haiati identidade e representação

Upload: karla-candido

Post on 06-Jul-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    1/14

     

     

    Haiti: identidade e representação

    Alex Donizete Vasconcelos* 

    Resumo: Pensar o Haiti, tendo como parâmetro a literatura produzida sobre seu povo, história ecostumes, é pensá-lo sob os estigmas da Revolução Negra, do Vodu Haitiano e da tirania de seusgovernantes, de Jean-Jaques Dessalines a Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. São esses os marcosreferenciais que, via de regra, pontuam a parca literatura produzida sobre o Haiti, principalmente noBrasil. Sobressai portanto a representação barbaresca de um país e de um povo que, antes de tudo, foi, econtinua sendo, um primoroso exemplo do que pôde a “civilização” através, antes de mais nada, do jogodas trocas simbólicas, analisado aqui sob os auspícios das representações sociais e dos constructosidentitários daí resultantes. O Haiti não é fruto da barbárie, é antes, o extremo limite da barbáriecivilizatória que deitou, com seu poder de re-apresentar , textual e imagéticamente, as suas armas sob osolo, o povo e a cultura haitiana. 

    Palavras-chave: América Latina, representações sociais, discurso, literatura, barbárie.

     Haiti: identity and representation.

    Abstract: Think Haiti, having as parameter the literature produced about its people, history andcustoms, is thinking it under the stigma of the Black Revolution, the Haitian voodoo and the tyranny oftheir rulers, of the Jean-Jacques Dessalines at Jean-Claude Duvalier, the Baby Doc. Those are the

     benchmarks that, generally, punctuate the sparse literature produced on Haiti, especially in Brazil.Therefore, it stands out the Barbaresco representation of a country and a people who, after all, was, andremains, an exquisite example of what could the "civilization" be, first of all, the game of symbolicexchanges, analyzed here by the auspices of social representations and the resulting constructedidentity. Haiti is not the result of barbarism; it is the extreme limit of barbarity that civilization lay in its

     power to re-submit, text and imagery, their weapons on the ground, the Haitian people and culture. 

    Key words: Latin America, social representations, discourse, literature, barbarism.

    Pensar o Haiti, tendo como parâmetro aliteratura produzida sobre seu povo,história e costumes, é pensá-lo sob os‘estigmas barbarizantes’ da Revolução

     Negra, do Vodu Haitiano e de suaintrincada política, que se desenrola deJean-Jaques Dessalines a Jean-ClaudeDuvalier. São esses os marcos referenciaise representativos que, via de regra,orientam àqueles que se debruçam sobreesse tema. Sobressai, portanto, arepresentação barbaresca/barbarizante deum país e de um povo que, antes de tudo,foi e continua sendo um ícone do insucessode um nefasto “processo civilizatório” quenas Américas se arrasta, caoticamente, hámais de cinco séculos. Acreditamos que o

    Haiti não é fruto de um tipo de barbárieatávica, pura e simplesmente. É antes, uma

    ferida ainda aberta desse processocivilizador. Um fruto carcomido peloavanço desenfreado do capitalismo, pelaintolerância religiosa e cultural e pelooportunismo de uma elite malinchista1.

    Esses marcos, aos quais nos referimos

    anteriormente – Revolução Haitiana, Vodue o sistema representativo -, são abordados,via de regra, com uma conotaçãoexplicitamente negativa, prevalecendo

     Malinchista – En México [...] se ha creado uma

    imagen popular para designar ofensivamente aquien opta por otros valores que nos sean losnacionales: ‘malinchista’. La palabra hacereferencia a la célebre mujer indígena quienMonctezuma envio, junto con otros presentesrégios, a Hernán Cortés como um mensaje de paz y

    respeto; y la qual ayuntándose com el conquistador,lê sirvió de intérprete durante las luchas deconquista. (GÓMEZ, 1994:26)

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    2/14

     

    nessas representações textuais e imagéticasum arquétipo que está sempre muito

     próximo ao real maravilhoso, ao fantásticoou, no extremo oposto, ao abjeto, ao

     bárbaro. Nessas construções está sempreevidenciado o distanciamento e a

    resistência do povo haitiano, renegado pelas próprias elites, aos modelosocidentais de aculturação, ou, sequisermos, de civilização.

    Foto: Fernando Alvaro A. da Rosa e Albuquerque

    O haitiano, povo, foi sempre colocado àmargem desses processos decisórios,

    surgindo apenas como contraponto, pois,no momento em que lhes foi oferecido um“Deus”, cristão, uma cosmogonia

     particular, alicerçada sobre o vodu, surgiucomo um ‘não’. No momento em que aindependência não era mais que umaquimera na América Latina, os ecos deuma ‘revolução de escravos’ causava furor,não só aqui, mas do outro lado doatlântico, apresentando ‘à civilização’ o

     primeiro estado independente da América

    Latina, diga-se de passagem, a primeirarevolução escrava a obter êxito nos seus

    intentos libertadores na história. Efinalmente, já no século XX, quando em

    função de sua estratégica localização, vêameaçada sua liberdade e soberania,conquistada a tão duras penas, o povohaitiano mais uma vez diz não aosinvasores, mostrando às elites, sustentadas

     pelos aportes políticos-financeiros dogigante do norte (EUA) que, no que pesema miséria e a dor causadas pelos sucessivosembargos econômicos, os ideais de outroranão silenciaram, ainda queincompreendidos e, o que é pior,

     barbarizados. Como oportunamente apontaSCARAMAL, 2006:

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    3/14

     

    Talvez por ser o primeiro país dasAméricas a conquistar suaindependência por escravos insurretos(1791-1804) – em um continente noqual os países tinham por baseeconômica a utilização da mão-de-obraescrava -, o Haiti passou a ser oarquétipo da perturbação da ordem.Talvez por ter criado uma religiãoamalgamada em ritos pagãos, passou aser o reino da desordem. Sabe-se,

     porém, que, até os dias de hoje, aoshaitianos não foi concedida a entrada –de forma cabal – à condição humana.(SCARAMAL, 2006:11)

    Acreditamos que, muito embora oconsiderável distanciamento temporal,como indica a autora supracitada, ohaitiano, ou melhor, as representações,

     bem como as ‘identidades’ haitianas são,ainda hoje, indissociavelmente ligadas aessas experiências revolucionárias ereligiosas, sagazmente utilizadas, quer nahistoriografia, quer na literatura, paralocalizá-los à margem da ‘condiçãohumana’, tornando-os, por este viés,

    incapazes/impossibilitados portanto, deexercer sua soberania política eexperienciar suas heranças culturais demaneira plena e ostensiva, estando, nessemomento, a mercê de organismosinternacionais cuja isenção e transparênciasão, no mínimo questionáveis.

    Esse alijamento a que é submetido ohaitiano, política e culturalmente, comreflexos em todas as esferas do social, é

     parte de um processo mais amplo que,

    grosso modo, está, em maior ou menorgrau, presente na história e nahistoriografia de grande parte dos paíseslatino-americanos. Sem dúvida, com oHaiti, face ao desenvolvimento de umahistoriografia e literatura singulares, esse

     processo foi - e continua sendo - maisacentuado. Nessa acanhada porção de terra,todas as manifestações, por motivosdiversos, tendem a se extremar, e talvez aíresida uma das principais virtudes desse

     povo, que, diferente do que quiseram ouainda querem nos fazer crer, carregam

    consigo, não os germes da barbárie e dainaptidão, mas a vontade e distinçãoinvulgar do homem soberano e livre, quenão se submete, que não se curva frente a

    outrem. “Por mais negro que seja o quadro,o povo haitiano continua a viver. E até a rire a dançar. [...] A realidade dolorosa,trágica, transposta mediante cores vivas,

     pode superar-se num imagináriomaravilhoso que faz do homem o melhorremédio para o homem.” (ARISTIDE,1992). Essa proximidade com esseimaginário maravilhoso  pode facilmenteconverter-se de remédio a veneno.HURBON, quando escreve sobre o vodu

    no final dos anos 60, nos dá uma boa idéiada penetração dessa literatura nasrepresentações e nas construçõesidentitárias e quiçá do imaginário do povohaitiano, indicando, ao mesmo tempo umaresposta dos literatos haitianos

    Ao longo da última metade do século,a literatura não cessa de apontar odrama do povo haitiano, condenado

     pela civilização ocidental, com o apoiodo catolicismo, a desconhecer sua

     própria cultura. Os temas discutidosmostram o universo do vodu como olugar por excelência em que se revela aoriginalidade haitiana. [...] O romancehaitiano, por sua vez, tem dedicadoatenção especial ao vodu e àdesvalorização desse culto como obrado catolicismo. (HURBON, 1987:36)

    O que podemos notar é que há, nodesenrolar desse processo, uma indefiniçãoentre os limites da ficção e da história, oumelhor, poderíamos afirmar que há, nocampo da produção historiográfica eliterária, uma estreitíssima, e por vezesconflituosa, relação com o campo dasexperiências sociais. Mas também

     poderíamos nos perguntar sobre a pertinência destes limites, ou seja, de ondecomeça a história e termina a ficção, ouvice-versa. Há necessariamente umadistinção entre essas duas realidades, entre

    esses dois momentos da produção culturalde um povo? Acreditamos que as linhas

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    4/14

     

    sejam realmente tênues, que há umaintersecção entre esses dois mundos, mas,em princípio, não é isso o quequestionamos. O que nos interessa é

     perceber como essas representações e,conseqüentemente, essas identidades, queforam forjados sobre essaliteratura/historiografia, subsistem,tendenciosa e parcialmente, sendoutilizadas amiúde para justificar toda asorte de massacres e intervenções ao longode sua história. O Haiti é corriqueiramenteapresentado como o outro lado da moeda

    [...] a ilha do medo, [...] Conceituado pelos europeus como o espaço decanibais pré-colombianos, mescla-seaos sortilégios africanos a partir dotráfico negreiro e alcança, ao final doséculo XX, a expressão contemporâneade excessos de despotismo e caos. [...]O Haiti passou a ser considerado comoa ilha do medo a partir dos

     prejulgamentos que antecederam a1492. (SCARAMAL, 2006:11)

    Foto: Fernando Alvaro A. da Rosa e Albuquerque

     Prejulgamentos, conceituação européia,ilha do medo. A história político-culturalhaitiana, bem como suas identidades, vemsendo construídas  performaticamente  aolongo desses mais de quinhentos anos.

    Tentar entender como esses construtosidentitários foram sendo forjados e como

    essas correntes historiográficas e literáriasinfluenciaram nesse processo pode ser um

     primeiro e importante passo para tentar umdistanciamento dessas representações

     pueris e barbarescas.

    Como dissemos a história, a historiografiae a literatura do Haiti estiveram sempre

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    5/14

     

    muito próximas das produções de mesmogênero da América Latina, até mesmo porser parte desta, sendo que, no caso haitianotodos os eventos estão, não raro, envoltos

     por um imaginário maravilhoso, comodiria Aristide, que torna quase impossívelestabelecer os limites entre história eficção.

    As controvérsias acerca da  Ilha de Espanhola e dos seus habitantes iniciam-secom a chegada de Colombo, não cessando

     jamais. Da chegada de Colombo aosmovimentos de independência decorremmais de três séculos e no prolongado

     período que separa esses dois eventos, a pequena ilha caribenha foi de  Pérola das Antilhas à  Ilha do Terror . As primeirashipóteses, assim como as conclusões a queuma plêiade de historiadores e literatoschegaram algum tempo depois e que porincrível que pareça, algumas perduram atéhoje, são por demais variadas, masguardam, em sua grande maioria, um veioem comum: a idéia de que o haitiano,sobretudo o negro e seus descendentes,

     padeciam de uma manifesta inferioridade,que poderia ser biológica, moral,intelectual, espiritual, cultural, enfim. Masesse fato não causaria grande surpresa,uma vez que, como em toda a AméricaLatina esse foi, quase sempre, o papeldesse tipo de produção

    [...] el discurso cronístico, de esta primera etapa (colonização), estacondicionado siempre por interes, el dela corona y el del cronista [...] el

    referente, que es el nuevo mundo,habrá de perder su identidad para serarreglado conforme a los intereses que

     presiden el discurso. El referenteaparecera magnificado, sacralizado,embellecido, si así conviene a esosintereses, como sucede con lanaturaleza, o diminuído, empobrecido,satanizado, como sucedefrecuentemente con el hombreamericano. De ahí que hombre ynaturazela americanos pierdan, desdeel primer contacto del europeo con

    estas tierras, su referencia deidentidad” (LA SERNA, 1985: 45)

    El discurso cronístico’. Aí está o moldehomogeneizador onde serão forjadas as

     primeiras ‘contruções identitárias’ e deonde brotam também os primeiros esboçosrepresentativos acerca do haitiano e sob oqual se assentaram todas as outras,inclusive hoje, pois, ainda que passadosmais de três séculos da grande Revoluçãohaitiana, os constructos identitárioshaitianos ainda são, em grande monta,alicerçados sob os estigmas deixados poresse verdadeiro ponto de inflexão dahistória haitiana.

    É quase um consenso entre os historiadorese outros estudiosos que trabalham com otema, que, tanto a questão dasrepresentações, quanto àquelas ligadas asidentidades, ocupam aí um papel muitoimportante. A tessitura da trama histórico-literária haitiana deixa entrever que sob ocomplexo emaranhado que compõe oaviltante quadro de caos e miséria que hámuito assola la Isla  - que contribuem

    sobremaneira para dar alento aos frágeisideais que buscaram, a todo tempo, selegitimar nas já suplantadas teorias deinferioridade racial, étnica, e cultural, quemuito pesaram, e ainda pesam, sobre oHaiti -, subjaz um fecundo corpus teórico,muito pouco explorado é verdade, que

     poderia indicar os caminhos, bem como osdescaminhos, desse labiríntico processo de

     produção e conformação de representaçõese identidades.

     No tocante aos processos de conformação das identidades podemos dizer que é ponto

     pacífico entre boa parte aqueles que sededicam as discussões acerca destasquestões que as mesmas tendem a seintensificar nos momentos de tensão,‘ruptura’, inflexão e de “crise”.  Aidentidade somente se torna uma questãoquando está em crise, quando algo

     supostamente fixo, coerente e estável é

    deslocado pela experiência  da dúvida eincerteza (MERCER apud HALL, 2006)

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    6/14

     

    grifo nosso. Dessa maneira poderíamossupor, num primeiro momento, que aimportância de que as questões identitáriasse revestem no Haiti, se dão em função de

    um permanente estado de crise  que, decerta forma, acometeu e/ou ainda acometeo continente sul americano como um todoe o Haiti de forma particular. Poderia ser,mas a questão é mais complexa.

    Um dos pontos sensíveis nas discussõesacerca da busca de pretensas identidades, eque também acabam produzindoverdadeiros estigmas, reside no fato de se

     buscar “a identidade” ou “uma

    determinada identidade”, ou seja, o fatodesta questão ser encarada como algoestático, fixo, engessado. Partimos do

     princípio de que o termo que melhorcaracteriza essa busca seria “processo”:identidade é igual a processo, uma vez queela está sempre ‘em processo’, sempre‘sendo formada’ [...] Assim, ao invés de

     falarmos da identidade como algoconcluído, deveríamos falar deidentificação , e vê-la como um processo

    em andamento. (HALL, 2006). Identidadeé algo que flui no espaço e no tempo.

    [...] As identidades estão sujeitas auma historicização radical, estandoconstantemente em processo demudança e transformação [...] É

     precisamente porque as identidades sãoconstruídas dentro e não fora dodiscurso que nós precisamoscompreendê-las como produzidas emlocais históricos e institucionais

    específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, porestratégias e iniciativas específicas.(WOODWARD, 2000:12)

    Conseqüentemente não partilhamos dasconcepções essencialistas  que buscamlegitimar-se com base em fundamentos queremetem a um passado imutável, a-histórico, buscando construir um laçocultural, místico, ideológico ou religiosoque possa uni-los, como a todo tempo, e

    ainda hoje, buscam fazer com relação àcultura haitiana. Estes modelos são muito

    utilizados para dar legitimidade amovimentos extremistas, sejam elesétnicos, religiosos e nacionalistas. Outrasformas de legitimação buscam

    fundamentar-se em aspectos biológicos,que buscam na estética corporal e/ou nostraços fisiológicos, os argumentos de sualegitimação, culminando quase sempre emconvulsivos movimentos racistas e anti-étnicos, como alguns já observados noHaiti.

    [...] Na base da discussão sobre essasquestões (identitárias) está a tensãoentre perspectivas ‘essencialistas’ e

     perspectivas ‘não-essencialistas’ sobre

    identidade. Uma definiçãoessencialista da identidade [...]sugeriria que existe um conjuntocristalino, autêntico, de característicasque todos [...] patilham e que não sealtera ao longo do tempo. Umadefinição não-essencialista focalizariaas diferenças, assim como ascaracterísticas comuns ou partilhadas[...]. (WOODWARD, 2000:12)

    Um outro aspecto que consideramos

    relevante e que deve ser observado, dizrespeito as relações de poder contidas nosdiscursos identitários. As identidades são,via de regra, alicerçadas sob princípiosexcludentes e discriminatórios. O ‘eu’ e o‘nós’ são construídos a partir da figura do‘outro’, ou melhor, a partir da negação do‘outro’, o que Derrida (1991) chama dedifférance.  As identidades não sãoconstruídas apenas por laços de afinidade,mas em grande parte sobre a diferença.Através da elaboração de sistemasclassificatórios se estabelecem posiçõesantagônicas. Cabe observar que no casohaitiano há um distanciamento substantivodo conceito de Derrida, na medida em queessas oposições - também conhecidas poroposições binárias,  definidas como sendouma simples divisão do mundo em duasclasses simétricas: em uma oposiçãobinária, um dos termos é sempre

     privilegiado, recebendo valor positivo,enquanto o outro recebe uma carganegativa. (DERRIDA apud SILVA, 2000)

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    7/14

     

    -, longe de serem simétricas seriam, eainda são, totalmente assimétricas. Ohaitiano não foi/é apenas o oposto, não estáapenas do outro lado, pura e simplesmente,

    nunca foi. Ele é inferiorizado,estigmatizado, satanizado, é colocado àmargem da civilização, um incapaz.

    As emanações de tal sistema classificatórioe o conseqüente estabelecimento dessasoposições deixa evidente que existam aíduas realidades bastante distintas: uma quedetém o poder de classificar, detentora deuma certa hegemonia, dominante porém,sendo a parte dissidente, constituída pelo

    “outro”, a-parte conflitante, exógena, umcorpo estranho que tenta se estabelecer. Não é aceito sem resistência, mas tambémnão pode ser simplesmente extirpado, umavez que constitui um parâmetro. Nas obrasconsagradas à história haitiana,historiográficas ou literárias, essasdicotomias estarão presentes quase que natotalidade dos discursos, constituindo oque poderíamos classificar quase que comoum paradigma literário-historiográfico no

    que concerne a temática haitiana.Como vimos, La Serna (1985), osdiscursos são construídos com objetivos einteresses muito claros.  É por meio dessasdicotomias que o pensamento europeu tem

     garantido a permanência das relações de poder existentes . (WOODWARD, 2000).Os discursos europeus dirigidos àsAméricas, sobretudo ao Haiti, nasceram no

     pós-descobrimento e foram sendoreelaborados, reproduzidos eaperfeiçoados, tendo como principalobjetivo ampliar os espaços de influênciadaqueles de onde emanavam essesdiscursos, bem como delimitar a posição aser ocupada, ou não, por todos aqueles aquem esses mesmos discursos eramdirigidos, enfim

    Fixar uma determinada identidadecomo a norma é uma das formas

     privilegiadas de hierarquização da

    identidades e das diferenças. Anormalização (grifo nosso) é um dos

     processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo daidentidade e da diferença. Normalizarsignifica eleger – arbitrariamente –uma identidade específica como

     parâmetro em relação ao qual as outrasidentidades são avaliadas ehierarquizadas. Normalizar significaatribuir a essa identidade todas ascaracterísticas positivas possíveis, emrelação às quais as outras identidadessó podem ser avaliadas de formanegativa. A identidade normal é‘natural’, desejável, única. A força daidentidade normal é tal que ela nemsequer é vista como uma identidade,

    mas simplesmente como ‘a’ identidade[...]. (SILVA, 2000:80).

    Podemos buscar no trecho supracitado osentido de algumas das teorias que foramsendo paulatinamente construídas, em

     princípio por europeus, e depoisapropriadas e reelaboradas por parte da‘elite intelectual’ haitiana, que muitoembora estivesse inserida num espaçotemporal distinto, tinha, não raro, osmesmos objetivos: normalizar paradominar. Constituiu-se assim o quediferentes autores, em diferentesmomentos, chamariam de malinchismo,traição das elites e/ou ainda nordomania2,em suma, o apreço por tudo aquilo queviesse de fora, fosse da França, Europa ouda América do Norte, especialmente comrelação àquelas questões ligadas aosaspectos políticos e culturais, não se dandoconta das especificidades inerentes aquele

     povo e àquela terra. Esses discursos,historiográficos ou literários,meticulosamente elaborados, habilmenteempregados e notavelmente eficazes,foram, em diferentes épocas e espaços,aceitos como verdades incontestes,legitimadas pela chancela de iminentes

    2 referência ao termo ‘nordomanía’, utilizado porJosé Enrique Rodo para designar [...] el afán

    latinoamericano de cópia de modelos extranjeros,especialmente norteamericanos [...] (RODÓ apudLARRAIN, 1996:151).

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    8/14

     

    figuras do mundo científico/acadêmico eintelectual.

    Um outro ponto que acreditamos relevante para a condução de dessa problemática écompreender a maneira como esses‘discursos identitários’ foram sendo aceitose absorvidos, mesmo queinconscientemente, tanto pelas camadasmenos abastadas e/ou menos esclarecidasquanto por uma considerável parcela daselites dominantes e teoricamentedetentoras de algum conhecimento.Entender como esses discursos,aparentemente destituídos de

    embasamentos científicos mais apuradosforam, aos poucos, constituindo-se emverdades cristalizadas enormalizadoras/normativas.

    As construções identitárias desenvolvem-se, principalmente, através de processosdiscursivos e lingüísticos.  La identidad deum pueblo cristaliza en las imágenes

     simbólicas de textos [...] (AÍNSA, 1990).As representações simbólicas permeiam omeio social, o ‘circuito da cultura’,impregnando os diferentes sujeitos quesão, segundo Althusser, recrutados ouchamados a ocuparem suas posições desujeito  A ideologia [...] ‘recruta’ sujeitosentre os indivíduos [...] ou ‘transforma’ osindivíduos em sujeitos (ALTHUSSER,1971). Constroem-se as ideologias, quevão delineando os sujeitos.

    Foto: Fernando Alvaro A. da Rosa e Albuquerque

    Um outro conceito, não menos importantee que pode nos permitir melhor exemplificar a posição por nós assumidana condução deste breve trabalho, no que

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    9/14

     

    toca as questões identitárias, é o que JudithButler (1999) definiu como conceito de

     performatividade 

    O conceito de performatividade

    desloca a ênfase na identidade comodescrição, como aquilo que é – umaênfase que é, de certa forma, mantida

     pelo conceito de representação – para aidéia de ‘tornar-se’, para umaconcepção da identidade comomovimento e transformação. [...] Aformulação inicial do conceito de

     performatividade deve-se a J. A.Austin (1998). Segundo Austin, [...] alinguagem não se limita a proposiçõesque simplesmente descrevem umaação, uma situação ou um estado decoisas [...] essas proposições fazemcom que algo se efetive, se realize.Austin chama a essas proposições de‘performativas’ [...] proposições cujaenunciação é absolutamente necessária

     para a consecução do resultado queanunciam. (SILVA, 2000:92-93).

    A construção de ‘uma identidade haitiana’,na perspectiva que adotamos pode sermelhor entendida, não em sua totalidade,mas em parte, observando também esseconceito - de performatividade –, comouma das chaves interpretativas das diversas

     produções historiográficas/literárias queatuam como ‘co-definidoras’ dessaidentidade, pois:

    [...] ao dizer algo sobre certascaracterísticas identitárias de algumgrupo cultural, achamos que estamossimplesmente descrevendo uma

    situação existente, um ‘fato’ do mundosocial. O que esquecemos é que aquiloque dizemos faz parte de uma redemais ampla de atos lingüísticos que,em seu conjunto, contribui para definirou reforçar a identidade quesupostamente apenas estamosdescrevendo. (SILVA, 2000:93).

     Não é esse o nosso caso? Não é isso quefica explícito nos discursos acerca doHaiti? Acreditamos que sim, acreditamos

    ser esse o caminho. Uma fantasmagoria do povo haitiano foi sendo discursivamente

    construída, num processo que tem iníciocom a chegada de Colombo, adentrando oséculo XIX e que se arrasta até os dias dehoje, como o prova as diversas

     publicações, de natureza diversa, que podem ser encontradas amiúde nos meiosde comunicação de massa. Esses discursos,adensados performativamente, foramdisseminados em sua grande maioriaatravés da literatura, causando, emdeterminados momentos, um grande furor,em seu apoio ou repúdio, ainda que, comoafirma HURBON, 1987, haja no seio daintelectualidade haitiana um movimentoque vá de encontro a essas posições. Mas a

    longevidade desses discursos, aliada aoalcance de seus ecos – potencializados,como dissemos inicialmente, pela grande

     penetração que fatos históricos e culturaishaitianos, particularmente os que dizemrespeito à grande Revolução de ToussaitL’Ouverture e as práticas do VoduHaitiano, tiveram, por motivos/interessesdiversos, mundo afora –, contribuíram parareforçar essas idéias, - performáticas -através daquilo que Derrida (1991)definiria como ‘citacionalidade’ , pois:

    [...] A eficácia produtiva dosenunciados performativos ligados àidentidade depende de sua incessanterepetição. [...] É da sua repetição e,sobretudo, da possibilidade de suarepetição, que vem a força que um atolingüístico desse tipo tem no processode produção da identidade [...] ‘aescrita é repetível’. Segundo Derrida,isso vale para a linguagem em geral.

    [...] É exatamente essa‘citacionalidade’ da linguagem que secombina com seu caráter performativo

     para fazê-la trabalhar no processo de produção de identidade. (SILVA,2000:94-95).

     Notamos uma acentuada convergênciaentre as proposições deste conceito e osentido das tramas discursivas observadasna conformação identitária haitiana, ondecomunicação e linguagem assumem um

     papel determinante. Sem dúvida essas lidesidentitárias se inscrevem dentro de um

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    10/14

     

    universo teórico-conceitual ainda maisabrangente, o universo das  RepresentaçõesSociais. É nesse ambiente, simbólicosobretudo, que são buscados os aportes que

    darão sustentação essa ou aquelaidentidade. Isto posto, não poderíamos nosfurtar de buscar neste vasto campo deestudos, que tem como seu maior expoenteSerge Moscovici3, alguns conceitos e

     processos que, em conjunto com o que foiapresentado até o momento, poderiamcontribuir, dada a aproximaçãosupracitada, para dar mais fluidez as nossasidéias, explicitando ainda mais os seuscontornos. Vejamos como isso pode ser

    tentado.Uma das maiores inquietações de que temse ocupado a teoria das representaçõessociais é a de tentar entender como sedesenvolvem os processos que possibilitamtornar o não- familiar , aquilo queteoricamente não faz parte de determinadouniverso cognitivo, em algo  familiar , emum objeto que possa se tornar reconhecívelem um ambiente social. Parece simples,

    mas esse re-conhecimento  não ocorre demaneira tão inequívoca e pacífica como pode parecer. Não se trata do simplesreconhecimento de estímulos oufenômenos, em processar informações purae simplesmente. Há, no decorrer desse

     processo, uma tensão que se estabeleceentre o sujeito que reconhece e o objetodesse reconhecimento. Essa tensão se dá,entre outros fatores pela interposição, entresujeito-objeto, de distorções e vieses

    subjetivos que já se encontram arraigados

     Serge Moscovici nasceu na Romênia em 1928 e é

    um psicólogo social. Intelectual atuante, foi um dos,se não o, fundador da teoria das RepresentaçõesSociais, tendo atuado tanto na Europa, quanto nasAméricas, sobretudo nos EUA, para oreconhecimento e desenvolvimento das pesquisasreferentes a temas ligados a sua teoria. Actualmenteé director do Laboratoire Européen de PsychologieSociale  ( Laboratório Europeu da PsicologiaSocial), que ele co-fundou em 1975 em Paris. É

    também membro do European Academy ofSciences and Arts, da Légion d'honneur e doRussian Academy of Sciences

    no âmago das culturas, grupos ou classesque passam, em determinado momento desua história, a estabelecer relações e trocassimbólicas que acabam, em alguma

    medida, sendo determinantes nas relaçõesde poder que aí se estabelecem

    É como se nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de talmodo que uma determinada classe de

     pessoas, seja devido a sua idade – porexemplo, os velhos pelos novos e osnovos pelos velhos – ou devido a suaraça – p. ex. os negros por alguns

     brancos, etc. – se tornam invisíveisquando, de fato, eles estão “nos

    olhando de frente. [...] Essainvisibilidade não se deve a nenhumafalta de informação devida à visão dealguém, mas a uma fragmentação

     preestabelecida da realidade, umaclassificação das pessoas e coisas que acompreendem, que faz algumas delasvisíveis e outras invisíveis.”(MOSCOVICI, 2003:30-31)

    É sobre essa base que repousam, grossomodo, as principais premissas das

    representações sociais. É precisamente porapresentar essa capacidade deconvencionalizar   pessoas, objetos ouacontecimentos – dando uma formadefinitiva, as localizam em umadeterminada categoria e gradualmente ascolocam como um modelo de determinadotipo, distinto compartilhado por um grupode pessoas (MOSCOVICI, 2003) – eainda, e não menos importante, pelo poder

     prescritivo dessas representações -  que se

    torna evidente quando elas se impõe sobrenós com uma força irresistível(MOSCOVICI, 2003), que asrepresentações sociais surgem comocondição  sine qua non  para que possamostentar compreender, com maior

     propriedade e profundidade, algumasquestões que de outra maneira pareceriamfugidias e até mesmo inexplicáveis.

    Essa singularidade de que se reveste as

    representações pode ser buscada noconjunto de estruturas, que são anteriores

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    11/14

     

    aos fatos e eventos, e também nas tradiçõesque de certa forma determinam o que podee o que deve ser pensado. O que fica aindamais evidente aqui é o poder coercitivo que

    as representações sociais impõe sobrenossa maneira de perceber e ou re-conhecer   os objetos que compõe nossouniverso cognitivo. Essa capacidade dereconhecer é consubstanciada através dotempo, na long durée, sendo reelaboradaatravés de sucessivas gerações, tornando-sedeterminante, em dado momento, para quese possa ter, mesmo que limitadamente,algum domínio e compreensão de um meiosocial específico, de um meio ambiente.

     Nossos discursos, façam eles parte denosso universo consensual   ou reificado4,trazem consigo as marcas indeléveis desselongo processo de construção, onde alinguagem e a comunicação atuam,

     paulatinamente, conformando,convencionando e normalizando.

    O caso haitiano é revelador no que dizrespeito a amplitude e ao poder dessasrepresentações. Para tentar entender como

    esses discursos se interpõe nas relaçõeshumanas, onde as trocas simbólicassurgem como objeto de apreciação, é

     preciso tentar entender também como asrepresentações sociais re-criam a realidade

     social , principalmente, tal qual asidentidades, nos momentos de crise einsurreição. As elaborações discursivasorais, textuais ou imagéticas, sejam elasconsensuais ou reificadas, alicerçadassobre a memória e conclusões passadas,

     podem conformar, coercitivamente é

      Universo Consensual  é aquele em que a

    sociedade é vista como um grupo de pessoas quesão iguais e livres, cada um com possibilidade defalar em nome do grupo e sob seu auspício. [...]Cada um age como um amador responsável, oucomo um observador curioso nas frases feitas echavões do último século. (MOSCOVICI, 2003:50). No Universo Reificado  a sociedade é vistacomo um sistema de diferentes papeis e classes,cujos membros são desiguais. Somente a

    competência adquirida determina seu grau de participação de acordo com o mérito [...](MOSCOVICI, 2003:51).

    verdade, essa realidade social, que passaentão a se apresentar, não por acaso, comosendo uma espécie de pano de fundo ondese desenvolvem a economia das relações

    humanas, tornando familiar, aquilo que, deoutra maneira, permaneceria fora docontexto.

    Para compreender como essa aproximaçãoé alcançada nessas construções, ainda quede forma elementar, lançaremos mão, maisuma vez, de um processo apresentado porMoscovici. O processo de ancoragem  écentral dentro do conceito dasrepresentações sociais, uma vez que dá

    conta dos caminhos percorridos no processo de conformação social, antesmesmo que tais discursos se tornem

     públicos,  se manifestem. O próprio autor,numa tentativa de sintetizar, diz queclassificar e dar nomes são dois aspectosdessa ancoragem das representações.

    [...] é um processo que transforma algoestranho e perturbador, que nos intriga,em nosso sistema particular decategorias e o compara a um

     paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. É quasecomo que ancorar um bote perdido emum dos boxes (pontos sinalizadores) denosso espaço social. [...] No momentoem que determinado objeto ou idéia écomparado ao paradigma de umacategoria, adquire características dessacategoria e é re-ajustado para que seenquadre nela. (MOSCOVICI,2003:61)

    Existe, certamente, uma aproximação,ainda que implícita, entre este processo e oconceito identitário de performatividade,uma vez que, talvez num espaço temporaldiferenciado, no que diz respeito aconstrução dessas representações eidentidades, ambos criam, paralelamente,as necessárias condições para que objetosque em princípio surgem anônimos,anômalos e amorfos possam ser percebidosdentro de um campo simbólico familiar.

    Familiarizar, categorizar, nomear,classificar, ancorar, verbos que

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    12/14

     

    operacionalizam uma dinâmica em que odiferente, o heterogêneo perde espaço,cedendo a uma constante normalização que não cessa jamais. Os horizontes

    interpostos por essas regras ecomportamentos, que são buscados nascategorias que se fixaram na memória enas lembranças do passado daqueles quedetém o poder de nomear, limitam e

     passam a estipular o que é ou não permitido nesse novo ambiente, que passaa ser compartilhado por todos, ainda quesob uma espécie de coação, inerente asrepresentações sociais.

    Como já afirmamos esses processosenvolvem um movimento de sucessivas eininterruptas transformações, que se dãoem ambos os sentidos, desencadeandoalterações que se farão sentir, mesmo queem diferentes intensidade e freqüência, emtodo ambiente onde se desenvolvem asrelações humanas, relações estas quetrazem em seu bojo todas as razões e os

     porquês dessa incessante busca. Existetambém, como já foi dito anteriormente,

    uma constante tensão  que se torna maisevidente na conformação dessas novasidentidades e representações. Falamos aquinão de uma tensão teórica apenas.

    Os movimentos insurrecionais observadosno Haiti, inscritos na long  durée, são, nãotemos dúvida quanto a isso, uma provacontundente dessa tensão, que resultadiretamente desse longo processo deconformação. As representações e asidentidades haitianas foram forjadas sobessa constante tensão. Não há, na históriado Haiti, um longo período de  pax  sócio-

     política. As crises, os golpes, asrevoluções, as perseguições e as tragédias

     pessoais fazem parte do ideário e damentalidade do haitiano.

    E é neste box, cercado por um caótico marde sangue e miséria, que se arrasta demeados do século XVI, quando mais dametade dos nativos da  Ilha do Terror  

    haviam já tombado sob o fogo e a espadados insaciáveis espanhóis, passando pela

    lendária Revolução Negra, em fins doXVIII, que dispensa comentários, pelainvasão norte-americana, de 1915 a 1934,

     pelas ditaduras dos Duvalier, (Papa e Baby

    Doc) que se arrastou do final da década de50 até meados dos anos 80, e finalmente pelas últimas crises que iniciam-se com ogolpe militar que destituiu Jean-BertrandAristid, nos anos 90, e culminam com aintervenção da ONU, em 2004, quando umdesesperado pedido de socorro é enviado

     pelos membros do CARICOM, aosescritórios da ONU, nos EUA, pedindo

     pela vida de milhares de haitianos que seviam entregues, mais uma vez, a própria

    sorte – que estão ancoradas asrepresentações que formam e informam,via construtos literários e imagéticos, sobreo ambiente social haitiano.

    Pode, em princípio, parecer ilusóriamentefácil apresentar relações existentes entre asrepresentações sociais e os construtosidentitários anteriormente descritos,

     performativos sobretudo, e ancorados,como já dissemos, sobre processos

    discursivo-linguísticos, históricos ouliterários, que contribuíram e aindacontribuem para a construção e afirmaçãode determinados estigmas acerca dohaitiano. O estudo dessas questõesdemandam um estudo aprofundado,sistemático e pormenorizado, in loco, se

     possível, de como essas relações sedesenvolvem e são percebidas, não apenasno cotidiano haitiano, universo consensual,

     bem como entre aqueles que, munidos de

    uma ferramenta estratégica, a comunicaçãode massa, dão “um” sentido a essastramas, universo reificado. Atualmentetentamos desenvolver um trabalho nessesmoldes em outro local.

    Acreditamos que no caso haitiano, existiu,e ainda existe, uma indistinção entre ohistórico e ficcional, fazendo com que oslimites do campo das representaçõesliterárias e históricas se confundissem e ou,

     por vezes, se fundissem, pois, como diriaSCARAMAL, 2006, fazendo referência a

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    13/14

     

    literatura histórica haitiana: [...], pode-se  perceber claramente a influência do realmaravilhoso. (grifo nosso). Somos levadosa crer, dessa maneira, que essa negociação,

    entre a criação estética  e o mundo social  não foi muito bem orquestrada porhistoriadores e/ou literatos, uma vez quehá, nesse caso, uma clara e constante

     propensão ao fantástico e ao maravilhoso,em quase todos os campos do social, o queda margem também a inúmeras

     possibilidades de manipulação e utilizaçãodessas questões que ficam no ar.

    Poderíamos dizer também que um dos

    grandes hiatos que podem ser observadosnesse processo de negociação pode ser buscado no fato de que, grande parte doque foi pensado, escrito ou falado sobre oHaiti, ou seja, tudo que foi produzido emtermos de literatura, científica ou não,

     principalmente no período compreendidoentre a ocupação inicial e a revolução, jáno final do século XVIII, faz parte do queLA SERNA, 1994, chamou de discursocronístico.

    Esse discurso foi, variando sensivelmenteno tempo e no espaço, a afirmação de ummodelo sócio-político-econômico, e

     principalmente cultural, das grandesmetrópoles, em detrimento ao outro, nocaso ao haitiano. O que queremos dizer éque nesse longo período, quando asrepresentações e as raízes identitárias eculturais haitianas estavam sendoengendradas, e até mesmo nos anos que seseguiram à grande revolução, os construtoshistóricos/historiográficos e literárioshaitianos caracterizavam-se principalmente

     por notório descompasso com aexperiência vivenciada. Essa falta desincronia fica evidente quando percebemosque tanto ontem como hoje essasconstruções foram e ainda são regidas por

    [...] um ideário elitista, político eacadêmico, concebido por políticos,viajantes ou estudiosos que se

    aproximaram da cultura haitiana com oobjetivo, dentre outros, de conhecê-la.

    Emissários da razão instrumental emunidos de apriorismos, eles

     produziram (e ainda produzem)relatórios etnográficos, políticos eadministrativos sobre o cotidiano doHaiti, contribuindo para criar conceitosnegativos acerca de suas formasvivenciais.(SCARAMAL, 2006:7)

    Esses conceitos negativos, representações, emitidos a todo tempo sobre as  formasvivenciais haitianas ficam evidentes, como

     já frisamos, principalmente quando temosem mente aqueles três tópicos sobre osquais a história  haitiana foi construída,quais sejam: a Revolução Negra, o Vodu e

    a intrincada política, de Henri Cristopheaos dias atuais. Os limites entre as práticassociais e as representações simbólicas(textuais ou imagéticas) nunca estiveram

     bem definidas, daí a facilidade com queestas sempre se sobrepuseram àquelas, daíque

    O domínio das operações simbólicas, oespaço das construções humanas sobreo real, onde a realidade enquantocampo contratual pode ser expandida,

    redefinida, e eventualmentetransformada, exige que repensemos ocaráter atribuído à relação entre omundo material e o mundo simbólico.Porque se é bem verdade que nós naAmérica Latina (e diga-se, não de

     passagem, não só na América Latina)estamos atravessados pela violênciaconcreta de relações sociais desiguais,não é menos verdadeira a consideraçãode que também estamos atravessados

     pela força impressionante da Palavra.A noção de que o símbolo constróiapenas como máscara de estruturassociais desiguais deve, no meuentendimento, ser colocada emquestão. (JOVCHELOVITCH,1995:64)

    Pensar então o Haiti, sob os auspíciosdessa literatura, seja ela de ficção ouhistórica, é defrontar-se com problemasque requerem uma leitura que supere as

    limitações de um imediatismo capcioso e pueril. É preciso não se esquecer da

  • 8/17/2019 Haiati Identidade e Representação

    14/14