heleno de freitas - o craque maldito 8

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MAURÍCIO MIRANDA E PEDRO BLANK ENVIADOS ESPECIAIS B ARBACENA E SÃO JOÃO NE- POMUCENO – É difícil confirmar com duas versões verossímeis u- ma mesma história sobre Heleno de Freitas. Hoje, ele completaria 86 anos e não há contestação para esse fato. Seria natural que o mesmo aconte- cesse para sua morte, porém, não há una- nimidade sobre o dia exato de seu fim. No Cemitério Municipal de São João Nepomu- ceno, no túmulo em que estão os restos mortais do ex-craque botafoguense, está talhado na pedra lapidar o dia de seu fale- cimento: 3 de novembro de 1959. Nenhum problema se o seu atestado de óbito não fosse de 8 de novembro, ou seja, cinco dias depois de seu enterro. Heleno está enterrado num túmulo dis- creto, juntamente com o irmão Heraldo. Não consta nenhuma numeração no local em que ele se encontra, o que dificulta bas- tante sua localização no amplo e único ce- mitério da cidade. No simples jazigo de mármore preto, não há qualquer menção ao fato de ali estar enterrado um dos maio- res atacantes brasileiros da história. Nada de símbolo do Botafogo ou de algum outro clube do goleador atormentado. É uma construção humilde, mas que lança no ar a polêmica sobre o dia correto da morte do atleta. O 3 de novembro, gravado em bronze no túmulo do craque, destoa das últimas ano- tações à caneta do prontuário de Heleno na Casa de Saúde São Sebastião que cir- cularam em letra cur- siva o 8 de novembro de 1959. Nem mesmo a prefeitura da cidade natal de Heleno, mais de 46 anos a- pós o funeral do artilheiro, se deu conta de que o jogador havia sido “enterrado vivo”. Curiosamente, percorrendo a peque- na São João Nepomuceno é possível se deparar com outra data de falecimento gravada na praça Heleno de Freitas. A inscrição da morte do jogador, localizada abaixo do seu busto de bronze, aponta pa- ra o mesmo dia 8 de novembro de 1959 da certidão de óbito. Testemunha viva dos últimos dias de Heleno e um dos responsáveis por cuidar do jogador durante seus quase cinco anos de agonia, o médico José Theobaldo Tollen- dal chegou a dar uma risada quando ques- tionado sobre as duas datas. Mas bastou a primeira olhadela nos documentos cuidado- samente guardados na ex-clínica São Se- bastião, de Barbacena – hoje hotel São Se- bastião – para afirmar:”É impossível estar errado. Primeiro, pela questão do óbito, não tem como o cartório errar. Se fosse um er- ro de datilografia na ficha, poderia falar que a secretária tinha feito bobagem, mas está anotado à mão e com a letra do meu sócio, doutor Hermont”. ENTERRADO VIVO O translado do corpo do goleador entre os 148 km que ligam a clínica de Barbacena ao cemitério de Nepomuce- no pareceu ter durado dias. Única parente viva de Hele- no na cidade onde ele nasceu, a sobrinha do jogador e ex- atleta de vôlei, Helenize de Freitas, guarda na lembrança a viagem tumultuada para a família trazer o corpo. Nes- se caso, portanto, a data do enterro gravada no túmulo teria, obrigatoriamente, de ser posterior a 8 de novembro e, não, anterior, como a reportagem de O TEMPO constatou. “Estava chovendo muito e o carro do meu pai – Heraldo, que acompanhava e custeava to- do tratamento de Heleno, juntamente com o ir- mão Oscar – deu defeito na ida, não andava. Pa- recia que era para segurá-lo para não ver a ago- nia do meu tio. Houve realmente um atraso enor- me e a volta demorou muito com o mau tempo”, contou Helenize. Num trecho de uma das cartas trocadas com os médicos Tollendal e Hermont Nascimento, Heraldo confirmou a prolongada via- gem com o corpo do irmão até o seu túmulo, o que reforça a tese de que o enterro do atacante foi a- diado por problemas de transporte. Além de salientar a ida demorada, por conta da chuva torrencial, o irmão mais velho de Heleno re- latou uma volta ainda pior. Depois de trocar de car- ro no meio da estrada, eles ficaram presos num ato- leiro durante toda a noite e só chegaram a Nepocumeno às 9h do dia seguinte. Embora poucas pessoas tenham tomado conhecimento da morte do louco ilustre em Bar- bacena, sigilo pedido pela família, a realidade foi outra na cidade onde ele era considerado o mais nobre filho. Apesar de ter chegado a Nepomuceno ao amanhecer, o corpo do craque só foi enterrado às 15h, por três moti- vos: as rádios locais noticiaram o funeral nesse horário, parentes do jogador estavam de viagem a caminho do en- terro e o comércio local solicitou esse horário para que pudesse fechar suas portas durante o sepultamento. Movimentação Mesmo com apenas nove anos, a sobrinha Helenize guarda imaculada na memória a imagem do adeus ao tio. Todos se mobilizaram para despedir do indiscutível Hele- no no cemitério, de crianças aos anciões que admiravam o seu futebol e seu alucinante estilo de vida. “A cidade in- teira, pequenininha naquela época, estava no enterro. Lembro que os colégios participavam com seus alunos u- niformizados. Meu tio era muito popular e mal podia sair na rua que a molecada ia atrás”, lembra, com orgulho. Um fato inusitado chamou a atenção de Helenize e deixou grande parte do povo nepumucenense curioso. Nem parentes mais próximos e muito menos as pessoas que estavam acompanhando o sepultamento do atacan- te conseguiram descobrir a identidade de uma pessoa que acompanhou o enterro como se fosse um ente que- rido. “Um senhor que ninguém conhecia ficou o tempo inteiro na cabeceira do caixão do meu tio. Foi muito es- tranho e foi um fato curioso, pois ele não falou com nin- guém e foi embora”. Esse é Heleno. Capaz de encantar até na morte. ESPORTES BELO HORIZONTE • DOMINGO • 12 DE FEVEREIRO DE 2006 PÁGINA B5 O TEMPO Considerando o imaginário po- pular, a morte de Heleno de Freitas ocorreu em circunstâncias diferen- tes. Durante o período em que O TEMPO esteve em Barbacena fo- ram apuradas três versões total- mente diferentes sobre a morte do craque enlouquecido. A reportagem teve acesso, em primeira mão, ao prontuário com a causa morte ofi- cial, mas também conversou com outras duas pessoas que confirmam a mitificação sobre o fim de Heleno. Choque de cabeça Seu José Alves Cardoso, 79, ex- funcionário da Liga de Desportos, não tem dúvidas de que Heleno aca- bou louco, na Casa de Saúde São Sebastião. “A estátua que fizeram para o Heleno na Colômbia é que o pôs louco”. Do “ouvi falar”, Cardoso relata o último dia do artilheiro.”E- le morreu alucinado. Falam que os funcionários do hospital se distraí- ram, o Heleno bateu a cabeça na grade e se foi.” Infarto Para o funcionário público Valter Antônio, 61, e que se considera ami- go pessoal de Heleno, o problema do craque nunca foi a loucura. De acor- do com ele, o gigante dos gramados foi derrubado pelo vício. “O Heleno foi internado porque era alcoólatra em último grau”. Valtinho lamenta a perda do amigo que, segundo ele, po- deria estar vivo até hoje. “O Heleno foi recuperado e morreu de infarto. Ele estava no pátio do hospital, dan- do embaixada num bagaço de laran- ja, quando sentiu uma dor, caiu e morreu.” PGP ”O Heleno morreu de paralisia geral progressiva (PGP), fase ter- ciária da sífilis cerebral.” Ao se a- proximar do quarto onde Heleno dormia, o médico José Tollendal fa- lou como foi a morte do goleador. “O enfermeiro encontrou Heleno morto por volta das 10h. Ele estava deita- do na cama, agonizando e com res- piração ofegante. Teve morte instantânea.” Com duas datas de óbito diferentes, nem mesmo após sua morte, Heleno de Freitas fica livre das polêmicas Longa viagem Três versões para uma mesma morte Pela inscrição na lápide de seu túmulo, em São João Nepomuceno, Heleno de Freitas teria morrido no dia 3 de novembro de 1959, ou seja, cinco dias antes do falecimento registrado na ficha da Casa de Saúde São Sebastião e na praça que leva seu nome na cidade natal FOTOS CHARLES SILVA DUARTE

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Reportagem do Jornal O Tempo finalista dos prêmios Esso e Embratel em 2006, de autoria dos jornalistas Pedro Blank e Maurício Miranda

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Page 1: Heleno de Freitas - O craque maldito 8

MAURÍCIO MIRANDA E PEDRO BLANKENVIADOS ESPECIAIS

BARBACENA E SÃO JOÃO NE-POMUCENO – É difícil confirmarcom duas versões verossímeis u-ma mesma história sobre Helenode Freitas. Hoje, ele completaria

86 anos e não há contestação para essefato. Seria natural que o mesmo aconte-cesse para sua morte, porém, não há una-nimidade sobre o dia exato de seu fim. NoCemitério Municipal de São João Nepomu-ceno, no túmulo em que estão os restosmortais do ex-craque botafoguense, estátalhado na pedra lapidar o dia de seu fale-cimento: 3 de novembro de 1959. Nenhumproblema se o seu atestado de óbito nãofosse de 8 de novembro, ou seja, cinco diasdepois de seu enterro.

Heleno está enterrado num túmulo dis-creto, juntamente com o irmão Heraldo.

Não consta nenhuma numeração no localem que ele se encontra, o que dificulta bas-tante sua localização no amplo e único ce-mitério da cidade. No simples jazigo demármore preto, não há qualquer mençãoao fato de ali estar enterrado um dos maio-res atacantes brasileiros da história. Nadade símbolo do Botafogo ou de algum outroclube do goleador atormentado. É umaconstrução humilde, mas que lança no ar apolêmica sobre o dia correto da morte doatleta.

O 3 de novembro, gravado em bronze notúmulo do craque, destoa das últimas ano-tações à caneta do prontuário deHeleno na Casa de SaúdeSão Sebastião que cir-cularam em letra cur-siva o 8 de novembrode 1959. Nem mesmo aprefeitura da cidade natalde Heleno, mais de 46 anos a-

pós o funeral do artilheiro, se deu conta deque o jogador havia sido “enterrado vivo”.

Curiosamente, percorrendo a peque-na São João Nepomuceno é possível sedeparar com outra data de falecimentogravada na praça Heleno de Freitas. Ainscrição da morte do jogador, localizadaabaixo do seu busto de bronze, aponta pa-ra o mesmo dia 8 de novembro de 1959da certidão de óbito.

Testemunha viva dos últimos dias deHeleno e um dos responsáveis por cuidardo jogador durante seus quase cinco anos

de agonia, o médico José Theobaldo Tollen-dal chegou a dar uma risada quando ques-tionado sobre as duas datas. Mas bastou aprimeira olhadela nos documentos cuidado-samente guardados na ex-clínica São Se-bastião, de Barbacena – hoje hotel São Se-bastião – para afirmar:”É impossível estarerrado. Primeiro, pela questão do óbito, nãotem como o cartório errar. Se fosse um er-ro de datilografia na ficha, poderia falar quea secretária tinha feito bobagem, mas estáanotado à mão e com a letra do meu sócio,doutor Hermont”.

ENTERRADO VIVO

O translado do corpo do goleador entre os 148 km queligam a clínica de Barbacena ao cemitério de Nepomuce-no pareceu ter durado dias. Única parente viva de Hele-no na cidade onde ele nasceu, a sobrinha do jogador e ex-atleta de vôlei, Helenize de Freitas, guarda na lembrançaa viagem tumultuada para a família trazer o corpo. Nes-se caso, portanto, a data do enterro gravada no túmuloteria, obrigatoriamente, de ser posterior a 8 de novembro

e, não, anterior, como a reportagem de OTEMPO constatou.

“Estava chovendo muito e o carro do meupai – Heraldo, que acompanhava e custeava to-do tratamento de Heleno, juntamente com o ir-mão Oscar – deu defeito na ida, não andava. Pa-recia que era para segurá-lo para não ver a ago-nia do meu tio. Houve realmente um atraso enor-me e a volta demorou muito com o mau tempo”,contou Helenize. Num trecho de uma das cartastrocadas com os médicos Tollendal e HermontNascimento, Heraldo confirmou a prolongada via-gem com o corpo do irmão até o seu túmulo, o quereforça a tese de que o enterro do atacante foi a-diado por problemas de transporte.

Além de salientar a ida demorada, por conta dachuva torrencial, o irmão mais velho de Heleno re-latou uma volta ainda pior. Depois de trocar de car-ro no meio da estrada, eles ficaram presos num ato-

leiro durante toda a noite e só chegaram a Nepocumenoàs 9h do dia seguinte. Embora poucas pessoas tenhamtomado conhecimento da morte do louco ilustre em Bar-bacena, sigilo pedido pela família, a realidade foi outrana cidade onde ele era considerado o mais nobre filho.

Apesar de ter chegado a Nepomuceno ao amanhecer,o corpo do craque só foi enterrado às 15h, por três moti-vos: as rádios locais noticiaram o funeral nesse horário,parentes do jogador estavam de viagem a caminho do en-terro e o comércio local solicitou esse horário para quepudesse fechar suas portas durante o sepultamento.

MovimentaçãoMesmo com apenas nove anos, a sobrinha Helenize

guarda imaculada na memória a imagem do adeus ao tio.Todos se mobilizaram para despedir do indiscutível Hele-no no cemitério, de crianças aos anciões que admiravamo seu futebol e seu alucinante estilo de vida. “A cidade in-teira, pequenininha naquela época, estava no enterro.Lembro que os colégios participavam com seus alunos u-niformizados. Meu tio era muito popular e mal podia sairna rua que a molecada ia atrás”, lembra, com orgulho.

Um fato inusitado chamou a atenção de Helenize edeixou grande parte do povo nepumucenense curioso.Nem parentes mais próximos e muito menos as pessoasque estavam acompanhando o sepultamento do atacan-te conseguiram descobrir a identidade de uma pessoaque acompanhou o enterro como se fosse um ente que-rido. “Um senhor que ninguém conhecia ficou o tempointeiro na cabeceira do caixão do meu tio. Foi muito es-tranho e foi um fato curioso, pois ele não falou com nin-guém e foi embora”. Esse é Heleno. Capaz de encantaraté na morte.

ESPORTESBELO HORIZONTE • DOMINGO • 12 DE FEVEREIRO DE 2006

PÁGINA B5O TEMPO

Considerando o imaginário po-pular, a morte de Heleno de Freitasocorreu em circunstâncias diferen-tes. Durante o período em que OTEMPO esteve em Barbacena fo-ram apuradas três versões total-mente diferentes sobre a morte docraque enlouquecido. A reportagemteve acesso, em primeira mão, aoprontuário com a causa morte ofi-cial, mas também conversou comoutras duas pessoas que confirmama mitificação sobre o fim de Heleno.

Choque de cabeçaSeu José Alves Cardoso, 79, ex-

funcionário da Liga de Desportos,não tem dúvidas de que Heleno aca-bou louco, na Casa de Saúde São

Sebastião. “A estátua que fizerampara o Heleno na Colômbia é que opôs louco”. Do “ouvi falar”, Cardosorelata o último dia do artilheiro.”E-le morreu alucinado. Falam que osfuncionários do hospital se distraí-ram, o Heleno bateu a cabeça nagrade e se foi.”

InfartoPara o funcionário público Valter

Antônio, 61, e que se considera ami-go pessoal de Heleno, o problema docraque nunca foi a loucura. De acor-do com ele, o gigante dos gramadosfoi derrubado pelo vício. “O Helenofoi internado porque era alcoólatraem último grau”. Valtinho lamenta aperda do amigo que, segundo ele, po-

deria estar vivo até hoje. “O Helenofoi recuperado e morreu de infarto.Ele estava no pátio do hospital, dan-do embaixada num bagaço de laran-ja, quando sentiu uma dor, caiu emorreu.”

PGP”O Heleno morreu de paralisia

geral progressiva (PGP), fase ter-ciária da sífilis cerebral.” Ao se a-proximar do quarto onde Helenodormia, o médico José Tollendal fa-lou como foi a morte do goleador. “Oenfermeiro encontrou Heleno mortopor volta das 10h. Ele estava deita-do na cama, agonizando e com res-piração ofegante. Teve morteinstantânea.”

Com duas datas de óbito diferentes, nem mesmo após sua morte, Heleno de Freitas fica livre das polêmicas

Longa viagem

Três versões para uma mesma morte

Pela inscrição na lápide de seu túmulo, em São João Nepomuceno,Heleno de Freitas teria morrido no dia 3 de novembro de 1959, ou

seja, cinco dias antes do falecimento registrado na ficha da Casa deSaúde São Sebastião e na praça que leva seu nome na cidade natal

FOTOS CHARLES SILVA DUARTE