henry rider haggard - as minas de salomão (ed. hedra)

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As minas de Salomão

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  • As minas de Salomo

  • As minas de SalomoHenry Rider Haggard

    TraduoEa de Queiroz

    IntroduoPaulo Franchetti

    So Paulo 2000

  • HENRY RIDER HAGGARD

    Copyright Editora Hedra, 2000

    CapaCamila Mesquita

    Projeto grco e editoraoFabiana Pinheiro

    DigitaoCarla Aparecida dos Santos

    RevisoBrbara Guimares Aranyi

    Iuri Pereira

    Nota editorial: estabeleceu-se o texto desta ediousando como referncia a edio de 1946, volume onze das

    Obras de Ea de Queiroz, publicada no Porto por Lello & Irmo Editores.

    [2000]Direitos reservados em lngua portuguesa

    EDITORA HEDRA LTDA.rua fradique coutinho, 1139 - 2o andar

    05416-011 So Paulo - SP - Brasiltelefone/fax: (011) 3097-8304

    [email protected]

    Foi feito o depsito legal.

    Haggard, Henry Rider, 1856-1925As minas de Salomo / Henry Rider Haggard; Traduo de Ea de Queiroz. Introduo PauloFranchetti 1a ed. So Paulo: Hedra, 2000.

    ISBN 85-87328-28-X

    1. Histrias de aventuras inglesas 2. Romance ingls I. Queiroz, Ea de, 1845-1900. II.Franchetti, Paulo. III. Ttulo.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Romances: Literatura inglesa 823

    00-3035 CDD-823

  • AS MINAS DE SALOMO

    SUMRIO

    As minas redescobertas

    Introduo i Encontro com os meus camaradas ii Primeira notcia das Minas de Salomo iii O homem chamado Umbopa iv Os elefantes v A nossa entrada no deserto vi Penetramos no reino dos kakuanas vii O rei Tuala viii A grande dana ix Antes da batalha x O ataque da colina xi A batalha de Lu xii O rei Ignosi xiii A grande caverna xiv O tesouro de Salomo xv Nas entranhas da terra xvi A partida de Lu xvii Enm!

  • JOS MARIA EA DE QUEIROZ, nascido em Pvoa do Varzim em 1845 e falecido em Paris em 1900, um dos maiores romancistas portugueses. Estudou Direito na Universidade de Coimbra eparticipou dos movimentos literrios e acadmicos promovidos pela chamada Gerao de 70,liderados por Antero de Quental e Telo Braga, e que consolidaram o Realismo em Portugalnas famosas Conferncias do Cassino Lisbonense. Inicia em Coimbra sua produo literriacom os folhetins publicados na Gazeta de Portugal sob o ttulo Notas marginais, mais tardereunidos em um volume intitulado Prosas brbaras. Assiste, no Cairo, inaugurao do Canal deSuez, em 1868, experincia da qual resulta, mais tarde, a reportagem O Egito. Em Leiria, ondeesteve por algum tempo, escreve, com Ramalho Ortigo, uma histria policial, O mistrio da estra-da de Sintra. Depois de um breve exerccio da advocacia, entrou para o servio diplomtico, tendosido cnsul em Cuba, Inglaterra, Egito e Frana, pases nos quais escreveria parte de sua obra.Tambm com Ortigo, durante o ano de 1871, publica um peridico de crtica social, As farpas. Ocrime do padre Amaro, seu primeiro romance, seria publicado em 1871. Neste livro, Ea faz cidascrticas ao Clero e provinciana burguesia portuguesa. Em 1878 retrata a burguesia urbana em Oprimo Baslio. No mesmo ano publica A capital. No ano seguinte, ainda no exerccio de suacrtica da sociedade portuguesa, publica Os Maias, romance que conclui uma fase da co deEa de Queiroz, voltada para a observao da vida citadina. A ilustre casa de Ramires e A cidadee as serras, publicados respectivamente em 1900 e 1901, voltam-se para a observao do homemem sua relao com a natureza, para a vida rural e para a histria de Portugal.

    HENRY RIDER HAGGARD nasceu em 22 de junho de 1856 em Norfolk, Bradenhan. Foi para o sul dafrica aos dezenove anos como secretrio do governador de Natal. A permaneceu at que aInglaterra anexou ao Imprio a regio que cava ao norte do rio Vaal, o Transvaal. Funcionriodo Imprio, foi Haggard quem hasteou pela primeira vez a bandeira no novo territrio, de cujaCorte de Justia foi depois ministro. Haggard permaneceu no Transvaal at a sua devoluopara os holandeses, retornando Inglaterra apenas em 1881. Por causa de sua atuao comofuncionrio colonial e juiz da corte, teve de conhecer a cultura zulu. Alm de estudar a histriados zulus e do seu contato com os europeus, Haggard dedicou-se ao estudo de sua lngua ecultura. Casado com uma herdeira rica de sua regio natal, comeou na metrpole a carreirajurdica, abandonada mais tarde. Dedicou-se ento basicamente literatura e, no nal da vida,ao estudo da vida rural inglesa e das tcnicas agrcolas. Seus livros mais clebres so os romancesde aventuras ambientados na frica, como A cabea da feiticeira, As minas de Salomo (1885),Ela, Jess e Allan Quatermain (todos de 1887), alm dos trs ttulos da trilogia zulu: Marie(1912), Child of storm (1913) e Finished (1917). Em 1912 recebeu o ttulo de cavaleiro. Em1919, seus trabalhos foram novamente reconhecidos com a promoo de seu grau de cavaleiro aode Comandante do Imprio. Foi, portanto, coberto de honrarias que Sir Henry Rider Haggardfaleceu em Londres, em 14 de maio de 1925.

  • As minas redescobertas

  • HENRY RIDER HAGGARD

  • AS MINAS DE SALOMO

    O AUTOR E SEU ROMANCE

    Henry Rider Haggard foi um dos escritores de maior sucesso popular deseu tempo. Nascido em 1856, foi para o sul da frica aos dezenove anos, em1875, como secretrio do governador de Natal, e l permaneceu dois anos,at que a Inglaterra anexou ao Imprio a regio que ficava ao norte do rioVaal, o Transvaal. Funcionrio do Imprio, foi Haggard quem hasteou pelaprimeira vez a bandeira no novo territrio, de cuja Corte de Justia foidepois ministro.

    Era uma poca de descobertas de riquezas e, por isso, de grandes altera-es materiais e culturais numa terra at ento pobre e dedicada quaseexclusivamente pecuria de subsistncia. Desde 1867, eram garimpadosdiamantes de aluvio nos rios Orange e Vaal. Mas quando Haggard chegaa Natal, j a fonte principal da riqueza era outra: as minas subterrneas naregio de Kimberley, abertas a partir de 1870.

    Haggard permanece no Transvaal at a sua devoluo para os holande-ses, retornando Inglaterra apenas em 1881. Quando deixa a frica, estj comeando a grande corrida do ouro, que vai estar no auge emWitwatersrand na poca em que publica As minas de Salomo.

    Nessa terra de aventuras e paisagens estranhas, na qual Haggard pareceter-se sentido muito vontade, tendo inclusive instalado uma fazenda decriao de avestruzes, os ingleses tinham dois adversrios, os zulus e osdescendentes de holandeses, os beres.

    Haggard, funcionrio colonial e juiz da corte, tinha de conhecer a culturazulu. Mas a verdade que foi muito alm da convenincia da profisso,desenvolvendo por ela um grande interesse pessoal. Alm de estudar a his-tria dos zulus e do seu contato com os europeus, e de refletir sobre a suaorganizao militar, que foi capaz de infligir aos britnicos, em janeiro de1879, a dura derrota na batalha de Isandhlwana (que ele narrou num ro-mance de 1885, intitulado A cabea da feiticeira), Haggard dedicou-se aprendizagem da lngua e da cultura zulus. E consta que teve um caso comuma mulher africana.

    Quando retornou ao seu pas, Haggard levava consigo, assim, alm daspaisagens africanas e das lendas que corriam sobre umas runas h pouco

  • HENRY RIDER HAGGARD

    descobertas ao norte do Transvaal, muitas experincias de viagem e anota-es de costumes, linguagem, fauna, flora e geografia que alimentariampor muitos anos a sua produo de escritor de livros de aventura situados emambientes exticos e misteriosos. Levava tambm, alm disso, um acentua-do senso de patriotismo e, sobretudo, a crena no Imprio Britnico comofator de civilizao e eliminao da barbrie.

    Casado com uma herdeira rica da sua regio de origem (Norfolk), co-meou na metrpole a carreira jurdica, mas em breve a abandonou, reco-lhendo-se sua casa de campo. Dedicou-se ento basicamente literaturae, no final da vida, ao estudo da vida rural inglesa e das tcnicas agrcolas.

    Em 1912, pelo sucesso da obra e, principalmente, pelos trabalhos na Co-misso Real dedicada ao estudo da agricultura inglesa, recebeu o ttulo decavaleiro. Em 1919, seus trabalhos foram novamente reconhecidos com apromoo de seu grau de cavaleiro ao de Comandante do Imprio. Foi, por-tanto, coberto de honrarias que Sir Henry Rider Haggard faleceu em Lon-dres, em 14 de maio de 1925.

    Quando morreu, Rider Haggard tinha publicado mais de quarentavolumes.

    De todos, sobrevivem hoje basicamente os romances de aventuras ambien-tados na frica. Da sua primeira fase literria, A cabea da feiticeira, Asminas de Salomo (1885), Ela, Jess e Allan Quatermain (todos de 1887);da ltima, os trs ttulos da trilogia zulu: Marie (1912), Child of storm(1913) e Finished (1917).

    Desses, foram mais traduzidos e lidos em toda parte, alm de adaptadospara o cinema, As minas de Salomo, Ela e Allan Quatermain.

    Junto de A ilha do tesouro, do escocs Robert Louis Stevenson (1850-1894), e dos livros de Arthur Conan Doyle (1859-1930) e de Rudyard Kipling(1865-1936), os principais romances de Haggard integram uma espcie debiblioteca bsica vitoriana que foi a princpio de leitura geral, mas que jno sculo XX passou a ser eminentemente leitura para rapazes. Se a esseprimeiro conjunto britnico ajuntarmos os romances um pouco posterioresdo criador de Tarzan, o americano Edgar Rice Burroughs (1875-1950),teremos completa a famlia literria a que pertence H. Rider Haggard.

    As minas de Salomo so, como o romance de Stevenson, uma fascinantehistria de aventura e de caa ao tesouro, situada num ambiente extico. Olivro de Haggard, entretanto, agrega ao ncleo da aventura um elementoque o diferencia do de Stevenson: uma situao colonial, com descries geo-grficas, etnolgicas e zoolgicas de uma regio sobre a qual os ingleses

  • AS MINAS DE SALOMO

    exerciam o domnio. Ou seja, o exotismo politizado, um elemento decontraste e de afirmao dos hbitos e das crenas dos heris vitorianos. Defato, As minas de Salomo so uma obra marcada pela j referida crenana misso civilizadora do Imprio e pela defesa dos seus interesses. Esto,portanto, muito mais prximas dos livros de Kipling (Kim, 1901), de quem,alis, Haggard era amigo. J Stevenson, que um ano depois de As minaspublicou O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (1886), ter outra hist-ria ideolgica. Enquanto Haggard e Kipling, apesar de fortemente interes-sados nas culturas dos povos indgenas (e apesar de simpatizarem efetiva-mente com elas), permanecem at o final da vida identificados com os ideaisvitorianos de europeizao completa do mundo colonial e se transformam,por isso mesmo, em figuras emblemticas da sociedade inglesa, Stevenson,mudando-se para a Polinsia, vai tornar-se um crtico dos efeitos da explo-rao europia sobre as culturas nativas.

    Essa diferena de perspectivas talvez estivesse j na origem do livro deHaggard, que desde o incio foi concebido como emulao e contraposio aoromance de Stevenson. De fato, era bem conhecida, na poca, esta histria:quando A ilha do tesouro foi publicado, Haggard no lhe reconheceu o valorque lhe era atribudo pelos contemporneos, e tornou pblica sua posio aoapostar com um amigo cinco xelins em que seria capaz de, em pouco tempo,escrever um romance mais interessante. E o ncleo desse provvel maior inte-resse deveria ser o que h de verdadeiramente diferente entre os dois: o moti-vo colonial.

    No que diz respeito construo do argumento, a base verossmil doenredo do romance de Haggard so as especulaes sobre umas constru-es misteriosas que tinham sido descobertas no interior da regio que nofinal do sculo se chamou Rodsia e que hoje se chama Zimbbue.

    No ano anterior chegada de Haggard a Natal, um explorador chama-do Mauch descreveu pela primeira vez umas portentosas runas existentesna regio ao norte do Transvaal. O nome daquele tipo de construo, nalngua dos habitantes do lugar, era dzimbahwe, e a denominao e oestado de runa eram j antigos, pois desde o sculo XVI viajantes portu-gueses mencionam a existncia de zimbaoes na regio do rio Zambeze.A palavra significaria literalmente casa de pedra, mas equivalia, no usocomum, a tmulo de reis.

    Durante o tempo de vida de Haggard, os zimbbues foram parcamenteinvestigados. Somente em 1905 foram objeto de alguma explorao arqueo-lgica, e apenas foram escavados sistemtica e cuidadosamente em 1958. O

  • HENRY RIDER HAGGARD

    que hoje sabemos que os prdios datam do sculo IX da nossa era, e que amais grandiosa das construes nativas, uma muralha do sculo XIII ouXV, foi construda pela tribo Rosvi. Tambm sabemos que essa tribo lidera-va uma grande confederao de povos, os Xonas, cujos domnios se esten-diam por vastos territrios que hoje so parte do Zimbbue, da frica doSul e de Moambique.

    A descoberta das runas ao norte do Transvaal causou grande sensao,pois elas eram uma demonstrao irrefutvel de que tinha havido, no sulda frica, uma civilizao bastante mais desenvolvida do que at ento seimaginara. Imediatamente surgiram vrias especulaes, de grande apelopara a imaginao finissecular. Especulaes no apenas quanto origemdas runas, mas tambm quanto ao destino do povo que erguera os edifciose sobre a existncia de grandes tesouros ali escondidos.

    Haggard tinha conscincia de que boa parte do interesse pelo seu ro-mance provinha desse tipo de curiosidade, e deixou esse fato registrado,num posfcio edio de 1907. Mas, como ele tambm notava ali comalegria, a curiosidade extica de origem histrica ou baseada no interes-se colonial era apenas um dos fatores, no o nico, do sucesso do romance:Neste ano de 1907, por ocasio do lanamento desta edio, s posso acres-centar que estou muito feliz que o meu romance continue a agradar tan-tos leitores. A imaginao foi confirmada pelos fatos: as Minas de Salomocom que sonhei foram descobertas e esto outra vez produzindo o seu ouroe, de acordo com as ltimas notcias, tambm os seus diamantes. OsCacuanas, ou melhor, os Matabeles, j foram domados pelas balas doshomens brancos. Mas ainda parecem ser muitos os que encontram prazerna leitura destas pginas simples.

    Alm dessas circunstncias especficas ligadas ao tema de As minas, paracompreender corretamente o grande apelo popular de textos como os deHaggard e os de Kipling, preciso considerar que o final do sculo XIX foimarcado, na Europa, por um forte desejo de conhecimento dos locais dis-tantes e dos costumes bizarros. De fato, os ltimos tempos do reinado darainha Vitria (que ocupou o trono de 1837 a 1901) so marcados pelo gostodo extico. Multiplicam-se, para atend-lo, os relatos a respeito da organi-zao social, religio e costumes de outros povos e civilizaes. um mo-mento em que os livros de viagem e os relatos antropolgicos partilham ofavor do pblico e vivem uma simbiose muito produtiva. Para ficar comapenas um exemplo, basta observar que um texto clssico da antropologiavitoriana, O ramo de ouro (1890), de James George Frazer, que foi redigi-

  • AS MINAS DE SALOMO

    do sem trabalho de campo, inteiramente a partir dos inmeros textosento disponveis, torna-se ele mesmo, posteriormente, um grande sucessoliterrio.

    Ea de Queiroz, que viveu em Brstol, deu conta dessa paixo muito in-glesa pelo exotismo. No final de 1881, tratando da indstria editorial ingle-sa, que, numa semana, alm da usual e desmedida quantidade de roman-ces, publicava ainda mais de quinze livros de viagens ou de escopo pura-mente extico, escrevia na Gazeta de notcias, do Rio de Janeiro:

    Mas a gula, a gulodice de livros de viagem tambm considervel, e de restobem explicvel numa raa expansiva e peregrinante, com esquadras em todosos mares, colnias em todos os continentes, feitorias em todas as praias, missio-nrios entre todos os brbaros, e no fundo da alma o sonho eterno, o sonhoamado de refazer o Imprio Romano. Isto produziu um outro tipo industrial o prosador viajante. [...] Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto doGlobo um sujeito de capacete de cortia, lpis na mo, binculo a tiracolo, nopense que um explorador, um missionrio, um sbio coligindo floras raras um prosador ingls preparando seu volume.

    O livro de Haggard, portanto, ao mesmo tempo em que alimentou asespeculaes sobre o significado e a origem dos zimbbues, atendeu tam-bm a esse pblico sedento de relatos de viagem e de exotismo, apresentan-do os costumes, a paisagem, a flora e a fauna da regio sul do continenteafricano com a autoridade de quem l viveu por muitos anos.

    Mas, alm desses elementos de apelo externo, o livro de Haggard tinhatrunfos que o diferenciavam dos demais e lhe asseguraram a sobrevivnciaat os dias de hoje: um livro escrito com elegncia, temperado com boadose de humor, narrado de forma muito simples e centrado nas aventuras enas surpresas dos episdios e dos cenrios. Foi essa feliz combinao defatores que distinguiu As minas de Salomo de tantos outros livros publi-cados na mesma poca, e que fez dele um clssico do gnero.

  • HENRY RIDER HAGGARD

    O TRADUTOR

    Ea de Queiroz (1845-1900) um dos maiores romancistas do sculoXIX. Seu estilo irnico, sua linguagem simples e gil, sua capacidade decriar caracteres memorveis, que entraram para o patrimnio da culturacomum, como o Conselheiro Accio, tornaram-no um dos autores mais li-dos no mundo de lngua portuguesa. Autor de alguns livros fundamentais econstantemente reeditados, como, entre outros, O primo Baslio, Os Maiase A cidade e as serras, Ea dispensa, por certo, apresentao.

    Mas no se pode dizer o mesmo a respeito da sua atividade de tradu-tor, que alis, bastante pequena. Alm de As minas, no se tem notciade outro trabalho seu desse tipo e dessa extenso. Se o fez, no o assinou.Uma questo a responder, portanto, : por que Ea escolheu justo esse ro-mance para traduzir?

    Antes, porm, de tratar esse ponto, preciso estabelecer claramente umoutro: ter sido mesmo Ea de Queiroz o tradutor do livro de Haggardpara o portugus? A questo pode parecer absurda, pois nos acostumamos apensar que sim, e j um lugar comum dizer que, neste caso, a traduoresultou num texto melhor do que o original. E de tal forma pareceu sem-pre to certo que o trabalho fosse de Ea, que As minas de Salomo hmuito tempo vm sendo publicadas junto com os romances do autor, na co-leo das Obras de Ea de Queiroz da editora portuguesa Lello.

    H, porm, crticos muito respeitveis que ainda hoje hesitam em atri-buir a autoria da traduo ao autor de Os Maias. Seus motivos so algumasdeclaraes contraditrias de Ea de Queiroz, que, juntamente com a hist-ria da publicao do texto traduzido, precisam ser bem consideradas.

    A primeira publicao do romance de Haggard em portugus se deu deoutubro de 1889 a junho de 1890 na Revista de Portugal. O texto traziaduas indicaes. Uma, geral, era que o livro era traduzido do ingls. Outra,que se tratava de uma Trad. E. Q., ou seja: de uma traduo feita por Eade Queiroz, que era, alis, o editor da Revista de Portugal.

    Mas em 1888, numa carta ao editor Genelioux, Ea declarara que tinhamandado traduzir o romance, e que apenas o revisara. E quando o textoapareceu na Revista de Portugal, com a indicao acima transcrita, Ea

  • AS MINAS DE SALOMO

    deu-se ao trabalho de escrever a um amigo, Silva Gaio, e pedir-lhe quepusesse nos jornais uma nota em que afirmava que apenas revira o trabalhode traduo, que era de outra pessoa. Logo depois, em outra carta escritano mesmo dia, pede ao amigo que explique aos jornais que a traduo lheteria sido atribuda porque os tipgrafos reconheceram a sua letra nas cor-rees traduo. Nessa ltima carta, pede ainda ao amigo que informe atodos que a traduo, excelente, feita em Inglaterra.

    Isso tudo parece confuso. Ainda mais porque, em outros documentos escritospor Ea na mesma poca, encontramos declaraes muito diferentes, que con-firmam a autoria queiroziana da traduo. De fato, Ea declara ser o tradutorem duas outras cartas ao mesmo editor e em uma terceira a um outro amigo.

    O documento mais importante para esclarecer a questo no , entretan-to, nenhum desses, mas sim uma carta de carter estritamente pessoal: aenviada por Ea sua mulher, em 16 de setembro de 1889. O escritor, queestava em Portugal, escreveu o seguinte a D. Emlia, que permanecia emParis: As minhas noites passam-se invariavelmente em casa, muitas vezestraduzindo As minas.

    Parece um testemunho definitivo. Mas mesmo se encontrssemos algummotivo para no aceit-lo como o ponto final da questo, a anlise do estiloda verso portuguesa do romance, aliada comparao entre o texto tradu-zido e o original, permitir concluir que a tradio est certa e que a tradu-o foi mesmo feita por Ea de Queiroz.

    Vejamos porqu. Em primeiro lugar, porque no h literalidade na tra-duo. H, isso sim, uma enorme interferncia do tradutor, que opera umanova diviso em captulos, corta muitas passagens, substitui outras e, porfim, modifica substancialmente toda uma cena importante do romance. Nonvel da frase, o tradutor quase um outro narrador, pois elimina a maio-ria das palavras transcritas do idioma zulu, modifica dados irrelevantes aoseu bel-prazer, introduz julgamentos, acentua o humor de muitas passa-gens e, por fim, pontua todo o texto com advrbios e adjetivos tipicamentequeirozianos. Portanto, no faz nenhum sentido supor que a traduono seja de Ea, ou que ele apenas ter revisto uma traduo literal feitapor outra pessoa. Primeiro, porque a marca do estilo de Ea est profunda-mente entranhada no texto; depois, porque dificilmente um tradutor con-tratado para operar uma verso literal, que servisse de base escrita deEa, se permitiria tantas liberdades com o texto original.

    Ora, sabemos que Ea viu, no sucesso do romance de Haggard, uma boaoportunidade de alavancar as vendas da Revista de Portugal, que tinham

  • HENRY RIDER HAGGARD

    decado muito depois de um primeiro momento de boa receptividade pelopblico. Nesse quadro, parece razovel imaginar que foi com o objetivo degarantir em Portugal o mesmo sucesso que o livro de Haggard tinha emInglaterra que Ea procedeu a tantas modificaes no original, a ponto de oresultado poder ser visto no como uma traduo, mas como uma adapta-o bastante livre.

    O procedimento, alis, era comum naquele tempo, e um romance do pr-prio Ea, O primo Baslio, quando foi traduzido para o ingls tambm aca-bou por ser muito modificado, pois o seu amoralismo no poderia ser facil-mente assimilado pelo puritanismo vitoriano. As modificaes foram tan-tas que, deixando o adultrio de ser o tema principal, o romance acabou porprecisar ser rebatizado, chamando-se, em ingls, Os dentes do drago. Eaconta o fato a Oliveira Martins, numa carta de 28 de janeiro de 1890, naqual parece mais divertido do que indignado. Talvez porque, como acres-centa, o seu romance, apesar de to modificado na traduo (ou provavel-mente por isso mesmo), tivesse tido uma boa recepo e uma boa vendagem:o tradutor ingls de O primo Baslio cortou-lhe todas as cenas em que osamantes se encontram, e, em geral, suprimiu o adultrio! Deu-lhe alm dis-so o nome de Dragons Teeth. E o livro teve, em Inglaterra e na Amrica,une bonne presse.

    Por esse conjunto de motivos, no parece restar em p nenhuma objeo autoria da traduo portuguesa do romance de Haggard. Parece tambmclaro, pela carta de Ea a D. Emlia, que o romancista traduziu As minasespecificamente para a publicao na Revista. As datas da carta e da publi-cao mostram ainda que ou Ea realizou a traduo em muito pouco tem-po, ou prosseguiu trabalhando nela enquanto os primeiros captulos iamsendo publicados.

  • AS MINAS DE SALOMO

    A TRADUO

    Uma consulta ao ndice do livro original e da verso de Ea j permitenotar que no estamos perante um trabalho corriqueiro de traduo. En-quanto King Solomons mines tem um total de 20 captulos, As minas deSalomo tem apenas 17. Comparando os textos, vemos que Ea operou areduo compondo, em duas ocasies, um s captulo a partir de dois ou trsdo livro original. Assim, o captulo V do livro em portugus, intitulado Anossa entrada no deserto compreende os de nmero V a VII do original:Nossa marcha no deserto, gua! gua! e A estrada de Salomo. J ocaptulo VII da traduo de Ea, chamado O rei Tuala, engloba os denmero IX e X do original, denominados respectivamente O rei Tuala eA caada das feiticeiras.

    Essa redistribuio por captulos , entretanto, uma alterao muito pe-quena da matria traduzida, se comparada com as outras inmeras diver-gncias entre o texto portugus e o texto ingls, algumas das quais realmentenotveis.

    Dois exemplos podem dar uma boa idia da extenso da liberdade deEa frente ao texto de Haggard.

    No captulo XI, intitulado A batalha de Lu, Ea elimina simples-mente dez pginas de descrio de batalhas, substituindo-as por este sim-ples pargrafo:

    No contarei os pormenores sangrentos deste grande combate, que se ficou cha-mando a batalha de Lu. Todos estes medonhos conflitos de selvagens, mesmotravados com a disciplina dos Cacuanas, se assemelham. sempre uma vastaconfuso de corpos escuros e emplumados, um estridente rudo de escudos en-trechocando-se, azagaias reluzindo no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores imen-sos, onde destaca uma nota assobiada, o sgghi! sgghi! que solta o selvagem, quandotrespassa com o ferro o inimigo.

    Ora, o ponto de vista aqui no , evidentemente o do Quatermain deHaggard (ou Quartelmar, como o rebatiza Ea). O que a temos mais pare-ce o efeito da leitura, pelo prprio Ea, do longo captulo intitulado A resis-tncia final do regimento Pardo. Haggard comps uma cena de combate

  • HENRY RIDER HAGGARD

    destinada a enaltecer o valor da disciplina militar e da conscincia dodever, que faz os soldados se oferecerem em sacrifcio individual pelo bemcomum. Na verso original, Quatermain narra a batalha de modo bas-tante objetivo, como soldado envolvido nos acontecimentos. No texto deEa temos uma espcie de repulsa pela cena, em que a disciplina louvadapor Haggard aparece como um elemento secundrio, incapaz de elimi-nar a selvageria.

    Poderamos pensar que, ao operar uma to grave mudana no ponto devista, Ea tivesse acabado por tornar incoerente o texto em portugus. Afinal,Quatermain no um homem um tanto rude, que narra suas memrias emestilo declaradamente simples e que tem apenas a conscincia de dever, jus-tia e poder que era coerente com um aventureiro, que vivia da caa aoelefante e de servir de guia s expedies de estrangeiros? Como um ho-mem assim poderia julgar com tanto desprezo uma cena de batalha de queele mesmo teria participado?

    Sucede que Quartelmar um bocado diferente de Quatermain. Isto : onarrador/personagem de Ea acaba por ser bastante diferente do narrador/personagem de Haggard. De fato, desde as primeiras palavras do romance,a diferena sensvel.

    Eis como Allan Quatermain se dirige ao seu leitor:

    E agora s me resta desculpar-me pelo meu jeito rude de escrever. S posso apre-sentar como justificativa o fato de estar mais acostumado a manejar uma carabi-na que uma pena, e no posso querer imitar os grandes vos literrios e os floreiosque vejo nos romances pois de vez em quando gosto de ler um romance. Eusuponho que eles os vos e os floreios so desejveis, e eu lamento no serhbil para proporcion-los; mas ao mesmo tempo no posso deixar de pensar queas coisas simples so sempre as mais impressivas, e que os livros so mais fceis deentender quando esto escritos de maneira direta, embora eu talvez no tenha odireito de expressar minha opinio sobre esse assunto. Uma lana pontiaguda,diz um ditado Cacuana, no precisa ser polida. Baseando-me no mesmo prin-cpio, arrisco-me a esperar que uma histria verdadeira, por mais estranha queseja, no precisa ser adornada com belas palavras.1

    1 And now it only remains for me to offer apologies for my blunt way of writing. I can but say in excuse of it thatI am more accustomed to handle a rifle than a pen, and cannot make any pretence to the grand literary flightsand flourishes which I see in novels for sometimes I like to read a novel. I suppose they the flights andflourishes are desirable, and I regret not being able to supply them; but at the same time I cannot helpthinking that simple things are always the most impressive, and that books are easier to understand whenthey are written in plain language, though perhaps I have no right to set up an opinion on such a matter. Asharp spear, runs the Kukuana saying, needs no polish; and on the same principle I venture to hope that atrue story, however strange it may be, does not require to be decked out in fine words.

  • AS MINAS DE SALOMO

    E eis agora como se expressa o heri queiroziano Alo Quartelmar:

    Resta-me, pois, implorar benevolncia para a minha tosca maneira de escre-ver. Estou mais habituado a manejar a carabina do que a pena e sempreme foi alheia a fina arte dos arrebiques e floreios literrios. Talvez os livrosnecessitem esses floreios e ornatos; no sei nem possuo autoridade para o de-cidir ; mas, na minha brbara idia, as coisas simples so as maisimpressionadoras e mais facilmente se deve acreditar e estimar o livro,que venha escrito com sria e honesta singeleza. Lana aguda no precisabrilho, diz um provrbio dos Cacuanas; e, movido por este conselho da sabe-doria negra, arrisco-me a apresentar a minha histria, nua, lisa, nas suaslinhas verdadeiras, sem lhe pendurar por cima, para a tornar mais vistosa, osdourados gales da eloqncia.

    Est claro que o heri de Haggard um homem mais simples do que o deEa, e, sobretudo, mais ingnuo. Escreve de modo elegante, mas sente-seinferiorizado face ao mundo letrado. Afirma-se como homem rstico, masconfessa, quase envergonhado, que gosta de ler romances. O heri de Ea mais irnico. Manifesta sua completa recusa ao exagero literrio e acres-centa o desprezo pela eloqncia, inexistente no original. O resultado umpargrafo que lembra um clssico da lngua portuguesa, defendendo a lin-guagem s e simples, mas nem por isso menos literria. Essa diferena deperspectiva, que se deixa ver desde o texto introdutrio, s vai acentuar-secom o decorrer da narrao.

    Para aprofundar o perfil de Quartelmar, Ea elimina do seu texto todasas notas existentes no de Haggard, tanto aquelas em que Quatermain sevangloria do prprio conhecimento da fauna, flora e geografia da frica,quanto aquelas em que Haggard, disfarado de editor, completa as infor-maes de Quatermain ou o corrige se ele se expressa de modo inexato oudemonstra muita ignorncia, como numa passagem em que confundeShakespeare com a Bblia. Da mesma forma, suprime quase todas as pa-lavras em zulu entremeadas na narrativa, abrevia descries e acentua adiferena de perspectiva entre o narrador, habitante da colnia, e os seuscompanheiros ingleses. Quanto a este ltimo ponto, notvel como, sob oolhar de Quartelmar, John Good fica mais cmico, sendo quase reduzi-do a uma caricatura de soldado colonial. Ou seja, Ea, por um lado,elimina o explcito contraste cultural entre o autor instrudo e o

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    narrador meio bronco; por outro, distancia Quartelmar das demaispersonagens, tornando-o muito mais esperto, irnico, crtico e elegantedo que o original.

    Essa modificao do carter de Quatermain/Quartelmar era, por certo,necessria. Se Ea no o tivesse refinado bastante, seria impossvel atri-buir-lhe a linguagem que lhe to prpria e que se caracteriza no apenaspelo humor e pela elegncia da frase, mas tambm pela auto-ironia.

    Um exemplo do distanciamento de Quartelmar em relao s demaispersonagens se pode ver no comentrio que ele faz, no captulo VIII daverso portuguesa, proposta do Baro ao futuro rei Ignosi: a de apoi-lomediante o compromisso de que no novo reinado no houvesse punio semjulgamento por um conselho de ancios. No original, o rei apenas prometejulgamento, mas no por um conselho de ancios, pois considera que osnegros no se podem pautar pelos costumes dos brancos, e a narrao conti-nua, sem quaisquer comentrios. Na verso portuguesa, o narrador,Quartelmar, exclama:

    Era o jri, santssimo Deus! Era a nobre instituio do jri, que esse digno ba-ro queria implantar no centro selvagem da frica! No h seno um liberalingls, para estas esplndidas imposies de civilizao e de ordem. Com razohesitou o astuto Ignosi! Com razo conservou longo tempo dois dedos sobre atesta, calculando.

    J um bom exemplo do novo estilo de Quartelmar se pode ver nesta pas-sagem, em que o exagero da formulao irnica, de gosto to queiroziano,nada tem a ver com o texto original:

    A nossa nica companhia era a mosca, a mosca ordinria e caseira... Digno evenervel animal! Em qualquer lugar em que o homem penetre, deserto, mon-tanha, caverna a mosca l est. Foi este decerto o primeiro dos seres vivosque surgiu sobre a terra. J havia moscas para pousar no nariz de Ado. Oderradeiro homem h de morrer com uma mosca a zumbir-lhe em torno face. E talvez haja moscas no Paraso2.

    2 Compare-se com a formulao realista e estilisticamente andina de Haggard: He is an extraordinary insectthe house fly. Go where you will you find him, and so it must have been always. I have seen him enclosed inamber, which is, I was told, quite half a million years old, looking exactly like his descendant of to-day, andI have little doubt but that when the last man lies dying on the earth he will be buzzing round if this eventhappens to occur in summer-watching for an opportunity to settle on his nose.

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    No faz sentido listar aqui todas as inmeras alteraes estilsticas ou deestruturao da narrativa realizadas por Ea de Queiroz durante o processode traduo. Mas h uma que precisa ser mencionada, pois mostra maisuma vez, e com mais eloqncia, como Ea agiu com total liberdade, nabusca do melhor efeito literrio possvel.

    Trata-se de uma mudana to impressionante da narrativa original, queespanta que at hoje no tenha sido registrada e comentada pela crtica: asubstituio, no captulo VIII da edio portuguesa de um eclipse lunar porum eclipse solar. Para faz-lo, Ea teve de realizar profundas mudanas nacomposio da cena e na prpria cronologia das aes narradas. um dosmomentos centrais da aventura, e portanto no caso de coment-lo. Masvale registrar que, com a alterao, o texto ganhou muito, seja emdramaticidade, seja em plasticidade, seja mesmo em verossimilhana.

    Depois de identificar e rapidamente comentar esse conjunto de inter-venes de Ea de Queiroz que apenas uma pequena parte do que elede fato operou sobre o texto de Haggard , algumas questes se impem.Quanto ao escopo geral do trabalho, poderamos perguntar que tipo detraduo realizou o romancista portugus, e especular sobre que concep-o tinha ele do que fosse traduzir um texto. J do ponto de vista do pro-duto final, a questo mais importante seria o que resultou do trabalhoempreendido por Ea de Queiroz.

    Dificilmente responderamos satisfatoriamente s questes gerais semuma longa discusso. Mas parece possvel dizer que Ea, em alguma medi-da, entendia a tarefa do tradutor como hoje entendemos a do adaptador deum texto para o teatro ou para o cinema.

    certo que sempre se pode restringir o alcance da formulao e dizer queele s se sentiu autorizado a tomar tantas liberdades com o texto de Haggardporque tinha conscincia de que se tratava de um autor menos importante oude um texto menos literrio. Mas isso no , de forma alguma, demonstrvel. mesmo mais plausvel que o considerasse um autor de primeira linha, jque fazia grande sucesso no tempo e j que foi esse o nico romance que tra-duziu em sua vida, ou, pelo menos, o nico cuja traduo assinou. De qual-quer forma, parece ter apreciado bastante o livro, j que julgou convenientereferi-lo e elogi-lo no corpo de um dos seus prprios romances da fase final,A ilustre casa de Ramires, em cujo captulo IV Gonalo diz sua irm: Comefeito ando com uma idia h dias... Talvez me viesse dum romance ingls,muito interessante, e que te recomendo, sobre as antigas Minas de Ofir, KingSolomons mines Ando com idias de ir para a frica.

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    Fosse como fosse, o que importa acentuar que Ea foi um tradutor mui-to especial: transformou um livro cujas limitaes o relegaram, em toda aparte, leitura de rapazes, num texto de muito bom nvel literrio, quepode satisfazer leitores mais exigentes de todos os tempos e todas as idades.E o fez enxugando bastante a narrativa, eliminando as marcas mais clarasdo interesse propriamente colonialista do texto, aumentando os traos c-micos das personagens, pontuando a narrao com uma ironia muito maisacentuada do que a existente no original e, por fim, vazando o conjuntonuma linguagem elegante e colorida, isto , muito queiroziana.

    Nesse sentido, para os leitores de lngua portuguesa (e para a prpriafortuna crtica do hoje quase esquecido Rider Haggard) foi mesmo umagrande sorte que Ea tenha, em algum momento, tentado salvar a Revistade Portugal com a traduo de um best-seller do momento.

    Paulo Franchetti

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    INTRODUO

    Agora que este livro est impresso, e em vsperas de correr o mundolargo, comea a pesar fortemente sobre mim a desconana de que, paraele ser aceitvel, muito lhe falta como Estilo e como Histria.

    Quanto Histria, realmente, no pretendi, nem tentei meter nestaspginas tudo o que zemos e tudo o que vimos na nossa viagem terrados kakuanas. H, todavia, nesse estranho povo, coisas que mereciamexame detalhado e lento: a sua Fauna, a sua ora, os seus costumes, oseu dialeto (to aparentado com a lngua dos zulus), o magnco siste-ma da sua organizao militar, a sua arte sutil em trabalhar os me-tais Que interessante estudo se faria, alm disso, com as lendas queouvi e colecionei acerca das armaduras de malha que nos salvaram nabatalha de Lu! Que curiosa, tambm, a tradio que entre eles se temperpetuado sobre os Silenciosos, os dois colossos que jazem entradadas cavernas de Salomo! No entanto, pareceu-me (e assim pensaram obaro Curtis e o capito John) que seria mais ecaz contar a histria adireito, e secamente, deixando todas essas particularidades sobre a re-gio e sobre os homens para serem tratadas mais tarde, num tomo es-pecial, com minudncia e largueza.

    Resta-me, pois, implorar benevolncia para a minha tosca maneirade escrever. Estou mais habituado a manejar a carabina do que a pena e sempre me foi alheia a na arte dos arrebiques e oreios literrios.Talvez os livros necessitem esses oreios e ornatos, no sei nem possuoautoridade para o decidir. Mas, na minha brbara idia, as coisas sim-ples so as mais impressionadoras e mais facilmente se deve acredi-tar e estimar o livro, que venha escrito com sria e honesta singeleza.Lana aguda no precisa de brilho, diz um provrbio dos kakuanas;e, movido por esse conselho da sabedoria negra, arrisco-me a apresen-tar a minha histria, nua, lisa, nas suas linhas verdadeiras, sem lhependurar por cima, para a tornar mais vistosa, os dourados gales daEloqncia.

    Alo Quatelmar

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    I

    ENCONTRO COM OS MEUS CAMARADAS

    bem estranho que nesta minha idade, aos cinqenta e seis anos feitos,esteja eu aqui, de pena na mo, preparando-me a redigir uma histria!

    Nunca imaginei que to prodigiosa ocorrncia se pudesse dar na mi-nha vida vida que me parece bem cheia, e vida que me parece bemlonga Sem dvida por a ter comeado to cedo! Com efeito, na idadeem que os outros rapazes ainda soletram nos bancos da escola, j eu anda-va agenciando o meu po por esta velha colnia do Cabo. E por aquiquei desde ento, metido em negcios, em servios, em travessias, emguerras, em trabalhos e nessa dura prosso, que a minha, a caa aoelefante e ao marm. Pois, com toda essa diligncia, s ultimamente, hoito meses, arredondei o meu saco. um bom saco. um saco grado,louvado Deus. Creio mesmo que um tremendo saco! E apesar disso, juroque para o sentir assim, redondo e soante entre as mos, no me arriscavaa passar outra vez os transes deste terrvel ano que l vai. No! Nem ten-do a certeza de chegar ao m com a pele intacta e com o saco cheio. Maseu no fundo sou um tmido, detesto violncias, e ando farto, refarto deaventuras!

    Como dizia, pois, coisa estranhssima que assim me lance a escreverum livro. No est nada no meu feitio ser homem de prosa e de letras ainda que, como outro qualquer, aprecie as belezas da santa Bblia e gozecom a Histria do rei Arthur e da tvola redonda. No entanto, tenho ra-zes, e razes considerveis, para tomar a pena com esta mo inbil queh quase cinqenta anos maneja a carabina. Em primeiro lugar, os meuscompanheiros, o baro Curtis e o digno capito da Armada Real, JohnGood (a quem chamo, por hbito, o capito John), pediram-me pararelatar e publicar a nossa jornada ao reino dos kakuanas. Em segundo

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    lugar, estou aqui em Durban, estirado numa cadeira, inutilizado por umassemanas, com os meus achaques na perna. (Desde que aquele infernalleo me traou a coxa de lado a lado, quei sujeito a essas crises, todos osanos, ordinariamente pelos ns do outono. Foi em ns de outono queapanhei a trincadela. duro que depois de um homem matar, no decursoda sua honrada carreira, quarenta e cinco lees, seja justamente o ltimo,o quadragsimo sexto, que o le e use dele como de tabaco que se masca. duro! Quebra a rotina, a estimvel rotina e para mim, pessoa daordem, qualquer surpresa me sabe pior do que fel.) Em terceiro lugar,alm de encher os meus cios, componho esta histria para meu lhoHenrique, que est em Londres, interno no hospital de S. Bartolomeu,estudando Medicina. uma maneira de lhe mandar uma longussimacarta que o entretenha e que o prenda. Servio de doentes, numa enfer-maria abafada e lbrega, deve pesar intoleravelmente. Mesmo o retalharcadveres termina por ser uma rotina, rica em monotonia e tdio: eassim esta histria, onde tudo h menos tdio, vai, por uns dias, levar aomeu rapaz uma saudvel e alegre sensao de aventuras, de viagens, defora e de vida livre. E enm, como ltima razo, escrevo esta crnica porser, sem dvida, a mais extraordinria que conheo, na Realidade ou naFbula. Digo extraordinria mesmo para os leitores prossionais deromances apesar de nela no haver mulheres, alm da pobre Fulata.H Gagula, sim. Mas esse monstro tinha cem anos, pouca forma huma-na, e no sensibiliza. Em todas estas duzentas pginas, realmente, nopassa uma saia. E todavia, assim escasso como nas graas do feminino,no creio que exista um caso mais raro e mais cativante.

    A nica vez que tive de fazer publicamente uma narrao diante dosMagistrados foi em Natal, quando depus como testemunha sobre a mortedos nossos serviais Khiva e Venvogel. Por essa ocasio comecei assim,muito dignamente, com aprovao de todos, com louvores do peridicode Durban: Eu, Alo Quartelmar, residente em Durban, em Natal,gentleman, declaro e juro que No me parece, porm, que seja essa aadequada maneira de principiar um livro. Alm disso, posso eu armar,em tipo de imprensa, que sou um gentleman? O que um gentleman?O que gentleman? Conheo aqui cafres nus que o so, e conheo cava-lheiros chegados da Inglaterra, com grandiosas malas e anis de armasnos dedos, que o no so. Eu, pelo menos, nasci gentleman apesar deme ter volvido depois num pobre e simples caador de elefantes. Ora, senessa carreira e nos acasos que ela me trouxe, permaneci sempre

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    gentleman, no me compete a mim avaliar. Deus sabe que, com valenteesforo, procurei conservar-me gentleman como nascera. Tenho mor-to, certo, muito homem, mas estas duas mos, bem haja a minha fortu-na, esto puras de sangue intil. Matei para que me no matassem. OSenhor deu-nos as nossas vidas, como sagrados depsitos que lhe perten-cem e que devemos defender. Guiei-me sempre por esse princpio, e contoque o bom Deus, um dia, me dir l em cima: zeste bem, Quartelmar!Este mundo, meus amigos, spero de atravessar, e os destinos violentosimpem-se por vezes com uma lgica inexorvel. Aqui estou eu, homemordeiro, tmido, bonacheiro, que, constantemente, desde criana, me achoenvolvido em carnicinas! Felizmente, nunca roubei. Uma ocasio, ver-dade, abalei com quatro vacas que pertenciam a um cafre. Mas o cafretinha-me rapinado sordidamente e desde ento essas quatro vacas, tra-go-as sempre na conscincia. S quatro vacas. Pois tm-me pesado maisque uma manada de gado!

    Foi h meses, pouco mais ou menos, que encontrei os dois homens quedeviam ser meus companheiros nessa aventura singular terra doskakuanas. Nesse outono, eu andara numa grande batida aos elefantes, paral do distrito de Bamanguato. Tudo nessa expedio me correu mal, e porm acompanhei as febres. Mal me pude ter nas pernas, larguei para asminas de diamantes (as diamanteiras), vendi o marm que trazia, passeio carro e o gado, debandei os caadores e tomei a diligncia para o Cabo.Ao m de uma semana, no Cabo, descobri que o hotel me roubava infa-memente; alm disso, j vira todas as curiosidades, desde o novo JardimBotnico que h de certamente conferir grandes benefcios cidade, atao novo Palcio do Parlamento que, tenho a certeza, no h de conferirbenefcios nenhuns. De sorte que decidi voltar para Natal pelo Dunkeld,pequeno vapor costeiro que estava nas docas espera do paquete de In-glaterra, o Edimburgh Castle. Tomei passagem e fui para bordo. Nessatarde chegou o Edimburgh Castle: os passageiros que trazia para Nataltransbordaram para o Dunkeld e levantamos ferro ao pr-do-sol.

    Entre os passageiros de Inglaterra que mudaram para o Dunkeld, ha-via dois que me despertaram logo certo interesse. Um deles, umhomenzarro de perto de trinta e cinco anos, tinha os ombros mais cheios eos braos mais musculosos que eu at a encontrara, mesmo em esttuas.Alm disso, cabelos ondeados e cor de ouro; barbas ondeadas e cor deouro; feies aquilinas e de corte altivo; olhos pardos, cheios de rmeza ede honestidade. Varo esplndido que me fez pensar nos antigos dina-

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    marqueses. Para dizer a verdade, dinamarqueses s conheci um, moder-no, horrivelmente moderno, que me estafou dez libras, mas lembro-mede ter admirado um quadro, os Antigos dinamarqueses, em que haviahomens assim, de grandes barbas amarelas e olhos claros, bebendo numbosque de carvalhos por grandes cornos que empinavam boca. Esse ca-valheiro (vim a saber depois) era um ingls, um dalgo, um baronet. Cha-mava-se Curtis o baro Curtis. E o que me feriu mais foi ele parecer-seextremamente com algum, que eu encontrara no interior, para alm deBamanguato. Quem? No me podia lembrar.

    O sujeito que vinha com ele pertencia a um tipo absolutamente diferen-te, baixo, reforado, trigueiro e todo rapado. Calculei logo pelas suas ma-neiras que tnhamos ali um ocial da Marinha; e veriquei depois, comefeito, que era um primeiro-tenente da Armada Real, reformado em capi-to-tenente, e por nome John Good. Este impressionou-me pelo apuro.Nunca conheci ningum mais escarolado, mais escanhoado, mais engoma-do, mais envernizado! Usava no olho direito um vidro, sem aro, sem cordel,e to xo que parecia natural como a plpebra. Nem um s momento osurpreendi sem aquele vidro, e cheguei mesmo a pensar que dormia comele cravado na rbita. S muito tarde descobri que noite o metia no bolsodas calas no mesmo bolso em que guardava a dentadura postia, a maisbela, a mais perfeita dentadura que me recordo de ter contemplado, mes-mo em anncios de dentistas. E o capito, dessas, possua duas!

    Apenas nos zemos ao largo, comeou o mau tempo. Brisa forte, nvoamida e fria. Depois, cada solavanco (o Dunkeld, barco de fundo chato,no levava carga) que no se podia arriscar uma passada confortvel natolda. De sorte que me recolhi para junto da mquina, onde fazia umcalorzinho sereno, e ali quei olhando para o pndulo, que marcava, comdesvios largos, o ngulo de balano do Dunkeld.

    Pndulo errado rosnou de repente uma voz ao meu lado, nasombra da noite que caa.

    Olhei. Era o ocial da Marinha. Errado, hein? Acha? perguntei. Acho o qu? Se o vapor se inclinasse quanto marca o pndulo,

    no se tornava mais a levantar Aqui est o que eu acho. Mas sempreassim, com esses capites de Marinha Mercante

    Felizmente, nesse instante, tocou a sineta do jantar, com imenso alviomeu porque se h, sob a cpula dos cus, uma coisa temerosa, aloquacidade de um ocial da Marinha de Guerra, desabafando sobre a

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    inpcia dos ociais da Marinha Mercante. Pior do que essa coisa temero-sa, s a coisa inversa!

    O capito John e eu descemos juntos para o salo. O baro Curtis j lestava, no topo da mesa, direita do comandante do Dunkeld. Johnacomodou-se ao lado do seu companheiro; eu defronte, onde havia doistalheres desocupados. Logo depois da sopa o comandante, com a lament-vel mania dos homens de mar, comeou a falar de caa. Primeiramente decaa mida, de condores e de abutres. Depois passou a elefantes.

    Ah! comandante exclamou ao lado um patrcio meu, de Durban, para elefantes temos presente uma grande autoridade Se h ho-mem na frica que entenda de elefantes, aqui o nosso companheiro eamigo Alo Quartelmar.

    Por acaso, nesse momento, eu pousara os olhos no baro Curtis, e noteique o meu nome, assim pregoado com a minha prosso, lhe causara emo-o e surpresa. John cravou tambm em mim o seu vidro, com uma curio-sidade que faiscava. Por m o baro inclinou-se, atravs da mesa, e numavoz grave e funda, bem prpria do robusto peito de onde saa:

    Peo perdo disse , mas porventura ao senhor. AloQuartelmar que me estou agora dirigindo?

    A ele prprio.O homenzarro passou a mo pelas barbas, e distintamente, muito dis-

    tintamente, o ouvi murmurar: Ainda bem!No se passou mais nada at ao doce. Mas quei ruminando aquele

    espanto e aquele ainda bem!Depois do caf, enchia o meu cachimbo para subir tolda, quando o

    baro, com os seus modos srios e lentos, se adiantou para mim, e meconvidou a passar ao seu beliche, tomar um grogue, e conversar Acei-tei. O baro ocupava um camarote de tolda, o melhor do Dunkeld, espa-oso, arejado, com um sof, espelhos e duas largas cadeiras de verga.

    O capito John viera tambm. Todos trs nos sentamos, acendendo oscachimbos, enquanto o moo corria pelos grogues.

    Houve primeiramente um silncio. Outro criado entrou, a acender ocandeeiro. Por m, apareceram os grogues.

    O baro Curtis, ento, passou a mo pelas barbas, nesse jeito que lheera costumeiro, e voltando-se bruscamente:

    Diga-me uma coisa, senhor Quartelmar Aqui, h dois anos, poreste tempo, esteve num stio chamado Bamanguato, ao norte do Transwaal.No verdade?

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    Perfeitamente respondi eu, pasmado de que aquele cavalheirose achasse, no seu condado, em Inglaterra, to bem informado das jorna-das que eu fazia no sul da frica!

    A negcios, hein? acudiu o capito John. Sim, senhor, a negcios. Levei uma carregao de fazendas, acam-

    pei fora da feitoria, e l quei at liquidar.O baro conservou, durante um momento, pregados em mim os seus

    olhos cinzentos e largos. Pareceu-me que havia neles ansiedade e temor. E, diga-me, encontrou a, em Bamanguato, um homem chamado

    Neville? Encontrei. Esteve acampado ao meu lado durante uns quinze dias,

    a descansar o gado antes de se meter para o norte. Aqui h meses recebieu uma carta de um procurador, perguntando-me se sabia o que era feitodesse sujeito Respondi como pude

    Bem sei! atalhou o baro. Li a sua resposta. Dizia o senhorQuartelmar que esse sujeito, Neville, partira de Bamanguato no princ-pio de maio, num carro, com um servial e um caador cafre chamadoJim, tencionando seguir at Inyati, ltima estao na terra dos matabeles,para de l seguir a p, depois de vender o carro. O senhor QuartelmarDuchamp acrescentava que o carro decerto o vendera ele, porque seismeses depois vira-o em poder de um portugus. Esse portugus no selembrava bem do nome do homem a quem o comprara. Sabia s que eraum branco, e que se metera para o mato com um cafre

    verdade murmurei eu.Houve outro silncio, que eu enchi com um gole no grogue. Por m o

    baro prosseguiu, com os olhos sempre cravados em mim, insistentes eansiosos:

    O senhor Quartelmar no sabe quais eram as razes que levavamassim esse Neville para o Norte? No sabe qual era o m da jornada?

    Ouvi alguma coisa a esse respeito murmurei.E calei-me prudentemente, porque nos amos avizinhando de um pon-

    to em que, por motivos antigos e graves, eu no desejava bolir.O baro voltou-se para o seu companheiro, como para o consultar. O

    outro, por entre a fumaraa do cachimbo, baixou a cabea num sim mudo.Ento o meu homenzarro, decidido, abriu os braos, desabafou:

    Senhor Quartelmar, vou lhe fazer uma condncia! Vou mesmo pediro seu conselho, e talvez o seu auxlio O agente que me remeteu a suacarta aanou-me que eu podia conar absolutamente no senhor

  • AS MINAS DE SALOMO

    Quartelmar, que um homem de bem, discreto como poucos e respeita-do como nenhum em toda a colnia de Natal.

    Dei um sorvo tremendo no conhaque, para esconder o meu embarao porque sou extremamente modesto.

    Senhor Quartelmar concluiu o baro , esse sujeito chamadoNeville era meu irmo.

    Ah! exclamei.Com efeito! Agora, agora recordava eu bem com quem o baro se pare-

    cia! Era com esse Neville. Somente o outro tinha menos corpo, e a barbaescura. Mas nos olhos havia a mesma franqueza, e havia a mesma deciso.

    Era meu irmo continuou o baro. Meu irmo mais novo, enico. At cinco anos, vivemos sempre juntos. Depois, um dia, desgraa-damente, tivemos uma questo, uma terrvel questo. E para lhe dizer averdade toda, senhor Quartelmar, eu me comportei para com meu irmoda maneira mais injusta! Foi sob o impulso do despeito, da clera, certoMas, em suma, comportei-me injustamente.

    Cruelmente murmurou do lado o capito John, que fumava comos olhos cerrados.

    Cruelmente, com efeito. Como o senhor Quartelmar sabe, em Ingla-terra, quando um homem morre sem testamento e no tem seno bens deraiz, tudo passa para o lho mais velho. Ora, sucedeu que meu pai morreuexatamente quando meu irmo Jorge e eu estvamos assim de mal. Herdeitudo, e meu irmo, que no tinha prosso, nem habilitaes, cou semreal. O meu dever, est claro, era criar-lhe uma situao independente. oque todos os dias se faz na Inglaterra, nesses casos. Mas por esse tempo anossa questo estava em carne viva. Eu no lhe ofereci nada. Ele tambm,orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu. Assim camos, de longe, eu rico eele pobre Peo perdo de o fatigar com esses detalhes, senhor Quartelmar,mas preciso pr as coisas bem claras No verdade, John?

    Escrupulosamente claras! acudiu o outro. De resto, o nossoamigo Quartelmar guarda para si esta histria

    Pudera! exclamei. Pois bem continuou o baro , meu irmo possua de seu, nessa

    poca, umas duzentas ou trezentas libras. Um belo dia, agarra nessa mi-sria, toma o nome de Neville, e abala para frica a tentar fortuna! Eu so soube mais tarde, meses depois de ele ter embarcado. Passaram-se trsanos. Notcias dele, nenhumas. Comecei a andar inquieto. Escrevi-lhe.Naturalmente as minhas cartas no lhe chegaram. E eu cada dia mais

  • HENRY RIDER HAGGARD

    aito! Para o senhor Quartelmar compreender tudo bem, deve saber que,desde pequeno, desde o bero, meu irmo foi a forte e grande afeio deminha vida. E, por outro lado, a nossa questo, assim amarga e spera,por sermos ambos muito novos e muito exaltados, nasceu de qu? Deuma mulher cujo nome j quase me esqueci. E meu pobre irmo, coitado,se ainda vivo, no lembrar mais do que eu. Ora aqui tem! E j por issoo senhor Quartelmar compreende

    Perfeitamente, perfeitamente Pois bem, descobrir meu irmo passou a ser a minha idia constan-

    te, dia e noite. Mandei fazer aqui, no Cabo, toda a sorte de pesquisas. Umdos resultados, o mais importante, foi a sua carta, senhor Quartelmar.Importante porque me dava a certeza que, meses antes, meu irmo esta-va na frica, e vivo. Desde esse momento decidi vir eu mesmo, pessoal-mente, continuar as pesquisas. Agentes, por mais dedicados, mais bempagos, no tm o interesse de corao; com o corao justamente que euconto, com a perspiccia, a inspirao especial que ele s vezes possui. Deresto, sempre tencionei visitar as nossas colnias na frica E aqui temo senhor Quartelmar a minha histria. O mais extraordinrio que otivssemos encontrado logo a si, a pessoa justamente que viu meu irmovivo, a pessoa justamente a quem eu ia me dirigir apenas chegasse a Na-tal. Quer que lhe diga? Acho bom agouro. Em todo caso, aqui estou, pron-to para tudo, com o meu velho amigo, o capito John, companheiro el demuitos anos, que teve a dedicao de me acompanhar.

    O outro encolheu os ombros, sorrindo, com a sua esplndida dentadura. No havia neste momento nada interessante a fazer na velha Euro-

    pa! Gasta, insipidssima, a velha Europa!Depois, reenchendo o cachimbo, acrescentou, muito srio: E agora que o nosso amigo Quartelmar conhece os motivos que nos

    trazem frica, e o interesse que nos prende a esse homem chamadoNeville, espero da sua lealdade que no ter dvida em nos dizer tudo oque sabe, ou tudo o que ouviu, a respeito dele. Hein?

    Impressionado, respondi: No tenho dvida, por ser questo de sentimento.

  • AS MINAS DE SALOMO

    II

    PRIMEIRA NOTCIA DAS MINAS DE SALOMO

    Sacudi a cinza do cachimbo na palma da mo e comecei, muito deva-gar, para tudo pr bem claro e bem exato:

    Aqui est o que ouvi a respeito desse cavalheiro Neville. E isso, queme lembre, nunca, at ao dia de hoje, o disse a ningum. Ouvi que essecavalheiro fora para o interior busca das minas de Salomo.

    Os dois homens olharam para mim, com assombro: As minas de Salomo!? Que minas? Onde so? Onde so, no sei. Sei apenas onde dizem que esto. Aqui, h anos vi

    de longe os dois picos dos montes que, segundo corre, lhes servem demuralha. Mas entre mim e os montes, meus senhores, havia duzentasmilhas de deserto. E esse deserto, meus senhores, nunca houve ningum(quero dizer, homem branco) que o atravessasse, a no ser um, noutraseras. Pois toda essa histria vem muito de trs, de h sculos! Eu notenho dvida em a contar, mas com uma condio de que os cavalheirosno a ho de transmitir sem minha autorizao. Tenho para isso razes, efortes. Esto os cavalheiros de acordo?

    Com certeza!Narrei ento, longamente, tudo o que sabia, histria ou fbula, sobre

    as minas de Salomo. Foi h trinta anos que pela primeira vez ouvirafalar dessas minas, de um caador de elefantes, um homem muito srio,muito indagador, que recolhera assim, nas suas jornadas atravs da fri-ca, tradies e lendas singularmente curiosas. Tinha-me eu encontradocom ele na terra dos matabeles, numa das minhas primeiras expediesao interior, busca do elefante e do marm. Chamava-se Evans. Era umdos melhores caadores da frica. Foi estupidamente morto por um b-falo, e est enterrado junto s quedas do Zambeze.

  • HENRY RIDER HAGGARD

    Pois uma noite, sentados fogueira, no mato, sucedeu mencionar eu aesse Evans umas construes extraordinrias com que eu casualmente dera,andando caa do koodo por aquela regio que forma hoje o distrito deLydenburg no Transwaal. Essas obras foram depois encontradas, e apro-veitadas at, pela gente que veio a trabalhar nas minas de ouro. Mas nin-gum (quero dizer, nenhum branco) as tinha visto antes de mim. Erauma estrada enorme, magnca, cortada na rocha viva, levando a umagaleria sem m, metida pela terra dentro, toda de tijolo, e com grandespedregulhos de minrio de ouro empilhados entrada. Obra extraordi-nria! E a raa que a zera desaparecera, sem deixar um nome, nemoutro vestgio de si, alm daquela galeria, que revelava um grande saber,unia grande indstria e uma grande fora!

    Curioso! murmurou Evans. Mas conheo melhor!E contou-me ento que no interior, muito no interior, descobrira ele

    uma cidade antiqssima, toda em runas, que tinha a certeza de ser Or,a famosa Or da Bblia.

    Lembro-me bem a impresso e o assombro com que eu escutei a hist-ria dessa cidade fencia perdida no serto da frica, com os seus restos depalcios, de piscinas, de templos, de colunas derrocadas! Mas depois Evanscou calado, cismando. De repente, diz

    Tu j ouviste falar das serras de Suliman, umas grandes serras quecam para alm do territrio de Machukulumbe, a noroeste?

    No, nunca ouvi. Pois, meu rapaz, ali que Salomo verdadeiramente tinha as suas

    minas, as suas minas de diamantes! Como se sabe? Como se sabe!? Tem graa! Sabe-se perfeitamente. O que

    Suliman seno uma corrupo de Salomo? O nome das serras, real-mente, sempre foi serras de Salomo. Alm disso, uma feiticeira dodistrito de Manica, uma velha de mais de cem anos, contou-me tudoIsto , contou-me que para l das serras vive um povo que da raados zulus, e fala um dialeto zulu, mas como fora, e corpulncia, ecoragem, vale mais que os zulus. Pois nesse povo h videntes, grandesfeiticeiros, que de gerao em gerao, tm trazido o segredo de umamina prodigiosa, que foi de um rei branco, muito antigo, e que aindahoje est cheia de pedras brancas que reluzem De sorte que no hadvida nenhuma.

    Para mim havia toda a dvida. As runas de Or interessavam-me,

  • AS MINAS DE SALOMO

    como da nossa crena e da Bblia; mas das minas de pedras brancas quereluzem, conhecidas em segredo por feiticeiros zulus, teria certamenterido se no fora o respeito devido a um caador to digno como Evans. Demadrugada Evans partiu a acabar tristemente nas pontas de um bfalo.E no pensei mais em Salomo, nem nas suas minas de diamantes.

    Aqui, h vinte anos, porm, em um encontro muito singular que tiveno distrito de Manica, de novo ouvi falar das minas de Salomo, e de ummodo que para sempre me devia impressionar. Era num stio chamadoaringa de Sitanda. No h pior em toda a frica. Fruta nenhuma, caanenhuma, tudo seco, tudo triste e os pretos vendem os ossos de umfrango por fazenda que vale uma vaca.

    Apanhei l um ataque de febre, e estava fraqussimo, enfastiadssimo,quando me apareceu um dia um portugus de Loureno Marques, acom-panhado por um servial mestio. Entre os portugueses de LourenoMarques h sofrvel e h pssimo. Mas esse era dos melhores que euvira um homem muito alto e muito magro, de belos olhos negros, osbigodes j grisalhos todos retorcidos, e umas maneiras graves que mezeram pensar nos velhos dalgos portugueses que aqui vieram h s-culos e de que tanto se l nas histrias. Conversamos bastante nessanoite, porque ele falava um bocado de mau ingls, eu um bocado demau portugus; e soube que se chamava Jos Silveira, e que possuauma fazenda ao p da cidade, em Loureno Marques.

    Na manh seguinte, cedo, antes de partir com o mestio, acordou-mepara se despedir, de chapu na mo, corts e grave como os antigos, os quetinham Dom.

    At mais ver, camarada! Boa viagem! At mais ver!O homem conservava, pregados em mim, os grandes olhos negros que

    rebrilhavam. Depois, acrescentou muito srio: Se nos tornarmos outra vez a encontrar, hei de ser a pessoa mais rica

    deste mundo! E pode contar, camarada, que no me hei de esquecer de si!Nem ri. Estava debilitado para rir. quei estirado na manta olhando

    para o estranho homem que, a grandes passadas, com a cabea alta echeia de esperana, se metia pelo mato dentro.

    Passou uma semana, e melhorei da febre. Uma tarde achava-me senta-do no cho defronte da barraca, rilhando a ltima perna de um desses fran-gos que os pretos me vendiam por chita do valor de uma vaca, e pasmandopara o enorme disco do sol que descia, ao fundo do deserto, quando de

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    repente avistei, escura sobre a vermelhido do poente, numa elevao doterreno, a gura de um homem que era certamente europeu porque traziaum casaco comprido. No momento mesmo em que eu dera com os olhosnele, o homem oscila, cai de bruos e comea a arrastar-se pelo cho, lenta-mente! Com um esforo desesperado, ainda se ergueu, e tentou pelo cmoroabaixo alguns passos que cambaleavam. Por m tombou de novo, e couestirado, como morto, contra um tufo de tojo alto. Gritei a um dos meuscaadores que acudisse. E quando ele voltou, amparando o homem nosbraos, quem hei de eu ver? O Jos Silveira!

    Jos Silveira ou antes o seu miservel esqueleto, com todos os ossosrompendo para fora da pele, mais seca que pergaminho e amarela comogema de ovos. Os olhos saltavam-lhe da cara, a maneira de dois bugalhosde sangue. E o cabelo que eu lhe vira grisalho, vinha branco, todo brancocomo uma bela estriga de linho.

    gua! gemeu ele. gua, pelas cinco chagas de Cristo!O infeliz tinha os beios horrivelmente estalados, e entre eles a lngua

    pendia-lhe, toda inchada e toda negra! Dei-lhe gua com leite, de quebebeu talvez dois quartilhos, a grandes sorvos e sem parar. Foi necessrioarrancar-lhe a vasilha. Depois caiu de costas, rompeu a delirar. Ora ge-mia, ora gritava. E era sempre sobre as serras de Suliman, os diamantes eo deserto!

    Levei-o para dentro da tenda, e, com o pouco que tinha, z o poucoque podia. O homem estava perdido. Rente da meia-noite sossegou. Eu,esfalfado, adormeci. Acordei de madrugada; e, ao primeiro alvor da luz,dou com ele (forma sinistra!) de joelhos, porta da barraca, de olhoscravados para o longe, para o deserto! Nesse instante, um raio de solque nascia frexou atravs do vasto descampado, e foi bater ao fundo, acem milhas de ns, o pico mais alto das serras de Suliman. O homemsoltou um grito, atirou desesperadamente para diante os dois braos deesqueleto:

    L esto elas, Santo Deus, l esto elas! E dizer que no pude lchegar! Parecem to perto! Logo ali, uns passos mais E agora acabou-se,estou perdido, ningum mais pode l ir!

    De repente, emudeceu. Depois virou para mim, muito devagar, a facelvida e como esgazeada por uma idia brusca.

    camarada, onde est voc? J o no distingo, vai-me a fugir a vista! Estou aqui; sossegue, homem. Tenho tempo para sossegar, tenho toda a eternidade! Escute. Eu

  • AS MINAS DE SALOMO

    estou a morrer. Voc tem sido bom comigo, camarada E para que haviaeu de levar o segredo para debaixo da terra? Ao menos algum se apro-veita! Talvez voc l possa chegar, se conseguir atravessar esse desertoque matou o meu pobre criado, que me est a matar a mim

    Comeou ento a procurar tremulamente dentro do peito da camisa.Tirou por m uma espcie de bolsa de tabaco, j velha, apertada comuma correia. Estava to fraco que as suas pobres mos nem puderamdesfazer o n. Fez-me um gesto exausto para que eu o desatasse. Dentrohavia um farrapo de linho amarelado, com linhas escritas, num tomantiqssimo, de cor de ferrugem. E dentro do farrapo estava um papeldobrado.

    O papel murmurou ele numa voz que se extinguia a copiado que est escrito no trapo. Levou-me anos a decifrar, a entender Foium antepassado meu, um dos primeiros portugueses que vieram a Lou-reno Marques, que escreveu isso, quando estava para morrer acol na-quelas serras. Chamava-se D. Jos da Silveira, e j l vo trezentos anosUm escravo que ia com ele, e que cara a esperar, do lado de c do monte,vendo que o amo no voltava, procurou-o, foi dar com ele morto, e trouxepara Loureno Marques o bocado de linho que tinha letras. Desde entocou guardado na nossa famlia. H trezentos anos! E ningum pensouem o decifrar at que eu me meti nisso. Custou-me a vida. Mas talvezoutro consiga. Talvez outro chegue l, s malditas serras! Ser ento ohomem mais rico deste mundo! O mais rico, o mais rico! Tente voc,camarada No d o papel a ningum! V voc!

    As ltimas palavras saram como um dbil sopro. Caiu de costas, reco-meou a delirar. Dali a uma hora tudo acabou. Deus tenha a sua alma emdescanso! Morreu serenamente, sem esforo e sem dor. Por minhas moso enterrei, bem fundo na terra, com fortes pedregulhos por cima do peito.Ao menos assim no daro com ele os chacais.

    Foi ao p da cova, onde o desgraado jazia, que examinei o documento.Era, como disse, um farrapo de linho, rasgado de uma fralda de camisa edo tamanho de um palmo. No topo, tinha os traos de um mapa, ou deum roteiro, rpida e toscamente lanados.

    Era pouco mais ou menos isto:

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  • AS MINAS DE SALOMO

    Por baixo vinham linhas escritas, numa letra muito antiga e cor de fer-rugem. Para mim eram ininteligveis. Mas o papel continha a decifra-o, e dizia assim:

    Estou morrendo de fome, numa cova da banda norte de um destes montes a quedei o nome de Seios de Sab, no que ca mais a sul. Sou D. Jos da Silveira, eescrevo isto no ano de 1590, com um pedao de osso, num farrapo da camisa,tendo por tinta o meu sangue. Se o meu escravo aqui voltar, reparar neste escritoe o levar para Loureno Marques, que o meu amigo [aqui um nome ilegvel], logopela primeira nau que passar para o Reino, mande estas coisas ao conhecimentodEl-Rei, para que Ele remeta uma armada a Loureno Marques, com um troode gente, que se conseguir atravessar o deserto, vencer os kakuana, que so valen-tes, e desfazer os seus feitios (devem vir muitos missionrios), tornaro Sua Alte-za o mais rico Rei da Cristandade. Com meus prprios olhos vi os diamantes semconta amontoados em um subterrneo que era o depsito dos tesouros de Salomo,e que ca por trs de uma gura da Morte. Mas por traio de Gagula, a feiticeirados kakuanas, nada pude trazer, apenas a vida! Quem vier, siga o mapa que tracei,e trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sab, o esquerdo, at chegar ao cimo, deonde ver logo, para o lado norte, a grande calada feita por Salomo. Da sigasempre, e em trs dias de marcha encontrar a aringa do rei. Quem quer quevenha, que mate Gagula. Rezem pelo descanso da minha alma. Que El-Rei Nos-so Senhor seja logo avisado. Adeus a todos nesta vida!

    Tal era o extraordinrio documento que textualmente li ao baro Curtise ao capito, porque trazia sempre comigo (e ainda trago) uma traduodele, em ingls, na carteira.

    Quando acabei, os dois amigos olhavam para mim, mudos de espanto.Por m o capito, com o leve suspiro de quem repousa de uma prolonga-da emoo, bebeu um trago de grogue e mais sereno:

    O nosso amigo, o senhor Quartelmar, no nos tem estado a intrujar?Meti com fora o papel na algibeira, e, erguendo-me, repliquei secamente: Se os cavalheiros assim pensam, no me resta mais nada seno de-

    sejar-lhes muito boas-noites!O baro acudiu, pousando-me no ombro a sua larga mo: Pelo amor de Deus, senhor Quartelmar! Nem John, nem eu duvi-

    damos da sua veracidade. Mas, enm, tenho ouvido dizer que aqui nacolnia coisa corrente e bem aceita troar um pouco dos que chegam, osnovatos em frica E depois essa histria to extraordinria!

    Insisti, ainda ofendido:

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    O original escrito pelo velho dalgo no farrapo de camisa, tenho-oem Durban! Ser a primeira coisa que lhes hei de mostrar l chegan-do! No h uma palavra

    O baro atalhou, gravemente: Toda palavra do senhor Quartelmar coisa sria, e como tal a to-

    mamos.Durante um momento camos calados. Eu serenei. Por m o baro, que

    dera sobre o tapete do beliche alguns passos pensativos, parou diante de mim: E meu irmo? Como soube o senhor Quartelmar que meu irmo

    tentou tambm essa jornada s minas?Narrei ento o que me sucedera com esse sujeito Neville, o quando

    estvamos acampando, lado a lado, em Bamanguato. Eu no o conhecia;nem ento comeamos relaes, apesar de termos o gado junto. Mas co-nhecia perfeitamente o servial que o acompanhava, um chamado Jim.Era um bechuana, excelente caador e, para bechuana, esperto, consi-deravelmente esperto! Na manh em que Neville devia meter-se para oserto, vi Jim, ao p do meu carro, cortando folhas de tabaco.

    Para onde essa jornada, Jim? perguntei eu, sem curiosidade, spara mostrar interesse ao rapaz. Ides a elefantes?

    Jim mostrou os dentes todos, em um riso vivo: No, patro. Vamos a coisa melhor que marm. Melhor que marm!? Ouro? Melhor que ouro! murmurou ele, arreganhando mais os dentes.Calei-me, pois no convinha minha dignidade de patro e de branco

    revelar curiosidade diante de um bechuana. Confesso, porm, que queiintrigado. Dali a pouco Jim acabou de cortar o tabaco. Mas por ali sequedou, rondando, coando devagar os cotovelos, espera, com os olhosem mim. No dei ateno.

    patro! murmurou ele, numa nsia de desabafar.Permaneci indiferente, por dignidade. Ele tornou: patro! Que , homem? Vamos procura de diamantes, patro! atirou-me ele ao ouvido. Diamantes!? Boa! Ento ides para o lado oposto. Devieis meter di-

    reito ao sul, para as Diamanteiras.O bechuana baixou mais a voz: Patro! J ouviu falar das serras de

    Suliman? Pois l que esto os diamantes. O patro nunca ouviu? Tenho ouvido muita tolice na minha vida, Jim.

  • AS MINAS DE SALOMO

    No tolice, patro. Eu conheci uma mulher que veio de l, comum lho, e que vivia em Natal. Morreu h anos, o lho por l anda. Efoi ela que me disse tudo. H l diamantes!

    Olhe, Jim, o que te digo que teu amo vai dar de comer aos abutres,que andam por l esfomeados. E tu, essa pouca carne que tens nos ossos,tambm vai daqui direitinha aos abutres!

    O homem teve outro riso no: A gente tem de morrer, e eu no desgosto de experimentar terras

    novas. O elefante por aqui j no rende. O bechuana c vai para os dia-mantes, e o bechuana vai cantando!

    Pois quando a morte te agarrar pelas goelas, veremos ento se ain-da canta o bechuana!

    Jim abalou. Da a meia hora o carro do senhor Neville ps-se emmarcha para o norte. Mas no rodara ainda dez jardas, quando Jim vol-tou para trs, a correr.

    Adeus, patro! exclamou. No me quis ir de todo sem lhedizer adeus, porque me parece que o patro tem razo, e que nunca maisc voltamos!

    Ouve c, Jim, teu amo vai com efeito s serras de Suliman, ou tudoisso patranha?

    O bechuana jurou que no contava patranhas. O amo ia realmente emdemanda das serras e das minas que estavam para alm. Ainda na vspe-ra o amo dissera que, para tentar fortuna na frica, tanto montava ir emcata de diamantes, como de ouro ou de ferro. Tudo dependia da sorte,porque no torro tudo havia. Assim ele ia aos diamantes, que era o maisrpido para enriquecer ou para morrer.

    Reeti um momento. Escute, Jim. Vou escrever umas palavras a teu amo, Mas hs de

    prometer que no lhas entregas seno em chegando a lnyati!Inyati cava da a umas quarenta lguas. O bechuana prometeu.Rasguei um bocado de papel da carteira, escrevi a lpis estas linhas:

    Quem vier trepe pelas neves que cobrem o Seio de Sab, o esquerdo,at chegar ao cimo, de onde ver logo, para o lado norte, a grande caladafeita por Salomo.

    Bem! Agora, Jim, quando deres este papel a teu amo, dize-lhe quelho manda quem sabe, e que siga bem a indicao! Mas ouviste? S lhods quando chegares a Inyati, que no quero que ele me volte para trs e

  • HENRY RIDER HAGGARD

    me venha fazer perguntas! Entendeste? Ento abala, madrao, que o carrocome caminho!

    Jim agarrou o bilhete e largou a correr. Da a pouco o carro sumiu-sepor trs das colinas. E isso, em verdade, era tudo o que eu sabia a respeitodesse sujeito Neville.

    Mal eu acabara, o baro, sem hesitar, e com perfeita simplicidade, disse: Senhor Quartelmar, vim frica procurar meu irmo. Desde que

    algum o viu, pondo-se em marcha para as serras de Suliman, devo eumesmo marchar tambm para esse lado. Pode ser que o encontre ou quevenha a saber que morreu; ou que volte sem nada saber, na antiga incer-teza; ou que no volte, como o velho dalgo. Em todo o caso o meu dever,desde que me impus essa tarefa, tomar o caminho que meu irmo to-mou. E agora pergunto eu: quer o senhor Quartelmar vir comigo?

    Tambm no hesitei. Foi logo, de golpe: Muitssimo obrigado, senhor baro! Se tentssemos atravessar as

    cordilheiras de Suliman, cvamos l como os dois Silveiras. Eis a minhacndida convico. H em Londres um pobre rapaz que anda nos seusestudos, e que meu lho, e que me no tem seno a mim neste mundo.E por ele, se no j por mim, no me convm por ora morrer. Em todo ocaso agradeo a sua lembrana. de amigo!

    O baro voltou-se para o seu companheiro, com um ar profundamentedesconsolado, e que quase comovia naquele homem to robusto e tonobre. O outro murmurou: pena, grande pena!

    Senhor Quartelmar! exclamou ento o baro. Quando memeto numa empresa, tudo sacrico para a levar a cabo. Eu tenho fortuna,uma grande fortuna, e necessito do seu auxlio. O senhor Quartelmarpode, portanto, pedir-me o que quiser pelos seus servios; j no digodentro do razovel, mas dentro do possvel. Alm disso, apenas chegar-mos a Durban, vamos a um tabelio, e eu obrigo-me, por uma escritura,a continuar a educao de seu lho, no caso de acontecer a si um desastre,ou a deixar-lhe uma independncia, no caso de eu estourar tambm. Vque estou pronto a tudo. Ainda mais. Se, por acaso, descobrssemos osdiamantes, metade deles cariam pertencendo ao senhor Quartelmar,outra metade ao capito John. verdade que nenhum de ns acreditanos diamantes, e, portanto, essa vantagem conta como zero. Mas pode-mos aplicar a mesma regra a ouro ou marm, ou qualquer fazenda queencontrarmos. nalmente, escuso de dizer que todas as despesas da expe-dio correm por minha conta. Creio que no posso fazer mais.

  • AS MINAS DE SALOMO

    Eu olhava para ele, deslumbrado: Baro, essa proposta a mais generosa que tenho recebido na mi-

    nha vida! Mas tambm, que diabo, a empresa seria a mais arriscada emque me tenho metido Preciso pensar. E antes de chegar a Durban eulhe darei a resposta. Por hoje camos aqui.

    Ficamos aqui por hoje! acudiu o capito, erguendo-se, e respi-rando com alvio.

    Com efeito era tarde. Dei as boas-noites aos dois cavalheiros e, no meubeliche, at de madrugada, sonhei com o antigo D. Jos da Silveira, comEl-Rei Salomo, e com montes de pedras que reluziam no fundo deuma caverna.

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    III

    O HOMEM CHAMADO UMBOPA

    Durante o resto da jornada, pensei constantemente na proposta dobaro. Mas nem eu nem ele voltamos a falar de Neville, ou da travessiapara as minas. Na tolda e no beliche as nossas conversas rolavam todassobre caa, sobre aventuras de caa na frica. Os dois, homens de grandesport, no se fartavam de escutar. E eu, velho palrador, cheio de memriase j anedtico, no me fartava de contar.

    Finalmente, numa esplndida tarde de janeiro (que aqui o ms maisquente do ano) avistamos a costa de Natal, com a esperana de dobrar aponta de Durban ao sol-posto. Toda essa costa adorvel, com as suas lon-gas dunas avermelhadas, os ricos tapetes de verdura clara, as alegres aringasdos cafres espalhadas aqui e alm, e a orla espumosa e alva do mar querebenta nas rochas. Mas, justamente perto de Durban, a regio toma umaincomparvel riqueza de tons. Nas ravinas, cavadas pelas enxurradas desculos, fascam riachos inumerveis; o verde do mato mais intenso; osoutros verdes de jardins entremeiam-se com as plantaes de acar; e aespaos uma casa muito branca, sorrindo para a azul placidez do mar, peuma linda nota, humana e domstica, na vastido da paisagem.

    Como disse, contvamos dobrar, antes do sol-posto, a ponta de Durban.Mas quando deitamos ncora j era crepsculo cerrado, tarde demais paraentrar a barra. Tnhamos ainda essa noite a bordo, e descemos ao salo,para um jantar quieto em guas serenas, depois de ver o salva-vidas re-mar para terra com as malas do correio.

    Quando voltamos tolda, a lua ia alta, e to brilhante sobre mar epraia, que quase ofuscava os lampejos largos do farol. Da terra vinham,atravs do ar calmo, aqueles picantes e doces aromas de especiarias, que,no sei por qu, me fazem sempre lembrar hinos de igreja e missionrios.O bairro de Berea parecia em festa, com todas as varandas alumiadas.

  • HENRY RIDER HAGGARD

    Num grande brigue, ancorado ao lado, os marinheiros estavam cantando,ao som do banjo. Era uma noite de encanto, como s as h neste abenoadosul da frica, que lanava sobre a alma uma innita paz, innita e suavecomo a luz que derramava a lua cheia. At o buldogue de um passageiroirlands, que no cessara de rosnar ferozmente durante toda a jornada,cedera enm s pacicadoras inuncias do sul, e dormia, estirado noconvs, com um ar de trgua e de perdo aos homens.

    O baro, o capito John e eu estvamos sentados junto roda do leme,olhando e fumando em silncio.

    Ento, senhor Quartelmar? exclamou de repente o baro, sor-rindo. Aqui estamos em Durban Pensou nas nossas propostas?

    Vamos ou no vamos em companhia busca do senhor Neville? ecoou do lado o amigo John.

    No fugi. Mas ergui-me, e fui, devagar, sacudir para fora da amurada acinza do meu cachimbo. A verdade que, depois de muito matutar, euainda no tomara uma resoluo ou antes a minha resoluo perma-necia vaga, informe, mal assente, necessitando um pequeno impulso ex-terior que a denisse e a xasse. E foi justamente aquela exclamaorisonha dos dois, o movimento de me erguer e de me abeirar da amurada,que tudo xou e deniu no meu nimo. Ainda a cinza no cara na guae j eu estava resolvido a partir.

    Pensei e vou! declarei, voltando a sentar-me. E se os cava-lheiros me do licena, direi as razes por qu, e as condies com qu.

    Expus logo as condies, muito claramente.O baro, em primeiro lugar, corria com todas as despesas; e qualquer

    achado de valor, diamantes, ouro ou marm, feito durante a expedio,seria irmmente dividido entre mim e o capito John. Em segundo lugar,o baro pagar-me-ia em dinheiro de contado, antes de partirmos, qui-nhentas libras, comprometendo-me eu a acompanh-lo e elmente ser-vi-lo at que a jornada terminasse ou por um triunfo ou por um desastre,ou simplesmente por se reconhecer a sua inutilidade. Em terceiro lugar,o baro obrigar-se-ia, por uma escritura, a dar anualmente a meu lho,enquanto durassem os seus estudos, uma penso de duzentas libras, nocaso de eu morrer ou car inutilizado

    Ainda eu no ndara, j o baro aceitara tudo, largamente, alegre-mente! O que eu quero, seja por que preo for (dizia ele), a sua compa-nhia, senhor Quartelmar, o socorro da sua experincia!

    Muito bem. Pois agora, depois de dizer as condies em que vou,

  • AS MINAS DE SALOMO

    quero dizer as razes porque vou. porque se ns tentarmos atravessar asserras de Suliman, no voltamos de l vivos! O que sucedeu ao velhoSilveira, ao que tinha Dom, h trezentos anos; o que sucedeu ao outro, aoque no tinha Dom, h vinte, o que sucedeu naturalmente ao senhor Neville, o que nos vai suceder a ns! No samos de l vivos.

    Olhei atentamente para os dois homens. O amigo John arrepiou umbocado a face. O baro cou impassvel, murmurando apenas:

    Corremos o risco!Eu prossegui: Agora diro os cavalheiros: Se julgas que no sais de l vivo, para

    que vais l? Em primeiro lugar, porque sou fatalista. Se Deus j decidiuque eu hei de morrer nas montanhas de Suliman, nas montanhas deSuliman hei de morrer ainda que l no v. E se Deus decidiu j o con-trrio, posso l ir impunemente e de cara alegre. Isso claro. Em segundolugar, estou velho, e j vivi trs vezes mais do que costuma viver na fricaum caador de elefantes. De sorte que, continuando nessa carreira, e,desgraadamente, no tenho outra, que posso eu durar ainda? Uns anos.Ora, se morresse agora, com as dvidas que me pesam em cima, o meupobre rapaz cava numa situao m, coitado dele! Enquanto que assim,com quinhentas libras soantes, saldo as dvidas; e se estourar, o meu rapaztem diante de si duzentas libras por ano para acabar o curso e para seestabelecer. Ora, aqui tem os cavalheiros a coisa em duas palavras.

    O baro ergueu-se: Excelente homem!, e apertou-me as mos comefuso.

    Essas razes, a ltima sobretudo, fazem-lhe imensa honra, senhorQuartelmar. Imensa honra! Em quanto a sairmos vivos ou no da aven-tura, o tempo dir. Eu, por mim, estou decidido a ir at ao cabo, sejaqual for, triunfo ou morte! Em todo caso, se temos assim de morrer tocedo, no me parecia mau que antes disso, pelo caminho, arranjsse-mos uma batida aos elefantes. Sempre desejei caar elefantes, e com aperspectiva de deixar assim os ossos nas serras de Suliman, prudenteque me apresse No verdade, John?

    Com certeza! De resto, todos ns vimos j muitas vezes a mortediante dos olhos. um detalhe; para que se h de insistir nele? Viemos frica com certo m. H perigos? Acabou-se. Deus grande.

    Est tudo, portanto, decidido conclu eu e parece-me quechegou a ocasio de um grogue.

    Fomos ao grogue.

  • HENRY RIDER HAGGARD

    No dia seguinte desembarcamos. Alojei os meus amigos numa barra-ca que possuo na Berea, e a que chamo, em dias de orgulho, a minhacasa. construda de tijolo, com um telhado de zinco que abriga trsquartos e uma cozinha. Em redor, porm, est plantado um bom jardim,com esplndidas rvores e ores, que um dos meus caadores, chamadoJack, traz lindamente tratadas. um pobre homem a quem um bfaloesmigalhou a perna na terra dos sikukunes. J no pode seguir a caa,mas, na sua qualidade de Griqua, jardina bem coisa que um zulu nun-ca faria decentemente. O zulu tem horror s artes da paz.

    O baro e seu amigo dormiram numa tenda que lhes armei no jardim(dentro de casa no havia espao), no meio do laranjal. Aqui, em Durban,as laranjeiras tm ao mesmo tempo a or e o fruto, de sorte que, com operfume todo em torno, e o brilho das laranjas cor de ouro, e o murmriode guas correntes, o stio era aprazvel e grato. H pior na Europa.

    Logo no dia seguinte, sem mais tardana, comeamos os preparativos.Antes de tudo fomos ao tabelio lavrar a escritura, em que o baro seobrigava a pensionar o meu rapaz; houve diculdade, por jazerem emInglaterra as propriedades do baro, mas arranjou-se uma tangente, esegura, graas s artes de um advogado que, pelos seus servios, apresen-tou a conta infame de vinte libras! Depois recebi o meu cheque de qui-nhentas libras. Satisfeita assim a prudncia, passamos a comprar o carroe as juntas de bois. Descobrimos um carro excelente, com eixo de fer-ro, slido e leve, que j zera uma excurso a Loureno Marques oque garantia a rmeza e resistncia das madeiras. Era um carro dosque chamamos de meia-tenda isto , toldado somente at ao meio, eaberto na frente para as bagagens. Sob o toldo tinha almofades ondepodiam dormir bem duas pessoas; alm disso, suspenses para as espin-gardas e bolsos de guardar roupa. Custou-nos cento e vinte e cinco li-bras, e saiu barato. As juntas de bois eram dez, magncas.Ordinariamente para uma jornada atrelam-se oito juntas, mas para umaaventura dessas vinte bois no vo demais. Todos eram de raa zulu, amais pequena dfrica, mas a melhor; e todos eles salgados. Chamamosaqui salgados aos bois j muito jornadeados pelo sul da frica, e prova,portanto, da gua vermelha que destri s vezes todas as juntas deum carro. Alm disso, todos tinham sido vacinados contra a maleita depulmes, forma horrvel de pneumonia, que nestas terras um agelopara o gado.

    Em seguida organizamos provises e remdios. Esse detalhe deman-

  • AS MINAS DE SALOMO

    dava cincia e cuidado, porque convinha, numa empresa to acidentada,que nem faltasse o necessrio, nem o carro partisse abarrotado e carre-gado em demasia. Para os remdios foi-nos de grande utilidade o capitoJohn, que em tempos estudara para mdico da Armada, e que (alm depossuir, muito a propsito para ns, um estojo de cirurgia e uma farmciade viagem) conservara conhecimentos genricos e uma tolervel prtica.Durante a nossa estada em Durban cortou ele o dedo polegar a um cafrecom uma maestria que fazia apetite ver! O que o perturbou foi o cafre(que observara a operao em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depoispara lhe por outro dedo novo.

    Restava, enm, a importante questo de criados e armas. Armas tnha-mos por onde as escolher entre as que eu possua e a coleo esplndidaque o baro trouxera da Inglaterra. Sete espingardas de dois canos, paradiferentes caas, trs carabinas Winchester, trs revlveres Colts as-sim cou constitudo o nosso armamento. Quanto a criados, depois demuita consulta e reexo, decidimos limitar o nmero a cinco umguia, um boieiro e trs serviais. Boieiro e guia achamos ns facilmenteem dois zulus, que se chamavam um Goza e outro Tom. Mas os serviaiseram de mais difcil e delicada escolha. Da pacincia, da delidade, dacoragem dos serviais poderiam muitas vezes depender as nossas pobresvidas nessa aventura sem igual.

    Finalmente, arranjei dois, um hotentote chamado Venvogel e umrapazito zulu, de nome Khiva, que tinha o mrito (considervel, para osmeus companheiros) de falar ingls com uncia. O hotentote j eu co-nhecia. Era um dos melhores farejadores de caa de toda a frica. Nin-gum mais rijo nem mais resistente. O seu defeito srio consistia na bebida.Mas como amos para regio onde no h guas ardentes, nem quaseguas correntes, pouco importava essa fragilidade do digno Venvogel.

    Tnhamos, pois, dois serviais. O terceiro parecia impossvel descortinar.Tentei, tentei, at que resolvemos partir sem ele, esperando encontrar, an-tes de metermos para o deserto, algum homem aproveitvel entre Inyati eZukanga. Na vspera, porm, da nossa partida, estvamos jantando quan-do Khiva, o rapaz zulu, veio anunciar que um homem se vira sentar no meuportal, minha espera. Mandei entrar. Apareceu um rapago muito esbel-to, robusto, magnco, aparentando trinta anos, e claro demais para zulu.oreou no ar o cajado maneira de saudao, encruzou-se sobre o assoalho,a um canto, e cou calado com singular dignidade. No lhe dei ateno.Assim se deve proceder com os zulus. Se o branco lhes fala com prontido e

  • HENRY RIDER HAGGARD

    agrado, o zulu conclui imediatamente que est tratando com pessoa de pou-co comando. Observei, n