hemilewski (sobre lima barreto)

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sobre Triste Fim

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  • Revista Lngua & Literatura 1

    O Nacionalismo em Triste Fim de Policarpo Quaresma,

    de Lima Barreto2

    Ada Maria Hemilewski 3

    Nas duas primeiras dcadas do sculo XX, o Brasil passa por vrias transformaes polticas, sociais e culturais. Com a Proclamao da Repblica, a antiga oligarquia aucareira, detentora do poder durante o Imprio, substituda pela nova oligarquia do caf, que se consolida no poder atravs do fortalecimento das oligarquias estaduais, as quais controlam todos os eleitores, garantindo sempre a vitria do candidato situacionista. Do fortalecimento dessas oligarquias, passa-se poltica dos governadores, assim chamada porque esses comeam a apoiar e a influenciar a poltica nacional, em troca de benefcios prestados pelo governo federal. A poltica dos governadores transforma-se, rapidamente, na chamada poltica do "caf-com-leite", estabelecida mediante tcito acordo entre os estados mais poderosos da poca: So Paulo e Minas Gerais. A consolidao do governo replubicano marcada pela hegemonia poltica das elites

    2 Monografia apresentada pela autora no Curso de Mestrado, na PUC/RS. 3 Professora de Literatura da URI - campus Frederico Westphalen.

  • desses dois Estados, que se revezam na presidncia da Repblica.

    Quanto ao desenvolvimento da economia, paralelamente crescente importncia do caf, ao efmero surto de borracha e uma industrializao nascente, verifica-se, no plano internacional, a disputa entre a Inglaterra e os Estados Unidos, pela conquista de mercados mundiais. Os Estados Unidos passam a dominar o comrcio com o Brasil, mas isso em nada modifica nossa situao de exportadores de matria-prima e gneros tropicais e de importadores de manufaturados. O Pas continua dependente. S muda o pas do qual depende.

    No aspecto social, os contrastes da sociedade brasileira acentuam-se: de um lado, ex-escravos, imigrantes e o proletariado, de outro, uma classe conservadora, detentora de poder e dinheiro. Da tenso entre esses dois plos resulta um panorama de crises que eclodem em diversas regies, sendo energicamente reprimidas pelo governo.

    Culturalmente, o perodo marcado pela permanncia de valores esttico-ideolgicos do sculo XIX, que se mesclam com outros, renovadores, voltados para a situao nacional e social do pas Na prosa de fico, o paradigma o nacionalismo ufanista representado por Coelho Neto, autor de A capital federal e Miragem, entre outras obras, e o conde Afonso Celso, autor de Porque me ufano de meu pas. Coexistindo com os conservadores, surge um nacionalismo renovador que visa anlise crtica dos problemas brasileiros. Entre os escritores desse grupo, encontra-se Lima Barreto. A respeito de sua obra, Nelson Werneck Sodr, em Literatura e Histria no Brasil Contemporneo, afirma:

    Sua obra, desde o Isaas Caminha, tinha inequvoco

    trao nacional e popular, voltada para os costumes e

    abrigando personagens humildes,

    distantes dos sales celebrados, ao tempo, pelos

    autores consagrados, nos romances mundanos (1987: 39).

  • Revista Lngua & Literatura 3

    O trao nacional, a que Sodr alude, uma caracterstica marcante na obra Triste fim de Policarpo Quaresma. Entrecruzando eventos e personagens da Histria do Brasil com o destino individual da personagem principal, Lima Barreto constri um romance no qual sobressai o nacionalismo, objeto do presente ensaio.

    O tempo histrico enfocado no referido romance o da Primeira Repblica, detendo-se no governo do Marechal Floriano Peixoto, que examinado criticamente por um narrador onisciente. Em Histria e Literatura, Flvio Loureiro Chaves declara:

    Em nenhum outro lugar vir tona, com tanta clareza,

    a crtica assentada sobre a sociedade cujos

    mecanismos de dominao resultaram no desastre de

    Canudos. Mas Lima Barreto um narrador urbano,

    tipicamente carioca, e nele consciente a inteno de

    fazer a crnica do primeiro perodo republicano. H

    de faz-la, no entanto, sob o prisma da stira e da

    caricatura impiedosa que parece tudo abarcar, dos

    burocratas medocres, tirania de Floriano Peixoto,

    dos intelectuais que cultivam o sorriso da sociedade

    aos ativistas polticos que enfrentaro o fuzilamento ao

    raiar do dia seguinte. Afinal, para Lima Barreto, a

    Repblica no era seno o somatrio da velha

    oligarquia rural aliada ao militarismo e burocracia

    do Estado (1991:23 e 24).

    A proclamao da Repblica representa o rompimento definitivo com Portugal, pois, embora o Brasil j fosse um pas independente, a cultura portuguesa exercia um forte fascnio sobre os intelectuais brasileiros do sculo XIX. A mudana da forma de governo possibilita a vitria sobre o colonialismo e reafirma a independncia nacional.

    Triste fim de Policarpo Quaresma uma crtica ao nacio-nalismo ufanista, sacralizante, que invade a literatura aps a in-dependncia e retomado pela intelectualidade brasileira no incio do sculo XX. esse tipo de nacionalismo que impregna a personagem Policarpo Quaresma, como se pode observar na seguinte passagem:

  • Policarpo era um patriota. Desde moo, a pelos vinte

    anos, o amor da Ptria tornou-o inteiro. No fora o

    amor comum, pabrador e vazio; fora um sentimento

    srio, grave e absorvente. Nada de ambies polticas

    ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou

    melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num

    conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a

    meditaes sobre os seus recursos, para depois ento

    apontar os remdios, as medidas progressivas, com

    pleno conhecimento de causa (p. 22).

    Para conhecer o Brasil, a personagem vale-se da leitura de obras de fico e de Histria do Brasil:

    Na fico, havia unicamente autores nacionalistas ou

    tidos como tais: o Bento Teixeira da Prosopopia; o

    Gregrio de Matos, o Baslio da Gama, o Santa Rita

    Duro, o Jos de Alencar (todos), o Macedo, o

    Gonalves Dias (todos), alm de muitos outros. Podia-

    se afianar que nem um dos autores nacionais ou

    nacionalizados de oitenta para l faltava nas estantes

    do maior (P 21).

    Observa-se que os autores citados apresentam, em suas obras, vises ufanistas do Brasil. Entre eles, Quaresma possui a obra completa dos dois maiores representantes do nacionalismo romntico: Jos de Alencar e Gonalves Dias, ambos autores de obras indianistas. A meno a esses autores no deixa dvidas quanto ao tipo de nacionalismo do qual Quaresma est imbudo.

    As obras de Histria do Brasil, lidas pela personagem, tambm so de autores nacionais, que descrevem o pas de uma forma ufanstica, ou de estrangeiros, que viajaram pelo Brasil e descrevem maravilhados o que viram:

    De Histria do Brasil, era farta a messe: os cronistas,

    Gabriel Soares, Gandavo e Rocha Pita; Frei Vicente

    do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira e Silva,

    Handelmann (Gerschichte von Brasilien), Melo

  • Revista Lngua & Literatura 5

    Morais, Capistrano de Abreu, Southey, Varnghagen,

    alm de outros mais raros ou menos famosos. Ento,

    no tocante a viagens e exploraes que riqueza) L

    estavam Hans Staden, o Jean de Lry, o Saint-Hilaire,

    o Martins, o Prncipe de Neuwied, o John Mawe, o von

    Eschwege, o Agassiz, Conto de Magalhes e se

    encontravam tambm Darwin, Freycinet, Cook,

    Bougainville e at o famoso Pigafetta, cronista da

    viagem de Magalhes, porque todos esses ltimos

    viajantes tocavam no Brasil, resumida ou largamente

    (p. 21).

    A partir de tais leituras, imbudo de esprito patritico, Policarpo Quaresma lana-se prtica do nacionalismo. A nfase conferida s leituras, na formao do nacionalismo da personagem, ressalta os laos entre a comunidade tipogrfica e a idia de nao, j indicada por Benedict Anderson, em Nao e conscincia nacional (1989).

    Na tentativa de resgatar as manifestaes culturais ver-dadeiramente brasileiras, a personagem dedica-se ao aprendizado do violo. Embora visto com preconceito, o instrumento , segundo Quaresma, o mais adequado para acompanhar a modinha, "a mais genuna expresso da poesia nacional" (p. 21).

    Quaresma dedica-se tambm ao estudo do tupi-guarani, provocando o deboche dos colegas de repartio que, nas suas costas, passam a cham-lo de Ubirajara, numa clara aluso ao romance de Jos de Alencar. Em casa, ele exige que sua irm s use, na cozinha, produtos nacionais e, quando a irm reclama, ele argumenta: "A nossa terra, que tem todos os climas do mundo, capaz de produzir tudo que necessrio para o estmago mais exigente. Voc que deu para implicar" (p. 26)

    Comentando com Ricardo Corao-dos-Outros que os brasileiros preferem os produtos estrangeiros, opinio com a qual Ricardo concorda, Quaresma faz uma aluso nascente indstria nacional:

  • - Mas um erro... No protegem as indstrias

    nacionais... Comigo no h disso, de tudo que h

    nacional, eu no uso estrangeiro. Visto-me com pano

    nacional, calo botas nacionais e assim por diante! (p. 26).

    Quaresma , de fato, um nacionalista radical. Para ele, s o que genuinamente nacional bom. O jardim s possui plantas nacionais, na chcara, predominam "fruteiras nacionais" (p. 29). A medida que o tempo passa, seu nacionalismo torna-se mais arraigado:

    A convico que sempre tivera de ser o Brasil o

    primeiro pas do mundo e o seu grande amor Ptria,

    eram agora ativos e impeliram-no a grandes

    cometimentos. Ele sentia dentro de si impulsos

    imperiosos de agir, de obrar e de concretizar suas

    idias. Eram pequenos melhoramentos, simples toques,

    porque em si mesmo (era a sua opinio), a grande

    Ptria do Cruzeiro s precisava de tempo para ser

    superior Inglaterra (p. 29).

    No intento de concretizar suas idias, Quaresma tenta resgatar modinhas e canes populares. Alm disso, dedica-se a estudar todas as publicaes sobre folklore, concluindo que todas as canes e tradies mantidas pelo povo brasileiro so estrangeiras. A decepo leva-o a estudar os costumes dos tupinambs e a organizar "um cdigo de relaes, de cumprimentos, de cerimnias domsticas e festas, calcado nos preceitos tupis" (p. 35). O resultado de tanto estudo logo se transforma em ao: quando recebe a visita de sua afilhada Olga e de seu compadre Vicente, ao invs de apertar-lhes a mo, "desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho" (p. 36). Diante da estupefao de todos os que es-tavam na casa, Quaresma explica seus atos com naturalidade:

    - Eis a! Vocs no tem a mnima noo das coisas da

    nossa terra. Queriam que eu apertasse a mo... Isso

    no nosso! Nosso cumprimento chorar quando

  • Revista Lngua & Literatura 7

    encontramos os amigos, era assim que faziam os

    tupinambs (p. 36).

    Apesar de incompreendido por todos, Quaresma continua defendendo seu ponto de vista, no percebendo o ridculo da situao. Encontra no habitante primitivo da terra, cantado em prosa e verso pelos autores romnticos Alencar e Gonalves Dias, a verdadeira cultura brasileira. Num requerimento encaminhado Cmara dos Deputados, prope a substituio do portugus pelo tupi-guarani, alegando que a "emancipao poltica do pas requer como complemento e conseqncia a sua emancipao idiomtica" (p. 50).

    Quaresma considera a exclusividade lingstica um fator determinante para a consolidao da independncia do pas. No entanto, a lngua no foi sequer discutida na Amrica, pois o fato de as colnias compartilharem a mesma lngua com suas metrpoles no se constitui em obstculo independncia. Do ponto de vista lingstico, o fator fundamental para a formao da nao , segundo Anderson (1989), a unidade, e no a exclusividade, como prope Quaresma em seu requerimento.

    Sua proposta recebida com risos e deboches Quaresma passa a figurar nas pginas dos jornais, durante duas semanas. Por mais que pense, ele no consegue entender o motivo da no aceitao de seu pedido, nem da reao da imprensa e dos colegas de repartio. Sua maior preocupao reside na desconfiana de seus colegas de que ele no saiba tupi. Isso se transforma numa idia fixa, levando-o a datilografar, inadvertidamente, um ofcio em tupi, o que causa o maior rebulio na repartio

    A exposio da face ridcula da personagem, justamente quando seu nacionalismo desemboca no indianismo, indica a clara inteno de Lima Barreto em criticar o nacionalismo ufanista romntico, ao qual j se referira quando destacara que a personagem possua todas as obras de Alencar e Gonalves Dias e que os colegas de repartio chamavam Quaresma de Ubirajara.

    Ao mesmo tempo que mostra o nacionalismo ufanista de Quaresma, o narrador traa um painel da sociedade brasileira do incio

  • do sculo, na qual emergia uma classe mdia suburbana que se julgava aristocrtica e, embora tentasse cultivar hbitos modernos, imitando a alta sociedade carioca, identificava-se com os velhos tempos do imprio. Alm disso, o narrador denuncia: a presso social que empurra as moas para o casamento, visto como uma espcie de negcio; a venerao do brasileiro pelo ttulo de doutor; as relaes nas reparties pblicas e no exrcito, onde os critrios de premiao e promoo so pautados pelo favorecimento pessoal, e no pela competncia. Satiriza, tambm, os trmites da burocracia e a falsa sabedoria dos funcionrios graduados, que confundem o tupi e o grego. O quadro social apresentado pelo narrador contrasta com a viso ufanista que Quaresma tem da ptria.

    Na primeira parte da obra, a personagem move-se no espao urbano, mas, na segunda parte, ocorre uma mudana de espao, pois Quaresma, depois de permanecer durante seis meses no hospcio, muda-se para a zona rural. no stio do Sossego, adquirido por sugesto de sua afilhada Olga, que ele pretende provar a fecundidade das terras brasileiras:

    Esperava grandes colheitas de frutas, de gros, de

    legumes; e do seu exemplo, nasceriam mil outros

    cultivadores, estando em breve a grande capital

    cercada de um verdadeiro celeiro, virente e abundante

    a dispensar os argentinos e europeus (p. 71).

    Quaresma acredita que seu exemplo vai produzir um milagre, atravs do qual o Brasil deixar de importar produtos da Argentina e da Europa, realizando a utopia de tornar-se auto-suficiente:

    Ento pensou que foram vos aqueles seus desejos de

    reformas capitais nas instituies e costumes; o que era

    principal grandeza da ptria estremecida era uma

    forte base agrcola, um culto pelo seu solo ubrrimo,

    para alicerar fortemente todos os outros destinos que

    ela tinha que preencher (p. 71).

    Nem o fracasso inicial, nem a estada no hospcio arrefecem o nacionalismo de Quaresma. Acreditando que o futuro da ptria est na

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    agricultura, dedica-se ao cultivo do solo, lutando contra as ervas daninhas, as savas, a peste, as dificuldades de comercializao dos produtos e os baixos preos obtidos em sua venda. Alm dessas dificuldades, para surpresa e espanto de Quaresma, os polticos do municpio, acreditando que ele se estabelecera no "Sossego" com o objetivo de fazer poltica, passam a assedi-lo. Como ele no adere nem situao nem oposio e deixa clara sua inteno de no fazer poltica, inteno na qual ningum acredita, inicia-se uma campanha contra ele: publicao de artigos no jornal do municpio, tentativa de envolv-lo em trapaas eleitorais, intimao e aplicao de multa. Na viso dos grupos, tanto da oposio quanto da situao, Quaresma constitui uma ameaa e precisa ser afastado de Curuzu.

    Diante da rede de intrigas que os polticos do municpio armam ao seu redor, Quaresma conclui que as condies de misria da populao rural so fruto de uma poltica consciente dos detentores do poder, os quais no tm nenhum interesse em realizar as reformas necessrias para modificar tal situao:

    Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu

    folklore, das Modinhas, das suas tentativas agrcolas -

    tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil (p. 107).

    Era preciso trabalhos maiores, mais profundos;

    tornava-se necessrio refazer a administrao.

    Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente,

    removendo todos esses bices, esses entraves, Sully e

    Henrique IV espalhando sbias leis agrrias,

    levantando o cultivador... Ento sim! O celeiro

    surgiria e a ptria seria feliz (p. 108).

    Percebendo quais so os verdadeiros obstculos para que o pas se transforme num celeiro, ele acredita que um governo forte poderia remov-los, protegendo a agricultura, assim como o Duque de Sully, ministro do rei Henrique IV, havia feito na

    Inglaterra. Por isso, quando l no jornal que havia estourado a Revolta da Armada, resolve apoiar Floriano, a quem v como o salvador da

  • ptria. Decidido a defender o governo, envia o seguinte telegrama: "Marechal Floriano, Rio. Peo energia. Sigo j. - Quaresma" (p. 108)

    A presena de Quaresma no stio do "Sossego", em sua malograda tentativa de redimir a agricultura, possibilita o des-vendamento da realidade do meio rural: a misria geral, as terras improdutivas e a pobreza das casas, por falta de uma poltica agrcola adequada, uma vez que o governo s concede auxlio aos imigrantes, ignorando totalmente o agricultor nacional.

    Apesar de tomar conscincia da importncia do poder, instncia decisria dos destinos da nao, Quaresma, em sua in-genuidade, coloca Floriano acima das reais relaes do poder vigente na sociedade brasileira. A certeza de que o Presidente resolveria todos os problemas da agricultura leva-o a redigir um memorial:

    Nele expunham-se as medidas necessrias para o

    levantamento da agricultura e mostravam-se todos os

    entraves, oriundos da grande propriedade, das exaes

    fiscais, da carestia de fretes, da estreiteza dos

    mercados e das violncias polticas (P 119).

    A deciso de Quaresma em participar da luta em defesa do governo muda o foco da crtica do narrador, que se volta para os militares e para o positivismo, base ideolgica da Repblica:

    Os militares estavam contentes, especialmente os

    pequenos, os a/feres, os tenentes e os capites. Para a

    maioria, a satisfao vinha da convico de que iam

    estender a sua autoridade sobre o peloto e a

    companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em

    outros muitos havia sentimento mais puro, desinteresse

    e sinceridade. Eram os adeptos desse nefasto e

    hipcrita positivismo, um pedantismo tirnico, limitado

    e estreito, que justificava todas as violncias, todos os

    assassnios, todas as ferocidades em nome da

    manuteno da ordem, condio necessria, l diz ele,

    ao progresso e tambm ao advento do regime normal,

    a religio da humanidade, a adorao do gro-fetiche,

  • Revista Lngua & Literatura 11

    com fanhosas msicas de cornetins e versos

    detestveis, o paraso enfim, com inscries em

    escritura fontica e eleitos calados com sapatos de

    sola de borracha!... (p. 112).

    Em seguida, descrevendo as dificuldades de Quaresma em aproximar-se de Floriano, o narrador critica os cadetes da Escola Militar que formavam a "falange sagrada":

    Tinham todos os privilgios e todos os direitos,

    precediam ministros nas entrevistas com o ditador e

    abusavam dessa situao de esteio a Sila, para oprimir

    e vexar a cidade inteira.

    Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas

    inteligncias e uma religiosidade especial brotara-lhes

    no sentimento, transformando a autoridade,

    especialmente Floriano e vagamente a Repblica, em

    artigo de f, em feitio, em dolo mexicano, em cujo

    altar todas as violncias e crimes eram oblatas, dignas

    e oferendas teis para a sua satisfao e eternidade (p. 120 e 121).

    O Presidente Floriano Peixoto tambm apresentado criticamente pelo narrador: inicialmente, chama-o de ditador, depois o compara com Sila - general e poltico romano que estabeleceu uma rgida ditadura - e, finalmente, refere-se aos "poderes do Imperador Romano" (p. 121) que ele detinha Ao descrever Floriano, o narrador faz uma verdadeira caricatura do Presidente:

    Era vulgar e desoladora. O bigode cado; o lbio

    inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande

    mosca; os traos flcidos e grosseiros; no havia nem

    o desenho do queixo ou olhar que fosse prprio, que

    revelasse algum dote superior. Era um olhar mortio,

    redondo, pobre de expresses, a no ser de tristeza que

    no lhe era individual, mas nativa da raa; e todo ele

    era gelatinoso parecia no ter nervos (p. 121).

  • O narrador tambm julga o carter de Floriano, como se pode observar nas seguintes passagens:

    A sua preguia, a sua tibieza de nimo e o seu amor

    fervoroso ao lar deram em resultado esse homem-

    talvez que, refratado das necessidades mentais e

    sociais dos homens do tempo, foi transformado em

    estadista, em Richelieu e pode resistir a uma sria

    revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas,

    dinheiro e despertando at entusiasmo e fanatismo. ...

    a sua concepo de governo no era o despotismo,

    nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma

    tirania domstica. O beb portou-se mal, castiga-se.

    Levada a coisa ao grande a portar-se mal era fazer-lhe

    oposio, ter opinies contrrias s suas e o castigo

    no era mais palmadas, sim, porm, priso e morte.

    No h dinheiro no Tesouro, ponham-se as notas

    recolhidas em circulao, assim como se faz em casa

    quando chegam visitas e a sopa pouca: pem-se mais

    gua (p. 123).

    Ao receber o memorial de Quaresma, Floriano faz pouco caso e at rasga um pedao de papel do manuscrito, usando-o para escrever uma ordem. No entanto, apesar de tudo, o nacionalismo de Quaresma continua inabalvel, pois "ele com muitos homens honestos e sinceros do tempo foram tomados pelo entusiasmo contagioso que Floriano conseguira despertar" (p. 123).

    Somente quando Quaresma encontra-se novamente com o Presidente, depois de ter convivido com os militares que gravitam em torno do poder, a personagem percebe seu engano:

    Sara ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha

    esbarrar com um Presidente que o chamava de

    visionrio, que no avaliava o alcance de seus

    projetos, que os no examinava sequer, desinteressado

    daquelas altas coisas de governo como se no o

    fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixara

  • Revista Lngua & Literatura 13

    o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras?

    Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que

    direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus

    concidados, se no se interessava pela sorte deles,

    pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do

    pas, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua

    populao rural? (p. 144).

    Posteriormente, ferido em combate, Quaresma, decepcionado, escreve para a irm:

    Alm do que, penso que todo este meu sacrifcio tem

    sido intil. Tudo o que nele pus de pensamento no foi

    atingido e o sangue que derramei e o sofrimento que

    vou sofrer toda a vida foram empregados, foram

    gastos, foram estragados, foram vilipendiados e

    desmoralizados em prol de uma tolice poltica

    qualquer...

    Ningum compreende o que quero, ningum deseja

    penetrar e sentir; passo por doido, tolo, manaco e a

    vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua

    brutalidade e fealdade (p. 154 e 155).

    A viso ingnua da Ptria e de seus governantes, bem com o nacionalismo ufanista e utpico de Quaresma so substitudos pela tomada de conscincia da realidade brutal e feia que, a duras penas, finalmente consegue enxergar. Todavia, a tomada de conscincia da realidade e a solidariedade humana levam-no priso e morte. Ao escrever uma carta ao Presidente, denunciando que presos, escolhidos a esmo, eram levados para serem executados sumariamente no Boqueiro, ele preso e mandado Ilha das Cobras. No crcere, revendo sua vida, a desiluso o atinge:

    O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa,

    o escrnio; e levou-o loucura. Uma decepo. A

    agricultura? Nada. As terras no eram ferazes e ela

    no era fcil como diziam os livros. Outra decepo. E,

    quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que

  • achara? Decepes. Onde estava a doura de nossa

    gente? Pois ele no a viu combater como feras? Pois

    no a via matar prisioneiros, inmeros? Outra

    decepo. A sua vida, uma srie, melhor, um en-

    cadeamento de decepes (p. 162).

    Finalmente, Quaresma conclui que a ptria que ele idealizara, baseado nas obras que lera durante trinta anos, no existe:

    A ptria que quisera ter era um mito; era um fantasma

    criado por ele no silncio do seu gabinete. Nem a

    fsica, nem a moral, nem a intelectual, nem a poltica,

    que julgava existir havia (p.162).

    Revisando a histria, ele se d conta de que nada mudou, pois no havia interesse em melhorar as coisas. Quaresma percebe, ento, que sua viso das instituies nacionais era idealizada, e no real. Por isso, as coisas no mudavam, e os que estavam interessados em faz-lo eram impedidos:

    Ele se lembrava que h bem cem anos, ali, naquele

    mesmo lugar onde estava, talvez naquela mesma

    priso, homens generosos e ilustres estiveram presos

    por quererem melhorar o estado das coisas de seu

    tempo. Talvez s tivessem pensado, mas sofreram pelo

    seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condies

    gerais tinham melhorado? Aparentemente, sim; mas,

    bem examinado, no (p.163)

    Segundo Ernest Renan, em What is a nation? (9-21), artigo que compe o livro Nation and narration, organizado por Horni Bhabha (1994), uma nao uma comunidade de interesses comuns, a culminao de um passado de esforos, sacrifcios e devoo, e o desejo de viver juntos para perpetuar a herana recebida. Sua garantia o direito de liberdade. Percebe-se, claramente, nas reflexes finais de Quaresma, que os detentores do poder no comungam dos interesses das classes menos favorecidas do Pas, no valorizam os esforos dos homens que desejam legar uma ptria melhor a seus descendentes e no

  • Revista Lngua & Literatura 15

    respeitam a liberdade, eliminando todos os que se opem aos interesses da classe dominante.

    No entanto, se o fim de Policarpo Quaresma trgico, o final da obra no o , pois Lima Barreto antev um futuro para a sociedade brasileira. Olga, a afilhada de Quaresma, aps fracassada tentativa de salvar o padrinho da priso, olhando os bondes e os carros que passam pelas ruas da cidade, adquire a conscincia das transformaes efetuadas na marcha da Histria, percebendo que outras modificaes acontecero. A viso de Olga, uma filha de imigrantes no comprometida com a classe dominante, a esperana de um futuro melhor, cuja Histria ser escrita por pessoas como ela. Essa viso de esperana se contrape total desiluso de Quaresma.

    Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto enfoca dois aspectos do nacionalismo: o ufanista e o crtico. Na obra, ocorre um processo de construo e desconstruo do nacionalismo ufanista. Inicialmente, Lima Barreto constri o nacionalismo ufanista, atravs da personagem principal, mas, medida que Policarpo Quaresma coloca-o em prtica, a imagem que ele possui da Ptria mostra sua inconsistncia, pois a realidade outra, diferente da representada nas obras que leu e, a partir das quais, criou a imagem de seu pas. O processo de desconstruo lento, possibilitando ao leitor acompanhar a evoluo da conscincia da personagem, que vai, gradativamente, perdendo a ingenuidade inicial, at atingir a desiluso.

    O primeiro desencontro entre a realidade e a viso ufanista de Quaresma ocorre quando ele prope a adoo do tupi e ridicularizado pela sociedade, sendo, por isso, levado loucura. Saindo do hospcio, dedica-se agricultura, na tentativa de comprovar que o Brasil pode se tornar auto-suficiente na produo de alimentos. Defronta-se, ento, com as ervas daninhas, a sava, a peste, os atravessadores e as intrigas dos polticos do interior, modificando sua viso da realidade da agricultura do pas. Conclui sobre a necessidade de atacar a questo do poder. No entanto, constri uma imagem idealizada do Presidente Flo-riano Peixoto, que o conduz a um novo confronto, atravs da viso dos interesses pessoais e das atrocidades cometidas pelos poderosos para se manterem no poder. Desse confronto resulta a desiluso e a

  • desesperana, as quais, nos momentos que antecedem a sua morte, levam-no a questionar o sentido de sua existncia.

    Contrapondo-se ao nacionalismo ingnuo da personagem, a obra apresenta o nacionalismo crtico, voltado realidade da sociedade brasileira do incio do sculo. Na construo do nacionalismo crtico e na correspondente desconstruo do nacionalismo ingnuo, Lima Barreto vale-se da ironia e da caricatura para desvendar as engrenagens viciadas do poder, mantidas por uma elite cujo nico interesse era a conservao dos prprios privilgios. A obra cumpre, assim, com as duas funes que a Literatura pode exercer na busca da identidade nacional, as quais Edouard Glissant, citado por Zil Bernd, em sua obra Literatura e identidade nacional (1992:17-18), denomina sacralizao e dessacralizao. A viso ufanista que Quaresma possui da ptria uma viso sacralizada, prpria de uma conscincia ingnua. Todavia, medida que so desvendadas as engrenagens do poder e mostrados os reais problemas da ptria pelo narrador, ocorre o processo de dessacralizao.

    A obra de Lima Barreto representa, assim, uma ruptura no carter hegemnico do discurso nacionalista que caracterizava a literatura brasileira no perodo romntico e nas primeiras dcadas do sculo XX. tambm um prenncio dos rumos que a fico nacional seguiria a partir da Semana da Arte Moderna, de 1922, consolidados pelo chamado "Romance de 30", reunindo Histria e Literatura, num processo de sondagem e desmascaramento da sociedade brasileira, que permanece at os nossos dias.

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