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Volume 3, Nmero 1 - Agosto de 2017

Universidade Federal Fluminense (UFF)Instituto de Histria (IHT)

Programa de Ps-graduao em Histria (PPGH)Ncleo de Estudos de Representaes e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA)

REVISTA HLADE - ISSN: 1518-2541Ano 3, Volume 3 - Nmero 1

Agosto de 2017

EditoresProf. Dr. Alexandre Santos de Moraes (UFF)

Profa. Dra. Adriene Baron Tacla (UFF)Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF)

Assistentes de EdioProfa. Thas Rodrigues dos Santos (UFF)Grad. Geovani dos Santos Canuto (UFF)

Conselho EditorialProfa. Dra. Ana Livia Bomfim Vieira (UEMA)

Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonalves (UFG)Profa. Dra. Claudia Beltro da Rosa (UNIRIO)

Prof. Dr. Fbio Faversani (UFOP)Prof. Dr. Fbio de Souza Lessa (UFRJ)

Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva (UFES)Prof. Dr. Jos Antnio Dabdab Trabulsi (UFMG)

Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano (USP)Profa. Dra. Monica Selvatici (UEL)

Prof. Dr. Pedro Paulo de Abreu Funari (UNICAMP)

Conselho ConsultivoProf. Dr. lvaro Alfredo Bragana Jnior - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof. Dr. Alvaro Hashizume Allegrette - Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP)Prof. Dr. Antonio Brancaglion Jnior - Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Prof. Dr. Andrs Zarankin - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)Sir Barry Cunliffe - Universidade de Oxford (Inglaterra)

Profa. Dra. Elaine Hirata - Universidade de So Paulo (USP)Dr. Elif Keser Kayaalp - Universidade Mardin Artuklu (Turquia)

Prof. Dr. Fbio Duarte Joly - Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)Prof. Dr. Joo Lupi - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena - Universidade Federal de Gois (UFG)Profa. Titular Lynette G. Mitchell - Universidade de Exeter (Inglaterra)

Profa. Dra. Mrcia Severina Vasques - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)Profa. Dra. Maria Aparecida de Oliveira Silva - Universidade de So Paulo (USP)

Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho - Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP- Franca)Profa. Dra. Maria Cristina Nicolau Kormikiari Passos - Universidade de So Paulo (USP)

Profa. Dra. Maria de Ftima Sousa e Silva - Universidade de Coimbra (Portugal)Profa. Dra. Maria Isabel dAgostino Fleming - Universidade de So Paulo (USP)

PD Dr. Philipp W. Stockhammer - Universidade de Heidelberg (Alemanha)Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni - Universidade Federal do Paran (UFPR)Profa. Dra. Violaine Sebillotte Cuchet - Universit Paris 1 Panthon-Sorbonne

Professor Emrito Wolfgang Meid - Universidade de Innsbruck (ustria)

A responsabilidade pelas opinies emitidas, pelas informaes e ideias divulgadas so exclusivas dos prprios

autores.

SUMRIO

EDITORIALGOLPES DE ESTADO: A PERSPECTIVA DA HISTRIAE A HISTRIA EM PERSPECTIVA ....................................................................... p. 5Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes

DOSSI:GOLPES E FORMAS DE RESISTNCIA NA ANTIGUIDADE

A ORDEM ASTRAL: A AO DO PRINCEPS OTVIOAUGUSTO PELA LEGITIMIDADE DO SEU PODER ................................... p. 10Profa. Dra. Ana Teresa Marques GonalvesProf. Me. Rodrigo Santos M. Oliveira

AS DIFICULDADES DE ATENAS PARA O RETORNO DEMOCRACIA DEPOIS DO GOLPE DOS QUATROCENTOS ................ p. 26Profa. Dra. Lorena Lopes da Costa

NOTAS SOBRE A APATIA POLTICA DO POVO ATENIENSE DURANTE O GOLPE OLIGRQUICO QUE DERRUBOU A DEMOCRACIA ATENIENSE EM 411/410 A.C. ................. p. 46Prof. Me. Flix Jcome Neto

JUSTIA, HYBRIS E TIRANIA EM ATENAS ARCAICA E CLSSICA ........................................................................................... p. 63Profa. Me. Mariana Figueiredo Virgolino

ARISTIDES E AS CIDADES: A ATLEIA E A EVASO DASLITURGIAS NA SIA MENOR, CA. 170 E.C. ................................................. p. 89Profa. Dra. Lolita Guimares Guerra

ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O DEBATE PERSA NAS HISTRIAS DE HERDOTO .................................................. p. 107Prof. Me. Luiz Maurcio Bentim da Rocha Menezes

ETOCLES GOLPISTA? UMA COMPARAO ENTRE OS SETECONTRA TEBAS DE SQUILO E AS FENCIAS DE EURPIDES ............ p. 117Prof. Me. Waldir Moreira de Sousa Jr

ANLISE DO VOCABULRIO DA CRISE DA REPBLICA ROMANA EM 44 A.C. A PARTIR DAS FILPICAS, DE CCERO ............. p. 135Prof. Dr. Gilson Charles dos Santos

PATRIOS POLITEIA: ENTRE GOLPES OLIGRQUICOSA ANCESTRALIDADE DA DEMOCRACIA SE CONSTRI ................... p. 164Prof. Dr. Luis Fernando Telles DAjello

TEMA LIVRE

LA VILLA DE LOS PAPIROS DE HERCULANO EN ELSIGLO XXI: ACTUALIZACIN CIENTFICA Y ESTADO DE LA CUESTIN (200-2016) ......................................................... p. 205Profa. Dra. Mara Paz Lpez MartnezProf. Dr. Andrs Martn Sabater Beltr

CONTRA A MORTE DEFINITIVA: O LIVRO DOS MORTOSCOMO UM GUIA DE MEMRIA NO ALM ................................................ p. 228Keidy Narelly Costa Matias

NORMAS DE PUBLICAO ............................................................................. p. 243PRXIMO NMERO ........................................................................................... p. 245

Editorial

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Editorial

GOLPES DE ESTADO: A PERSPECTIVA DA HISTRIA E A HISTRIA EM PERSPECTIVA

Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes1

No famoso lgos epitphios de Pricles, entusiasticamente codificado por Tucdides, h um amlgama de elogio aos mortos e celebrao da democracia. Na verdade, uma relao de intensa solidariedade ampara essa dupla disposio: nos discursos que fez a respeito de si, a plis dos atenienses justificava reconhecer o valor dos mortos por ser democrtica, e s era democrtica por ter cidados to valorosos como aqueles que primeiro tombaram na Guerra do Peloponeso. Em certo sentido, vigorava a certeza de que a cidade deveria ser objeto do cuidado coletivo. Foi para expressar esse cuidado que, no inverno de 431 a.C., Pricles foi convidado a falar e avanou em direo a uma plataforma alta, assim construda para que a multido pudesse ouvi-lo. Dentre outras coisas, afirmou:

Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior s leis dos nossos vizinhos, mas que, pelo contrrio, digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, no s porque gerida segundo os interesses no de poucos, mas da maioria, e tambm porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidados so iguais (TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso, II, 37).

Afora a mirade de possveis distines entre a democracia ateniense e as democracias modernas, h algo de fundamental posto que fundante que precisa ser observado com rigor: se o que caracteriza os governos democrticos o carter coletivo das decises, o respeito soberania das decises coletivas deve ser assegurado de modo intransigente. Fora isso, qualquer ruptura, quando conduzida por um pequeno grupo revelia da maioria, denuncia uma forma de traio ao princpio vigente. A esse movimento de ruptura, instaurado de forma violenta ou no, por grupos que j detm parte do poder e que dele se utilizam para ampli-lo, d-se comumente o nome de Golpe.

1 Professor do Departamento de Histria e do Programa de Ps-graduao em Histria (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Ncleo de Estudos de Representaes e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA/UFF) e colaborador do Laboratrio de Histria Antiga (LHIA/UFRJ).

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Editorial

A ideia de golpe passou a ser amplamente discutida no Brasil, dentro das muralhas das universidades e fora delas, a partir dos primeiros movimentos que conduziram deposio de Dilma Rousseff. A presidenta, reeleita em 2014 pelo Partido dos Trabalhadores, foi afastada de seu cargo em 12 de maio de 2016 devido instaurao de um processo de impeachment. Seu mandato foi definitivamente cassado em 31 de agosto de 2016. A justificativa jurdico-poltica para o processo foram as chamadas pedaladas fiscais. Diversas dvidas, contudo, sobrepairam o processo por improbidade administrativa, inclusive em funo de uma percia realizada pelo Senado Federal e entregue comisso do impeachment em 27 de junho de 2016, posto que o documento isentava a ento presidenta afastada de participao nas pedaladas fiscais.

Mas no apenas as dvidas acerca das questes fiscais entram na equao. A despeito das possveis divergncias tcnicas que estariam na base do processo, as flagrantes questes polticas envolvidas no impeachment reforaram em muitos a convico de que vivemos um golpe de Estado. As tenses estavam h tempos colocadas, mas o estopim do fato poltico foi claramente motivado pela forma com que o partido de Dilma Rousseff se posicionou a respeito da investigao, no Conselho de tica da Cmara dos Deputados, em um processo por quebra de decoro parlamentar movido contra Eduardo Cunha (PMDB), ento presidente da Cmara. Essa histria foi corroborada pelo atual presidente em exerccio, Michel Temer, em entrevista TV Bandeirantes em maio deste ano: segundo ele, se o PT tivesse votado nele naquela comisso de tica, muito provvel que a senhora presidente continuasse.

Mas se o processo foi alavancado por Eduardo Cunha, a participao ativa do ento vice-presidente e de seu partido refora a hiptese de golpe. Em dezembro de 2015, torna-se pblica uma missiva que Michel Temer teria enviado presidenta Dilma Rousseff fazendo crticas forma com que era supostamente deslocado das decises do governo, autoproclamando-se vice decorativo. Adiante, tambm veio a pblico, na tarde de 11 de abril de 2016, um udio em que o presidente ensaiava um discurso de posse. Temer alegou que, assim como a carta, se tratava de uma questo privada que se tornou conhecida a despeito de sua vontade; outrossim, e apesar da veracidade ou no dessa afirmao, o contedo bastante sugestivo e indica o desejo do ento vice-presidente de ver-se como chefe do Executivo. Esse princpio de publicidade acidental no se aplica, contudo, ao projeto Uma Ponte para o

Editorial

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Futuro2, lanado pelo partido do ento vice-presidente da Repblica em 29 de outubro de 2015. Aps fazer um diagnstico da crise econmica e uma srie de crticas conduo de um governo do qual faziam parte de modo formal e efetivo, o programa do PMDB convida a nao [sic] para participar desse projeto formulado no interior do partido e que no contava com o aval das urnas:

Faremos esse programa em nome da paz, da harmonia e da esperana, que ainda resta entre ns. Obedecendo as instituies do Estado democrtico, seguindo estritamente as leis e resguardando a ordem, sem a qual o progresso impossvel. O pas precisa de todos os brasileiros. Nossa promessa reconstituir um estado moderno, prspero, democrtico e justo. Convidamos a nao a integrar-se a esse sonho de unidade (UMA PONTE PARA O FUTURO, 2015, p. 19)

Poderamos tambm recordar a sesso deliberativa da Cmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, onde os parlamentares presentes se dirigiam ao microfone para declarar o voto favorvel ou contrrio ao impeachment. Presidida pelo prprio Eduardo Cunha, que j era ru em um processo que veio a culminar com sua priso, as declaraes de voto raramente colocavam em questo o mrito do processo.

A todas essas questes, poderiam ser adidas outras tantas que, desde ento, vem tornando a ideia de golpe francamente presente em nosso cotidiano poltico, alm de despertar o interesse intelectual de muitos que investigam esse e outros processos de ruptura, de tentativa de ruptura e de formas de resistncia a aes que parecem contradizer, em prol dos interesses de poucos, o poder decisrio da maioria. Os debates sobre a deposio de Dilma Rousseff continuaro por longos anos e sero objeto de acurada investigao por parte da historiografia. Em alguma medida, a historiografia no apenas tornar esses fatos objeto de rigorosa anlise, mas tambm buscar entender esse momento sui generis da Histria do Brasil, seus efeitos j visveis e tudo aquilo que ainda iremos experimentar ao longo dos anos. Vivemos uma inconteste crise poltica que revela o quanto a democracia frgil e exige nossa atenta observao.

precisamente por isso que a Hlade publica nessa edio o dossi Golpes e formas de resistncia na Antiguidade. Os artigos dialogam com o tema e mostram o quanto a experincia dos povos antigos um locus importante

2 Disponvel em http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf. Acesso em 02 de agosto de 2017.

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Editorial

no apenas para a reflexo a respeito de nossos conflitos contemporneos, mas tambm como espao em que podemos contrapor experincias e identificar questes que nos escapam na ausncia de medidas de comparao. A quantidade significativa de artigos submetidos, encaminhados e aprovados pelos pareceristas ad hoc sinalizam o quanto os historiadores da Antiguidade esto sensveis ao problema e mobilizados para torn-lo, no marco de nosso livre exerccio de reflexo, uma questo a ser analisada por fora das demandas do presente da vida social.

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Golpes e Formas de Resistncia na Antiguidade

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A ORDEM ASTRAL: A AO DO PRINCEPS OTVIO AUGUSTO PELA LEGITIMIDADE DO SEU PODER

Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonalves1

Prof. Doutorando Rodrigo Santos M. Oliveira2

Resumo: Voltamos o nosso olhar para as relaes polticas durante o Principado romano em uma tentativa de compreender nossas experincias do presente. Assim agindo, percebemos que lderes romanos j articulavam suas ideias perante um vasto e heterogneo pblico. Sendo assim, propagar uma boa imagem no seria uma necessidade apenas para o princeps (ou atual): Senado, povo de Roma e provncias precisavam adotar certas posturas a fim de obterem, tambm, benefcios. Um jogo de poder era estabelecido, e para entend-lo, destacamos o governo de Otvio Augusto. Analisamos tal perodo, pois representa uma ruptura entre dois momentos da Histria romana (Repblica e Principado), ao mesmo tempo em que este lder promoveu, ao considerarmos suas posturas e discursos, uma continuidade de elementos tradicionais republicanos. Ou seja, o discurso aludia sua prtica, e convencia os demais de sua legitimidade. Em busca de ordenamento, Marco Manlio, autor de Astronomicas, acabou por nos proporcionar novas ferramentas para a realizao desta anlise; at os astros explicam os poderes atribudos Otvio, ao Senado e ao povo romano. Palavras-chave: Propaganda; Poder; Astrologia; Otvio Augusto.

Introduo

Horrios eleitorais, folhetins informativos durante campanhas, comerciais televisivos, entre outros recursos, so utilizados atualmente para informar o eleitor a respeito dos candidatos que pretendem ocupar qualquer cargo de chefia no governo. Tal propaganda se faz necessria, pois atravs desta ocorre a aproximao mesmo que em um plano abstrato e no fsico entre os que votam e os votados. Atualmente, em nosso sistema democrtico, temos a ideia de que os governantes so escolhidos a partir do voto e pelo povo que

1 Professora Associada 4 de Histria Antiga e Medieval na UFG. Doutora em Histria pela USP. Bolsista Produtividade II do CNPq. Contato: [email protected]

2 Doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Histria UFG, bolsista CAPES, orientado pela Profa. Dra. Ana Teresa M. Gonalves. Contato: [email protected].

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se identifica com as propostas elencadas pelo aspirante a ocupar um cargo do governo. Devido s diferenas percebidas no perodo histrico conhecido como Principado romano, pensou-se, por muito tempo, que a propagao de ideias e imagens no fosse necessria para escolha e legitimao do Princeps. O lder seria escolhido entre um membro da elite romana (especificamente, do grupo senatorial), e por esta governaria, sem precisar realizar o que chamamos hoje de prestao de contas. O poder deste lder seria absoluto e apenas terminaria em ocasio de morte ou de sucesso. Porm, ao nos atentarmos aos estudos recentes sobre a ao do Princeps, percebemos que este desempenhava um papel de maior elasticidade e dependncia em relao aos seus subordinados. Ele tambm necessitava aprender a danar conforme a msica, e no simplesmente ditar regras e ser temido.

Sendo assim, o presente trabalho visa compreender melhor tais relaes durante o Principado romano, especificamente nos centrando na figura de Otvio Augusto. A principal documentao utilizada a obra de Marco Manlio, Astronomicas (sculo I d.C.), na tentativa de entender, a partir de uma fonte no usual para se explicar o panorama poltico, como tais representaes do lder romano eram importantes para a consolidao e legitimao de seu governo, e, ainda, como poderiam ser realizadas. Os astros, signos e pores celestes influenciaram as aes dos seres humanos, servindo para legitim-las ou neg-las.

1 - O Princeps: um panorama geral

Como aponta Louise Revell (2009, p.80), o Princeps seria uma abstrao, pois representava mais que um indivduo em exerccio de uma magistratura: a habilidade de indivduos especficos pode ser desafiada, mas no a figura do Imperador como detentor da autoridade poltica. Sendo assim, o Imperador era aquele que, alm de possuir a magistratura, desempenhava um papel de autoridade, ou seja, um status superior verificado em um plano ideolgico e no prtico/legal. O poder que exercia se mantinha e se legitimava a partir das magistraturas que agregava ou negava, assim como fez Otvio. A repetio com que ganhava tais cargos mostrava a autoridade e o controle que cada Princeps possua.

Temos que nos atentar ao fato de que nem todos os lderes possuam os mesmos cargos e se destacavam da mesma forma. Vide o exemplo de Otvio e de Tibrio (linha sucessria): ambos se utilizaram de mecanismos similares para atingir seus objetivos perante o Senado e o povo de Roma; porm, enquanto o primeiro foi tido como humilde e legitimamente possuidor da

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honra necessria para governar, o segundo foi tachado como exemplo de falsa modstia e um lder ruim. (SUETNIO, Vida de Tibrio, v. 28-35)

So inmeras as hipteses, generalizaes e esteretipos construdos. Um desses, deveras difundido entre historiadores da Antiguidade, o apresentado por Paul Veyne (2009). Em seu livro, O Imprio Greco-Romano, este autor elege como melhor forma de representao de um Imperador um modelo bem curioso3:

Quem era o Imperador romano? Um aventureiro bem sucedido ou cujo pai obtivera sorte; a dignidade imperial no estava, ento, ancorada ao grave rochedo da propriedade patrimonial que atravessa os sculos (VEYNE, 2009, p. 4).

Tal imagem no satisfaz nossa necessidade de construo da figura imperial. O Princeps, a partir desta anlise, quase um inconsequente, um acaso, sendo altamente dependente da indicao e dos bens do seu pai para poder sobreviver e possuir a legitimao necessria. Vnculos com ancestrais importantes no eram suficientes para manter algum no comando. Utilizando-nos novamente do exemplo de Tibrio, mesmo que se associando a Otvio, sua imagem no se manteve favorvel perante o Senado romano. Mesmo assim, afirmamos que a associao entre o Princeps e seus antepassados era uma poderosa arma de poder. Apenas salientamos que no seria exclusivamente isto a confirmar um governo.

Mesmo que claramente, para ns historiadores, tenha sido institudo um novo modelo poltico a partir de Otvio, denominado como Principado, percebemos que o romano, contemporneo ao evento, no foi sensvel a tal mudana. Ainda nos espelhando na figura deste lder, sabemos que ao assumir as magistraturas e ter o reconhecimento do Senado, Otvio no inaugurou um novo modelo poltico, ao contrrio:

Quando Augusto ganhou supremo poder como Princeps, ele colocou o sistema poltico romano em um caminho que no se desviou para a durao do Imprio: enquanto a retrica de um retorno para a

3 O prncipe, na verdade, todo-poderoso. Seu poder o mais absoluto, completo e ilimitado possvel; no compartilhado com ningum, assim como a ningum ele deve prestar contas. Apenas restries auto-impostas limitam tamanha onipotncia. A razo estava na concepo romana de poder, do imperium, o poder absoluto e completo (o mesmo de um oficial no campo de batalha, detentor do direito de vida e de morte sobre seus homens, em que desobedincia e delito no se distinguem); no Imprio, esse poder depositado nas mos de um nico homem, em vez de ser dividido entre diversos magistrados [...] Contudo, como prncipe, tem o poder de decidir a paz e a guerra, aumentar os impostos e incorrer nas despesas que quiser; nada lhe escapa ( o senhor dos cultos pblicos e do direito pontifcio) e nenhum poder limita o seu (VEYNE, 2009, p. 9).

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democracia da Repblica aparecia nos textos da elite, os eventos histricos demonstravam que esta no era mais uma alternativa vivel (REVELL, 2009, p. 80).

Assim como apresenta Geoffrey Sumi (2005, p. 221), ao assumir seu posto, Otvio se declarou como restaurador da Repblica, consolidando seu papel como Princeps. Ele se utilizava de valores republicanos para criar uma nova forma de governo: Augusto adapta os requerimentos da tradio e dos valores da Repblica romana para sua prpria necessidade e autopreservao poltica e dinmica.

Otvio iniciou sua campanha ainda durante o perodo do triunvirato. O perodo citado foi de grande conturbao na organizao e manuteno da Repblica romana. Roma, especificamente a cidade, vivia um perodo de desestabilidade interna agravada pela disputa constante entre grupos de elevadas camadas. Otvio e Marco Antnio iniciaram um confronto que mexeu com a estrutura poltica romana, modificando o espao scio-poltico da Repblica para o que ns, historiadores, chamamos de Principado. Tal mudana no foi sentida e confirmada pelos prprios romanos deste perodo. Mesmo aps a vitria, Otvio no inaugurou outra ordem, ou se proclamou lder soberano. O que este lder fez foi conquistar a Pax Romana no absoluta e devolver o poder ao Senado e povo de Roma, sendo assim, reconhecido como o grande restaurador da Repblica.

Em sua estratgia contra Marco Antnio, Otvio se apresentou como protetor e mantenedor da tradio, associando-se aos costumes romanos e ao deus Apolo. Enquanto isto, ele destacava em seus discursos as preferncias de Antnio pelo Oriente, a associao deste com uma divindade estrangeira, Dionsio, e sua relao adltera com Clepatra. Dessa forma, M. Antnio fere o que John A. Lobur (2008, p. 15) nomeia de sensibilidade romana.

Baseando-nos nos relatos de Suetnio, foi gerado, em todas as camadas sociais de Roma, um consensus pertinente imagem de M. Antnio como inimigo da Repblica, devido sua postura diante dos prazeres orientais, o que acabou por comprometer toda a autoridade que este possua. Enquanto isto, Otvio tomou o caminho contrrio ao do seu rival: atravs de discursos e rituais diante de todos os cidados, expressou sua vontade de restaurar a Repblica revivendo as tradies. Otvio realizou isto para que a opinio pblica (que acabara com seu rival) estivesse ao seu lado, gerando consensus acerca de sua boa liderana. Sua campanha foi tamanha que ainda proclamou Roma livre do medo.

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A visvel manifestao deste consensus, descrito, claramente existente nas fontes elevado ao nvel de mitologia (LOBUR, 2008, p.27). A imagem de Otvio comea a ser cunhada como heri mitolgico fundador de Roma, o que demonstra o poder que exercia perante toda a sociedade. No escudo de Enias (descrito por Virglio) havia a mensagem Liderando os italianos na batalha, juntamente com o Senado e o povo, demonstrando que Otvio adquirira consensus no que tange seu poder em Roma4. Alm disso, este lder modificou a topografia da cidade, alegando que assim restauraria a Repblica. Aps a batalha de ccio, ele reformou o frum de Csar que, juntamente com a Cria, simbolizava a Repblica em si a partir da imagem essencial do Senado.

Mas o que seria esse consensus? No possumos a pretenso em acreditar que este seria total e absoluto, e sim, se basearia em uma grande aprovao diante da figura imperial. O texto de Clifford Ando (2000) trabalha com este conceito que, para ns historiadores da contemporaneidade, difcil de compreender. Tal termo empregado no perodo do Principado Romano a fim de facilitar a apreenso do exerccio de poder nesta sociedade, representado pelo Princeps, Senado e provncias. Tal consensus, por mais que institudo e idealizado como universal, sempre foi a chave para se entender a relao existente entre estes trs estamentos fundamentais para a manuteno do que seria o Imprio Romano. Percebemos, ento, que nenhum grupo ou indivduo detinha em si poder enquanto controle total. Era necessrio articular ideias, conquistar aliados e, com isso, gerar consensus. Este no seria algo dado e, muito menos, intrnseco a algum: deveria ser conquistado, legitimado e cultivado para que existisse. Assim, ter consensus seria mais uma ferramenta de propaganda do que uma certeza de legitimidade:

Documentos que invocam tal consensus raramente clamam por representar a viso de todo o mundo; ao invs disso, eles pretendiam representar a viso de grupos particulares. Ao fazer isso, estes documentos criavam clivagens dentro da populao geral, dividia lealdades, e permitia a expresso de certa unidade somente quando expressavam (os Imperadores) o compromisso com o estabelecimento da ordem (ANDO, 2000, p. 135).

O consensus, assim como afirma o autor supracitado, mostrava o limite entre o poder real do Princeps e seu carisma. Desta maneira, temos uma ideia

4 Sabemos que este consensus no era absoluto, por mais universal que tente ser. Temos isso em mente pelo fato das incessantes demonstraes de Otvio como um excelente lder e restaurador da Repblica. Partimos do pressuposto de que se tal consensus fosse realmente aceito e no questionado por todos, no haveria a necessidade de tal afirmao constante do poder augustano.

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de unidade poltica e geogrfica que se baseia em uma relao comum entre os liderados e seu lder, e se opera a partir da lngua compartilhada e da cidadania concedida. O Princeps assumia seu papel em reluta, afirmando que exercia suas funes em nome e pelas causas da Repblica, mostrando que todos estavam submetidos s leis: ele tinha como prioridade em suas preocupaes o bem pblico, ou pelo menos essa era a ideia que se esforava para passar. Voltando-nos ao exemplo de Otvio, mesmo obtendo inmeros ttulos e crescente poder, ele no se ops ao Senado dentro de sua poltica. Ao contrrio: reconhecer a autoridade do Senado era reconhecer a prpria autoridade (autoridade do Princeps, neste caso), j que este era escolhido por aquele grupo. Utilizar qui manobrar o Senado conforme sua vontade era a primeira lio que um bom Princeps deveria aprender. Otvio se tornou parceiro do Senado e estabeleceu, com isso, sua autoridade. Ele entregava o poder e autoridade ao prprio povo de Roma e ao Senado, diferentemente do que fez Csar ao reivindicar tal poder para si.

Assim como pontuado por Geoffrey Sumi (2005), Otvio criou cerimnias pblicas para manter-se no poder, enquanto Csar no o fez: o segundo era ditador, cargo passageiro e talvez, por isso, no se preocupou com tais cerimnias. O primeiro Imperador foi um grande adaptador e no um inovador. Ao abrir mo da ditadura, ele se afastou do deslize de Csar e, a partir dessa negao, acabou por aumentar seu prprio prestgio.

A oratria era de extrema importncia para um bom lder. Otvio reformou o frum e mostrou a importncia de um bom discurso: ele d voz aos tribunos no apenas para dividir o poder, mas, tambm, para ter algum que lhe elogie publicamente; seu discurso dava voz aos outros, ou seja, no discursava sozinho, no apresentava as benesses que fizera sozinho e, dessa maneira, aumentava seu prprio poder.

Com o incio do Principado de Otvio as relaes entre periferia e centro mudaram. Este se mostrava como filho e herdeiro de Csar, fazendo dos clientes do pai seus prprios clientes. De acordo com Clifford Ando, a maior conquista augustana foi concebida a partir de seu carisma este, associado universalizao de seus clientes e divinao de Csar, que apresentam-no como o lder legtimo. Otvio buscava ter auctoritas, percorrendo todo o processo elencado por J.E. Lendon (2005): buscou a honra ao expressar suas virtudes, recebendo a dignitas capaz de lhe conceder a fama, ou seja, uma imagem positiva. No buscou a honra coercitiva, pois ela passageira e no se mantm para os seus sucessores, preferindo tambm realizar constantemente cerimnias que aumentassem seu prestgio do que esbanjar simplesmente as riquezas advindas da Fortuna (estas, de acordo com Lendon, seriam passageiras).

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2 - Consolidao da imagem Imperial: Otvio Augusto e seus vastos recursos

Otvio se utilizou de inmeros recursos para propagar uma boa imagem e se manter no poder. Desde sua postura perante o Senado j abordada no tpico acima , at em como se fazia representar, Otvio Augusto foi um Imperador capaz de atingir certo consensus perante seus liderados.

Em sua trajetria, Augusto mostrou que no foi o agente que conquistou sozinho o poder. Na verdade, o Senado entregou este poder a ele, pois reconheceu suas virtudes. Ele apenas devolveu tal poder ao povo e ao Senado e conquistou, desta forma, maior consensus (ele se mostrou como o restaurador da Repblica). Um bom lder, de acordo com Clifford Ando, deveria recusar o poder. Augusto, a partir de tal lgica, chegou a receber o ttulo de Pai da Ptria.

Como afirma Marco Manlio, Astronomicas, at mesmo os astros confirmam o poder de Augusto5. Nos livros I, II e III, a exaltao ao signo de Capricrnio signo de nascimento do Princeps Otvio Augusto averiguada:

Tambm no so inferiores quanto ao resto: so dominados por um nico astro, Augusto, estrela que por sorte coube ao nosso orbe, o maior legislador agora na terra, depois no cu (MANLIO, Astronomicas, Livro I, v. 473-478).[...]Capricrnio, ao contrrio, dirige seu olhar para si mesmo (qual outro, em efeito, poderia admirar mais importante, se foi ele quem brilhou com to bom pressgio no nascimento de Augusto) (MANLIO, Astronomicas, Livro II, v. 507-509).

A partir de tais excertos da obra, podemos definir que os trs primeiros livros foram escritos durante o Principado de Augusto. A expresso o maior legislador agora na terra, utilizada no Livro I, designa que este Imperador se encontrava vivo naquele perodo, e a exaltao de seu signo se torna uma propaganda6 inerente legitimao do poder imperial, j que apresenta

5 Tal relao entre Cu e Terra o elemento chave da obra maniliana. Manlio determina e mostra ao leitor o quo interligados esto estes dois espaos, sendo a vida terrena uma projeo dos acontecimentos celestes. Esta unidade universal recebe o nome de simpatia universal, a qual, todos, de acordo com os estoicos, estavam condicionados. Desde as estrelas at a menor das plantas, todo o Universo estava unido pela criao do deus que o concebeu.

6 [...] o simples, mas importante, ato de organizar, selecionar e divulgar informaes, usando de persuaso, sntese e de imagens que esto na memria dos receptores das mensagens (GONALVES, 2002, p. 74).

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Otvio como o lder, no s de Roma, mas de todo o mundo, escolhido pelos astros.

Manlio atribui inmeras referncias a Augusto e ao seu poder, legitimando-o:

A mim, Csar7, da ptria primeiro homem e pai, tu que reges o mundo submisso s tuas augustas leis e que mereces, tu prprio como um deus, o cu concedido antes a teu pai8, me inspiras e fortaleces para cantar tamanhas coisas (MANLIO, Astronomicas, Livro I, v. 8-12).[...]Para eles (povos que vivem abaixo da linha do eixo, ou seja, extremidade inferior do globo) o cu no menor nem pior em luz, nem menos numerosas nascem as constelaes em seu orbe. Tambm no so inferiores quanto ao resto: so dominados por um nico astro, Augusto, estrela que por sorte coube ao nosso orbe, o maior legislador agora na terra, depois no cu (MANLIO, Astronomicas, Livro I, v. 473-479).[...][...] e a raa Jlia, descendente de Vnus. Augusto desceu do cu e o cu ocupar, o qual ir reger [...] (MANLIO, Astronomicas, Livro I).

Como podemos perceber, at mesmo os astros cooperam para a legitimao da imagem de Augusto como o Princeps. Porm, esta no foi a nica forma que este encontrou para legitimar sua ao. So inmeros os mtodos e mecanismos utilizados por Augusto que apresentavam-no virtuoso o bastante para possuir a autoridade necessria e, dessa forma, se destacar dos demais.

Um dos meios mais utilizados para a propagao de seus ideais foi a literatura. A prpria obra maniliana nos um bom exemplo disto. Mesmo que elaborando um manual do conhecimento astrolgico, Manlio afirma que sua produo um poema sobre a beleza do Universo; ele cria sua narrativa como uma literatura. Sua inteno no era somente passar um conhecimento cientfico do que seria o universo e as relaes e distncias dos corpos celestes, mas tambm criar uma narrativa que fosse digna da beleza dos astros. O prprio autor mostra o quo laboriosa foi a realizao de tal tarefa:

fcil dar vela com os ventos favorveis, e revolver o solo fecundo com tcnicas variadas, e ao ouro e ao marfim acrescentar ornato,

7 Augusto

8 Csar

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quando a rude matria mesma j tem brilho. Escrever poemas sobre assuntos sedutores comum, bem como compor uma obra simples. Quanto a mim, porm, tenho de lutar com nmeros, desconhecidos nomes de coisas e fraes de tempo, com as diferentes circunstncias e movimentos do cu, e a ascenso das constelaes, e com as partes nas suas prprias partes. Se conhecer essas coisas j muito, que ser ento de exprimi-las? E numa poesia adequada a elas? E de submeter-las a um metro fixo? Aproxima-te, quem quer que sejas que possas aplicar ouvido e olhos minha empresa, e ouve as palavras verdadeiras. Presta ateno, e no procures doces carmes: a matria mesma recusa o ornato, satisfeita com ser ensinada. E, se alguns nomes forem referidos em lngua estrangeira, culpa ser do tema, no do vate: nem tudo se pode verter, designando-se melhor em sua prpria lngua (MANLIO, Astronomicas, Livro III, v. 32-52).

Mesmo em uma sociedade de maioria no letrada, a literatura desempenhava um papel importantssimo, pois alcanava a elite romana e a persuadia. A comunicao entre o Imperador e seus sditos, fossem eles prximos ou distantes como o caso das provncias era de extrema importncia. Assim como pontua Richard Miles (2005, p. 29), a comunicao deve ser entendida como um processo que se apresenta a partir de um ou mais nveis. No se pode dizer que a comunicao simplesmente interao presencial entre duas pessoas ou mais, pois pode ser feita de maneiras verbais ou no, influenciando na criao de outras crenas e comportamentos. A comunicao se baseia, ento, em dois conceitos-chave: a articulao das ideias e a sua transmisso.

Temos que nos atentar para o poder que a palavra escrita possua: s nos chegou o que foi escrito. O falado sobreviveu graas escrita. Porm, no podemos definir uma sociedade pelos letrados. A alfabetizao no uma ferramenta universal da cultura, mas inseparvel da educao. No Imprio, a palavra escrita desempenhou um papel quase que central: na passagem das leis, no comando dos exrcitos, etc.. O Imperador tinha contato com seus subordinados, muitas das vezes, por correspondncia (MILES, 2005, p. 37). Sem a palavra escrita seria impossvel a manuteno do Imprio. O conhecimento era poder e o Imprio romano soube articular bem as informaes do governante aos governados (e o inverso tambm): datas importantes, grande eventos de construo e astrolgicos eram registrados (MILES, 2005, p. 38).

A escrita era to importante que os Imperadores tambm investiam na escrita de suas autobiografias. Otvio, por exemplo, escreveu sua autobiografia para estabelecer sua imagem serviria como uma forma de propaganda. Nela,

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mostrou a origem divina de sua famlia (ligada deusa Vnus), sua ligao com o divino Csar e todas as glrias que conquistou e lutou por Roma como a batalha contra Marco Antnio. Atravs destas ligaes com ancestrais importantes, e at divinos, Otvio se colocou em lugar de destaque ao se pronunciar como legitimamente escolhido entre os homens e os deuses.

Assim como apresenta Geoffrey Sumi, o Princeps se utilizava de cerimnias para se apresentar ao Senado e ao povo, tendo que suas aes serem altamente performticas. At mesmo aps sua morte, Augusto deixou especificaes claras de como deveria ser feito todo o ritual. O corpo de Otvio ficaria no templo de Divus Julio, j que este templo estava associado divinizao de Csar importante pela associao desde a adoo , e seria levado para o Campo de Marte e no para o Frum (quebra nos protocolos, mas com razes polticas). Trs imagens de Augusto foram carregadas na procisso do funeral (SUMI, 2005, p. 257): uma como triunvirato, outra como senador e a terceira como triunfante em uma biga. Alm dessas, Augusto colocou imagens de sua famlia, incluindo sua ligao com Csar e Rmulo (alm de sua associao a Enias e a Afrodite). Ele exigiu que seu corpo passasse em uma procisso pelos monumentos que construiu e restaurou e, dessa forma, se fez lembrado.

As imagens do Imperador que eram divulgadas tambm eram utilizadas para legitim-lo. Elas divulgavam, assim como pontua Louise Revell (2009), imagens que o legitimassem no somente em relao sua posio pessoal/individual, mas tambm afirmavam sua legitimidade a partir da famlia e de sua ligao com os deuses (como o exemplo j citado: Augusto). No podemos ter noo de quantas pessoas viam tais imagens, porm o acmulo dessas nos do uma ideia da importncia e do reforo que causavam. O Imperador fazia-se representar sempre em seu auge, ou seja, novo e belo. Fica difcil distinguir as esttuas dos Imperadores, pois os temas se repetiam demais. Um tema bastante repetido era a representao do Imperador como heri, nu, o que mostrava sua natureza super-humana.

Nos dias atuais, historiadores da arte no se preocupam apenas com a imagem, mas tambm com sua recepo. A esttua do Imperador poderia receber sacrifcios, e participar de processos religiosos sendo carregada algo que acontecia durante o culto imperial. Tais esttuas eram colocadas em lugares estratgicos e pblicos para que o maior nmero de pessoas pudesse ver e, com isso, lembrar-se do poder imperial. As esttuas expostas no eram somente do Imperador, mas tambm de seus familiares. Tais imagens legitimavam a autoridade do mesmo, mostrando o quo digno era o seu comando, j que descendia de uma famlia importante.

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Sabendo de tais veculos de propagao da imagem imperial utilizados pelo Princeps, temos que nos atentar tambm divulgao de tal imagem em relao s provncias, j que o Imprio Romano se fez conhecido pela sua vastido territorial. Dessa maneira, vlido nos perguntarmos Como o Imperador mantinha o controle e propagava sua imagem para estes povos to distantes?.

3 O Imperador e seus longnquos sditos: a relao entre Roma e as provncias

A vastido do Imprio Romano abordada em vrios documentos, e o prprio Manlio nos d uma noo de tal tamanho:

A (no territrio da frica), coube a Cartago, pelas armas, o poder, no tempo em que Anbal arrasou com fogo as fortalezas alpinas e tornou eterno o Trbia, cobriu Canas de sepulcros e fez a Lbia introduzir-se nas cidades do Lcio. Em Cartago, a natureza, contrria a futuras guerras, reuniu pestes de vrias espcies e uma variedade de feras monstruosas. Esta terra selvagem tem horrendas serpentes, e animais cujos membros so habitados por veneno, e seres cujo pasto a morte, acusaes contra a terra, e ainda enormes elefantes tm, produzido, ainda, a selvagem terra, frtil de seu prprio castigo, cruis lees, divertindo-se com o parto de monstruosos macacos; e, pior do que se fosse estril, ela infesta de maus frutos suas ridas areias, at que abandona sua autoridade junto aos habitantes do Egito. A partir da esto os povos da sia, e uma terra em tudo rica: correm rios de ouro, e de prolas rebrilha o mar, perfumadas florestas sopram o aroma de plantas medicinais: A ndia, maior que o conhecimento que dela se tem, e os partos, ou (se queres) um outro mundo, e as muralhas de Tauro, que se elevam ao cu, e as tantas raas, em redor dele, com diferente nome, naes junto ao Tnais, que separa as terras com as guas cticas, e junto ao lago Metida e aos perigos do Ponto Euxino. Este o limite que a natureza imps poderosa sia. O que resta a Europa que ocupa, a primeira que recebeu Jpiter, quando nas ondas ele nadava, e que ps o touro em liberdade [...]. Ele presenteou com o nome da menina o litoral, consagrando com tal ttulo o monumento do amor. , pelos seus vares, a terra mais ilustre e a mais fecunda em doutas artes: Atena, florescente no seu poder sobre a palavra; Esparta, reconhecida por sua fora militar; Tebas, por seus deuses; e Pla, por um nico rei, a sua morada principal, reconhecimento pela guerra troiana; Tesslia, e Epiro poderosa, e a costa, vizinha, da Ilrica; e a Trcia, qual coube a sorte de ter Marte por habitante; e a Germnia, admirada entre os seus filhos; a Glia, por suas riquezas; a Hispnia, grandiosa por suas guerras; e, acima de todas, a Itlia, que Roma a

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maior de todas, imps ao mundo, unindo-se ela mesma ao cu. Tais so os limites em que a terra e o mar devem ser examinados [...] (MANLIO, Astronomicas, Livro IV, v. 799-841).

Foi vastssimo o territrio ocupado pelo Imprio Romano, e agregava diversas culturas. Porm, como Roma obtinha o controle de algo to grandioso? Andrew Wallace-Hadrill (2008) percebe na cultura a diferenciao existente no governo augustano; no existe uma cultura romana pura e nem um processo de romanizao puro. A identidade romana no dicotmica. Ela plural e consegue sobrepor inmeras identidades com facilidade: a romanizao e a helenizao no so processos excludentes, mas agregadores. O Imprio Romano era multilingustico, e a cultura no era apenas imposta, ela tambm era absorvida. Estabelece-se, ento, uma idealizao cultural que se aplicava nas provncias, ou seja, o que se originava era uma liga cultural que une caractersticas romanas e provinciais. O exemplo romano sempre se voltava manuteno do mos maiorum e, por isso, Wallace-Hadrill utiliza-se, para explicar tal formao cultural, do conceito de dialtica cultural. A prpria Itlia era plural em relao s culturas existentes, e por isso o entendimento de romanizao tambm o era: uma romanizao mais pela seleo do que pela expanso.

Dessa maneira, entendemos que a identidade seria um processo de fabricao. Ser romano seria se educar romano, aprender a se portar de acordo com os interesses romanos, e no apenas reivindicar algumas divindades e/ou costumes. O processo de romanizao no seria a mera substituio da cultura local pela romana, e sim um processo similar uma adio. Processos como a hibridizao9 ou a fuso10 cultural no explicariam a complexidade da transformao cultural existente a partir do contato entre Roma e as provncias. Estudos recentes, como o de Wallace-Hadrill (2008, p. 31), mostram que a cultura no unilateral e nem responde simplesmente a processos civilizadores. A palavra cultura derivada do latim cultivas que agrega a metfora da cultivao e que realiza um paralelo com a vida humana e a natureza.

Sendo assim, para que esse dilogo cultural pudesse acontecer, as relaes com as provncias deveriam ser mantidas de alguma forma, e a imagem do Imperador deveria ser propagada: e este outro quesito que Otvio Augusto

9 Na hibridizao, o resultado tem caractersticas dos originais, porm estril, ou seja, no pode produzir e propagar tal cultura.

10 Na fuso (como na do metal) forma-se outra coisa cultura , diferente das que lhe deram origem.

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buscou preencher. A primeira teoria vigente sobre estas relaes apresentava a percepo de dominao, em que Roma sobrepujava os povos dominados. Tal teoria se associa aos conceitos de civilizao e progresso: Roma teria um papel de levar progresso e civilidade aos povos dominados. Esta ideia foi bastante utilizada durante a expanso dos Estados modernos para justificar suas aes, elegendo como exemplo maior Roma foi construdo um discurso de dominao ancestral que atendia aos interesses imperialistas dos pases europeus frente s conquistas territoriais/econmicas (HINGLEY, 2010, p. 69). Surge tambm o conceito humanista, praticamente teleolgico, de que Roma se apropria do legado grego e se torna o motor da civilizao Ocidental.

Assim como destaca Richard Hingley (2010, p. 71), essa teoria defendia a existncia de uma unidade da civilizao imperial romana e a criao do conceito de romanizao que enfatizava um processo de progresso desde uma cultura brbara at uma romana na expanso do Imprio. Nessa, a periferia (provncias povos dominados de uma maneira geral) s era percebida a partir do seu grau de civilizao e aproximao com o centro poltico.

A partir da dcada de 1960, cresce o nmero de historiadores que se utilizam de um novo foco: no mais a unidade era o centro das discusses, mas sim a variabilidade das respostas locais a Roma (HINGLEY, 2010, p. 73). A cultura romana passa a ser percebida como uma cultura mais heterognea, e tal diversidade articulava uma lgica inclusiva que no mais formula a si mesma em torno da criao de categorias e de hierarquias (HINGLEY, 2010, p. 79)11.

A heterogeneidade garantia a manuteno do Imprio porm, no pensamos que isso seja obra do acaso. No havia uma mudana de identidade, e sim uma adaptao. Uma nova teoria surge disso: acontecia entre as culturas uma negociao e interao social na formao da identidade romana.

Alguns autores mostram uma utilizao da fora para divulgar a identidade romana. Porm, pensamos que no podemos creditar somente fora (militar) esse papel. O exrcito foi um grande propagador da romanizao. As elites (romanas e provinciais) foram utilizadas para o desenvolvimento dos centros urbanos locais. Mas, outra maneira de romanizar os nativos foi a difuso do latim. As elites provinciais aprendiam o latim como uma forma de se aproximarem e tornarem-se mais romanas, aceitando, no de maneira

11 Isso permite perceber-se o imprio romano como uma sociedade mais heterognea, em que grupos e indivduos atuavam diferentemente para se tornarem romanos, ao passo que mantinham o ncleo de suas identidades herdadas, e tambm contribuam para uma iniciativa cultural imperial centralizadora (HINGLEY, 2010, p. 78).

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completamente passiva, a cultura imperial. Aprender o latim no fazia deles romanos, mas era uma maneira de manter a prpria cultura, criar e armar mecanismos de defesa.

Como apresentado por Andrew Wallace-Hadrill (2008), a influncia da elite romana passa a ser mais dialogada do que imposta, ao passo que novas elites surgem com a expanso territorial e a elevao de algumas provncias. Inmeras imagens do Imperador eram divulgadas nas provncias esttuas, moedas, etc. e cada uma as recebia e incorporava, a partir de suas necessidades, de uma forma singular. A elite provincial se utilizava das imagens do princeps no apenas para estabelecer uma ligao entre ambos, mas tambm para se posicionarem como superiores perante o restante da populao provincial. Nas moedas, como exemplo, Augusto faz questo de divulgar seu signo, Capricrnio, to elevado e legitimado como o que brilha para os grandes lderes ( j citado acima).

Concluso

Percebemos que todo um jogo foi elaborado pelos Imperadores (sendo Augusto o exemplo central), Senado e provncias. No apenas um desses detinha o poder, mas se moldavam, se ligavam e se repeliam a partir de interaes pertinentes ao interesse de cada um (indivduo ou grupo). Entendemos que o Princeps desempenhava o papel de protagonista em toda essa trama, porm, entendemos tambm que o cenrio, as alegorias e os personagens secundrios poderiam desempenhar papis de grande importncia. Um jogo era estipulado e muitos jogavam, ao tentarem se manter prximos da irradiao que o poder imanava. Augusto em seus atos solenes como restaurador da Repblica, nada mais foi que um excelente jogador, pois soube concluir sua estratgia, sendo reconhecido por inmeros autores (Velio Patrculo, Suetnio, Plutarco...) como um exemplo de bom lder. O Senado, que se deixava ludibriar, sabia o momento de contra-atacar e posicionar-se em favor de seus prprios interesses, mesmo perante o Imperador. Enquanto isso, povo e provncias (nos utilizando desses termos generalizantes), mesmo que distantes, tambm se arriscavam nessa modulao intensa de poder. Os astros, atravs das leis secretas e do destino que salvaguardam, j determinavam os acontecimentos terrenos: mesmo que esses superassem as expectativas humanas. Mas quem melhor, assim como aponta Marco Manlio, para compreender todo o Universo do que aqueles que dele foram criados? Entender o Universo seria entender o mundo terreno e, tambm, confirmar o poder dos poderosos.

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THE ASTRAL ORDER: THE PRINCEPS OCTAVIUS AUGUSTUS ACTION FOR HIS POWER LEGITIMACY

Abstract: We look back for political relationships during Roman Empire, searching for understand ours presents experiences. Taking this action, we realize that roman leaders already articulated theirs ideas in face of a big and heterogeneous crowd. In that way, propagate a good image was not a necessity only for the princeps (or actual): Senate, people of Rome and provinces needed to adopt specific postures to get, also, benefits. Games of power were established and for understand theses, we analyze Octavius Augustus government. We analyze this period, because represents a rupture between two moments of Roman History (Republic and Empire), at the same time that this leader realize, when we consider his postures and speeches, a continuity of traditional republican elements. In other words, his speech was produced to confirm his actions, and to convince everyone of his legitimacy. Searching for order, Marcus Manilius, Astronomicas author, provided new tools for this work; even the stars explains the different powers of Octavius, Senate and roman people. Key-words: Propaganda Power Astrology Octavius Augustus.

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AS DIFICULDADES DE ATENAS PARA O RETORNO DEMOCRACIA DEPOIS DO GOLPE DOS QUATROCENTOS

Profa. Dra. Lorena Lopes da Costa1

Resumo: O presente artigo tem como objeto a pea Filoctetes de Sfocles, integrante da trilogia que vence as Grandes Dionsias em 409 a. C, ano em que se d o primeiro festival depois da retomada do poder pelo povo aps o Golpe dos Quatrocentos. Na pea de Sfocles, Filoctetes continua a ser o heri solitrio. Ele , porm, ao mesmo tempo, o heri que deve ser reintegrado plis. Ao lado dele, Neoptlemo, personagem que modifica consideravelmente o mito em Sfocles, transforma-se, medida que a histria se desenvolve, no novo guerreiro aqueu, o qual aprende a reconhecer o valor da phila e o valor da unidade, mas que no o faz sem convidar os atenienses espectadores a refletirem sobre os juramentos cvicos e sobre a unidade que tais ritos buscavam consumar.Palavras-chave: Filoctetes; Heri; Plis; Democracia.

I - Filoctetes de Sfocles e a vitria nas Grandes Dionsias de 409 a. C.

Filoctetes de Sfocles pergunta plis: o heri do passado pode coexistir com a cidade, consciente de que um heri do passado (VIDAL-NAQUET, 2009)?2 Depois do Golpe Oligrquico dos Quatrocentos, de 411 a. C. (pelo qual vota o poeta), e do restabelecimento da democracia, com a deteriorada imagem da guerra, a pea de Sfocles renova o mito clamando pela unidade. Encenada e vitoriosa nas Grandes Dionsias de 409 a. C., Filoctetes apresenta respostas novas aos dilemas da cidade e s novidades da guerra que se vivia.

Filoctetes o heri solitrio no sculo de Pricles, no sculo em que a coletividade busca se firmar e se afirmar enquanto princpio. Ele , porm,

1 Doutora em Histria, pela UFMG, sob orientao do Prof. Dr. Jos Antonio Dabdab Trabulsi. Ps-doutoranda na UFOP. E-mail para contato: [email protected]

2 Quem faz a pergunta Pierre Vidal-Naquet, embora o autor se pergunte a respeito de jax, um heri que, de forma anloga a Filoctetes, mas com um fim diferente, vai enfrentar a mesma dificuldade.

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ao mesmo tempo, o heri que deve ser reintegrado vivo plis. Ao lado dele, Neoptlemo, personagem que modifica consideravelmente o mito em Sfocles, transforma-se, medida que a histria se desenvolve, no novo guerreiro aqueu, o qual aprende a reconhecer o valor da phila e o valor da unidade, mas que no o faz sem convidar os atenienses espectadores a refletirem sobre os juramentos cvicos e sobre a unidade que tais ritos buscavam consumar.

Com efeito, dois anos antes da apresentao de 409 a. C., o poder ateniense havia se transformado num monstro bicfalo ( JOUANNA, 2007, p. 61),3 do qual uma cabea estava em Atenas, pois os Quatrocentos haviam dissolvido a Assembleia e se esforavam por anular as instituies democrticas, e a outra em Samos, onde os estrategos democratas faziam a guerra a favor da democracia. Tucdides conta-nos que, aps terem se reunido na Assembleia em Colono (e no na Pnyx como era o uso democrtico), os Quatrocentos se estabelecem na sala do antigo Conselho e enfrentam, a partir de ento, a resistncia dos hoplitas organizados no Pireu, alm da ameaa das foras que se rebelam em Samos.

Conforme o cenrio descrito pelo historiador (TUCDIDES, VIII, 93), os hoplitas exercem importante papel: por um lado, eles resistem no Pireu, ainda que apresentem um carter mais conciliatrio do que os hoplitas e marinheiros que, noutra parte, precisamente acampados em Samos, resistem de maneira mais exacerbada s mudanas orquestradas pelos Quatrocentos. As duas frentes demonstram a atitude poltica dos guerreiros, alm da conexo profunda do dmos com o regime democrtico, embora se saiba que o fim do regime oligrquico dos Quatrocentos se d mais por meio de uma harmonizao entre as foras, diante da ameaa lacedemnica sobre Salamina, do que pela vitria da democracia (TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso, VIII, 68, 4).4

As Grandes Dionsias de 409 a. C., que Sfocles vence, so assim no apenas o primeiro festival depois da retomada do poder pelo povo, mas um festival em que esse poder imensamente afirmado, seja por meio da repetio de ritos j conhecidos do festival (retomando a ligao da cidade com seu

3 So de minha autoria trechos de autores antigos e da bibliografia secundria, quando no houver tradutor mencionado nas referncias. Ademais, sempre que for assim, o texto original ser citado em nota de p de pgina. Texto original: La puissance athnienne tait devenue un monstre bicphale, chaque tte (Samos et Athnes) prenant ses propres dcisions ( JOUANNA, 2007, p. 61).

4 A fim de conter o avano lacedemnico em Salamina, os Quatrocentos decidem enviar uma frota ateniense, que, no obstante, sofre uma derrota desastrosa. A derrota propicia a derrocada dos oligarcas atenienses, j que, aps o desastre, os atenienses decidem-se reunirem na Pnyx, lugar em que haviam deixado de se reunir depois do golpe, para darem fim o regime golpista.

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passado democrtico), seja por meio da instituio de novos ritos (reforando essa ligao): um deles consiste exatamente no Juramento de Demofanto, segundo o qual todo cidado ateniense se compromete a matar possveis tiranos (SHEAR, 2011). No ano da pritania de Aiantis [ ], donde se conclui tratar-se do ano de 410-9, a Boul institui o decreto que, contm, por sua vez, este novo juramento a ser prestado pelos cidados:

Matarei, por palavra, por feito, por voto, por minha prpria mo, se eu puder, qualquer um que derrube a democracia em Atenas, e qualquer um que, tendo a democracia sido derrubada, ocupe algum cargo. Matarei qualquer um que se estabelea para ser o tirano ou que ajude qualquer um a se estabelecer. Julgarei piedoso, luz dos deuses e dos espritos, qualquer um que o matar, por matar um inimigo dos atenienses. Venderei todos os bens do morto e dou uma metade ao assassino, sem deixar nada para trs. E se algum morrer ao matar ou ao tentar matar esse tipo de homem, tomarei conta dele e de seus filhos, assim como de Harmdio e Aristogton e seus descendentes. Todos os juramentos jurados contra o povo de Atenas, em Atenas, em campanha, ou onde quer que tenha sido, declaro nulos e sem efeito (ANDCIDES, Mistrios, I, 96)5

Segundo o juramento citado por Andcides, o mau cidado passa a ser um inimigo da cidade. O texto declara que qualquer um que derrube a democracia ou assuma um cargo fora do regime democrtico torna-se inimigo [] pblico dos atenienses, devendo por isso ser morto, ao passo que o bom cidado, seu assassino (bem como os cmplices do assassinato, caso haja algum) deve ser considerado piedoso []. O decreto de Demofanto um dos elementos que permite apreender o teor do processo de retomada e afirmao do passado democrtico decorrente da deposio dos Quatrocentos. A preocupao do decreto com a democracia explcita: qualquer ameaa deve ser extirpada de forma extrema. Mas a nova lei apenas uma parte de um grupo heterogneo de leis, que buscam a proteo mxima do regime do povo. Trata-se de fazer cada cidado sentir-se parte ativa e responsvel pela democracia, dando a ela o aspecto de uma unidade, que teria sido quebrada

5Texto original: ,,,,:,,,,. ,.,.

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pelos Quatrocentos, mas que jamais deveria voltar a ser. Para tanto, Atenas, em primeiro lugar, promove um claro resgate do passado democrtico, em segundo, elimina as marcas do recente golpe oligrquico, que no mencionado nos novos documentos e tem suas estelas removidas da gora, em terceiro, cria novos ritos que, como o Jurameno de Demofanto, filiam a democracia do presente ao passado democrtico.6 Coletivamente, as novas e as velhas inscries, os novos e os velhos ritos trabalham para redefinir e reformar o espao pblico, funcionando como memoriais, celebrando a democracia e servindo ainda como manuais de ao contra qualquer fora contrria ao regime (SHEAR, 2011). Dessa forma, o Juramento de Demofanto apenas um dos elementos utilizados pela plis para fortalecer esse sentimento de unidade em torno da democracia, uma unidade que se faz ver durante as Grandes Dionsias. Os ritos do festival - o voto de Demofanto, as libaes dos generais, a apresentao do tributo, dos rfos de guerra e o anncio dos ganhadores da coroa de ouro - buscam, enfim, confirmar de forma repetitiva o poder da democracia, unindo todos os cidados em torno dela, a fim de que, assentados lado a lado, formem um s corpo, partilhem os mesmos ritos e homenageiem os mesmos deuses.

No obstante, esse esforo poltico ser diretamente questionado por uma das peas que integram a trilogia vencedora do ano de 409 a. C., uma vez que Filoctetes de Sfocles sugere as dificuldades a serem enfrentadas para que a oligarquia seja sobrepujada. Ao contrrio do que fazem pensar os juramentos e os outros ritos, esse combate no h de ser nada fcil. A pea de Sfocles coloca em cena exatamente as dificuldades que existem na criao da unidade, elemento to necessrio defesa da democracia.

II - Filoctetes, o heri de outrora, e Odisseu, o heri da plis?

Filoctetes no apenas o mais solitrio dos heris de Sfocles, o homem que viveu dez anos abandonado numa ilha deserta acometido pela grave ferida. Ele ainda o mais injustiado de todos (KNOX, 1974): seu abandono pelos companheiros de guerra no se deveu desonra, traio ou a qualquer outra justificativa legtima, mas repugnncia que os companheiros sentiam do

6 A plis assiste, pouco tempo depois do golpe dos Quatrocentos, a um intenso exerccio de reproduo de leis j conhecidas (como a lei de Drcon, que segundo Andcides, inspira o decreto de Demofanto), as quais, inscritas em estelas sobretudo no Bouleutrion e na gora, tornam concretamente visveis os signos da histria da democracia enquanto unidade. Drcon, Slon, Clstenes, ao lado dos novos democratas, unem-se numa imagem s, que exclui e no tolera interferncias oligrquicas nem tirnicas, como as do passado recente.

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cheiro que a ferida exalava e inabilidade que demonstravam para lidar com sua dor:

[...] Pus manava-lhedos ps, gangrena corrosiva. Nolibvamos, ouvindo-lhe os queixumes,as maldies ecoando em nossas tendas.(SFOCLES, Filoctetes, 7-10, traduo de Trajano Vieira)

Quando sua ajuda torna-se imprescindvel apenas sua recusa que se pode esperar, mas, na pea de 409 a. C., o heri no tem outra sada seno render-se, abandonando sua vontade e seu desejo de justia. Filoctetes intransigente at a ltima cena, quando a apario de Hracles o impede de prosseguir. Em outras tragdias de Sfocles, o heri, para manter sua honra, falha; em Filoctetes, ao contrrio, o heri, sem que ele mesmo o queira, tem sucesso. A despeito de sua vontade e de sua fidelidade ao cdigo guerreiro, Filoctetes abandonar sua solido para reintegrar-se guerra, onde poder obter a glria e despedir-se de seu sofrimento, com a promessa da cura por Asclpio (BOYASK, 2007).7 Nessa pea de Sfocles existe, portanto, a necessidade da reintegrao do heri como parte fundamental da democracia e do equilbrio poltico dessa operao. Filoctetes , na pea, o heri de outrora, que precisa ser levado de volta plis. Ele o heri sem o qual o exrcito no pode ganhar a guerra, ou seja, o heri que falta plis.

verdade que o retorno do heri ferido para a guerra no uma inveno do sculo V. Filoctetes mencionado em Homero, tanto no tocante sua habilidade com o arco de Hracles (Il., II, 718; Od., VIII, 219-220), quanto no que diz respeito ao seu exlio em Lemnos e sua possvel retomada da guerra (Il., 721-725), alm de ter o seu retorno seguro ptria mencionado pela Odisseia (III, 190). Dessas referncias, ao menos a que ocorre no Canto II da Ilada parece esconder uma verso muito mais desenvolvida e conhecida pelo pblico, podendo, por isso, ter sido apenas aludida no Catlogo dos navios (OLSON, 1991). preciso notar, contudo, que no h, nem na Ilada nem na Odisseia, evidncia alguma de que o abandono de Filoctetes na ilha de Lemnos, em virtude de sua ferida, tenha sido orquestrado pela vontade de qualquer outro que no ele mesmo. Alm disso, no existe a sugesto de que Odisseu tenha tomado a frente da empresa para o seu resgate. A

7 Na tragdia, Asclpio ser o encarregado da cura de Filoctetes. Tornado deus em Atenas, Asclpio ser homenageado com um templo ao lado do teatro de Dioniso. A construo acontece por volta de 420, quando a cidade precisava da proteo e da cura, haja vista a praga que lhe matava um quarto da populao (acredita-se que a praga tenha sido uma espcie de febre tifoide).

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Bibloteca de Apolodoro, posterior tragdia de Sfocles, confirma a instruo de Agammnon a Odisseu para deixar Filoctetes em Lemnos munido de seu arco, mas os resumos de Proclo no o endossam. As Cprias explicam apenas que Filoctetes fora deixado na ilha em funo do mau cheiro de sua ferida, ocasionada pela picada de uma serpente.

Aportam em Tnedo. Filoctetes, picado por uma cobra-dgua enquanto ceavam, abandonado em Lemnos por causa do mau-cheiro. (PROCLO, Cprias, 144-5, traduo de caro Gatti.)

Da Pequena Ilada, tem-se que Filoctetes de fato volta a Troia, embora o retorno dele seja assegurado no pelo filho de Aquiles, Neoptlemo, mas por Diomedes. Ademais, sabe-se da que Neoptlemo (o qual, nessa narrativa, em nada se associa ao retorno de Filoctetes a Troia) recebe das mos de Odisseu as armas de seu pai.

Depois disso Odisseu captura Heleno em uma emboscada; aps um orculo deste a respeito da tomada da cidadela, Diomedes traz Filoctetes de volta de Lemnos. Curado por Macon, ele mata Alexandre em um duelo. Os troianos sepultam o cadver depois de reav-lo desfigurado por Menelau.

Depois disso Difobo toma Helena por esposa.

Aps trazer Neoptlemo de Esquiro, Odisseu lhe entrega as armas do pai. Aquiles aparece para ele. (PROCLO, Pequena Ilada, v. 211 -218)

Se, contudo, o retorno de Filoctetes guerra, no uma novidade para a Atenas Clssica, Sfocles inova em vrios aspectos. Em Filoctetes, v-se, alm da transformao da personagem trgica, o modo pelo qual o desenvolvimento do enredo e seu resultado dependem absolutamente da interao de Filoctetes, e tambm de Odisseu, com Neoptlemo, sobretudo da influncia que exercem sobre ele e um sobre o outro (KIRKWOOD, 1967). Na pea de 409 a. C., essa interao entre as personagens, a qual tambm pode ser pensada na perspectiva do embate, do gn, levada ao limite. Sfocles pe em cena a diviso da plis ou, mais precisamente, por meio da interao das personagens, pe em cena uma aluso s foras que se opem no universo interno da plis.

Na pea de Sfocles, existem duas foras bsicas: de um lado, Odisseu; de outro, Filoctetes. Ambas tentam agir sobre uma nova fora, que recebe, avalia, refuta e incorpora as influncias: Neoptlemo. Seria a mistura dessas foras, ou uma tentativa de harmoniz-las, o que que se v esboar em Filoctetes? O

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conflito entre as personagens aponta de forma inegvel para as inimizades que existem dentro de uma mesma comunidade e que a dividem, enfraquecendo-a. Tal como ocorre na histria de Atenas, na tragdia de Sfocles, o elemento externo (a guerra de Troia) suplanta o conflito interno, forando a unificar as partes, uma vez que, ao fim da pea, Filoctetes e Neoptlemo seguem para a guerra junto com Odisseu, at ento o maior inimigo do heri abandonado. Neoptlemo, que busca se formar, estabelece como que uma ponte entre as duas foras j constitudas: entre a intransigncia de Filoctetes, e a autoridade de Odisseu, que, ao contrrio daquele, sabe abandonar suas convices para danar conforme a msica. Em Filoctetes, Odisseu , alm disso, o homem das palavras, muito mais do que dos feitos. So as palavras que o guiam:

Quando eu era rapazote, eu tambm tinha a mo ativa e a lngua preguiosa [ ].Mais calejado, vejo que a lngua [ ],e no a ao, o que se impe [] aos homens.(SFOCLES, Filoctetes, 96-9)

Com sua habilidade, Odisseu, sabendo que deve enfrentar a hesitao de Neoptlemo (Me aperta o peito ouvir tua fala; anula-me/ imaginar-me executando-a: no/ fui feito para leviandades [], v. 86-8), trata de, por meio das palavras, tornar a trapaa mais palatvel, a fim de que o filho de Aquiles consinta, conseguindo lev-la a cabo. Para o Laertade, a vitria vale o sacrifcio da virtude e isso o que tenta ensinar ao jovem filho de Aquiles; a vitria vale tudo (Nasci com sede de vencer em tudo [ ], v. 1052).

O philnikos, este que ama a vitria, um tipo popular para o pblico ateniense do sc. V a. C., a julgar pelas ocorrncias do termo nos autores coevos. Plato faz vrias menes a ele. No Protgoras (336), Alcebades o philnikos []; Aristteles o descreve na Retrica (I, 6) [ ]. Tucdides, Iscrates e Xenofonte conhecem-no tambm. Em Filoctetes, Odisseu tem apenas uma causa; ele representa a vontade e a autoridade do exrcito (KIRKWOOD, 1967, p. 145).8 Para ele, s a vitria pode dar a glria, e a justia no mais importante do que vencer, pois a justia pode ser feita depois (ou pode, at mesmo, ser esquecida, como vai ser ao fim da pea):

Sei bem que foge ao teu feitio, menino,falar coisas assim, urdir ardis,

8 Texto original: has just a cause; he represents the will and the authority of the army.

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mas como conquistar vitria doce,coragem! Noutra vez, seremos justos! [ ]Cede impostura por um dia nico, [ ]doa-te a mim, pois h tempo de sobrapara escutares: Eis um jovem probo!(SFOCLES, Filoctetes, 79-85)

Odisseu tem ainda outro argumento para convencer Neoptlemo, para alm do sabor doce da vitria. O jovem deve pr em prtica o valor da lealdade ao exrcito, deve estar sempre ao lado dos seus, executando as aes que lhe forem designadas. Por isso, Odisseu faz Neoptlemo sentir o peso de sua responsabilidade: se ele falhar na execuo do plano, ele arruinar todo o exrcito (Tua discordncia/ dizimaria o contingente argivo [ / , ], v. 66-7). E, de fato, a lealdade ao exrcito, um elemento que pesa na conscincia de Neoptlemo. Ele diz: Reafirmo o compromisso, temo a pecha/ de traidor [ /] (v.93-4), sublinhando saber o valor de seu compromisso para a comunidade (o que se confirma pelo prefixo da palavra escolhida ). Desde o princpio, porm, o Aquileu refuta o dolo, desqualificando-o. Ele pergunta a Odisseu: No vs na farsa um golpe que rebaixa? (v.108), enxergando a desonra [] em se aproveitar do falso []. Neoptlemo no parece compartilhar os valores de Odisseu e envergonha-se do que faz (Enganei um heri com truques baixos [], v. 1228).

Neoptlemo, enfim, ainda que cumpra as ordens de Odisseu, no se identifica com ele. Ao contrrio, ele se reconhece em Filoctetes, com quem compartilha a viso que tem do Laertade. Ao perguntar sobre o pior dos homens que fora a Troia, Filoctetes faz Neoptlemo demonstrar a imagem ruim que tem de Odisseu. verdade que Odisseu o desobriga de ter pejo para falar dele, pois, de fato, o que importa o sucesso da ao (Solta os cachorros contra mim, sem pejo [ ], v. 65). Neoptlemo advinha Odisseu na prfida descrio de Filoctetes, quando este, referindo-se a Tersites, pergunta-lhe:

De fato, e por isso que eu te indagoque fim levou o tipo infame, exmio falastro, se ainda vive ou faleceu.(SFOCLES, Filoctetes, 438-40)

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Ao qualificar Tersites, Filoctetes explora a mesma ambiguidade que Homero, na Ilada, havia explorado [ ]. Detentores de uma lngua afiada e perspicaz: assim que tanto Tersites quanto Odisseu so igualmente qualificados no dilogo entre Neoptlemo e Filoctetes. Terrveis na fala, Tersites e Odisseu confundem-se no entrecho. De fato, para Neoptlemo, Odisseu representa, alm da autoridade do exrcito, a malcia, a astcia e a frouxido moral. Odisseu j havia lhe sugerido que a moral seria uma espcie de mscara passvel de ser vestida e tirada conforme a contingncia (Noutra vez, seremos justos!, v. 82). No sendo possvel vesti-la hoje, no haveria razo para sofrer. Odisseu, como Filoctetes, enxerga a nobreza [] do filho de Aquiles, mas ele sabe que sua virtude no til para a execuo do plano do qual depende a vitria aqueia na guerra (tua nobreza []/ pode pr a perder o bom desfecho!, v. 1068-9).

Gordon Kirkwood (1967) v em Odisseu o smbolo do Estado. Odisseu, nesse sentido, no seria o vilo da histria, nem ofereceria ao pblico a imagem oposta da virtude de Filoctetes, ao menos no o seu contrrio numa perspectiva maniquesta. Odisseu a fora da plis, do princpio coletivo que deve prevalecer sobre a virtude individual. Segundo Bernard Knox (1964), todavia, Filoctetes e Odisseu funcionam, sim, como um par que revela ao pblico dois tipos ideais de homem e que demanda do prprio pblico uma sorte de escolha.

O Odisseu homrico , sem sombra de dvida, um homem de estratagemas e de palavras certas. Diferentemente de Aquiles, ele devota-se vida, no morte gloriosa, mas no hesita em arrisc-la para defender a honra: na ilha de Circe, por exemplo, quando Eurloco retorna como nico sobrevivente, Odisseu no foge para salvar a prpria pele (HOMERO, Odisseia, X, 273). O Odisseu sofocliano, em jax, tambm tem sua nobreza; uma nobreza distinta da nobreza de jax, posto que flexvel e malevel s vicissitudes do mundo, mas ainda assim uma nobreza admirvel, sendo apenas em funo dela que a nobreza de jax permanece preservada como memria. O Odisseu sofocliano em Filoctetes, por sua vez, a quem s importa a vitria, mais se parece com o Odisseu euripidiano (KNOX, 1964).

Em Filoctetes de Eurpides, segundo Dion Crisstomo (LII; LIX)9 Odisseu aparece na pele de um homem que, alm de extremamente astuto, urbano, pertence plis. O estrangeiro annimo (Odisseu antes de se revelar) anuncia as grandes perdas na guerra a Filoctetes, em particular a morte de

9 Antes de Sfocles, tanto squilo quanto Eurpides apresentaram, cada um, sua pea Filoctetes, das quais no nos restam mais do que alguns fragmentos e os comentrios de Dion Crisstomo.

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Agammnon e a desgraa do prprio Laertade, como que buscando abrir caminho para a aderncia do heri solitrio ideia de retornar guerra (LII). O plano de Odisseu, na pea de Eurpides, conforme a apresentao de Dion Crisstomo, assim, parece ser o de encorajar o retorno de Filoctetes, ganhando sua cumplicidade, a partir da informao de que os dois tinham exatamente os mesmos inimigos e de que tais inimigos estavam mortos. A partir do que se presume ser o prlogo da pea Filoctetes de Eurpides, sabe-se, conforme o que ele mesmo diz, que seus aliados consideram-no o melhor e o mais prudente dos aqueus []. E ele pergunta-se que tipo de inteligncia seria esta, a que faz quem trabalha mais do que os outros ter que dividir com eles a salvao e a vitria []. por amor glria [] que esse Odisseu vai a Lemnos em busca de Filoctetes (DION CRISSTOMO, Discursos, LIX, 1).

O Laertade de Eurpides, na pea em questo, , para Dion Crisstomo, um patife. O Odisseu de Sfocles, por sua vez, estaria a meio caminho, entre o heri nobre e simples de squilo, que preserva as qualidades dos heris de outros tempos, e o heri velhaco e sem escrpulos de Eurpides (LII, 15). O Laertade sofocliano teria dignidade, nobreza, e seria mais gentil e mais franco do que seu homlogo euripideano (LII, 16).

Diferentemente do que pensou Dion Crisstomo, para Douglas Olson (1991), o Odisseu sofocliano seria aquele que cede patifaria, revelando-se um canalha completo, um depravado amoral do incio ao fim (OLSON, 1991, p. 282).10 Sfocles, e no Eurpides, teria transformado a histria de Filoctetes na histria da vileza moral de Odisseu, em que ele denunciaria, por meio da sua prpria degradao, a degradao do homem poltico, afinal: do comeo ao fim, ele sem dvida o vilo, embora as opinies possam variar sobre o grau de sua vilania; cada etapa na pea revela uma nova depravao em seu carter (STANFORD, 1954, p. 107).11 Nesse sentido, o Odisseu da pea Filoctetes de Sfocles, merece, segundo B. Knox (1964), os ttulos que recebe injustamente em jax: filho de Ssifo, o enganador, o trapaceiro arquetpico. Tambm para Knox, ele no respeita, sequer minimamente, o cdigo heroico; nenhum princpio guia sua conduta, a no ser o desejo de vitria, para o qual se volta com todos os seus esforos. Esse Odisseu sofocliano de Filoctetes algum que faz de tudo [] no sentido extremo: ele aceita fazer qualquer coisa para obter a vitria, no h valor que o impea. Ele aquele

10 Texto original: a complete scoundrel, amoral reprobate from start to finish.

11 Texto original: from beginning to end he is undoubtedly the villain, though opinions may vary about the degree of his villainy. Each development in the play reveals a fresh depravity in his character.

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que no se permite afetar pela fria nem se deixa guiar pela fora do corpo; o homem cuja inteligncia e astcia controlam as aes. O Odisseu sofocliano de Filoctetes, , assim, para boa parte da crtica, um tipo totalmente degenerado do homrico.

Muito teria a refutar, se o tempono premisse; por isso sintetizo:eu dano - um camaleo - conforme a msica. [ , ]Num teste por algum correto e bom,no h quem me anteceda em escrpulo,Nasci com sede de vencer em tudo[ ](SFOCLES, Filoctetes, 1047-1052)

Longe de ser um tipo egosta, Odisseu poderia, contudo, ser visto pela plateia que assistia pea, em 409 a. C, como o democrata radical que pensa no grupo e que no hesita em fazer pagar o preo que precisa ser pago para o benefcio do grupo (na histria em questo, os guerreiros em Troia). Para Winnington-Ingram (1980), cuja leitura discorda da anlise de B. Knox e D. Olson, Odisseu representa esse homem poltico, um tipo bastante reconhecvel para o pblico. Ele est chefiando a misso em Lemnos como o enviado responsvel pelo exrcito aqueu, que representa o exrcito, seus lderes e, portanto, a plis. Odisseu se reconhece como uma pea que integra o exrcito (O contingente []; entre eles, eu [], v. 1243). Na pea de Sfocles, ele tambm pode ser interpretado como um homem prudente, que no titubeia com relao aos propsitos de sua ao e que reconhece nela seu pertencimento coletividade, sabendo que no cumprir a misso se colocar contra o exrcito, contra a plis. Diferentemente de Neoptlemo, a quem faz a pergunta, Odisseu no parece imaginar-se capaz de abandonar ou refutar um desgnio do grupo que integra: No temes [-] o confronto com o exrcito? (v. 1250).

Seria de se pensar que, do ponto de vista democrtico, de fato, esse Odisseu, tal como o descreve Winnington-Ingram, seria o ideal, o escolhido pelo pblico. Nele, versatilidade, adaptao (qualidade fundamental do ateniense, como elogia Pricles na Orao Fnebre de Tucdides), habilidade diplomtica, curiosidade intelectual combinam-se a fim de aproxim-lo da vitria. Do ponto de vista aristocrtico, porm, os heris da fora so preferveis ao heri das palavras, tanto mais se for este um Odisseu antes afeito ao dolo e s mentiras do que ao impetuosa, como o Odisseu homrico. a escolha que

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se v em Pndaro: jax, e no Odisseu, o mais valente, depois de Aquiles [] (PNDARO, Nemeias, VII, 26). Diferentemente da escolha da plis, do ponto de vista aristocrtico, a preferncia entre os dois heris que se apresentam na pea de Sfocles (Odisseu e Filoctetes) recai, sem sombra de dvida, sobre o heri da fora: Filoctetes, aquele que confirma, indiretamente, o tipo heroico de Aquiles. Sfocles, portanto, participa do debate sobre o maior dos dois grandes heris, do qual tambm participam poetas e sofistas, continuando a disputa que se v iniciar desde a Ilada e a Odisseia. A escolha do poeta, no entanto, no parece, de forma alguma, ingnua a ponto de identificar num dos heris o caminho admirvel e no outro o caminho perverso. Sua escolha sugere uma problematizao das foras que ento atuam sobre a plis e que, embora reunidas aps o golpe dos Quatrocentos, no consolidam, seno artificialmente,12 essa unio.

III - O embate entre dois cdigos e a escolha de Neoptlemo

Ao tornar o isolamento de Filoctetes maior e mais explcito do que o isolamento de qualquer outro de seus outros heris, bem como ao torn-lo maior e mais explcito do que o isolamento do Filoctetes de Eurpides e de squilo, Sfocles aprofunda tanto a dificuldade quanto a necessidade da sua reintegrao. A abertura da pea j uma evidncia disso:

Eis que se descortina o cabo que ndulaslmnias circum-envolvem. Rastros de homemno h, tampouco traos de morada.(SFOCLES, Filoctetes, 1-3)

Filoctetes vive durante dez anos na ilha deserta de Lemnos. A possibilidade de seu retorno guerra contrasta com esse ambiente em que poucos traos de civilizao se apresentam: uma cumbuca, alguns panos ftidos, certos sinais de fogo. Sfocles parece querer enfatizar com a ausncia de qualquer forma de coletividade, o isolamento agudo do heri:

12 Adiante, o estudo busca discutir a ideia de que a vitria democrtica sobre os Quatrocentos busca, a partir de 411 a. C., afirmar-se filiando-se ao passado democrtico da plis e apagando as marcas do golpe dos Quatrocentos. No obstante, a tragdia uma das frentes que nos permite apreender no apenas a vontade poltica do momento mas a fragilidade dessas medidas democrticas.

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ODISSEUH no interior sinais de que um lar?NEOPTLEMOSer um leito o tufo de folhagem?ODISSEUMas isso tudo sob o teto? E o resto?NEOPTLEMOH uma copa de pau, que um pobre artficefabricou, mais uns trochos para o fogo.ODISSEUPareces indicar-me seu tesouro.NEOPTLEMOOh, cus! Que nojo! Uns panos rotos cheiosde purulento pus secam ali!(SFOCLES, Filoctetes, 32 - 39)

A solido do heri, no somente no plano imagtico, mas no plano vocabular, enfatizada pela frequncia com que aparece no texto a palavra que designa o solitrio []: v. 228, 265, 269, 471, 487, 1018. Da mesma maneira que o contraste lexical marca a passagem de Neoptlemo da infncia para a vida de adulto e, portanto, para a guerra, confronta-se com a (v. 1018, 1213, 1424),13 num jogo que tambm indica a mudana da condio de uma personagem: Filoctetes passa de seu isolamento selvagem reintegrao social. Apesar de no dar mostras de hesitar com relao ao cdigo heroico que segue, e de abrir mo dele apenas a partir da ordem divina, para Charles Segal (1981), antes de seguir a ordem do deus, Filoctetes precisa recobrar a confiana no homem. Ele quer, em outras palavras, poder sentir-se capaz de abandonar sua solido antes de perceber que ter que se agregar, novamente, aos homens. E a comunicao entre os dois lados est, desde seu abandono, ameaada, tornando-se possvel apenas por meio de um jovem que se v dividido: estando prestes a se tornar um guerreiro, ele deve fazer suas escolhas entre os dois tipos de herosmo cujos paradigmas na pea so Filoctetes e Odisseu. Ele escolhe Filoctetes.

Neoptlemo percebe que seus valores e os valores de seu pai se reconhecem em Filoctetes. Com Neoptlemo, Filoctetes no apenas far uma nova amizade, rompendo com seu isolamento, recobrando a confiana no homem, feito essencial para a transformao pela qual precisa passar (SEGAL, 1981), como vai, com isso, criar o lao que a coletividade no pode, aos olhos do

13 Na fala de Filoctetes, a palavra tambm aparece, mas como que para confirmar seu isolamento: aptrida (v. 1018) e, depois, quando de sua reflexo sobre o suicdio como sada: plis, plis-ptria (v. 1213). Por fim, a palavra dita por Hracles em sua apario ao fim da pea (v. 1423).

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heri, deixar de cultivar, a phila. Ao contrrio de Odisseu, a fala de Filoctetes ser marcada por palavras constitudas pelo radical phil- (BLUNDELL, 1989): (adorvel - v. 224);, (traste sem amigos - v. 228); (sutil, propcio, receptivo - v. 234; 237; 242).

Filoctetes e Neoptlemo, phloi, vo, porm, precisar ceder um pouco. O deus do escudo hopltico no tem outra funo na pea seno impedir o conflito interno, a diviso. Ele, como a plis em 411 a. C., por meio da interveno dos hoplitas do Pireu, prximos a Atenas, e dos hoplitas e marinheiros de Samos, vai buscar instituir a unidade. O poeta pe em cena, assim, o desafio de recriar uma sociedade saudvel capaz de curar a adoecida, seja ela representada por um Odisseu que no respeita a phila, seja por um Filoctetes abandonado que s quer punir seus inimigos, conforme o cdigo pico.

A tragdia retoma o cdigo heroico [ ], como se quisesse coloc-lo prova: examina sua histria para enxergar a que ponto ele pode chegar. Enraizado na pica, esse cdigo ajuda a entender o que levam os heris homricos a regozijarem-se sobre suas vtimas. A morte em batalha o pagamento pelas mortes provocadas. Nesse sentido, o que sofre no merece piedade, posto que ele tem no sofrimento o preo justo a pagar. Tal como acontece com os heris picos, apenas um princpio guia a conduta do Filoctetes sofocliano, e por sua fidelidade a ele que o heri o repete: aos amigos fazer o bem, aos inimigos o mal.

Na genealogia desse cdigo, um fragmento de Arquloco sugere sua presena no sculo VII. Nele o poeta afirma sei algo grande []: ao que mal me faz [ ], devolver terrveis males [] (ARQULOCO, Fr. 126). Pndaro confirma a tradio (PNDARO, Nemeias, VIII, 35-45). E, se o cdigo tem, seno seu incio na pica, o que seria pouco provvel, ao menos tem a partir dela seus registros, os quais, tais como em Arquloco e em Pndaro, apontam para um afluxo que desagua no sculo V, de modo que mesmo na plis democrtica tal pensamento orientar, embora no sem conflito, a conduta cidad (BLUNDELL, 1989). Conforme o cdigo, o que quer que acontea com o homem odiado gera no homem que odeia o sentimento contrrio: o sucesso do inimigo doloroso para ele, bem como a queda do inimigo lhe gera prazer.

No sculo V, o pensamento parece, alis, conservar um teor banal. O discurso de Gilipo s tropas espartanas e siracusanas apela, de fato, ao senso comum: a vingana contra os inimigos, como diz o provrbio [], o mais doce dos prazeres (TUCDIDES, Histria da Guerra do

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Peloponeso, VII, 68). Tucdides, ademais, parece aceit-lo. Para citar apenas outra passagem, contra a morte dos prisioneiros espartanos pelos atenienses, que jogaram em seguida os cadveres em desfiladeiros, o historiador justifica o ato pelo princpio: justo prejudicar o inimigo, utilizando o mtodo mesmo dele (II, 67). Herdoto, antes dele, tambm testemunha o cdigo nas histrias que conhece. Para citar apenas uma passagem, mas bastante significativa, o historiador conta como um inimigo ser prejudicado por aquele que outrora prejudicara. Hermtimos, para executar a vingana contra aquele que lhe tornara eunuco, sendo brbaro, assevera a regra:

Ora, enquanto o Rei estava em Srdis preparando-se para levar as foras persas contra Atenas, Hermtimos foi mandado em uma misso a certo lugar da Msia, habitado por quianos e chamado Atarneus, e l encontrou Paninios. [...] Depois de apostrof-lo, Hermtimos mandou avanarem os filhos de Paninios e obrigou-o a castrar os prprios filhos, que eram quatro; cedendo compulso, Paninios obedeceu, e depois de castrados seus filhos foram tambm constrangidos a castr-lo. Assim Paninios foi colhido pelo castigo e Hermtimos vingou-se. (HERDOTO, Histria, VIII, 106, traduo de Mrio da Gama Kury)

Xenofonte tambm sabe dar sua contribuio. Num dilogo entre Scrates e Critbulo, o primeiro fala sobre a amizade e a inimizade, seguindo a mesma regra. Scrates diz a Critbulo serem os homens naturalmente inclinados amizade [ ]. Apiedam-se, colaboram entre si, ficam gratos uns para com os outros. Entretanto, eles so tambm dados inimizade [ ]: ao considerarem as mesmas coisas belas e agradveis, competem entre si, e, ao divergirem de opinio, entram em conflito. Sua inimizade nasce tambm da vingana e do dio [ ] (XENOFONTE, Memorabilia, II, 6, 21).

Na tragdia, em geral, no apenas em Sfocles, o cdigo levado cena. Em Eurpides, para citar apenas passagens rpidas:

Porque que normal homem nobre fazer justia e fazersempre o mal pros que so maus, de qualquer jeito! (EURPIDES, Hcuba, 844-5, traduo de Andreza Moreira)

Que tudo d certo! Por que isso igual para todos, para cada um e para cidade: que quem ruim sofra algo ruim; e quem bom, seja feliz! (EURPIDES, Hcuba, 905)

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O sculo V, nesse sentido, mostra aceitar o cdigo, portador de uma concepo prpria de justia, mas outros registros coevos no deixam, por outro lado, de r