em obras como Blue poles, de 1953, a peculiar tcnica do respingamento aparece como metfora do gesto, da ao, do movimento de um corpo agora ausente, vindo do espao exterior tela, circunviHistria da Arte 4 |57|

zinho, em contiguidade contaminadora. Os gestos roam a tela, passam em uma tangente. A tela tambm um corpo material que habita o espao da ao, mas em sua potencialidade como suporte comporta seus rastros. Sabemos tambm da importncia da dimenso das pinturas. Para Harold Rosenberg as enormes telas dos action painters comearam a se comportar como uma arena onde agir. Na verdade, Pollock no agia na tela, mas literalmente sobre a tela, nas imediaes de seu campo de ao. Leo Steinberg enfatiza a impreciso das afirmaes de Rosenberg quanto abordagem da tela como uma arena, mas no deixa de reconhecer o forte apelo que Rosenberg encontra nos artistas americanos26

Leo Steinberg, Outros critrios, pp. 180-181.

dessa gerao em combater o efeito cosmtico em pintura26. O critico Clement Greenberg anuncia como Color Field Painting (pinturas de campos de cor) as obras do Expressionismo Abstrato que contemplam outra nfase do gesto e da ao, o domnio e a meditao. Greenberg refere-se s pinturas com evocao de paisagens e figuras em amplas construes cromticas de Clyfford Still, assim como s imagens impregnadas de certa espiritualidade contemplativa do russo Mark Rothko. Trata-se de transparentes campos de cor sobrepostos, elaborados em camadas flutuantes de dimenses quase ambientais, fruto de um exerccio de domnio da tenso expressiva beirando o repouso. Ao elaborar campos de cores densas, Barnett Newman diz estar envolvido na pintura com a noo de lugar; noo que faz o espectador tomar conscincia de si diante da obra, de sua individualidade e conexo com os outros, que tambm assumem o mesmo lugar: espectadores e, a princpio, o prprio autor. Para o crtico ingls David Sylvester, a presena que a obra de Newman suscita aquela do lugar no qual o

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David Sylvester, Sobre arte moderna, p. 374.

observador sente sua prpria presena27. o que acontece diante de Quem tem medo do vermelho, do amarelo e do azul?, de 1966. Estabelece certo jogo entre o espao plstico dado pela superfcie da pintura

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e o espao fsico diante do espectador, incipiente animao do espao expositivo como um espao relacional, um envolvimento caracterstico na arte contempornea, que engendra o diagnstico de Paul Zunthor de que percepo profundamente presena28. Com as faixas de cor zips, que para Sylvester so como raios - a luz na pintura de Newman abre o caminho que faz o envolvente elo entre obra, espao e espectador; se no instaura um lugar, decerto desperta nossa conscincia de modo singular a ele.Paul Zunthor, Performance, recepo, leitura, p. 81.28

Jackson Pollock, Blue poles, 1953

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Barnett Newman, Quem tem medo do vermelho, do amarelo e do azul?, 1966 |60| Modernismos

O Informalismo europeuSomada aos legados das vanguardas europeias e atmosfera tensa do ps-guerra, a filosofia existencialista impulsiona os artistas europeus, em meados da dcada de 1940, a uma conduta cheia de individualismo e espontaneidade, usando a linguagem plstica como instrumento de autodescoberta, fazendo ainda ntidas referncias ao misticismo e caligrafia oriental. Em relao ao tema, o Informalismo na Europa aproxima-se da realidade social contra o intelectualismo da abstrao geomtrica europeia. Michel Tapi define como Tachismo a pintura elaborada com um gestual expressivo que preenche as telas com manchas (tache em francs) e com reas de cor, como nas obras de Patrick Heron, Pierre Soulages e Henri Michaux. Entretanto, as pinturas de Georges Mathieu so conhecidas pela sugestiva denominao Abstrao Lrica. Isto porque so compostas por grandes reas de cor uniforme, nas quais signos pictricos surgem como marcas de um rompante de ao, carregadas de ritmo, espontaneidade, intuio, excitao, energia e tenso. Tambm acompanham algumas dessas caractersticas as obras de Camille Bryen, Simon Hanta, Hans Hartung e Wols. Foi tambm recorrente no Informalismo europeu a tendncia chamada por Argan de Abstrao Matrica. As telas de plstico ou de pano de saco gastas, rasgadas, costuradas e queimadas do pintor italiano Alberto Burri evidenciam as foras evocativas da matria em seus mais variados estgios, como em Saco e vermelho SP2, de 1958, e intuem que todo material potencialmente carregado de valores expressivos e simblicos que so asseverados com as intervenes do artista. O pintor espanhol Anton Tpies e os franceses Jean Dubuffet e Jean Fautrier so notrios exploradores do potencial sensvel de materiais nada convenHistria da Arte 4 |61|

cionais para a pintura. A associao entre o signo que marca o campo cromtico e a materialidade da pintura comparece de modo inusitado nas obras do italiano Lucio Fontana. O corte na tela de Fontana faz ver as relaes espaciais para alm e para aqum da superfcie pictrica. O corpo da obra est aberto e sua espessura posta vista. O espao real perpassa o espao pictrico e denuncia no quadro seu aspecto de objeto no mundo. Para no ficar apenas na questo da superfcie pictrica, Fontana tambm abre o corpo da escultura, como em Concetto espaziale nature, de 1959-60. Insiste no dilogo entre o que pertence ao espao da obra e sua massa corprea e o que pertence ao espao do mundo, em tamanho estreitamento que tais espaos venham a ser indiscernveis. Denunciada a espessura da obra e suas entranhas matricas, Fontana assegura como esta se manifesta de modo total e eterno, desenvolvendo-se no tempo e no espao, como est apresentada no Manifesto29

Bernard Blistne, Fontana: o heliotrpio contemporneo, in: Gvea 8, p. 108.

blanco publicado na Argentina em 194629. Como exemplo do significativo empenho do artista, Bernard Blistne lembra como Fontana lanou mo tambm da cermica, uma tcnica tida como menor no elenco de categorias artsticas, mas que o artista enxergou como o meio de

30

Bernard Blistne, Fontana: o heliotrpio contemporneo, in Gvea 8, p. 103.31

exorcizar os limites da matria30. Blistne afirma ainda que o corte na superfcie da tela, este gesto, que no certamente pintura, mas est na pintura, tem algo de incoercvel, nem adio ou subtrao31. Um gesto tecnicamente transgressor, viola a ideia estrita de categoria, renuncia aplicao de materiais para aderir contundentemente materialidade da obra, aventura-se impetuosamente pela espacialidade interior em uma

Ibid., p. 104.

32

Ibid., p. 106.

introspeco ttil da matria32. Assumido conscientemente o risco, o gesto, antes de tudo, doloso.

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Alberto Burri, Saco, 1954

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Lucio Fontana, Conceito espacial, 1962

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O esprito construtivo no BrasilA dcada de 1950 apresenta uma rica manifestao da abstrao lrica, expressiva ou informal em nosso meio. Deve-se mesmo notar a presena de artistas como Antnio Bandeira, que, junto aos pintores Camille Bryen e Wolfgang Wols, cria, em Paris, o efmero grupo Banbryols em 1949. As referncias s figuras e paisagens urbanas se encontram fragmentadas em meio s tramas signicas e materiais de muitas de suas pinturas, mas diluem-se na essencial estrutura rtmica e formal de algumas abstraes. Em So Paulo, a presena de nipobrasileiros marcante, e artistas como Manabu Mabe, Tikashi Fukushima, Tomie Othake, Kazuo Wakabayashi e Flvio Shir exploram o caracterstico domnio oriental da gestualidade junto s inovaes plsticas modernistas. H, ainda, os artistas que transitam pela permevel fronteira entre a figurao expressiva e a abstrao informal, como o pintor e escultor Franz Krajcberg e o destacado pintor Iber Camargo, que tem como ponto de tenso entre o figurativo e o abstrato a srie de Carretis, com formas materializadas no denso corpo de tintas de cores profundas, aplicadas de modo impetuoso em imagens de aspecto imaginativo. Deixando em suspenso a tendncia geomtrica, pode-se pensar essa face da abstrao brasileira como perfeitamente alinhada no caminho que passa pela fora da subjetividade, do sonho e da expresso, que tambm acompanham nossos artistas. Isso desde a expressividade do Barroco, a romantizao da nossa academia, a fora do Surrealismo e, principalmente do Expressionismo que muito contagiou nosso modernismo, principalmente pela presena de Oswaldo Goeldi e Lasar Segall. Mas o fato que ns no tivemos um Expressionismo, mas alguns 'expressionistas', no tivemos um Surrealismo, mas 'surrealistas', nem a abstrao lrica teve base numa escola ou estilo como oHistria da Arte 4 |65|

Expressionismo Abstrato na Escola de Nova York. No caso da arte concreta, entretanto, diferente, ns temos historicamente um Concretismo, com acompanhamento crtico, grupos ativos, eventos e incentivos e com desdobramentos como o Neoconcretismo.

Iber Camargo, Carretis, 1978.

A partir da premiao do escultor suo Max Bill na 1 Bienal de So Paulo em 1951, a tendncia geomtrica protagonizou o cenrio artstico nacional. A fora da abstrao formalista no Brasil tomou corpo com a tpica aproximao entre artistas do modernista, como o grupo Frente no Rio de Janeiro e o grupo Ruptura em So Paulo. O grupo paulista liderado pelo artista, crtico e terico Waldemar Cordeiro e conta com Lothar Charoux, Luis Sacilotto, o pintor e fotgrafo Geraldo de Barros, Maurcio Nogueira Lima, Hermelindo Fiaminghi, o pintor e artista grfico Alexandre Wollner, Antnio Maluf, e tem ainda o significativo reforo dos poetas e irmos Haroldo e Augusto de Campos e do tambm poeta Dcio Pignatari. No Rio, Ivan Serpa |66| Modernismos

a figura catalisadora das aes envolvendo artistas como Almir Mavignier, Abraham Palatinik, Mary Vieira, Alusio Carvo, Lygia Clark, Hlio Oiticica, Lygia Pape, Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Willys de Castro, Hrcules Barsotti, Ubi Bava e o poeta Ferreira Gullar, que assumiria, junto ao crtico Mrio Pedrosa, o posto de terico do grupo. Assim como em So Paulo, os artistas do grupo Frente propunham a repercusso dos ideais modernistas na vida cotidiana, o que de fato ocorreu com a repaginao do Jornal do Brasil, segundo os aspectos grficos formulados por Amilcar de Castro. A tendncia abstracionista geomtrica, para alm dos grupos Frente e Ruptura, conta com as pesquisas individuais de artistas influentes como Milton da Costa, Maria Leontina, Rubem Valentim, Dionsio Del Santo, Abelardo Zaluar, Arcangelo Ianelli, Ione Saldanha, Roberto Burle Marx, Arthur Luiz Piza e Srgio de Camargo, geralmente sem agenciamentos estticos ou associaes artsticas, seno em livre exerccio da linguagem plstica. Mas a desenvoltura do concretismo no Brasil aponta particularmente para uma definitiva ruptura com uma tradio, ainda vista entre os modernistas, de busca de razes histricas e culturais com elementos tpicos que pudessem garantir certo aspecto de brasilidade nossa produo artstica. A obra de Alfredo Volpi parece merecedora de uma particular meno, notadamente por sua srie de pinturas de fachadas de casarios e de bandeirinhas que remetem festas populares. As pinturas de Vplpi revelam a espontaneidade das formas e a modulao suave de construo despojada, que no se alcana com o rigor de um sintetismo intelectual, mas com o frescor de uma pintura que busca o prazeroso e sincero ato de pintar. Apesar da tendncia concretista que os aproximavam, a I Exposio Nacional de Arte Concreta no MAM de So Paulo, em 1956, e no MAM do Rio de Janeiro, em 1957 tornou patentes as diferenas entre cariocasHistria da Arte 4 |67|

e paulistas. Enquanto estes ltimos guardavam o rigor formal em maior consonncia com as experincias europeias, os artistas do Rio apresentavam uma postura menos ortodoxa, alcanando maiores desdobramentos que so apresentados na mostra I Exposio de Arte Neoconcreta em 1959, seguida do manifesto redigido por Ferreira Gullar e de sua Teoria do No-objeto. Os artistas neoconcretos evitavam a rigidez da forma e a aridez cromtica enriquecendo as composies com linhas e formas mais dinmicas e cores mais vibrantes. O Neoconcretismo contou com a adeso de Amilcar de Castro, Franz Waisnmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Alusio Carvo, Hlio Oiticica, Dcio Vieira, Osmar Dillon, Hrcules Barsotti, Willys de Castro e dos poetas Reynaldo Jardim e Theon Spanudis. A fenomenologia do filsofo francs Maurice Merleau-Ponty foi fundamental para as propostas neoconcretas, pois permeia as diretrizes de transposio do espao plstico para o espao da vida na cumplicidade entre cor e forma em evoluir pelo espao do mundo. As experincias advindas do Neoconcretismo e seus desdobramentos, principalmente nas propostas ambientais e participativas, foram fundamentais para a transio das tendncias plsticas modernistas para as manifestaes artsticas contemporneas, como veremos adiante.

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Alfredo Volpi, Bandeirinhas, 1958 tmpera s/ tela, 44,2 x 22,1 cm

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arte contempornea

Um reincio de conversa: outros critriosNa dcada de 80, autores como Arthur Danto e Hans Belting fundamentam arcabouos tericos para diagnosticar as transformaes no campo da arte, para se pensar as possibilidades de permanncia, atravs de outros critrios33, da atividade artstica no final do sculo XX e incio do sculo XXI, que se convencionou chamar de Arte Contempornea. Nesse sentido que se aponta para a necessidade de ampliao da reflexo acerca das experimentaes artsticas entre as dcadas de 1960 e 1970, assim como para certas aproximaes com algumas manifestaes vanguardistas do incio do sculo XX, segundo uma orientao terica que no dependa unicamente dos postulados erigidos pela histria da arte at o modernismo. A definio largamente aceita do modernismo como perodo formalista, cujo principal terico Clement Greenberg, por muitos tomada como base para o contraponto com as manifestaes dos anos de 1960, particularmente com a Pop Arte. Contraponto comentado por Paul Wood em Modernismo em disputa, particularmente presente no pensamento de Arthur Danto em Aps o fim da arte, e tambm abordado pela recente crtica do francs Nicolas Bourriaud, para quem a arte contempornea se desenvolveu no sentido de negar a autonomia (e, portanto, a setorializao) que lhe era conferida pelas teorias formalistas do modernismo, que tiveram seu principal defensor em Clement Greenberg34. Trata-se de uma negociao para uma definio do que seria o Ps-modernismo. Mas sabemos que o conceito de formalismo, e mesmo a prpria ideia de modernismo, no so unvocos e assumem diferentes significados no mundo da arte, todos eles com sintomticas omisses. Aceitando a fala do crtico francs Yve-Alain Bois como a voz de um defensor conHistria da Arte 4 |73|34 33

A ideia de ampliar a discusso artstica a partir de outros critrios toma curso com a palestra de Leo Steinberg no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1960, e com a publicao de parte dela na revista Artforum em 1972, texto publicado no Brasil em Glria Ferreira e Ceclia Cotrim. (Org.). Clement Greenberg e o debate crtico, pp. 175 210, e mais recentemente em Leo Steinberg, Outros critrios, pp. 79-125.

Nicolas Bourriaud, Esttica relacional, p. 143.

temporneo do formalismo modernista, percebemos seu apontamento de pelo menos trs formalismos em meio ao modernismo: o formalismo35

Yve-Alain Bois, A pintura como modelo, passim.

americano, o formalismo europeu e o formalismo russo35.

Por isso,

neste livro, no adotaremos o termo Ps-modernismo, pois isto admitiria um perodo definido, programtico, intuindo um conjunto de obras distintivo. Preferindo o termo Arte Contempornea, admitiremos aqui, junto a Argan, que a arte moderna subentende um perodo:[...] durante o qual se pensou que a arte, para ser arte, deveria ser moderna, ou seja, refletir os caracteres e as exigncias de uma cultura conscientemente preocupada com seu prprio progresso, desejosa de se distanciar de todas as tradies, voltada superao contnua de seus resultados.36

36

Giulio Carlo Argan, A arte moderna na Europa, p. 426.

E, de um modo generalizado, a Arte Contempornea seria a arte que no atende s expectativas de ser moderna por programa, portanto ciente da necessidade de se desenvolver em direes novas e amide37

Giulio Carlo Argan, A arte moderna na Europa, p. 426.

contraditrias em relao s anteriores37. As inquietaes que fomentam as investigaes aqui apresentadas no tm a ambio de esgotar as questes postas, mas de contribuir com aquilo que nos parece sintomtico e que Bourriaud define como necessidade, pois reescrever a modernidade a tarefa histrica desse comeo do sculo: no partir novamente do zero nem se sentir sobrecarregado pelo acmulo da His-

38

Nicolas Bourriaud, Ps-produo, p. 109.

tria, mas inventariar a selecionar, utilizar e recarregar38. Considerando que Roselee Goldberg esclarece que muito embora a maior parte do que atualmente se escreve sobre a obra dos futuristas, construtivistas, dadastas e surrealistas continue a se concentrar nos

39

Roselee Goldberg, A arte da performance, p. VII.

objetos d