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Volume 1 (2018) REVISTA CIENTÍFICA UP-MAXIXE (UniSaF)

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Volume 1 (2018)

GUTHI: LETRAS E HUMANIDADES REVISTA CIENTÍFICA UP-MAXIXE (UniSaF)

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GUTI - LETRAS E HUMANIDADESREVISTA CIENTÍFICA UP- MAXIXE

GHUTI - LETRAS E HUMANIDADESREVISTA CIENTÍFICA UP- MAXIXE

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As opiniões defendidas nos artigos são da exclusiva responsabilidade dos seus autores e não representam posições assumidas pela própria revista. Todos os artigos são submetidos a dupla revisão anónima por pares (double blind peer review process). A revista tem edição impressa e edição online:

www.unisaf.ac.mzVolume publicado com o apoio de:

EDITOR CIENTÍFICOMe. Danifo Chutumiá

(Departamento de Pesquisa e Publicação)

CONSELHO EDITORIALProfª. Doutora Isabel Vilanculo

Me. Danifo ChutumiáMe. Euclides CossaMe. Marcolino Sitoe

CONSELHO DE DIRECÇÃOProfª. Doutora Isabel Vilanculo

Me. Danifo ChutumiáMe. Joaquim ChitataMe. Salvador Macul

EDITOR E PROPRIEDADE UP-MAXIXE

COMISSÃO CIENTIFICAProfª. Doutora Ana Maria Brito, Universidade do Porto

Profª. Doutora Isabel Casimiro, CEA, UEMProfª. Doutora Teresa Manjate, CEA, UEM

Profª. Doutora Stela Duarte, CEPE, UP-Maputo Profª. Doutora Isabel Duarte, Universidade do Porto

Prof. Doutor Gregório Firmino, UEMProf. Doutor Ezio Lorenzo Bono, UP-MaxixeProf. Doutor Hélsio Azevedo, ESHTI, UEM

Prof. Doutor João Veloso, Universidade do PortoProf. Doutor Luís Gonçalves, Princeton University, USA

Prof. Doutor Martins Mapera, UNIZAMBEProf. Doutor Pedrito Cambrão, UniLurio

ENDEREÇOAv. Américo Boavida s/n – CP.12 Maxixe (Moçambique)

Tel. (00258) 293-30359 Fax. (00258) 293-30354ÜÜÜ°Õ��Ã>v°>V°�âÊÊUÊÊi��>��\Ê��v�JÕ��Ã>v°>V°�âÊÊUÊÊ�>ViL���ÊNÊ1��->�

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EXECUÇÃO GRÁFICA\Ê*ÕL��wÝÊ `�XªiÃ

REVISAO DOS TEXTOS Me. Danifo Chutumiá

Me. Salomão MassingueMe. Lucério Gundane

TIRAGEM 100 exemplares� *$-�/"Ê� ���\Ê Nº76 -GABINFO-DEC/2017

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. 4Danifo Chutumiá

ESTUDOSACTUALIDADE DA PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO DE PAULO FREIRE ................................................ 6Ezio Lorenzo Bono

DA URGÊNCIA DA FORMAÇÃO DO ‘PROFESSOR INTERCULTURAL’ NA SOCIEDADE DAS DIFERENÇAS ........................................................................................... 16Gregório D’Costumes

EDUCAR PARA TRANSFORMAR EM EMMANUEL MOUNIER: Reflexões e perspectivas ....................................................................................................... 25Isabel Samuel Vilanculo

ENTRE AS LIÇÕES DOS OBJECTIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÉNIO (ODMS) E OS DESAFIOS DOS OBJECTIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS):Educação para Todos e Pobreza Educativa em Moçambique .......................................................... 35Jofredino Faife

POLÍTICA LINGUÍSTICA NA ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM CONTEXTOS PLURILINGUES .............................................................................................. 42Lucério Gundane

O JORNALISMO CIDADÃO EM MOÇAMBIQUE E NO KENYA: ANÁLISE COMPARATIVA DOS WEBSITES @VERDADE E OLHO DO CIDADÃO & KENYA MONITOR E MZALENDO ......................... 52Marcolino Sitoe

DINAMISMO CULTURAL NA PRÁTICA DE KUTCHINGA EM CHIDENGUELE SEDE, 2000-2016 .................. 66Rafael Madime

MEMÓRIA E RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICA EM JOSÉ EDUARDO AGUALUSA (TEORIA GERAL DE ESQUECIMENTO) E UNGULANI BA KA KHOSA (ENTRE MEMÓRIAS SILENCIADAS) ......................... 76Salomão Massingue

UMA FILOSOFIA CRÍTICA E INDIVIDUAL INSPIRADA NO MEIO AFRICANO ........................................ 84António Mabota

NORMAS EDITORIAIS ........................................................................................................... 95

ESTATUTO EDITORIAL .......................................................................................................... 96

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APRESENTAÇÃO

Ao iniciar mais um ano académico, a inédita revista científica da UP-Maxixe sai a público, como um pretex-to para aglutinar pesquisadores que se ocupam da questão humana nas suas variadas declinações.

A revista Guti que em Gitonga significa ‘sabedoria’, procura não só contribuir na divulgação de estudos sobre linguística, literatura e filosofia, bem como propiciar a divulgação de trabalhos inéditos de análise da his-tória e cultura moçambicana a partir de diferentes disciplinas e o debate acerca da educação, tendo como eixo a problemática identidade/universalidade.

A Direcção da revista recebeu quase duas dezenas de artigos, das quais foi selecionada cerca de uma dezena num processo anónimo de revisão de pares entregue a um prestigiado Conselho Científico. Sem o esmerado trabalho dos membros deste conselho, as professoras Ana Maria Brito, Teresa Manjate, Stela Duarte, Isabel Margarida Duarte, Isabel Casimiro, os professores Ezio Lorenzo Bono, Luís Goncalves, Martins Mapera, Pedrito Cambrão, Gregório Firmino, Hélsio Azevedo e João Veloso, pertencentes a escolas e centros de investigação dis-tintos, seria praticamente impossível organizar este dossier temático. Aos doze devemos, pois, uma palavra de agradecimento. Tal como é devida à Editora UniSaF, que acreditou neste projecto desde o início, e chamou a si os processos de registo e publicação da revista.

O facto de os textos presentes nesta primeira edição serem de autoria de pesquisadores da nossa instituição é prova evidente de que uma plataforma de divulgação de pesquisa como esta fazia-se necessário. Os textos fo-ram selecionados mediante um call for papers endereçado aos pesquisadores cujas contribuições permaneciam inéditas em termos de publicação. Na sua diversidade de abordagem, de temas, e até de áreas, os textos selec-cionados constituem uma pequena amostra do que se tem efeito na UP-Maxixe, e esperamos que possam ser intelectualmente estimulantes para todos que não tiveram o privilégio de participar neste número.

Aos mais diversos leitores e críticos desejamos uma óptima e proveitosa leitura.

Danifo Chutumiá(O Editor Científico)

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ESTUDOS

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ACTUALIDADE DA PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO DE PAULO FREIRE

EZIO LORENZO BONO1 [email protected]

RESUMO

A vinte anos da morte de Paulo Freire, queremos retomar alguns aspectos da sua pedagogia da libertação, para salientar os pontos fortes da sua filosofia da educação e a actualidade do seu pensamento pedagógico.

Depois da contextualização histórica do nosso autor e a colocação dos seu pensamento no debate crítico sobre a educação, desenvolveremos o ponto central da sua pedagogia pela qual a alfabetização deve ser contem-poraneamente consciencialização.

A ideia de homem subjacente, cada pedagogia pressupõe uma antropologia, é de um homem oprimido mas, enquanto sujeito histórico, capaz de libertação. A tarefa do professor será de ajudar o alfabetizando a tomar consciência do seu papel na história.

Nas duas obras principais analisadas, Pedagogia como prática da libertade e Pedagogia do oprimido, emerge claramente a tarefa do oprimido o qual deve libertar não só a si mesmo mas também o seu opressor.

A pedagogia de Freire resulta muito actual no contexto moçambicano, pois Moçambique partilha a mesma herança colonial e a mesma inexperiência democrática do Brasil.

Mas, como muitas filosofia práticas, também o discurso pedagógico de Freire sofre de um deficit episte-mológico, que, se não superado, condena todo o seu pensamento a um discurso carismático mas puramente retórico.

PALAVRAS-CHAVE:Pedagogia da Libertação, Filosofia da Libertação, Educação, Oprimido, Palavras geradoras.

1 Doutor em Filosofia pela Universidade de Bergamo – Italia. Docente de Filosofia Contemporânea, Africana e da Educação na UP-Maxixe (Moçambique).

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INTRODUÇÃO

Segundo o Google Scholar, Paulo Freire é o terceiro autor mais citado no mundo na área das ciências hu-manas, e a vinte anos da sua morte, ele é ainda uma referência obrigatória para os especialistas da educação, não tanto pela científicidade das suas obras que as vezes deixa um pouco a desejar, mas pela força carismática e revolucionária do seu pensamento em vista da construção de um novo relacionamento entre os homens na superação das contradições.

Queremos neste artigo, levantar alguns aspectos da filosofia da educação em Paulo Freire especialmente nas suas duas obras mais importantes (Pedagogia do oprimido e Educação como prática da liberdade2 ), subli-nhar a sua actualidade no mundo de hoje e na realidade moçambicana.

Contexto histórico

Paulo Freire3 produz as suas obras principais na década de ’60, época por ele chamada de Transição da sociedade brasileira. Foram anos de grandes fermentos na América Latina que via o suceder-se de revoluções e golpes de estado. A nível da Igreja houve o grande movimento de renovação operado pela Conferência dos bispos latino-americanos que em 1968 em Medelin fizeram a profética opção preferencial pelos pobres e incentivaram o crescimento das pequenas comunidades eclesiais de base (CEBs). Estas CEBs, em analogia com a metodologiados Círculos de Cultura de Freire, juntavam a evangelização com a tomada de consciência crítica dos oprimidosda própria situação de injustiçados. Freire, com a sua pedagogia da libertação, fomentou a difusão do anseio delibertação, que logo envolveu muitos outros intelectuais e movimentos latinoamericanos, como a Teologia dalibertação (com Gutierrez, Boff...), a Filosofia da libertação (com Dussel...) pelos quais o ponto de partida portoda reflexão é a práxis do povo, e do povo oprimido. Freire primeiro inspirou a necessidade de uma metodologiaque parte da praxis (investigação no campo) para elaborar a reflexão.

Este método foi depois formalizado em modo mais científico por Clodovis Boff nas sua obra Teologia e prática com a teoria das três mediações: socio-analítica, hermenêutica e prática4.

Lugar crítico dentro o debate da educação

A Pedagogia de Freire se insere no contexto das pedagogias dos anos ’60 marcadas pela crítica à ideologia. Uma grande reviravolta à pedagogia foi dada pelo influxo por um lado do marxismo (que assume a concepção materialista da história como fundamento de uma ciência específica da educação que visa principalmente a crítica da cultura ideológica) e por outro lado a psicanálise (como autónomo contributo científico à proble-mática educativa ou como genérica instância anti-autoritária. Com referência a Freud há a elaboração de uma

2 FREIRE, P., Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 200234 (or.1970); - Educação como prática da liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 196753 Paulo Freire, nasceu em 1921 a Recife, no nordeste do Brasil, de uma família pobre com sérias dificuldades para poder comer e estudar. Depois de um período como

professor de português numa escola secundária, casou-se com Elza Maria Costa de Oliveira, colega de universidade, que influenciou muito a sua vida e o ajudou a ela-borar os seus métodos. Tiveram cinco filhos três dos quais se tornaram educadores. Começou em 1961 uma positiva série de experiências de alfabetização de adultos no Nordeste do Brasil levadas depois em escala nacional graças ao impulso do governo populista de J.Goulart. Mas este projecto foi brutalmente interrompido pelo golpe de estado do 1964, Freire foi preso, torturado, e depois exilado. Viveu e trabalhou na educação em Chile. Depois foi para Geneva e passou uns anos em Guinea-Bissau. Em 1980 pode voltar para o Brasil onde empenhou-se na educação no Estado de São Paulo. Recebeu muitos reconhecimentos em várias parte do mundo e os seus livros foram traduzidos em muitas línguas. Morreu em 1997 com 75 anos de idade. Entre as várias obras sinalizamos como as mais significativas: Educação como prática da liberdade, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1970; Pedagogia em processo: Cartas à Guinê-Bissau, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1978; Pedagogia da esperança: revivendo a Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1995.

4 BOFF, Clodovis, Teologia e prática, Petrópolis, Vozes, 1976

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teoria pedagógica que tende levar o processo educativo aos seus fundamentos de ordem instintual. Também a pedagogia psicanalítica é uma crítica dos produtos ideológicos).

A partir dos anos 60, a pedagogia se encontra diante dos problemas da alfabetização nos países em via de desenvolvimento, da escolarização de massa, da instrução profissional, da educação permanente e da educação extra-escolar e dos problemas das transformações políticas e culturais contemporâneos.5

Freire, a nosso modo de ver, se insere em modo transversal em quatro das linhas pedagógicas contempo-râneas:

1. pedagogia de tipo tecnológico (pelo recurso aos subsídios audio-visuais)2. pedagogia de dissenso político (pelo apelo à libertação e superação de uma condição de opressão) 3. pedagogia católica (pelo recurso aos temas evangélicos, em quanto católico6)4. pedagogia marxista (pelo recurso às análises marxistas da sociedade)

A peculiaridade de Freire consiste na sua insistência sobre a pedagogia como instrumento de libertação e não como mero instrumento de aprendizagem de palavras “ocas”. Uma pedagogia que não se preocupa somente da aprendizagem das técnicas de leitura e escritura, mas que através destas (como instrumentos de comunicação com os outros) leve o homem a tomar consciência de si como ser histórico capaz de transformar o mundo e hu-manizá-lo. Como ele afirma: “Ler o mundo é um ato anterior à leitura da palavra. O ensino da leitura e da escrita da palavra a que falte o exercício crítico (!) da leitura do mundo é, cientifica, política e pedagogicamente, capen-ga”.7 Esta para Dussel é uma “revolução copernicana em pedagogia, que ainda está longe de ser compreendida”.8

Síntese do pensamento educacional

O pensamento educacional de Paulo Freire que se desdobra nas suas duas obras principais Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido, “assenta na ideia de que aprender a ler é, simultaneamente, apren-der a ler o mundo. Neste sentido, as palavras utilizadas no processo de alfabetização não deveriam ser escolhidas em abstracto mas em função de dois critérios: o seu grau de implicação no quotidiano do alfabetizando e a sua complexidade fonética. Estas palavras-chave - palavras geradoras´ - identificadas após uma pesquisa do univer-so vocabular do grupo social que se alfabetiza são sempre do uso corrente da vida do povo e, por isso mesmo, pre-nhes de experiência e de vida. Isso permitiria ao alfabetizando não apenas adquirir progressivamente o domínio da língua mas empenhar-se, ao mesmo tempo, numa reflexão sobre a sua realidade quotidiana. Desta forma, as palavras deixavam de ser vistas como uma doação do educador ao educando mas como o pretexto e o contexto da discussão. Alfabetização e consciencialização constituem, portanto, dois pólos inseparáveis do mesmo processo, no qual o alfabetizando aprende a dizer o mundo e a se descobrir nele e com ele”.9

Filosofia do homem (criança) subjacente

Na base da pedagogia de Paulo Freire subjaze uma visão particular de homem: não se trata tanto do homem em si, conceito abstracto e universal, mas do homem oprimido, concreto, que ele encontrou inúmera vezes na

5 MASSA, Riccardo, Pedagogia, em Dizionário Garzanti di Filosofia, Milano, 1995, pp.848-8506 “A number of informal educators have connected with Paulo Freire’s use of metaphors drawn from Christian sources. An example of this is the way in which the divide

between teachers and learners can be transcended. In part this occur as learners develop their consciousness, but mainly it comes through the ‘class suicide’ or ‘Ester experience’ of the teacher” veja Mark K. Smith em www.paulofreirehomepage.com

7 FREIRE,P., Pedagogia da Esperança, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p.1038 DUSSEL, Enrique, Ética da libertação, na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Ed.Vozes, 2000, p.436.9 Miguel Cardina, em www.paulofreire.com

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sua acção educativa. Um homem como sujeito histórico (e não objecto passivo), capaz de libertação. Sinteti-zando com as palavras de Dussel: “O educando não é só a criança, mas também o adulto e, particularmente, o oprimido, culturalmente analfabeto, dado que a ação pedagógica se efetua no horizonte dialógico intersubjetivo comunitário mediante a transformação real das estruturas que oprimem o educando. Este se educa no próprio processo social, e graças ao facto de emergir como sujeito histórico”.10 O educando para Freire não é um objecto, uma tabula rasa que deve ser preenchida (conforme pensa a educação “bancária”) mas um sujeito que se educa em comunhão com os outros homens.

Papel do professor

Para Freire o Professor é somente um coordenador que coordena o debate dentro do círculo de cultura. Não é aquele que sabe, que possui, que é superior e repassa a matéria ao educando que é ignorante e inferior. O pro-fessor é quem, junto com os educandos (comunhão entre sujeitos) aprende o mundo do educando e possibilita a descoberta da tomada de consciência no educando da própria condição histórica. Neste sentido, Freire propõe a superação da oposição educador/educando falando de educador-educando e educando-educador.

Identifica depois o papel do educador-educando com o do líder revolucionário, pois sua tarefa não é repas-sar conteúdos mas conscientizar.

“Educação como prática da liberdade”11

Paulo Freire escreve este livro em exílio no Chile a seguir o golpe do estado do 1964 que interrompeu as suas actividades educativas. Nesta obra começa por abordar o tema da Sociedade brasileira em transição partindo da realidade do contexto brasileiro dos anos sessenta.

O homem é um ser de relações que não somente está no mundo mas com o mundo, não somente vive (como os animais) mas existe. Ele tem a consciência do tempo, o incorpora, o modifica: neste modo o homem faz a história e a cultura. Existe no tempo não como acomodado ou ajustado mas integrado, ou seja, em modo crítico e por isso como sujeito. Em quanto sujeito pode alterar a realidade, lutar para a própria humanização.

Para Freire a tragédia do homem moderno é de renunciar à sua capacidade de decidir, se massifica, não é sujeito mas objecto, age conforme manda a elite. Por isso necessita uma permanente atitude crítica.

A sociedade brasileira encontra-se nesta fase de transição entre a conservação do ontem (sociedade fecha-da e distante do povo massificado) e o amanhã (sociedade aberta do homem crítico e não massificado) que se anuncia. Nesta fase a educação tem uma tarefa altamente importante, pois contribui à superação da sociedade fechada para uma democratização fundamental. A reacção das elites mascaram uma democratização assitencia-lista que tem como objectivo a submissão do povo e chama de subversivos quem ameaçam esta ordem que eles querem manter. O assistencialismo mantém o homem no mutismo e na passividade, na irresponsabilidade, na indecisão, na domesticação. Ao contrário ajudar o homem é ajudá-lo a ajudar-se, “pô-lo numa postura conscien-temente crítica diante de seus problemas”.

É necessário operar aquela passagem que Freire define da consciência intransitiva à consciência transitiva, através de um trabalho educativo crítico.

“A transitividade crítica a que chegaríamos com uma educação dialogal e activa, voltada para a responsabili-dade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de expli-

10 DUSSEL, E., o.c., p.43511 A edição que utilizamos é a seguinte: FREIRE, P., Educação como prática da liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 19675

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cações mágicas por princípios causais. Por procurar testar os achados e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência da responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polémica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições. Esta posição transitivamente crítica implica num retorno à matriz verdadeira da democracia”. 12

O que dificulta a educação libertadora é a realidade da sociedade brasileira como fechada (colonial, escra-vadora, sem povo, antidemocrática) e por isso com inexperiência democrática, pois o Brasil nasceu e cresceu sem experiência de diálogo, sem relações, sem escolas, sem imprensa porque os colonos não estavam interes-sado numa civilização mas na exploração da terra. A relação era de patrão com o submisso, sem diálogo (mas paternalismo), contribuindo assim à criação de uma consciência de opressão, poder exacerbado dos senhores da terra que mandavam nos seus poderes independentes e fechados, sem relações com os outros. Esta tradição antidemocrática dos latifúndios reforçou-se com a chegada da Corte real a Rio de Janeiro: embora marcou o fim dos prestígios dos poderosos da terra, continuou a tradição antidemocrática, pois o povo passou da obediência aos senhores da terra, à obediência à Coroa.

Uma reforma democrática é possível somente quando o povo tem experiência e conhecimento da coisa pública, participação na construção da sociedade “necessitam de uma específica disposição mental, isto é, de certas experiências, atitudes, preconceitos e crenças, compartilhados por todos ou por uma grande maioria”.13

Daí a necessidade de uma educação crítica e criticizadora, que tente a passagem da transitividade ingénua à transitividade crítica: a emersão do povo, para Freire, exige uma reforma do seu processo educativo, uma educa-ção que possibilite ao homem a discussão corajosa de sua problemática, a sua inserção nesta problemática, que o coloque em diálogo com o outro, a uma certa rebeldia, que o identifique com métodos e processos científicos. Freire apela aqui a uma maior racionalidade, pois a aderência ao mundo mágico ou mítico, aliena o povo do contacto crítico com a realidade14. Trata-se de uma educação mais participativa (na escola, nos sindicatos, nas igrejas, etc) e por isso transformadora: “entre nós, repita-se, a educação teria de ser, acima de tudo, uma tentativa de mudança de atitude”.15

Resulta claro que o problema não é somente da superação do analfabetismo mas também da inexperiência democrática. Educar ao criticismo para permitir o nascimento da mentalidade democrática: educação e demo-cracia se fundam ambas na crença no homem capaz de discutir os seus problemas.

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realida-de. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.16

Na filosofia da educação de Paulo freire, Educação sempre anda junto com Conscientização, com Demo-cratização.17

Este novo tipo de educação implica uma superação dos conceitos antigos que precisa substituir: Escola com Círculos de Cultura, Professor com Coordenador de debate, Aula com Diálogo, Aluno com Participante.

Mas como realizar esta educação se pergunta Freire? Indica três respostas: com um método ativo, dialogal, crítico e criticizador; com a modificação do conteúdo programático da educação e com o uso de técnicas como a da Redução e da Codificação.

12 Idem, pp. 61-6213 Barbu, Z., Democracy and Dictatorship, p.13, citado em Freire,P., o.c., p.8114 Mai para frente Freire afirma: “Se a compreensão é crítica ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação”.

Freire, P., o.c., p.10615 Idem., p. 9316 Idem, p.9617 “Pensávamos numa alfabetização direta e realmente ligada à democratização da cultura, que fosse uma introdução a esta democratização”. Idem, p.104

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Ponto de partida importante é o conceito de Cultura que é toda criação humana (que se diferencia da natu-reza) à qual participam todos os homens, também os analfabetos (!) os quais mesmo confeccionando sapatos fa-zem cultura como o doutor. Todo o debate em torno do conceito de cultura é altamente criticizador e motivador ao ponto que o analfabeto apreende criticamente a necessidade de aprender a ler e escrever que não são simples técnicas mas possibilidades de comunicar mais.

O papel do educador é de saber dialogar com o analfabeto sobre situações concretas, não de cima para bai-xo, mas oferecendo-lhe simplesmente os instrumentos com que ele se alfabetiza (o conteúdo da aprendizagem se identifica ao processo mesmo de aprendizagem18).

A execução prática do Método se desdobra em cinco fases:1. Através encontros informais com os moradores da área, fazer um levantamento do universo vocabular

dos grupos com que se trabalhará.2. Selecção das palavras geradoras (15/18) em base à riqueza fonêmica, dificuldades fonèticas e teor prag-

mático da palavra).3. Criar situações existenciais típicas do grupo (situações-problemas codificadas a ser descodificadas pelo

grupo) com a colaboração do coordenador. 4. Elaborar fichas-roteiros que auxiliem os coordenadores de debate no seu trabalho.5. Feitura de fichas (slides, stripp-filme, etc) com a decomposição das famílias fonêmicas correspondentes

aos vocábulos geradores.

Capacitar os educadores ao diálogo (ao qual não foram acostumados na sua educação) para que façam real-mente educação e não domesticação e cuidar através de uma supervisão (também dialogal) para evitar de cair nos perigos do anti-diálogo.

O autor termina a sua obra com a apresentação da execução prática deste método. Em apêndice apresenta para maior esclarecimento as situações existenciais que possibilitam a apreensão do conceito cultura, e as 17 palavras geradoras de um Círculo de Cultura.

“Pedagogia do oprimido”.19

Nesta obra, também escrita em exílio, Paulo Freire se propõe de aprofundar alguns pontos discutidos no trabalho anterior Educação como prática da liberdade.

No primeiro capítulo propõe-se justificar a “pedagogia do oprimido”.Sendo a vocação do homem a sua humanização, cabe ao oprimido a tarefa de libertar (humanizar) não

somente a si mesmo, mas também o seu opressor que pelo facto de oprimir não está livre, humanizado.20 Cabe ao oprimido libertar os opressores do falso amor, da falsa generosidade.21

Existe o risco é de trocar um polo com o outro: tendo o oprimido como modelo somente o seu opressor, pode correr o risco de tornar-se ele também opressor uma vez que consegue libertar-se. “A libertação, por isto, é um parto. É um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressor-oprimido, que é a libertação de todos. A superação da contradição e o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se”.22

19 A edição que utilizamos é a seguinte: FREIRE, P., Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 200234 (or.1970).20 “Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esma-

gar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão. Por isto é que somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam”. Idem, p. 43

21 Aqui Freire cita em nota um trecho do Sermão contra os usuários de São Gregório de Nissa (330) contra a falsa generosidade do usuário que dá esmola a um pobre: “De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?”. Freire,P.,o.c., p.31 n.2.

22 Idem, p.35

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Não basta saberem-se oprimidos, precisa entregar-se à práxis libertadora, assim como para o opressor não basta saber de ser opressor, mas empenhar-se para uma radical exigência de transformação da situação concreta que gera a opressão. É necessária a inserção crítica que naturalmente se concretiza na acção transformadora. A Pedagogia do oprimido, que é a pedagogia dos homens empenhados na sua libertação, é inserida na realidade dos oprimidos e encontra neles a sua razão e o seu alimento: não pode ser elaborada nem praticada pelos opres-sores. Quem se empenha nesta luta de libertação deve acreditar no povo, comungar com ele, porque somente vivendo com os oprimidos os se compreendem.

Os oprimidos muitas vezes somatizam a sua opressão atribuindo-a à vontade de Deus (que neste caso seria fazedor da “desordem organizada”) ou por outro lado vivendo um ódio e no mesmo tempo uma atracção pelo opressor (modelo ao qual se anseia).23 Outra característica dos oprimidos é a autodesvalia: de tanto ouvirem que são incapazes, não sabem nada, são indolentes... acabam por convencer-se da sua incapacidade. “Até o momento em que os oprimidos não tomem consciência das razões de seu estado de opressão aceitam fatalistamente a sua exploração”.24

Uma Pedagogia do oprimido não pode ser forjada para o oprimido, mas com ele. “Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é transformá-los em objeto que se devesse salvar de um incêndio. É fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em massa de manobra”.25

Fazer reflectir os oprimidos não é por gosto intelectual, mas porque a verdadeira reflexão conduz sempre à prática. Sem reflexão a acção é puro activismo. E sem acção a reflexão é puro intelectualismo. Mas tudo deve ser feito com os oprimidos, em comunhão: a libertação dos oprimidos é libertação dos homens e não de “coisas”. Então nem autolibertação (pois ninguém se liberta sozinho) nem libertação de uns feita por outros. A cons-ciência da luta pela libertação não é uma doação da liderança revolucionária, mas resultado da conscientização dos oprimidos. A revolução não é fruto de propaganda mas de uma pedagogia humanizadora onde a liderança dialoga continuamente com os oprimidos.26

Consequentemente à superação da relação opressor/oprimido deverá superar-se a oposição educador/edu-cando típica da concepção “bancária” da educação que implica um sujeito que fala e um objecto que ouve (edu-cação narradora parada na sonoridade da palavra e não na sua força transformadora). A razão desta educação bancária se fundamenta na absolutização da ignorância do educando e por isso na oposição do educador (que sabe, que pensa, atua, que faz) ao educando (que não sabe, que não pensa, que não atua, que é passivo). A educa-ção bancária não desperta a consciência crítica dos educandos mas os mantêm passivos.27 A educação bancária rechaça o companheirismo entre educador e educando, “não pode perceber que somente na comunicação tem sentido a vida humana. Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação”.28 Enquanto a educação bancária mantém a oposição educador/educando, a educação libertadora realiza a sua superação através da dialogicidade. Daí a sua frase mais famosa: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.29 Educador e educando ambos são sujeitos pois também o edu-cando no diálogo com o educador educa.

A essência da educação como prática da liberdade é a dialogicidade. Mas não há diálogo sem um profundo amor ao mundo e aos homens: amor ao oprimido é comprometer-se com a sua causa.30 Por outro lado não há diálogo se não há humildade, uma intensa fé nos homens, confiança, esperança, um pensar crítico.

23 Aquela que Memmi chama de consciência colonizada (repulsa e atracção). Veja a citações em Idem, p.50.24 Idem, p.5125 Idem, p.5226 De salientar também que esta liderança mesmo que venha de fora deverá inserir-se na realidade dos oprimidos.27 Em modo irónico (mas dramático) Freire afirma: “Na educação de adultos, por exemplo, não interessa a esta visão bancária propor aos educandos o desvelamento

do mundo, mas pelo contrário perguntar-lhes se Ada deu o dedo ao urubu, para depois dizer-lhes enfaticamente que não, que Ada deu o dedo à arará”. Idem, p.6128 Idem, p.64.29 Idem, p.68.30 “Dejeme decirle, a riesgo de parecer ridiculo que el verdadero revolucionario es animado por fuertes sentimientos de amor.” Ernesto Guevara, Obra revolucionária,

México, Ediciones Era-S.A., 1967, pp.637-38, citado em Idem, p.80.

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O diálogo começa na busca do conteúdo programático, o qual não pode ser elaborado pelo educador que decide o que deve passar aos educandos, mas deve fluir dos educandos (mesmo que seja em modo confuso). O risco é de elaborar projectos que respondem à visão do mundo do educador mas não à do povo: “ao revolucio-nário cabe libertar e liberta-se com o povo, não conquistá-lo”.31 Neste ponto Freire cita em nota uma profunda observação de Mao Tsé-Tung: “Deux principes doivent nous guider: premièrement, les besoins réels des masses et non les besoins nés de notre imagination; deuxiement, le désir librement exprimé par le masses, les résolu-tions qu’elles ont prises elles mêmes et non celles que nous prenons à leur place”.32 Qualquer programa que não parte da visão do povo é uma “invasão cultural”. Ponto de partida do processo educativo é a busca dos “temas geradores” mediante pesquisas informais na área. Esta investigação temática nunca pode ser focalista ma aberta à totalidade da realidade. Trata-se de uma investigação “simpática”, ou seja na comunicação, no sentir comum. “Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando”.33 Não é suficiente o levantamento das contradições na área, mas precisa saber que consciências delas têm os seus habitantes. Codificar estas contradições para que o povo as descodifi-que. Se devolve ao povo os seus tema que saíram deles.

Quando na elaboração de um programa educativo não for possível uma investigação prévia, Freire aconse-lha de partir do tema Cultura e daí perguntar aos participantes ao circulo de cultura quais poderiam ser os outros temas. Vê-se como na elaboração da pedagogia do oprimido é ele mesmo, o oprimido, que deve participar.

Elaborar programas ou começar processos revolucionários sem o povo (com a desculpa de organizá-lo, deixando para depois o diálogo educativo com o povo porque é um processo demorado) é um engano: “Ao admi-tirem que não é possível uma forma de comportamento educativo-crítica antes da chegada ao poder por parte da liderança, negam o carácter pedagógico da revolução, como revolução cultural”.34

A teoria da acção antidialógica se baseia na conquista (com a violência ou com o paternalismo), manutenção dos mitos (que exaltam a ordem opressora e desprezam o povo indolente), a divisão (treinando líderes para a alie-nação; promovendo, e assim amaciando, quem tem carisma para liderança; descreditando os jovens como pertur-badores que em vez de criar confusões deveriam estudar), a manipulação (conformando as massas aos próprios objectivos e inoculando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal), a invasão cultural (impondo a própria visão do mundo mostrando-a como superior à dos invadidos). Para o oprimido poder libertar-se deve afastar-se desta aderência com o opressor, reconhecendo-se criticamente em contradição com ele. Se não conseguir irá con-formar-se à visão do opressor e aceitar a dependência reconhecendo-se como ignorante absoluto.

Ao contrário da teoria antidialógica, a teoria dialógica se baseia sobre a colaboração (os sujeitos se encon-tram para pronunciar o mundo e transformá-lo: trata-se não de conquista mas de adesão), a confiança (confiar que o povo tem a capacidade de empenhar-se na busca da sua libertação, embora precisa desconfiar da ambigui-dade dos homens oprimidos que hospedam neles o opressor e que pode levá-los a denunciarem o revolucioná-rio), a união (dos oprimidos entre si e com a liderança revolucionária, através de uma fusão amorosa e não com sloganização ideológica), a organização (buscando a união se busca a organização das massas populares; dando testemunho de coerência, ousadia de correr riscos, radicalização, valentia de amar, crença no povo: tudo isso serve à organização).

Em conclusão toda revolução para ser autêntica deve ser revolução cultural, que engloba também as con-tradições e os limites do povo para chegar a uma síntese cultural junto com a liderança revolucionária: “o povo, enquanto esmagado e oprimido, introjectando o opressor, não pode, sozinho, constituir a teoria de sua ação libertadora. Somente no encontro dele com a liderança revolucionária, na comunhão de ambos, na práxis de ambos, é que esta teoria se faz e se refaz”.35

31 Idem, p.8532 Mao Tsé-Tung, Le Front Uni dans le Travail Culturel, 1944, citado em Idem, p.85 n.10 33 Idem, p.102.34 Idem, p. 13335 Idem, p. 183.

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36 FURTER, Pierre, Paulo Freire ou O Poder da Palavra, Apresentação de FREIRE,P., Educação como prática da liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 196737 TAYLOR, P., The Texts os Paulo Freire, Buckingham, Open University Press, 1993, p.148

Freire conclui, como resposta indirecta aos críticos da sua pedagogia, que se nada ficar destas palavras, pelo menos fica a sua fé nos homens e na criação de um mundo onde seja menos difícil amar.Actualidade de Paulo Freire na realidade africana-moçambicana

A pedagogia de Freire pertence àquele corrente crítica que influenciou nos anos ’70 os movimentos de libertação em modo particular no terceiro mundo. As problemáticas apresentadas por Freire, embora sejam con-textuais de uma realidade latino-americana, trespassam a realidade africana que com a América Latina tem em comum uma história de escravidão e colonização que minou na base a consciência do povo oprimido. Também a África, como o Moçambique, devido à colonização vive um estado de inexperiência democrática. Por isso que uma pedagogia da libertação no Moçambique deveria empenhar-se antes de mais nada em despertar a cons-ciência histórica da importância da res pública, para que os moçambicanos possam participar em modo activo e crítico em todos os espaços públicos e nos movimentos como na escola, igrejas, etc. Depois de ter feito o Mo-çambique independente, precisa construir os Moçambicanos independentes que assumam com alta consciência política o dever de governar com honestidade para o bem comum e não para os interesses pessoais.

Em segundo lugar uma Pedagogia da libertação pela sua racionalidade deveria ajudar a superar a visão má-gica do mundo e despertar a consciência crítica dos moçambicanos diante das próprias tradições para discernir o que é valor e o que é contravalor.

Por fim uma pedagogia da libertação ajudaria aos moçambicanos a rever os relacionamentos entre eles pois esta pedagogia coloca todos os homens no mesmo plano, com o mesmo valor e dignidade, sem superioridade de ninguém: na mentalidade moçambicana existe ainda uma grande discriminação entre as pessoas entre “superio-res” e “inferiores”, entre homens e mulheres, entre velhos e jovens, entre ricos e pobres.

Observações críticas:

As críticas mais frequentes feitas a Paulo Freire sustêm que ele não fez pedagogia mas política. Diante esta acusação Pierre Furter responde: “Porque não pode haver renovação pedagógica sem uma renovação da socieda-de global, as exigências pedagógicas de Paulo Freire o levaram também a assumir uma posição política. E não o contrário, como a calúnia o espalhou”.36

Outra crítica diz respeito ao modo “simplicista” de descrever a realidade: embora ele tinha falado muito da necessidade da racionalidade crítica, a sua exposição deficita mesmo desta criticidade.

Uma crítica pesada foi aquela de Taylor que afirma: “...the rhetoric which announced the importance of dialogue, engagement, and equality, denounced silence, massification and oppression, did not match in practise the subliminal message and modes of a banking System of education. Albeit benign, Freire’s approach differs only in degree, but not in kind, from the system which he so eloquently criticizes”.37

Por nossa parte, concordamos com Taylor sobre a falta de criticidade científica no pensamento de Freire: ele se coloca mais como um líder revolucionário muito carismático, do que um pedagogo que elabora uma pe-dagogia em modo científico.

Embora Freire fale de “teoria da dialogicidade”, esta teoria carece de uma fundamentação crítica onde o superamento da dialéctica teoria-praxis é mais postulado do que argumentado criticamente. Este aliás é o pro-blema irresoluto de muitas filosofias e teologias contextuais que partindo da prática se subtraem ao controle crítico da teoria.

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Uma tentativa (embora não satisfatória) de superação desta aporia a encontraremos no contexto latinoa-mericano somente em Clodovis Boff (no que diz respeito à Teologia da Libertação) e em Enrique Dussel (no que diz respeito à Filosofia da libertação).

Mesmo com estes limites a obra de Paulo Freire mantém um grande valor educativo, a leitura das sua obras comunicam em quem lê uma grande paixão para os homens e um grande desejo de fazer algo para o processo de libertação. É mesmo este o objectivo de Paulo Freire, como ele diz na conclusão da sua Pedagogia do oprimido: “Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar”.38

BIBLIOGRAFIA

Bibliografia principalBOFF Clodovis, Teologia e prática, Vozes, Petrópolis 1976.CARDINA Miguel, em www.paulofreire.com DUSSEL Enrique, Ética da libertação, na idade da globalização e da exclusão, Ed.Vozes, Petrópolis 2000.FREIRE Paulo, Educação como prática da liberdade, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1967. FREIRE Paulo, Pedagogia da esperança: revivendo a Pedagogia do oprimido, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1995.FREIRE Paulo, Pedagogia do oprimido, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1970.FREIRE Paulo, Pedagogia em processo: Cartas à Guinê-Bissau, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1978.MASSA Riccardo, Pedagogia]Êi�Ê��â���?À��Ê�>Àâ>�Ì�Ê`�Ê����Ã�w>]Ê���>��Ê£��x]Ê««°n{n�nxä°-��/�Ê�>À�Ê�°]Êi�ÊÊwww.paulofreirehomepage.com TAYLOR P., The Texts of Paulo Freire]ÊÕV���}�>�]Ê"«i�Ê1��ÛiÀÃ�ÌÞÊ*ÀiÃÃ]Ê£��Î

Bibliografia complementarBONDY Salazar Augusto, Existe una filosofia de nuestra América, Siglo XXI Editores, México, 1988BUARQUE DE HOLANDA Sérgio, Raízes do Brasil, Companhia das Letras, São Paulo, 2014 DA MATTA Roberto, Carnavais, malandros e herói. Para uma sociologia do dilema brasileiro, Editora Guanabara, Rio

de Janeiro, 1995 ��Ê��//�Ê,�LiÀÌ�\ÊO que faz o brasil Brasil? Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2001DUSSEL Enrique, Filosofia della liberazione, Queriniana GdT, Brescia, 1992FREIRE Paulo, Pedagogia da Esperança, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992FREYRE Gilberto, Casa-grande e Senzala, Editora Global, São Paulo, 2006�1-�]Ê,�`��v]ÊAmérica profunda, Editorial Biblos, Buenos Aires, 1999OCTÁVIO Ianni, A Idéia do Brasil moderno, Editora Brasilienese, São Paulo, 2004OCTÁVIO Ianni, Raças e classes sociais no Brasil, Editora brasiliense, São Paulo, 19873RIBEIRO Darcy, As Américas e a civilização, Editora Vozes, Petrópolis, 1986RIBEIRO Darcy, O dilema da América Latina, Editora Vozes, Petrópolis, 1978RIBEIRO Darcy, O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil,Companhia das Letras, São Paulo, 1996RIBEIRO Darcy, O processo civilizatório, Editora Vozes, Petrópolis, 1987RIBEIRO Darcy, Os índios e a civilização, Editora Vozes, Petrópolis, 1986ZEA Leopoldo, La filosofia americana come filosofia sin más, Siglo XXI Editores, México, 1975ZIMMERMANN Roque, América Latina o não ser, Ed.Vozes, Petrópo

38 FREIRE.P., o.c., p.184

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39 Gregório Zacarias V. D’Costumes, é Bacharel e Licenciado em Ciências da Educação (UniSaF-Maxixe), Mestrado em Investigação Pedagógica e Consultoria/Assessoria Educacional (Università degli Studi di Bergamo-Itália). Actualmente, frequenta o Doutoramento em Educação e Interculturalidade (Portugal). Publicou: Borbulhas d’Africa Negra (poesia), Itália, 2011; Do senso comum pedagógico à Pedagogia Científica de Gaston Bachelard (ensaio), Maxixe, 2014; Educação Familiar: fragilidade relacional e firmeza educativa, Maxixe, 2015. Actualmente lecciona e pesquisa nas áreas de Correntes Contemporâneas da Educação, Teoria da Educação, Pedagogia da Família e Pedagogia da Infância. Seus interesses de investigação estendem-se à Filosofia da Formação, Filosofia das Imagens, Educação e Interculturalidade.

DA URGÊNCIA DA FORMAÇÃO DO ‘PROFESSOR INTERCULTURAL’ NA SOCIEDADE DAS DIFERENÇAS

Gregório D’Costumes39 [email protected]

RESUMO

Este artigo disserta sobre as competências inerentes à formação de professores interculturais na sociedade das diferenças. Baseado numa investigação meramente bibliográfica, o mesmo, propõe-se a demonstrar que na sociedade das diferenças, ou seja, na sociedade multicultural o maior desafio do professor é aquisição de compe-tências interculturais que lhe permitem exercer a sua profissão respeitando as diferenças existentes no ambiente escolar. Isto justifica-se pelo facto de a escola ser, nos dias que correm, um lugar de cruzamento de indivíduos pertencentes a vários estratos sociais e provenientes de várias realidades culturais. Da análise feita à alguma lite-ratura subjacente ao tema, constatou-se que a competência intercultural é uma combinação de atitudes, conhe-cimento, comportamentos e habilidades aplicadas através de acções que permitem um sujeito, individualmente ou em conjunto com outros de compreender e respeitar as pessoas, comunicar-se eficaz e respeitosamente na interacção com os demais, relacionar-se positiva e construtivamente com o Outro, o qual deve ser percebido como alguém com o qual se deve enriquecer mutuamente. Assim, um professor que actua na escola das diferen-ças ou multicultural deve ser portador da competência intercultural e exercer a sua acção pedagógica como um professor intercultural.

PALAVRAS-CHAVE: Formação de professores, intercultura, competência intercultural.

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PREMISSA

Não há dúvidas que vivemos numa sociedade marcada, principalmente, pelos contactos culturais. Este facto permite-nos perceber que a escola, sendo uma instituição social, está fortemente “habitada” por indivíduos que pertencem a diferentes sensibilidades culturais. Diante disto, ao professor exige-se que adquira novas com-petências que lhe permitam encarar o desafio da diversidade cultural presente na escola com alguma eficácia. É nesta ordem de ideias que o presente trabalho desdobra-se a discutir a pertinência da formação de professores para a diversidade cultural. Parte-se do pressuposto segundo o qual é preciso dotar o professor de competência intercultural de modo que possa exercer plenamente as suas actividades no contexto da sociedade e da escola repleta de indivíduos diferentes.

1. Sociedade das diferenças vs escola multicultural e intercultural

Globalização, sociedade global, aldeia global estão certamente entre as palavras maisusadas hoje em dia, sujeitas às mais contrastantes interpretações. De acordo com Pieroni et al (2014,p.32) a globalização é um “pro-duto do pensamento liberal” e

“ o fenómeno é considerado, por um lado, uma feliz meta da história e, por outro, alguns só vêem os efeitos contraditórios dela. Mas, de qualquer modo, todos concordam em constatar seus ritmos sempre mais velozes com os quais é mais fácil ultrapassar os confins do espaço-tempo, colocando em contacto lugares e culturas até há poucos decénios afastadas.”

Como resultado deste fenómeno observa-se que, aumentaram sem precedentes os contactos entre as culturas e a coabitação entre diferentes modos de vida, contribuindo para a multi/interculturalidade das sociedades e das escolas, para a partilha e coabitação de tradições culturais, de competências e de saberes. Com efei-to, a diversidade cultural e as relações interculturais, fazem hoje parte e integrarão cada vez mais os contextos sociais, económico, político, religioso, educacional, sanitário e mediático” (Ramos, 2007, p.224)

Como corolário deste fenómeno as sociedades, no dizer de Cabral (2004, p.2) “tornam-se cada vez mais pluralistas coabitadas por indivíduos originários de diversos espaços geográficos e portadores de uma diversi-dade de saberes e vivências culturais”. Ora, estas mudanças ou transformações afectam, de maneira inequívo-ca, a escola, mais concretamente, a nível organizacional e funcional. Observam-se transformações a nível da articulação dos diferentes agentes educativos, na gestão da sala de aula e do currículo, bem como da gestão do próprio processo de ensino e aprendizagem. Aliás, numa sociedade que se percebe cada vez mais multicultural, cuja “pluralidade de culturas, etnias, religiões, visões de mundo e outras dimensões das identidades infiltra-se, cada vez mais, nos diversos campos da vida contemporânea” (Moreira, 2001, p. 41) a escola precisa, na visão de Baumel (2004, p.159), ter “a consciência da presença na sociedade de diferentes grupos culturais, que interagem permeados por relações de poder historicamente construídas e marcadas por estereótipos raciais, de género e outros”. Neste sentido, a sociedade plural assume-se como multicultural e define-se “como um mosaico, no qual os grupos étnoculturais diferentes mantêm o sentido da própria especificidade cultural e participam num molde social caracterizado por regras e leis compartilhadas, que regulam a vida em sociedade” (Terranova, 2013, p.72).

Vivemos em um mundo infalivelmente multicultural. Esta é pelo menos a posição de Kincheloe e Steinberg (1997) para quem

“a multiculturalidade não se reduz a algo em que se acredite ou com o qual se concorde. Ela de facto existe, está entre nós e representa, uma condição de vida nas sociedades ocidentais

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contemporâneas. Podemos ignorar ou abordar essa realidade de diferentes modos, mas não podemos apagá-las: ela permanece, independentemente de nossas respostas e de nossas rela-ções. Desse modo, mesmo que as reflexões sobre o currículo e sobre formação de professores desconsiderem a multiculturalidade, ela estará presente nos sistemas escolares, nas escolas, nas salas de aula, nas experiências da comunidade escolar, afectando inevitavelmente as ac-ções e as interacções de seus diferentes sujeitos (Kincheloe e Steinberg,1997 apud Moreira, 2001, p. 85).

Como se pode depreender, a escola no geral, e o professor, de modo particular, mais do que nunca, precisam flexibilizar as suas práticas pedagógicas de modo a adequá-las às novas exigências da sociedade, ou seja, a escola deve, então, dar resposta à realidade pluricultural que constitui a população escolar, pois só uma perspectiva dinâmica permite compreender de modo global a vida de uma dada comunidade na sua diversidade cultural, nas suas diferenças e na sua riqueza comum.

Tal como todas as outras instituições educativas e formativas, a escola não está imune do desafio das socie-dades multiculturais e multiétnicas e para responder às novas demandas sociais e as necessidades emergentes deve renovar-se profundamente do ponto de vista institucional, rever as próprias finalidades, reelaborar os cur-rículos, readaptar as metodologias e as estratégias formativas (Terranova, 2013, p.72). Enquanto serviço público e contexto de comunicação por excelência, a escola tem o dever de compreender e afrontar adequadamente as dinâmicas sociais e de fazer-se “lugar de mediação intercultural”, isto é, lugar onde os problemas éticos e cultu-rais do nosso tempo são reconhecidos e aprofundados segundo as diversas perspectivas disciplinares. Mudam, por assim dizer, no dizer de Terranova (2013) as suas finalidades porque, supera-se a perspectiva nacionalista e monocultural e a escola deve fazer-se promotora de uma sociedade pluralista onde seja assegurada a integração escolar e social de todos, autóctones e imigrantes, onde todos possam entender-se e aprender uns dos outros.

Uma escola que adopta a perspectiva intercultural é uma escola que ajuda todos a entrar nos problemas concretos, a tomar consciência das situações de discriminação e de injustiça que até agora permanecem e, so-bretudo, que coloca todos em condições de agir, participar, compartilhar, cooperar. Uma escola, portanto, que se renova no plano metodológico, porque se empenha a desenvolver não somente conhecimentos mas atitudes intelectuais, sociais e políticas e que adopte novas modalidades comunicativas e procedimentos didácticos cen-trados em actividades que promovam a inter-relação entre os vários intervenientes do processo educativo. Uma escola que cria um clima de aceitação e de diálogo e que consente ao sujeito de confrontar-se com os problemas e de experimentar a própria capacidade de organização autónoma e de envolvimento. (Terranova, 2013, p.72).

Ao proceder desta forma, a escola multicultural torna-se, escola intercultural, ou seja, se o multiculturalis-mo tem a ver com a constatação empírica da coexistência das culturas, o interculturalismo tem uma pretensão normativa ou prescritiva e diz respeito à exigência de um tratamento igualitário dispensável às culturas. O in-terculturalismo actua em conformidade com os conceitos garantistas dos direitos das culturas, criticando o im-perialismo jurídico e propondo uma alternativa entre o liberalismo e o comunitarismo (Soriano, 2004 citado por Damazio, 2008, p.76). O mesmo autor, adianta que a interculturalidade, diferentemente da multiculturalidade, não é simplesmente duas culturas que se mesclam ou que se integram. A interculturalidade alude a um tipo de sociedade em que as comunidades étnicas, os grupos sociais se reconhecem em suas diferenças e buscam uma mútua compreensão e valorização. O prefixo “inter” expressaria uma interacção positiva que concretamente se expressa na busca da supressão das barreiras entre os povos, as comunidades étnicas e os grupos humanos (As-train, 2003 apud Damazio, 2008, p.77)

A interculturalidade aponta para a comunicação e a interacção entre as culturas, buscando uma qualidade interactiva das relações das culturas entre si e não uma mera coexistência fáctica entre distintas culturas em um mesmo espaço e orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social (cfr Terranova, 2013; Donatti, 2010). Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes, traba-lhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e

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interpessoais. Reconhece e assume os conflitos, procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los (cfr. Candau, 2005; Fornet-Betancourt, 2008; Damazio, 2008). É neste viés que a escola intercultural é desafiada a ter professores interculturais, ou seja, que tenham a competência intercultural.

2. Novas exigências na formação de professores: o professor intercultural

O projecto intercultural escolar para poder ser realizado precisa de professores que sejam conscientes e à altura da função que deverão exercer. Sem isso o discurso sobre a interculturalidade não passará de pura retóri-ca. Não é por acaso que alguns documentos oficiais (por exemplo, o Relatório Mundial da UNESCO: Investir na diversidade cultural e no diálogo Intercultural, UNESCO, 2009; a Organização para Cooperação e Desenvolvi-mento Económico, OCDE); sobre a interculturalidade insistem sempre também na formação dos professores e se empenham a traçar itinerários formativos e redes que facilitam o percurso.

Na perspectiva de Zeichner (1993) se adoptarmos uma definição pragmática e contextualizada de cultura, tendo presente

“que cada indivíduo está integrado em grupos múltiplos, justapostos e microculturais (e.g., se-gundo a raça, a língua materna, a religião, o sexo, as características específicas, a idade, etc.), então, por definição, cada um de nós é um ser intercultural, independentemente das suas iden-tidades culturais e todos os professores devem preocupar-se com o problema da comunicação intercultural, independentemente das identidades culturais e da composição demográfica do seu grupo de alunos” (Gonçalves, 1999, p.100)

Assim, em uma sociedade multicultural como a nossa (sociedade contemporânea, independentemente da sua localização geográfica) torna-se necessário repensar a formação de professores à luz dos novos desafios. Neste sentido, é necessário o desenvolvimento, por parte dos professores, de atitudes não etnocêntricas, ser sen-sível e respeitar as várias diferenças e ter a capacidade de pôr em questão práticas desenvolvidas durante anos em função da cultura dominante e substituí-las por outras que promovam a paridade de culturas e a emancipação dos alunos tendo em conta a sua diversidade cultural e de potencialidades.

A formação de professores para uma educação intercultural necessita, forçosamente, de ter como premis-sa o desenvolvimento de competências que permitam aos professores configurar e desenvolver projectos que compatibilizem o discurso oficial às especificidades locais e ao mundo em que vivemos, ou dito, de outro modo, que tornem significativos para quem aprende os conhecimentos seleccionados pela escola e os processos dessa aprendizagem e que criem condições para o exercício activo da cidadania (Leite, s/d, p.1).

Stoer & Cortesão (1999) citados por Araújo (2008, p.69) admitem que só será possível construir um des-tes dispositivos se o professor tiver consciência da diversidade cultural em que trabalha, consciência essa que exi-ge uma atitude e práticas investigativas necessárias à identificação e compreensão do ‘arco-íris cultural’ ao qual tem de oferecer propostas educativas adequadas. Deste modo, é urgente desenvolver programas significativos e de qualidade de formação e desenvolvimento profissional dos professores incluindo todos os serviços de apoio envolvidos de modo a criar na escola uma nova cultura organizativa a nível social e pedagógico – didáctico para que todos os grupos – minoritários e maioritários – aprendam a viver juntos numa verdadeira permeabilidade de pessoas e culturas e sem separação entre o “nós” e os “outros”.

Só assim, é que a escola pode suscitar verdadeiras aprendizagens interculturais, que permitam às crian-ças dos grupos minoritários a aquisição de competências que lhes possibilitem uma participação activa e criativa na comunidade maioritária, preservando simultaneamente as suas identidades culturais. Nesta perspectiva,

é preciso que a formação de professores permita a aquisição de conhecimentos sociocultu-rais gerais das crianças e dos jovens; a compreensão das relações que a cultura, a língua e as características sociais e económicas têm no desempenho e no sucesso escolar; e o desenvol-

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vimento de capacidades de recurso a diferentes estratégias de ensino e de aprendizagem, ou seja, é preciso que os professores desenvolvam a capacidade de se questionarem e de aprende-rem a aprender (Leite, s/d, p.2).

Segundo Araújo (2004, p.66) “o professor inter/multicultural, atento às questões da diversidade será um elemento facilita-dor no âmbito da compreensão e identificação do «arco-íris cultural» presente na sala e na es-cola. Esta postura tem como base a construção de comunidades culturais que se reconhecem, respeitam e interagem. É uma proposta intercultural que não se confunde com a justaposição de culturas nem o atropelo de umas sobre as outras, mas antes assentando na liberdade con-quistada de ser diferente sem medo de o ser, crescendo juntos sem tensão, atravessando todos a mesma ponte”.

Para que isto aconteça, as práticas pedagógicas dos professores e currículos devem orientar-se no sentido da solidariedade e justiça social. Desta forma, têm razão Cortesão e Stoer (1995) citados por Araújo (op.cit) quando afirmam que “o professor inter/multicultural configura-se assim, como um dispositivo de aprofunda-mento do espaço democrático da Escola para todos”.

Assim, torna-se necessário que os professores, na sua prática pedagógica, ao dirigerem-se a uma deter-minada turma, não vejam os alunos como um grupo homogéneo que pode ser ensinado infalivelmente através das mesmas estratégias. Neste sentido, os professores devem ter a capacidade de reconhecer cada aluno como um ser único e irrepetível, isto é, um ser subjectivo que precisa de um acompanhamento personalizado. Se os professores conseguirem desenvolver práticas orientadas por esses princípios, contribuiremos para que a escola não seja apenas um lugar de contrato das culturas, mas também, um lugar privilegiado de aprendizagem e uma comunicação intercultural.

Segundo Leite, uma formação de professores capaz de promover uma educação intercultural está, por-tanto, associada à ideia de professor investigador (op.cit., p.4). No quadro dessas ideias, é evidente que não podemos pensar a formação de professores como um processo de transmissão e aquisição de técnicas, à laia de receitas, para que estes, perante a diversidade dos alunos, desenvolvam estratégias, de educação intercultural. A mesma autora, acrescenta que ao contrário, é preciso pensar no envolvimento, dos professores em equipas de reflexão sobre as acções sobre as acções que vão desenvolvendo e que sejam pontos de partida para a estruturação de futuras intervenções (idem). O professor que trabalha na sociedade multicultural é um mediador intercultu-ral porque lhe é confiado o papel não de favorecer a transição de uma cultura a outra mas sempre que possível o papel de criar momentos pedagógicos capazes de ir para além das recíprocas diferenças (Terranova, 2013, p.89).

Num contexto de globalização de mobilidade das populações, devemos conceber o sistema educativo como um importante instrumento para promover a igualdade educativa para todos e a escola como o local privilegiado para reorientar as práticas de socialização e humanização na direcção da educação intercultural e da educação para a cidadania. Isso significa, definitivamente, que o professor deve educar/educar-se para uma forma mentis versátil, plural, dialogante, tendendo à escuta, ao encontro e ao confronto. Significa ainda que o professor inter-cultural estará dotado daquela competência intercultural, daquele “relativismo” que lhe permite libertar-se da própria prisão cultural, isto é, que faça sair das gaiolas do etnocentrismo, para, assim, ter acesso livre à capaci-dade de diálogo e de se dispor ao encontro e ao enriquecimento recíproco com a alteridade, sem preconceitos.

3. Para uma competência intercultural

Para Azevedo (1996) citado por (Gonçalves, 1999, p.112) formar “professores interculturais” é, na verdade, um imperativo ético, na medida em que só a acção destes, coadjuvada, necessariamente, pela dos restantes agentes educativos, poderá, transformar a escola numa instituição de promoção da tolerância, da paz e do res-

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peito pela diferença, através, e como resultado, de atitudes e práticas. A formação intercultural assenta em duas dimensões:

a) A do campo de conhecimentos, na medida em que se deve aprofundar o conhecimento que se tem do outro e, graças ao olhar do outro, aprofundar o conhecimento de si próprio, a nível do indivíduo e do grupo a que se pertence;

b) A da dimensão de relação, consubstanciada na tomada de consciência, no viver de uma coisa diferente, no abordar da realidade de outra maneira, no trabalhar com o outro, no desenvolver de relações hori-zontais na sala de aula e, ainda no estabelecer de uma relação entre as aprendizagens escolares e o meio da criança.

Neste sentido, a interculturalidade significa “um estado ideal de partilha e valorização das culturas, para o qual se deve tender”, e em que o “eu” e “o outro” reconhecendo-se, embora, como distintos, constroem um uni-verso comum de convivencialidade, solidariedade e fraternidade.

A formação intercultural do professor visa, em última análise, dotá-lo da competência intercultural. Assim, urge questionar: o que é a competência intercultural? Que significado atribui-se à competência intercultural? O que é ser professor imbuído de competência intercultural? Na literatura, as respostas a estas questões são diver-sificadas. Na visão da UNESCO (2013, p. 16) a competência intercultural:

refer to having adequate relevant knowledge about particular cultures, as well as general knowledge about the sorts of issues arising when members of different cultures interact, holding receptive attitudes that encou-rage establishing and maintaining contact with diverse others, as well as having the skills required to draw upon both knowledge and attitudes when interacting with others from different cultures.

A competência intercultural é, portanto, uma combinação de atitudes, conhecimento, comportamentos (Barret, 2011) e habilidades aplicadas através de acções que permitem um sujeito, individualmente ou em con-junto com outros de compreender e respeitar as pessoas que são consideradas de diferentes filiações culturais de si mesmo; responder de forma adequada, de forma eficaz e respeitosamente ao interagir e se comunicar com essas pessoas; estabelecer relações positivas e construtivas com essas pessoas; compreender a si mesmo e com-preender o outro como alguém com o qual se enriquece mutuamente. Na era da globalização, a competência intercultural é uma habilidade que podemos desenvolver e incrementar com a aprendizagem. Esta, nos oferece as ferramentas necessárias para compreender e nos sentirmos bem com o outro. É reconhecer e saber que exis-tem outras realidades diferentes da nossa e que possamos alcançá-los, se nós as entendemos, podemos tratá-las, respeitá-las, tolerar e aceitá-las como elas são.

Barrett et al (2013) apresentam quatro elementos indispensáveis para descrever a competência intercultu-ral. Em primeiro lugar, a competência intercultural não implica abandonar as próprias identificações culturais e afiliações, nem requer que os indivíduos adoptem as práticas culturais, crenças, discursos ou valores das outras culturas. A competência intercultural, exige um espírito aberto, curioso e interessado em estabelecer relações com pessoas de outras crenças e práticas culturais e compreende-las. A competência intercultural permite que as pessoas a interajam e cooperem de forma eficaz e adequada em várias situações, onde a alteridade e a “diferença” são salientes.

Em segundo lugar, uma vez a competência intercultural permite conhecer e interpretar as perspectivas culturais de outras pessoas relacionando-as com as próprias, indivíduos interculturalmente competentes são ca-pazes de usar seus encontros interculturais para conhecer e reflectir criticamente sobre as suas próprias crenças e práticas culturais. Por esta razão, “intercultural competence not only enhances one’s knowledge and unders-tanding of other people; it also enhances self-knowledge and self-understanding” (p.12)

Em terceiro lugar, é importante ressaltar que a linguagem tem um papel privilegiado dentro dos encontros interculturais porque é o (embora não o único) sistema simbólico mais importante que permite que membros de diferentes grupos partilhem suas perspectivas culturais, crenças e valores. Assim, a competência plurilingue e consciência comunicativa são componentes cruciais de competência intercultural.

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Em quarto lugar, é importante reconhecer que a competência intercultural sozinha pode não ser suficiente para permitir que os indivíduos para o diálogo intercultural bem-sucedido. Assim, a fim de alcançar sociedades harmoniosas em que todos são capazes de participar plenamente no diálogo intercultural, o desenvolvimento da competência intercultural através da educação:

“needs to be implemented in conjunction with and alongside measures to tackle inequalities and structu-ral disadvantages, including giving special assistance to those with socio-economic disadvantages, taking action to counter discrimination, and remedying educational disadvantages” (p.13)

Ainda de acordo com os mesmos autores a competência intercultural não pode ser adquirida de forma es-pontânea por indivíduos, e não pode ser adquirida simplesmente através da exposição e encontros com pessoas de diferentes culturas se o contacto ocorrer em condições inadequadas. No entanto, a competência intercultural pode ser reforçada através de uma série de experiências interculturais, por exemplo através da participação em eventos interculturais organizados de forma adequada e por frequentar instituições de ensino que possuem um ambiente não-discriminatória. Ademais a competência intercultural pode ser reforçada através da educação e formação intercultural e pressupõe uma aprendizagem ao longo da vida.

O professor imbuído de competência intercultural, não é um professor particular, mas um professor tou-tcourt (geral ou das várias áreas disciplinares) que torna-se sensível aos problemas da equidade social, dos di-reitos humanos, da paz e da solidariedade entre os povos, desenvolve atitudes e capacidades de intervenção e sabe intervir de um modo apropriado no encontro entre culturas. De acordo com Terranova (2013, p.90) o seu profissionalismo conota-se com a capacidade de:

Identificar as situações problemáticas e de intervir utilizando as necessárias competências comunicativas, relacionais e didácticas para ajudar quem precisa, principalmente, onde enfrenta mais dificuldades;

Explorar no plano cognitivo, as diferenças culturais e os conflitos que percorrem o nosso tempo utilizando como recursos os múltiplos saberes presentes no contexto escolar e social onde trabalha;

Orientar os alunos em torno dos valores ético-pedagógicos universais e ajudar-lhes a realizar mais acções sociais e humanas, fazendo-se animador de actividades e iniciativas envolventes e motivantes;

Para desenvolver o seu papel, para além dos saberes disciplinares específicos precisa também de um saber fazer e sobretudo um saber fazer didáctico que traduza em acções educativamente eficazes. A sua é uma pro-fissão versátil, desafiada pelas múltiplas e imprevisíveis situações que lhe aparecem e que deve conseguir gerir autonomamente controlando a ânsia, a tensão e os conflitos muitas vezes inevitáveis: um profissionalismo que se mede na capacidade de construir relações positivas e de promover iniciativas originais e flexíveis adequadas às diversas necessidades. É em ordem a esta ideia que

Gonçalves (1999) admite que ser professor não deve ser tanto, afinal, saber muito, mas, sobretudo, saber conhecer-se e saber estar com, dando-se e compartilhando com os outros – alunos e colegas – na diversidade e pluralidade da condição humana – o que se é, o que se sabe e o que se aprende (p.100)

Em consonância, os professores têm de ser formados para a complexidade e para a diversidade, na pers-pectiva de uma “pedagogia intercultural” que, no quadro de uma óptica situacional e interaccionista, e por um apelo constante à capacidade de descentração e de alteridade cultural, que aposta na transfiguração educativa das situações pluriculturais em dinâmicas interculturais. Tal desiderato poderá ser atingido se parte do programa cur-ricular da formação dos professores tiver como objectivo a sua ressocialização, de maneira a fazê-los sentirem-se parte integrante de uma sociedade culturalmente diversa, podendo isso implicar a reestruturação das suas auto-percepções e das suas ideias sobre o mundo (Cfr. Hollins, 1990; Zeichner, 1993; Carvalho, 1994; Gonçalves, 1999.)

Formados de acordo com tais pressuposto, os professores serão capazes, em termos de atitude e acção, de estabelecer uma relação dialéctica entre o conhecimento de si e o conhecimento dos outros, entre a sua identidade e a(s) identidade(s) dos demais, entre a especificidade do nacional e a variabilidade do universal. A solidariedade e a cooperação constituem-se, neste quadro, como formas assumidas de compromisso humano interpessoais, no respeito pela individualidade, valores e modos de estar e sentir de todos e de cada um.

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CONCLUSÃO

À luz das reflexões desenvolvidas é legítimo afirmar que na escola multicultural é necessário um forte inves-timento na pedagogia intercultural e na didáctica intercultural. Um professor que exerce a sua profissão numa escola “arco-íris” é desafiado a adquirir competências que lhe permitam desenvolver um pensamento livre, um espírito de aceitação das diferenças, da escuta (activa) e do diálogo com a alteridade. Neste sentido, o professor deve estar consciente das reais diferenças existentes no seu contexto de trabalho e actuar no sentido que as mes-mas não se tornem motivos de exclusão ou descriminação e vigiar sobre os mecanismos e estratégias usadas para a assimilação ou negação das diferenças. Para implementar experiências de natureza puramente interculturais não basta o simples contacto com a alteridade, é preciso aprender a interagir de forma flexível tendo em conta categorias como: pensamento, aceitação, respeito, escuta, diálogo. A educação intercultural busca à promoção de todas as inteligências de todos os alunos existentes em uma turma ou no contexto escolar: corpórea-cinesté-sica, musical, social, interpessoal, intrapessoal, emotiva, transcendental, estética (Gardner, 1987). Para tal fim, é necessário e urgente suscitar e cultivar formae mentis intercultural.

Dessa forma e defronte à globalização e às sociedades multiculturais, a escola no geral, e o professor de modo particular, precisa reinventar as suas práticas pedagógicas adquirindo competências autenticamente in-terculturais, através de percursos educativos e formativos pedagogicamente centrados que:

i. Considerem a cultura como dinâmica e tenham em consideração todas as diferenças humanas (cultu-rais, sem desvalorizar diversidades social, políticas, económicas e de género, deficiência, relações de poder, inteligências);

ii. Destaquem a importância das capacidades de pensamento autónomo, compreensão (empática), escu-ta, diálogo, interacção;

iii. Percebam a diversidade não só como inevitável, mas também como recurso, como base do desenvolvi-mento da vida.

Disto emerge como na escola seja necessário ter em conta o desenvolvimento integral da pessoa do educan-do, considerando de maneira subjectiva todas as formas de diversidade (individualização do ensino) e prestando atenção que essa não se transforme em descriminação ou exclusão.

Em síntese, as competências interculturais dizem respeito aos saberes, atitudes, capacidades e sensibili-dades que uma pessoa deve ter, adquirem-se (de maneira implícita ou explícita) durante todo o curso da vida, dificilmente quantificáveis e mensuráveis, a serem promovidas em todos os âmbitos, graus ou tipos de escola (da infância à universidade, até à formação contínua) e para implementar como parte constitutiva de todo curricu-lum e política educativa escolar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EDUCAR PARA TRANSFORMAR EM EMMANUEL MOUNIER: REFLEXÕES E PERSPECTIVAS

ISABEL SAMUEL VILANCULO40

[email protected]

RESUMO

Vivemos numa época de rupturas caracterizada por numerosos fenómenos e processos que nos deixam complexos desafios interpretativos. As novidades, de tão evasivas, não são somente materiais, mas também con-ceptuais e até paradigmáticas, uma realidade que se deve, em parte, a alguns pensadores da linha niilista que, ao proporem o Pensamento Fraco, enquanto corpo e metáfora, fizeram acreditar no homem a sua capacidade forte. A isto, deu-se origem a “Sociedade líquida-moderna” baumaniana e, em consequência, tudo o que marca a existência humana: líquida (vida, amor, consumo…), ou “Era do vazio” de Lipovetsky, como pensam muitos pen-sadores do nosso tempo, com destaque para pensadores com versalidade ética: Peter Singer, Alasdair MacIntyre, Hans Jonas, Emmanuel Levinas, Martin Buber, Paul Ricoeur e outros, preocupados pela necessidade de rever o quadro de valores já existentes, actualizando-os à nossa realidade até porque o novo sempre se alicerça no antigo. Com efeito, neste artigo temos como objectivo reflectir sobre o papel da educação na transformação de pessoas e das sociedades, a partir da premissa de que a consciência humana busca, acima de tudo, o conhecimento e o significado perdido da sua própria existência. A nossa preocupação ao trazer o tema Educar para transformar em Emmanuel Mounier: Reflexões e perspectivas, nasce das consequências resultantes das sociedades líquidas, opa-cas e vazias que nos deixam com perplexidade face às metamorfoses nas sociedades para as quais se exige um pa-pel decisivo da educação na reeducação das pessoas, afinal ela desempenha o papel fundamental de transformar interna e externamente as pessoas. E para inferirmos estas dinâmicas, optamos por uma pesquisa bibliográfica a qual nos permitiu interpretar as cosmologias vivenciadas pelo homem a partir de um olhar crítico-reflexivo da realidade hodierna na qual princípios e valores ontológicos commumente partilhados como códigos socialmen-te aprovados e aceites são subvertidos pela lógica da liberdade e libertinagem, colocando em causa o espírito de fraternidade e alteridade na sociedade, o que traz novos desafios à escola, aos professores e alunos, aos pais e encarregados de educação, à família, etc.

PALAVRAS-CHAVE: Pessoa, Educar, Transformar, despertar e engagement

40 Isabel Samuel Vilanculo, é Prof. Doutora em Filosofia pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma, Licenciada em Filosofia pela mesma Universidade e Mestre em Management e Responsabilidade Social de Empresa pela Universidade Pontifícia de S. Tomás de Aquino-Angelicum de Roma. Para o seu doutoramento, especializou-se na área da Antropologia Filosófica especialmente no Personalismo de Emmanuel Mounier, defendendo a tese com o título: A Pessoa e a Educação à Comunidade no Pensamento de Emmanuel Mounier. Educar para uma Globalização do Rosto Humano. Actualmente, é docente na Universidade Pedagógica de Moçambique na Faculdade de Ciências Sociais e Filosóficas leccionando as cadeiras de Antropologia Filosófica, Introdução à Filosofia e Ética para a Graduação e como também em alguns programas de Pós- Graduação deu módulos de Gestão de Recursos humanos na UP e Antropologia e Sociologia de Saúde pública na Universidade Católica de Moçambique. No âmbito Cientifico: Participei a Conferência sobre O Humanismo Integral de J. Maritain- Itália (2014;) Wokshop: Institucional Research Evaluetion- Matola (2016); publicação sobre o Género na Revista Kulambela de UP Montempuez; tomou parte da SARIMA (Southern African Research & Innovation Management Association) É membro do grupo do projecto de pesquisa antropológica do Centro Junod em Ricatla (Maputo, Moçambique); Presidente do 1° Fórum internacional de Pesquisa das (AIESI) com o lema: “Por uma pesquisa para além dos muros da universidade” na UP Maxixe (2016); Promotora de vários eventos e projectos de pesquisa, participou a conferência internacional sobre o Personalismo como título: O Personalismo Comunitário de Emmanuel Mounier: Uma alternativa à Codificação da Pessoa; Presidente da Conferência internacional sobre o Personalismo com o lema: Humanizando a ciência em prol do Desenvolvimento Integral da Pessoa (2017); membro do Projecto sobre Aconselhamento Psicológico e Educacional, membro do Projecto Trilhas Moçambique -Brasil, Presidente do Núcleo Género e desenvolvimento, autora do artigo Educar para transformar em Emmanuel Mounier. Funções: Actualmente é Directora Adjunta de Pós- Graduação, Pesquisa e Extensão, Directora do Curso de Mestrado em Filosofia, Membro do Conselho de Exames de admissão na Delegação da Universidade Pedagógica de Maxixe.

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INTRODUÇÃO

O mundo no qual vivemos actualmente está em constante evolução, a uma velocidade sem precedentes, comparado ao mundo do passado. E com isso, desafios mundiais para os quais as pessoas precisam adoptar com-petências sólidas e extensas em termos de inovação e de criatividade, num constante desejo de pensar “diversa-mente”, de observar e de analisar, de forma crítica, os fenómenos sociais para se posicionar diante das mudanças e transformações, e tomar posições face aos problemas actuais por que passam as sociedades contemporâneas.

Este saber ser, saber estar e saber fazer, tem um lugar relevante no debate público sobre as competências que são necessárias para se fazer frente aos desafios que são colocados aos educadores, nomeadamente fazer com que os conhecimentos consolidados nas práticas costumeiras, que são pré-constituídos, os denominados não científicos, possam ser articulados com os conhecimentos veiculados pela escola, ditos científicos, enquanto organismo da socialização secundária e que provoca profundas mudanças na personalidade das pessoas ao in-culcar-lhes, por vezes, formas de visão do mundo contrários à socialização primária; a familiar.

É neste sentido que neste artigo temos como objectivo reflectir sobre o papel da educação em Emmanuel Mounier na transformação de pessoas e das sociedades, a partir da premissa de que a consciência humana busca, acima de tudo, o conhecimento e o significado perdido da sua própria existência, problematizando se o que se perdeu nesta cosmologia humana são valores ou fundamentos, tendo em conta que o papel da educação é de desenvolver actos de “in ducere”, valores de cidadania, para depois “con ducere” para a sociedade e ao serviço da mesma.

Assim sendo, se o valor, importância e a missão da educação escolar podem ser resumidos como o de trans-formar pessoas e sociedades, então, no mundo em que vivemos actualmente, constatamos que a humanidade está a vivenciar situações paradoxais caracterizadas pela acentuação das diferenças: de um lado vemos o desen-volvimento exuberante de poucos, os ricos, os poderosos e influentes, que controlam o poder e os centros deci-sórios para eternizar e reproduzir as diferenças, as discriminações, e garantir o seu status quo; de outro lado os pobres, os subjugdos, como se fossem pré-destinados à exploração do Homem pelo Homem e sem esperanças de se livrarem desta exploração desenfreada e cuja vida e felicidade estão ao livre arbítrio do seu explorador.

De facto, olhando analogicamente a situação, percebemos que nunca houve tantas possibilidades de se construir um paraíso terrestre, ao mesmo tempo que nunca houve tantas e angustiantes diferenças que reduzem a vida a um inferno.

A deslocação do eixo referencial baseada na negação de tudo aquilo que pode constituir “apelo” ao encon-tro unificante: o ser humano, religioso, político, ético, tradicional, moderno, etc., aspectos hoje fragmentados e dispersos levam à diminuição da capacidade de acreditar na coerência e na solidariedade entre o saber e o agir humano, ou seja: “Está em risco qualquer perspectiva unificante da história, da cultura, da vida humana e, por-tanto, a possibilidade de avaliá-las e querê-las endereçadas”.41

Estamos perante a liquididade de toda a realidade de qual se refere Bauman42 em suas várias obras: “Moder-nidade líquida”; “Vida líquida”; “Amor líquido” “Consumo líquido”, “Medo líquido”, etc., metáforas para demons-trar o quão as coisas são efémeras e até supérfluas, ou seja, a vida humana e o que o Homem precisa transforma-

41 Traduzido pela autora: In VILANCULO, Isabel Samuel. La Persona e l’Educazione alla Comunità nel Pensiero di Emmanuel Mounier. Educare per una globalizzazione dal volto umano. Tese do Doutoramento (inédita). Roma; All’Università Pontificia Salesiana di Roma, 2014. pp. 167-168.

42 VILANCULO apud Bauman, Tese de Doutoramento…op cit, pg.365.Uma sociedade-liquido-moderna de consumidores e de objectos de consumo cuja indústria da mercadoria do lixo assume um papel importante no âmbito económico da vida líquida, pois que, isto vem a significar a existência de consumo e consome quem tem o poder de compra. A vida se torna uma acumulação de lixo um viver-para-descarga. Essa realidade, constituindo depois, uma perspectiva e uma preocupação, acaba absolvendo o homem obrigando-o a fazer esforço redobrado de “compra-deita” em procura do novo. Na nossa análise, esta dialéctica de uma contínua instabilidade material, leva ao mais alto nível, a instabilidade interior de personalidade e de relações interpessoais ao ponto de esvaziamento e solidão profundos. Nesta sociedade, de facto, não há espaço para sonhar, fazer experiencia e maravilhar-se. Não há espaço para escolher e decidir. Precisa correr sempre com todas as forcas, simplesmen-te para depois ficar estagnados no mesmo lugar. Uma sociedade de indivíduos coisificados e massificados com alto nível de movimentos estáticos pois não partem do profundo do ser. O ser enquanto movimento pessoal versus o outro.

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ram-se em unidades mínimas de significado opaco e vazio. E com isso, somos como dos electrões dentro de uma proveta libertando bolas de água vazias que se tocam sem se sentirem.

E como consequência disso, verifica-se o sedimento das estancias da promoção do homem, da sua existên-cia e transformação humana, da transformação da cultura da convivência, da alteridade, da inter-compreensão, da interculturalidade, etc., e esses paradoxos, ambiguidades, indiferenças e contradições hodiernas, próprias da lipovetskyana “era dos ecos soltos do vazio”, não podem deixar indiferente a quem tem consciência da sua tarefa árdua de educar e do seu papel cívico de ajudar a transformar as pessoas e as sociedades.

Os ecos, como sabemos, são símbolos de um substrato existente e fundando num desejo de continuar a ser e fazer-se reconhecer. E, portanto, “a luta pelo reconhecimento pode impulsionar o desenvolvimento social” (Honneth, 2003), e leva à construção da alteridade, responsável e fundada sobre valores sólidos de respeito às diferenças e promoção da diversidade (Ricoeur, 2006).

É sobre a diversidade e pluralidade de identidades que se tece o mundo contemporâneo em que vivemos, o que permeia um campo fértil de hibridação de pessoas e de culturas que modificam os hábitos socialmente instituídos, tornando cada vez mais complexo o processo de compreensão do ser humano, e, com isso, menos tangível a pré-destinação dos seus comportamentos, sentimentos e valores, urge o desafio de aproximar educa-ção e ética como dois factores preponderantes de transformação do Homem43.

É neste sentido que, para Emmanuel Mounier, o acto de educar exige o empenho abnegado do educador e dos educandos, pois só desta forma a educação terá a sua finalidade de fazer frente à pessoa humana para a construção de uma comunidade personalista. Por isso, a educação, antes de tudo, deve olhar para o aspecto da promoção da pessoa na sua pluridimensionalidade singular e relacional.

Portanto, a educação predica-se em educar para o carácter, para o engagement (empenho), para a liberda-de; para a relacionalidade, para a responsabilidade e a reciprocidade, para a comunicação e, por fim, educar para a comunidade personalista.

Este artigo é composto por três secções, nas quais reflectimos em torno do papel e da finalidade da edu-cação em Emmanuel Mounier. Com efeito, na primeira, denominada “Educação para a revolução personalista e comunitária”, analisamos os desafios da educação tendo em conta as suas finalidades; na segunda designada “Questões da perspectiva pedagógica de Mounier” destacamos as diversas dimensões da educação e as suas in-terfaces e, por último, em jeito de conclusão, na terceira secção denominada procuraremos trazer uma reflexão sobre a actualidade da pedagogia de Mounier.

1. Educação para a “revolução personalista e comunitária”

Com o início da revista “Esprit” em 1932, despertando a atenção à “Sorbona intelectualista”, Mounier pro-põe uma figura de intelectual diferente, aquela do “engagé”, que vinha assumir o carácter carregado de aspectos pedagógicos.

Para Mounier, ao homem da cultura cabia-lhe a tarefa de “despertar” as consciências contra a hipocrisia das mentalidades burguesas e as retóricas das concepções ideológico-totalitárias do seu tempo, isto porque, segundo o autor, se o intelectual se subtraísse desta especifica tarefa de “educador civil” não teria outra coisa que confirmar a “trahison des clerecs” como denunciava Julien Benda.

Na Revolução personalista e comunitária, obra que recolhe os escritos sobre os primeiros números da revis-ta “Esprit” em 1935, Mounier traçava as linhas de uma radical renovação contra aquilo que ele chamava “desordre étabile”44. E para tal propõe, culturalmente, como saída desta crise das civilizações, a necessidade de partir da pessoa. Neste sentido, a antropologia mounieriana reconhece a pessoa como realidade em devir e por edificar,

43 Dever nosso, deixar claro que o uso do conceito, embora conscientes das críticas actuais, principalmente na actual luta pela emancipação da Mulher, quer significar, Humanidade nas suas manifestações, homem e mulher.

44 Aqui podemos entender aspectos relacionados a preocupação política na perspectiva do seu tempo.

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com a “tarefa projectual” de realizar, com liberdade, coragem e responsabilidade45, os desafios impostos pela acção de educar.

Na obra supra citada, Mounier indica os aspectos antropológicos e culturais que constituem pressupostos fundamentais do discurso educativo, e aponta que com o “Refazer o Renascimento”, a educação assume o valor estratégico para conseguir realizar o programa da mudança que ele desejava. Por isso defendia que: “a revolução, ou será moral ou não se fará de facto”(Mounier,1955, p.21). Há necessidade de sublinhar que para o Autor, esta frase, não significava uma leitura moralista ou espiritualista da realidade, mas uma necessidade da superação do conceito e prática da revolução propostos pelo marxismo o qual corria o risco em reduziu-se simplesmente em uma revolução agressiva. Em vez para o jovem Mounier a Revolução, no seu tempo devia ser silenciosa, fe-cundante o homem e ao mesmo tempo que devia ser firme e forte de modo a levar a frente a mudança radical do homem do seu tempo. “Eu defendo a revolta, pois que surge da profundidade e essa só será bastante forte para vencer a indiferença universal. Mas a temo quando assume a mascara irosa do pânico: a indignação não é uma reacção vital”46.(Mounier, 1955, p.23).

Assim sendo, a promoção da pessoa humana como um dos elementos fundamentais da educação em Mou-nier deve ser analisada criticamente tendo em conta a realidade uma vez que os contextos de cada sociedade vão determinar os factores que podem ou não imperrar par que a educação o seu papel social: formar e transformar.

Mounier, perante a despersonalização da pessoa impulsionada pelo espiritualismo, marxismo e individua-lismo, propõe a necessidade da revolução personalista comunitária com vista a restituir ao homem a dimensão espiritual, corporal e social.

A este propósito, Riverso (1960) defende que o primeiro Renascimento, de facto, com a exaltação do indiví-duo, acabou por absolver a pessoa e, com isso,

O espirito Ocidental, na exaltação do individuo através um orgulhoso desprezo da matéria, acabou por ligar o espirito ao jogo cego das forças da liberdade das mudanças, da liberdade dos contactos e se desvitaliza o espirito em um modo do impessoal, do jurídico, do legislativo, em um mundo dos afazeres bancários, de interesses comerciais, da concorrência industrial, das sociedades anonimas, dos entes públicos. Esta mística do individuo, o Ocidente a herdou do direito romano, do Renascimento47.

Portanto, uma revolução personalista exige, antes de tudo, a construção de um mundo sólido. Porém, à di-ferença do marxismo, a construção do mundo sólido, não significa a negação de transcendência do homem, no sentido de reabilitação da realidade concreta e temporal, contra as filosofias idealistas de cada tipo.

Por isso, a revolução personalista, mesmo admirando o marxismo, não pauta por uma revolução abstracta e agressiva, mas sim pela via dialógica para melhor colher a pessoa no seu fazer-se concreto e na transformação da realidade, ou seja, para colher a pessoa na sua concreta acção48.

O refúgio do homem no ideal fora do tempo e fora do corpóreo é a deserção, a deserção do homem a frente ao empenho. O avanço do homem do plano do individualismo ao plano da pessoa é próprio na direcção oposta. É a matéria no seu concreto temporal e carnal, que reen-contrando-se em uma comunhão com o espirito “o seu lugar e a sua alma”, permite ao espirito de encontrar as suas dimensões concretas. Empenhados nas dimensões concretas do tempo e da carne dificilmente a consciência poderá perder-se no mundo do impessoal e endurecer-se do individualismo49

45 Cfr. E. MOUNIER, Revolution personnaliste et communautaire, Oevres, I, Paris 1961, pp.162, 176-178.46 (Esta tradução é livre e nossa)47 Mario RIVERSO, Le stanze della pedagogia nel personalismo di E. Mounier, Lib.Scientifica, Nampoli 1960, p. 5048 Cfr. O conceito de acção, vem muito tratado e, aliás, torna-se preocupação central da fase doutrinal do pensamento personalista de Emmanuel MOUNIER, mas a visão

que Mounier tem da acção, como dizíamos antes, é diferente do reducionismo marxista que vê o homem como seu trabalho, para Mounier, a acção, vem vista em uma perspectiva integral, Trabalho, significa homem que si dignifica como homem corporal e como homem espiritual. Isso podemos ler nas paginas: 43-48 da sua primeira obra, Rivoluzione Personalista e Comunitaria, Comuinità, Milano 1948 (In Oeuvres,I, Révolution personaliste et communautaire, p.176).

49 M. RIVERSO, Le stanze della Pedagogia nel personalismo di E. Mounier, op.cit...p.50

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As sociedades, nas suas representações, sejam elas de regime político, jurídico, social, religioso e económi-co, têm uma tarefa específica, aquela de não

subordinar as pessoas nem de intrometer-se no desenvolvimento da sua vocação, mas asse-gurar para eles, antes de tudo, aquela zona de isolamento, de protecção, de serenidade e de bem-estar que permitirá a eles de reconhecer, em plena liberdade de espirito, a própria voca-ção; de ajudá-las sem constrição, por meio de uma educação inspiradora, a libertar-se dos conformismos e dos erros da confusão, de dar a eles, mediante o apoio do organismo social e económico, os meios materiais comummente necessários, excepto seja nos casos de vocações heróicas, ao desenvolvimento desta vocação50.

Aqui a feroz polémica contra a hipótese de que a educação seja “toute faite”51 que sustentava o conformismo a um modelo social, neste caso seja aquele do capitalismo, seja aquele no qual “Les collectités totalitaires seront tenteés de le conformer au canon de leur métaphysique officielle, (…52)”, por formar os pequenos comunistas (co-lectivismo) ou pequenos fascistas (capitalismo individualista), e outros cidadãos a partir de esquemas já estabe-lecidos. O autor sentiu a necessidade de propôr uma saída desta lógica errada de preparar os meninos em função da sua função social. Formar o “homem novo” na sua totalidade ou integralidade como diria J. Jacques Maritain.

Em 1936, no Manifesto ao serviço do personalismo, Mounier indicava alguns pontos importantes: que a reflexão sobre a educação, venha inserida na óptica da formação do “homem novo”, isto é, de um sujeito plena-mente consciente da própria vocação pessoal e comunitária. Então, o programa tinha que ver com a educação personalista e comunitária. Por isso, a educação, devia ter como finalidade, a formação do carácter livre dos con-formismos: “façonner l’enfant au conformismes d’un milieu social ou d,une doctrine d’Etat” ou ainda, de “éveiller des personnes capables de vivre et de s’engager comme persone”.

Com efeito, o autor defendia uma educação fundada sobre a pessoa. Portanto, ela não pode ser totalitária e deve ser total enquanto aprendizagem da liberdade. Para além de personalista, deve ser uma educação fundada sobre o princípio de um “statut pluraliste d’ecole”, que tem como suporte o Estado que deve garantir a prestação de serviços eficientes e o pluralismo no seio das instituições escolares, garantindo s seu monitoramento tendo em vista a qualidade e a excelência. A isso, não se deve deixar de lado o papel d família como um dos alicerces para a formação comunitária que se espera rica de comunicação espiritual. Vale a pena ressaltarmos que na antropologia personalista de Mounier, o conceito espiritual tem significado de interioridade, termo muito im-portante na Antropologia filosófica.

2. Aspectos pedagógicos da perspectiva de Mounier

Mounier não tem sido considerado como um pensador pedagogista de primeira linha, quando comparado com Rousseau, J. Dewey e outros. Mas se estivermos atentos ao pensamento do autor, não há como não se enten-der a sua obra sob ponto de vista pedagógico porque os fundamentos do seu pensamento foram sempre direc-cionados à preocupação educativa da pessoa para uma “nova” entronização na sociedade: fazer uma “revolução personalista comunitária” ou ainda um “combant” sobre o homem para criar um homem novo.

A fase doutrinal expressa na revista “Esprit”, que mais tarde as suas anatas constituíram a sua primeira obra intitulada Révolution personnaliste et communautaire, a tonalidade é manifestada pela renovação sociocultural-institucional e mudança pessoal, refazendo o renascimento fundado sobre a pessoa, visto que o primeiro renas-cimento falhou a missão humanizante enquanto o individualismo e o colectivismo esqueceram-se da pessoa na sua totalidade como ser comunitário.

50 (Tradução livre e nossa), E. MOUNIER, Rivoluzione personalista e comunitaria, op.cit.pp.86-87.51 Ibdem, p.17952 Ibdem, p.414.

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Por isso, podemos, resumidamente, dizer que o problema de educação em Emmanuel Mounier poder ser pensado em seis perspectivas, nomeadamente: Carácter fenomenológico da pessoa e da educação; Estrutura e qualidade relacional da dialéctica, educador/ educando; Educação e democracia; Responsabilização das insti-tuições educativas; Escola, laicidade, pessoa; Por uma corajosa formação cristã.

A seguir, passamos a reflectir sobre o pensamento pedagógico de Mounier tendo em conta cada uma destas perspectivas.

a) Carácter fenomenológico da pessoa e da educação

A antropologia de Mounier é concentrada em torno das seguintes categorias-chave: vocação, encarnação, comunhão ou comunicação, conversão, engagement e transcendência. Estes aspectos são peculiares para a cons-tituição da base pedagógica realisticamente aberta sobre o horizonte das dimensões constitutivas e dos proces-sos evolutivos do homem.

E nesse sentido, a pedagogia mounieriana vai além de espiritualismo do século XX e de bio-sociologismos, porque busca condições de possibilidades para uma educação na confiança na pessoa e no seu desejo de auto-determinar-se para o bem. Mais ainda, o personalismo pedagógico de Mounier representa, a nosso ver, uma proposta de forte impacto crítico no quadro das teorias educativas, de um lado, inclinadas a lógicas pragmático-funcionalistas e de outro ao esquecimento do horizonte pós-moderno do sujeito.

b) Estrutura e qualidade relacional da dialéctica, educador/ educandoSobre este aspecto, a posição de Mounier mantem-se no alveio da melhor tradição pedagógica, não só es-

piritualista, mas também oito novecentistas, tomando distâncias de qualquer hipótese de autoritarismo ou de dirigismo em confronto dos menores.

Segundo Mounier, o educador é aquele que é chamado a éveiller a pessoa, em uma relação fundada sobre uma consciência madura de valores, numa perspectiva de reconhecimento mútuo entre educador e educando como elementos-chave da educação na busca de conhecimento e de reconhecimento.

De facto, a concepção personalista de educação, fundada sobre a superação de autoritarismo propõe, sem pretender tirar a autoridade profissional do professor, uma posição diferente da antiga que distanciava e aterrori-zava o aluno. Por isso, Mounier defende que o professor/educador, à frente do seu aluno, deve também encontrar elementos de aprendizagem. E para tal, defende que é preciso superar a falsa ideia de que o aluno é “tabua rasa” do empirismo, visto que no processo de ensino-aprendizagem, ambos, o professor e o aluno, na interacção, in-fluenciam-se mutuamente. Logo, quer o professor, quer o aluno, aprendem.

Portanto, nesta perspectiva privilegia-se o modelo relacional personalista como mecanismo a partir do qual o educador e o educando cultivam mutuamente a confiança para a ocorrência fraterna das aprendizagens propostas.

c) Educação e democracia

A ideia de democracia, considerada em perfis jurídico-formais e substanciais, constitui uma sociedade de carácter “personalista e comunitária” cunhado por Mounier. Nela nasce o acento sobre a dimensão participativa do cidadão, um “protagonismo democrático” que deriva da mesma vocação social da pessoa como a define o próprio Mounier; “pessoa de pessoas”, isto é, constitucionalmente necessitante do outro para existir.

A educação e os desafios que enfrenta na contemporaneidade constitui um tema actual e presente, visto que é nela que se buscam as interpretações e compreensões das metamorfoses que ciclicamente ocorrem nas sociedades, tendo em conta que é da educação que se espera a formação de ser social e que pelo rápido e acele-rado processo de globalização, este ser social se transforma, em algumas circunstâncias, num ser associal que se reiventa na direcção, em muitas das situações, de auto-destruição da lógia existencial do Homem na terra, razão

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pela qual Bauman53 aponta que a sociedade, a democracia, a vida, o amor e até o próprio homem, que fundou a sua existência na ideologia consumista, acumulando lixo, tornou-se prisioneiro das entranhas da sua própria escolha, e com isso, tudo se tornou líquido.

E a própria Democracia de que tanto nos orgulhamos de viver, tornou-se líquida, pois, mesmo continuando propondo valores democráticos, eles são somente uma pomposidade fundados no “vazio” lipovetskyano54 do nosso século.

A este propósito, Ralf Dahrendorf, movido pela constatação de uma fase do “após-democracia”, isto é, da crise dos clássicos acentos constitucionais-parlamentarismo, distinção e balanceamento dos poderes, tutela dos direitos políticos e civis, do bem-estar global, etc., perspectiva a exigência de construir uma “nova democracia”, capaz de recolher as instâncias derivantes das mudanças epocais em curso, sem com isso destruir os elementos estruturais da vida democrática55.

Neste cenário, assim tão delicado, em que a educação é chamada a fazer frente aos desafios da contempo-raneidade, o ensinamento de Mounier continua a fazer eco e elo fundamental para o educador hodierno. Por isso, compete à educação, de facto, de despertar e amadurecer, seja nos jovens, seja nos adultos, uma consciência democrática nutrida de sentido cívico, de gosto participativo, de disponibilidade a acolher os desafios de mudan-ças sem perder a própria identidade na construção da “nova cidadania” o “Refaire le renaissance” mounieriano.

d) Responsabilização das instituições educativas

A fundamentação do pensamento de Mounier já desde o seu alvor foi de tonalidade dialógica, daí o comba-te contra tudo o que podia representar a manifestação do totalitarismo, seja escola, família, regimes políticos e de governos, e no caso ainda do capitalismo e colectivismo comunista, na formação da pessoa humana. A educa-ção da pessoa, segundo o autor, deve ter como fim, além do respeito, a tutela plena e livre maturidade humana na comunidade, com a comunidade e para a comunidade. Porém, actualmente, podemos afirmar que esta questão idealmente, já está superada, vista a educação formal optou pelos métodos personalistas.

A nossa intenção é despertar a vigilância sobre as novas formas de manipulação da cultura difusa. As formas subtis-racionalistas e idealistas de autoritarismo e colonialismo que apoquentam os nossos dias, são motivos de alerta e desafio para a educação.

e) Escola, laicidade, pessoa

No contexto do debate do sistema escolástico francês, a reflexão de Mounier nos dá alguns êxitos importan-tes, como por exemplo a defesa de um modelo de pluralismo das escolas coordenado por uma escola nacional e favorável ao confronto entre as singulares experiências; o convite a uma forma de laicidade aberta, subtraída, portanto, das imposições sejam de tipo neutralista, seja laicista; a insistência em torno de uma cultura formativa e comensurada às exigências do aluno e dos seus contextos em pertença.

A actualidade destas problemáticas está em baixo dos olhos de todos. Obviamente, impõe-se o seu apro-fundamento à luz das novas interrogações decorrentes das transformações multi-étnico-religiosas das nossas sociedades, dos efeitos da globalização e da aceleração das mudanças científico-tecnológicas.

f) Por uma corajosa formação cristã

O pensamento de Mounier funda-se, sobretudo, na sua formação religiosa cristã, daí a sua influência. Mes-

53 Cfr. Z. BAUMAN, Todo o pensamento de Bauman desde 2982 a 2017, dá a entender como toda a realidade se tornou inconsistente, frágil, vulnerável, incerta, volátil, descartável, “líquida” como ele mesmo especifica. Todos o adjectivos que demonstram e caracterizam a sociedade hodierna. Assim sendo, onde o homem se coloca?

54 LIPOVETSKY, A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo, Editora: Edições 70, 2013.55 R. DAHRENDORF, Dopo la democrazia, intervista a cura di A. Polito, Roma-Bari 2001.

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mo assim, este facto não lhe retira o mérito de ter um pensamento e produção científico credível como muitos de linha materialista capitalista e marxismo-comunista pensam.

Com isso, o autor olha para o papel da educação como elemento complementar do papel que a religião desempenha.

Por essa razão, Mounier defende que a religião e a educação devem complementar-se, uma vez que ambas estão viradas para a formação de um Homem Novo e racional, capaz de descernir o bem do mal e ser reflexivo diante dos desafios da sociedade em que vive, gerando soluções que permitam a reprodução do bem-estar social. E neste sentido, chama a atenção para um maior envolvimento (engagement) e responsabilidade dos crentes na missão de combater ao que chama de cristandade burguês, sem cristianismo, com certas formas de espirituali-dade e modelos educativos negativos, pelo facto de serem incapazes de sustentar e formar uma figura de cristão livre, corajoso, consciente da paradoxalidade da experiência da fé, aberto à procura da verdade e animado por uma esperança genuína.

Actualmente, desde quando Deus morreu em Nietzsche e consequentemente o homem em Foucault56 morreu, produziu-se uma espécie de poço abissal que provoca no homem medos e crise existencial. Por isso,

Talvez se devesse ver o primeiro esforço desse desenraizamento da Antropologia ao qual, sem dúvida, está voltado o pensamento contemporâneo, na experiência de Nietzsche [...] Niet-zsche reencontrou o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do além-do-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a iminência da morte do homem. Com isso, Nietzs-che, propondo-nos esse futuro, ao mesmo tempo como termo e como tarefa, marca o limiar a partir do qual a filosofia contemporânea pode recomeçar a pensar; ele continuará sem dúvida, por muito tempo, a orientar seu curso57.

Diante disto tudo, a preferência e única solução encontrada é a fuga. Com isso, o Homem actual passa o tempo fugindo de si mesmo, refugiando-se nas ofertas fáceis das máquinas tecnológicas que aparentam promo-ver comunicação. Ri, fala, interage e forma comunidades nos softwares, web’s, whatsApps, e incapaz de comuni-car com o seu colega, filho, irmão, mulher, marido e outros ao lado. Estamos agarrados a uma vida comunitária fugaz com medo de relações firmes e estáveis.

Homem, aparentemente sereno, tranquilo e bom, mas basta que o toque um pouco para se transformar num animal feroz, e a falta de interioridade interior e profunda do ser, coloca em dificuldades a nossa maneira de ser, estar e fazer, ou seja, “ocos por dentro e fortes por fora”, razão pela qual entendemos que estamos numa época em que a máquina ocupa o lugar do ser humano e nos transforma em máquinas, cedentes de viver num mundo de aparência fundamento da nossa existência, isto é, “eu existo porque apareço” ou ainda, “eu existo porque possuo e posso”.

Com isso, o amor como doação de si mesmo ao outro e como receptividade do outro já não existe e este é o grande desafio da educação hoje que nos coloca questões como: Como educar o homem que não existe? E se se parte do pressuposto de que ser educador é dever do homem, quem vai educar se o homem não existe? O existencialismo activo de Mounier, diz que qualquer acção deve responder a quatro exigências: “que modifique a realidade exterior, que nos forme, que nos aproxime dos homens e que enriqueça o nosso universo de valores”. (Mounier, 2004, p. 103).

Por isso, há necessidade, de facto, de pessoas corajosas, com valores fundados sobre convicções fortes de amor profundo do Homem para outro Homem e propor novos modelos e paradigmas educativos que visem formar o “novo homem e homem novo”, o que nos permite concordar com a actualidade do pensamento de Emmaunel Mounier.

56 M. FOUCAULT, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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Conclusão

Actualidade da pedagogia de Mounier

A educação que tem como preocupação a transformação do homem e da sociedade, como nos é proposta pelo autor a cima estudado, refuta a outra face de educação de manutenção, modelo da sociedade tecnecista- capitalista em que a preocupação é a incrementação do produto e do capital. Nesta sociedade os valores pro-postos: flexibilidade, eficácia, eficiência, concorrência e mais, não permitem uma educação pró transformação do homem para realização própria e da sociedade. Tende, de facto a formar o homem para os seus fins preesta-belecidos. O binómio caracterizante é: homem-produtor, homem-consumo. Então a formação nestes moldes, não forma para liberdade e nem para a acção e para valores de cidadania pois ao homem lhe vem tirado a possi-bilidade de pensar, decidir e realizar autonomamente. Mounier nega essa educação formal despersonalizante.

A educação que hoje em dia é distribuída prepara o pior possível para uma tal cultura da ac-ção. A Universidade distribui uma ciência formalista que conduz ao dogmatismo ideológico ou, por reacção, à ironia estéril. Os educadores espirituais conduzem na maior parte dos ca-sos a formação moral para o escrúpulo ou para o caso de consciência, em vez de a encaminha-rem para o culto da decisão. É todo um clima a modificar, se não quisermos ver mais os nossos intelectuais a dar o exemplo da cegueira e, os mais conscienciosos, da covardia.

(Mounier, 2004, p. 111).

É neste âmbito, como dizíamos na nossa reflexão, que surge a reacção contra a degradação da pessoa hu-mana. Mounier, em forma de dar face a esta situação, encontra uma proposta educativa que aponta para a valo-rização e o despertar da pessoa e da sua liberdade. No despertar do Universo Pessoal, do seu desabrochamento, a Educação cumpre um papel fundamental, aquele de superar o individualismo na direcção de um socialismo personalista e de uma sociedade comunitária.

A educação, no contexto do autor, deve levar ao processo de educabilidade onde a construção da relação interpessoal é a base da relação educativa, em que o educador e o educado se abrem com e para o outro, na construção de um diálogo. O outro é, obrigatoriamente, o meio para chegar à compreensão de si mesmo e do mundo. Por isso, o educador não impõe, mas propõe, indica oportunidades e caminhos para o aluno poder se movimentar em uma sociedade em constante mudança.

Numa sociedade como a nossa, o pensamento de Emmanuel Mounier como de todos outros que pautaram e pautam pela pessoa humana como ser em relação, goza de uma importância actualidade. Há necessidade imperiosa de facto, de educação ter coragem de regressar a pessoa humana em todas as suas dimensões e fazer compreender a esta pessoa que deve deixar-se interpelar pela situação actual, a intervir na ordem das coisas, sob pena de, ao contrario, não nos reconhecermos mais nem como homens, nem no mundo e nem nas formas de vida societária. Há tendências actuais assustadoras hoje que levam a leituras muitas das vezes ofuscantes ao optimismo, a sensação de que o homem está caminhando rumo a ausência de sentido que dá lugar a actos bru-tos de negação da existência e da vida na sua essência e pior ainda, sob pena de comprometer a vida das futuras gerações.

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ENTRE AS LIÇÕES DOS OBJECTIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÉNIO (ODMS) E OS DESAFIOS DOS OBJECTIVOS

DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS):

Educação para Todos e Pobreza Educativa em Moçambique

JOFREDINO FAIFE57

[email protected]

RESUMO

Da Declaração Mundial da Educação para Todos (em Jomtien, no ano de 1990) passando pelo Marco de Acção de Dakar (no ano 2000) aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (em Nova York, no ano 2000), a universalização do acesso à educação se tem assumido como um direito inalienável. Todavia, embora o relatório sobre a Agenda 2015 aponte resultados encorajadores em alguns indicadores, no geral, a meta de Educação para Todos não foi alcançada. Ademais, em países em vias de desenvolvimento como Moçambique, a escolarização não significou o consequente alcance de competências básicas de leitura e escrita, os desequilíbrios de género persistem, assim como as desigualdades no acesso entre o campo e as zonas urbanas. Estes percalços podem ser entendidos no quadro do emergente conceito de pobreza educativa (Save the Children, 2014; 2016). O presente estudo classifica-se como exploratório e basea-se nos métodos da revisão bibliográfica e análise documental. O objectivo geral do estudo é mapeiar o cenário de pobreza educativa em Moçambique e desvelar as fragilidades que poderão minar a alcance dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável em 2030 no campo da educação.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Para Todos. Moçambique. ODM. ODS. Pobreza Educativa.

57 Mestrado em Ciências Pedagogicas, com especilização em consultoria e Pesquisa pela UniBg – Itália (2012).

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1. Contextualização (dos ODMs aos ODS: percusos de pesquisa)

O século XXI abriu-se com uma série de desafios de carácter sócio-cultural e económico que se propunham como metas importantes a serem perseguidas a nível transnacional. A mais simples formulação destes desafios no campo pedagógico propunha como meta a universalização do acesso à educação até ao ano de 2015. A mate-rialização desta meta pressuponha a verificação de uma série de indicadores ligados, por exemplo, à educação da rapariga em vista à equidade de género, ao alargamento da rede escolar, particularmente nas zonas rurais, etc.

Apesar de vários resultados positivos – Por exemplo, a África Subsariana fez os maiores progressos nas ma-trículas no ensino primário entre todas as regiões em vias de desenvolvimento: em números absolutos, as matrí-culas na região mais do que duplicaram, atingindo cerca de 80% –, segundo o Relatório Sobre os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 2015, a meta da escolarização primária universal (calculada no limiar de 97%) está próxima de ser alcançada em todas as regiões, excepto na África Subsariana, onde continuam a existir grandes disparidades nas matrículas no ensino primário, sendo que as crianças mais pobres e desfavorecidas enfrentam o fardo mais pesado (NU, 2015a).

Findo o prazo de 2015, as nações abraçam agora um desafio maior, expresso, nos termos dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, a serem alcançado até 2030. O 4º objectivo, ligado à educação, propõe-se a “asse-gurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (NU, 2015b). Trata-se, portanto, não só duma educação para todos (no one left behind), como também de uma educação de qualidade e equidade.

Recolhendo algumas lições/constatações dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, neste texto ques-tiona-se sobre os desafios que se impõem a Moçambique no quadro dos Objectivos de Desenvolvimento Sus-tentável. Como premissa, parte da hipótese de que o alcance dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável no campo da educação pressupõem a colocação de questões qualitativamente diferentes das colocadas no quadro dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. As novas questões, mais do que questionar as estratégias de massificação do ensino devem questionar as estratégias de qualificação do ensino. De facto, a análise final dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio sugere que se a escolarização universal parece ser uma meta mais possível no horizonte de 2030, o alcance duma educação de qualidade não advém como consequência natural.

Assim, o constructo qualidade passará a jogar um papel sempre mais crescente na análise dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. É neste contexto que se enquadram os estudos sobre a pobreza educativa enquan-to indicador da qualidade de ensino. Neste artigo, com recurso à revisão bibliográfica e à análise documental tenta-se uma aproximação conceptual ao conceito de pobreza educativa e esboça-se uma mapa geral desta em Moçambique, tomando como marco de análise o ano 2015, definido como prazo do alcande dos ODMs.

2. Metodologia

De acordo com Severino (2007), quanto à natureza das fontes a utilizar para a abordagem e tratamento de seu objecto, as pesquisas podem classificar-se em bibliográfica, documental, de laboratório e de campo.

Por seu turno, Ramos e Naranjo (2007) repropõem as tipologias de estudos avançadas por Dankhe (1989), classificando os estudos em exploratórios, correlacionais, explicativos e descritivos.

O presente estudo define-se como bibliográfico, documental e exploratório.58 Uma pesquisa define-se como bibliográfica quando realizada a partir do registo disponível, decorrente de pesquisas anteriores levados a cabo por outros autores, sobre uma temática similar. Define-se como documental quando implica o recurso a conteúdos de textos que ainda não tiveram nenhum tratamento analítico, sendo ainda matéria-prima da qual o pesquisador vai desenvolver sua investigação e análise (Severino, 2007, p. 122), ou, nos termos de Carvalho

58 Mestrado em Ciências Pedagogicas, com especilização em consultoria e Pesquisa pela UniBg – Itália (2012).

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(2009), quando envolve uma investigação de documentos a fim de se poder descrever e comparar usos e costu-mes, tendências, diferenças.

Os estudos exploratórios efectuam-se, normalmente, quando o objectivo é examinar um tema ou problema de investigação pouco estudado ou que não foi abordado antes (Ramos e Naranjo, 2007, p. 53). A relativa mente pouca discução do conceito de pobreza educativa no contexto académico moçambicano justifica a classificação-se deste estudo como exploratório.

3. A pobreza educativa

3.1. A dimensão multifocal da pobreza educativa

Embora o conceito de probreza possa imediatamente ser associado à ideia de privação dos bens essenciais para a vida, e, portanto, materiais, tem-se lhe reconhecido uma dimensão multifocal porquanto diz respeito a todas as esferas da vida, podendo abraçar até dimensões imateriais. De facto, do ponto de vista histórico, a pobreza se tem configurado de diversas maneiras, de tal modo que o próprio conceito de pobreza tem evoluído om o tempo, revelando novas formas de a perceber e designar. Neste contexto, ao conceito de pobreza têm sido associados muitos outros, levando ao surgimento de novos entendimentos a respeito, num esforço teórico de nomear novos vultos da pobreza, ou vultos não percebidos antes. Expressões como pobreza absoluta, pobreza relativa, pobreza urbana são exemplos destas concepções emergentes (note-se também que vários indices, entre eles o Índice de Desenvolvimento Humano, representam novos modos – por vezes indirectos – de entender o fenómeno pobreza).

Um dos conceitos emergentes de pobreza é o que se associa à educação. Embora os clássicos da sociologia da educação (Bordieu em primeira instância) há muito tenham feito a associação entre a pobreza e a educação, demonstrando a influência da primeira sobre a última, o conceito de pobreza educativa entendida como “priva-ção por parte de crianças e adolescentes das possibilidades de aprender, experimentar, desenvolver e fazer brotar livremente capacidades, talentos e aspirações” (Save the Children, 2014: 4) é fruto de teorizações mais recentes.

A pobreza educativa representa, então, a privação de compentências necessárias às crianças e adolescentes para um crescimento sadio e uma vida plena. Tais capacidades, maturadas sobretudo graças aos processos de escolarização, podem ser mensuradas por via de indicadores como os testes de competência escolar (literacia e numeracia, por exemplo) e pelas taxas de abandono escolar. Todavia, embora pareçam capacidades de domínio exclusivamente escolar, o seu desenvolvimento é, em termos gerais, favorecido pelo contexto educativo no qual a criança cresce e pelas actividades extracurriculares (culturais, recreativas, desportivas) que tal contexto oferece (cf. Save the Children, 2015).

Desta feita, a pobreza educativa não se deduz apenas da baixa performance escolar dos alunos, mas mani-festa-se igualmente nos demais contextos de vida e desenvolvimento destes (família, comunidade), isto é, na (in)capacidade que os alunos têm de aplicar no quotidiano as capacidades maturadas na escola.

Asssim entendida, a pobreza edcuativa representa uma ameaça concreta também para o desenvolvimento das capacidades “não-cognitivas” (tais são os casos da motivação, autoestima, construção de objectivos, aspira-ções, sonhos) e “relacionais-sociais” (cooperação, comunicação, empatia) igualmente úteis ao desenvolvimento de cada aluno e para seu contributo para o bem-estar colectivo (Save the Children, 2015). É nesta chave que po-dem ser entendidas as recomendações da Comissão da Unesco para Educação do Século XXI (Delors et al., 1996) magistralmente re-elaboradas por Morin (2000; 2001): “aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser”.

A comunidade educativa, isto é, o contexto educativo e cultural que se alarga para além dos muros da es-cola contribui grandemente para contrastar pobreza eudcativa pelo que, esta pode, indirectamente, ser medida por via da participação das crianças em actividades recreativas e culturais extra-curriculares. Resulta pois que a pobreza educativa das crianças pode ser directamente associada à pobreza económica das famílias – embora não

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se resuma a esta – e perpetuar-se de uma geração a outra, num ciclo vicioso (a pobreza material duma geração pode traduzir-se na privação de oportunidades educativas para a geração suvessiva, determinado nova pobreza material e, por consequência, nova pobreza educativa).

Entretanto, se por um lado as estatísticas sugerem um carácter “hereditário” da pobreza educativa, por ou-tro, os limites desta ultrapassam os da pobreza económica. De facto, mesmo os percursos educativos de alunos que não advêm de famílias economicamente pobres podem ser atravessados pela pobreza educativa (Save the Children, 2015). De igual sorte, é possível contrastar a probreza educativa mesmo em contextos de pobreza eco-nómica, por via duma oferta educativa de melhor qualidade.

Ao atingir as crianças nos primeiros anos de escolarização, a pobreza educativa torna-se particularmente insidiosa, pois determina um atraso no desenvolvimento intelectual que dificilmente será colmatado. Nas úl-timas décadas, parece ter ficado definitivamente provado que um atraso no desenvolvimento pode ter efeitos a longo trecho, intergeracionais (Save the Children, 2016: 3).

Por fim, outro rosto do fenómeno pobreza educativa é representado pelos NEET (Not in Education, Em-ployment or Training), isto é, pelos adolescentes/jovens entre 15 e 29 anos que não trabalham e não frequentam percursos de formação ou instrução e pelos Early School Leavers, isto é, pelos adolescentes e jovens que abando-nam a escola antes do fim da escolaridade obrigatória ou de um ciclo de estudos.

Assim, a pobreza educativa apresenta-se como um fenómeno amplo e muitifocal, com enfoques qualitati-vos (como por exemplo: a qualidade da oferta educativa, a qualidade da aprendizagem do aluno) e quantitativos (como por exemplo, os índices de abandono escolar ou o número de crianças que em cada ano ficam de fora do sistema educativo, por razões de deficiência da rede escolar).

A pobreza educativa é assim um rosto e um motor da pobreza conómica e da exclusão social que afecta diferentemente as pessoas em função do capital social que têm à disposição.

3.2. Moçambique entre qualidade e quantitadade. Um espectro de pobreza educativa?

Já se disse que Moçambique falhou o alcance dos Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, no que à edu-cação diz respeito, estruturados, prevalentemente, numa dimensão quantitativa (Edaucação para Todos). Com esta lacuna, o país move-se rumo os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável que, em termos educativos, traduzem-se numa oferta educativa de qualidade para todos até ao ano 2030. Assim, não se trata somente de questionar se todos têm acesso à educação, mas questionar também a qualidade da oferta educativa.

Segundo dados do Africa Learnig Barometer, em África, o número de crianças sem acesso ao ensino primá-rio na idade preconizada continua alto e com uma tendência em crescendo (figura. I). As previsões indicam que se nada for feito para inverter esta tendência, na próxima década o número tenderá a crescer.

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Figura I. População sem acesso ao Ensino Primário em África

Fonte: https://www.brookings.edu/interactives/africa-learning-barometer/.Entre as crianças com acesso à educação, parte significativa não termina o ensino primário. Na África subsahariana, menos de 10% prossegue os estudos até ao nível superior (figura II).

Figura II. Crianças que terminam o Ensino Primário em África.

Fonte: https://www.brookings.edu/interactives/africa-learning-barometer/.A pobreza familiar joga um papel central no abandono escolar precoce. No relatório de balanço dos ODMs, as Nações Unidas (2015a: p. 26) notam que:

“Igualmente preocupante são as amplas disparidades entre as crianças pobres e ricas na con-clusão do ensino primário. Segundo dados do inquérito 2007-2013 de 73 países em vias de desenvolvimento, os adolescentes dos agregados familiares mais pobres tinham cinco vezes mais probabilidades de não concluírem o ensino primário do que as crianças dos agregados familiares mais ricos. Mais especificamente, 34,4% dos adolescentes no quintil mais pobre não tinham concluído o ensino primário, em comparação com os 6,5% no quintil mais rico.” (NU, 2015a: p. 26)

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Fonte: Compiladopelo autor, com base nos dados do Africa Learnig Barometer(https://www.brookings.edu/interactives/africa-learning-barometer/)

Os dados apresentados sugerem uma imagem clara de pobreza educativa, expressa na dúplice deficiência da oferta educativa: uma deficiência quantitativa (expressa na baixa cobertura da rede escolar, disparidades de género, geográficas, etc.) e uma deficiência qualitativa (expressa nos índices de alunos que não aprendem, apesar de inscritos na escola).

4. Conclusão: por uma dimensão africana da pobreza educativa

A experiência de luta por uma educação para todos até ao ano 2015 deixou um legado importante para os desafios da educação de qualidade proposta como Objectivo de Desenvolvimento Sustentável no prazo de 2030. A análise de dados permite concluir que o caminho rumo à escolarização primária universal ainda é uma mira-gem, embora não de todo impossível, mesmo para contextos como Moçambique. Entretanto, e eis o reverso da moeda, nem sempre a escolarização significa aprendizagem. Esta dupla face da medalha (existência de alunos sem acesso à escolarização e existência de alunos que, mesmo escolarizados, não adquirem competências bási-cas) representa, em nossa opinião, indícios de pobreza educativa.

Figura III. O espectro da Pobreza Educativa em Moçambique

Entre as que permanecem na escola há crianças que não desenvolvem competências básicas. No caso con-creto de Moçambique (Figura III), estima-se que 27,2% dos alunos do Ensino Primário não as desenvolve. Des-tes, 21,5% não aprende a ler e 32,8% não aprende noções básicas de matemática. A falta de competências bási-cas repercute-se diferentemente entre os Sexos (25,1% para Masculino e 29,5% para Feminino) e a Localização Geográfica (24,3% na zona Urbana e 31,9% na zona Rural). Entretanto, a Renda Familiar parece ser o factor mais determinante na aprendizagem das crianças (13,4% para famílias economicamente estáveis e 35.8% para as famí-lias Pobres). Em Moçambique, 54% do quintil populacional mais pobre vive na Pobreza Educativa Extrema, ou seja, tem menos de 2 anos de escolarização (média de 1.9 anos) enquanto a média de escolarização de 28,6% do quintil mais rico cifra-se nos 5 anos. A média nacional de Pobreza Educativa Extrema é de 40,2%.

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Embora possamos falar de indícios de pobreza educativa, não podemos falar ainda de índices porquanto faltam-nos ainda indicadores suficientes para compor tal índice. Outrossim, falta, a priori, um momento teó-rico imprescindível, que tem a ver com a definição/operacionalização do conceito de pobreza educativa e uma eventual tradução/adaptação para o contexto africano. Se esta reivindicação é legítima, levantam-se de seguida algumas questões relacionadas com os padrões de qualidade no contexto africano. Torna-se importante, por exemplo, questionar “que saberes locais e da cultura universal são indispensáveis para cada ciclo de aprenzi-dagem e que tipo de esperiências são consideradas necessárias para maturá-las?”. A falta de tais saberes e/ou experiências representaria um conceito de pobreza educativa com rosto africano.

Equacionada a questão conceptual e dos indicadores, seria importante o desenho de estratégias de mensu-ração de tais indicadores que, para além de avaliarem as competências dos alunos no contexto escolar, deverão avaliar a sua extrapolação para outros contextos vitais, a qualidade dos estímulos oferecidos pela comunidade educativa como um todo, entre outras variáveis. Neste contexto, seria interessante, por exemplo, o desenho de testes transdisciplinares que pudessem aferir as compentências consideradas essenciais para cada ciclo de estu-dos, com recurso a uma amostra suficientemente representativa da população em causa. A pontuação dos testes ão avaliaria só os alunos em questão, mas indirectamente a qualidade do ensino das instituições que estes repre-sentam, permitindo, assim, por exemplo, a alaboração de rankings sobre a qualidade de ensino/aprendizagem.

No actual estado da arte e, tomando por referência os dados apresentados, podemos deduzir que vive-se sob a sombra de uma pobreza educativa, sendo que a dimensão qualitativa é mais preocupante do que a quan-titativa. De facto, é inegável o aumento de matrículas basicamente no nível primário. Do lado oposto, parecem crescentes os questionamentos sobre a qualidade do ensino oferecido.

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Save the Children (2016). Liberare I bambini dalla povertà educativa. A che punto siamo? Un´analise regionale. �ÌÌ«\ÉÉ��>}iðÃ>ÛiÌ�iV���`Ài�°�ÌÉ�/ÉvÉ��}Ú«ÕLL��V>â����É��}Ó��ÚL°«`v¶Ú}>r£°£nxÎÈ£�ÈÈ°È{Èx�ä�xÇ°£{ÇÓ{nÎÎ�ÓÊ °Êacedido em 07.07.2017

Severino, A. J. (2009). Metodologia do trabalho científico]ÊÓΧÊi`°ÊÀiÛ�ÃÌ>ÊiÊ>VÌÕ>��â>`>]Ê�ÀÌiâÊ `�Ì�À>\Ê-K�Ê*>Õ��°

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POLÍTICA LINGUÍSTICA NA ALFABETIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM CONTEXTOS PLURILINGUES

O Uso de Línguas Moçambicanas no Centro Social Flori e Centro Comunitário Goal

LUCÉRIO GUNDANE59 [email protected]

RESUMO

Com enfoque nas abordagens de Bamgbose (1991) e Appel & Muysken (1987), o estudo pretende propor uma política linguística em países plurilingues, em particular em Moçambique, com vista ao ensino e aprendiza-gem em Xichangana na AEA. Através do inquérito dirigido aos alfabetizadores, observação e análise do processo interactivo, foram descritos os fenómenos linguísticos de natureza social, ideológica e culturais envolvidos no ensino e aprendizagem da Lingua Portuguesa (LP). No modelo proposto o Xichangana co-ocorre com a LP como meio de instrução e disciplina nos três níveis. O alfabetizador pode ensinar em Xichangana e/ou em LP, contudo, é necessário que possua uma competência comunicativa nestas línguas, incentivando a leitura e interpretação de textos, além do sistema gráfico em ambas as línguas. O estudo mostrou que o uso do Xichangana como língua auxiliar na assimilação dos conteúdos ou como meio de ensino constitui uma ferramenta importante para o de-senvolvimento de uma educação que promove o direito à alfabetização na L1 do indivíduo.

PALAVRAS-CHAVE: Política Linguística, Ensino e Aprendizagem, Alfabetização, Educação de Adultos, Contextos Plurilingues

59 Mestre em Linguistica Bantu pela Universidade Pedagógica. Docente de Linguistica Geral e Estruturas de Línguas Bantu na UP-Maxixe.

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INTRODUÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Com o enfoque nas abordagens de Bamgbose (1991) e Appel & Muysken (1987), tendo a política e a pla-nificação linguística60 como áreas centrais, o estudo visa problematizar a alfabetização de adultos em países plurilingues pós-coloniais, no caso concreto em Moçambique. Nele se pretende propor uma política linguística com vista ao ensino e aprendizagem em línguas moçambicanas (LMs), concretamente em Xichangana, na Alfa-betização e Educação de Adultos (AEA), em dois Centros Comunitários na cidade de Maputo.

Uma vez que a planificação linguística se centra na resolução dos problemas sociais envolvendo línguas (maioritárias e/ou minoritárias) faladas numa determinada comunidade linguística, particularmente dos Esta-dos pós-coloniais, muitos estudiosos partilham a opinião de que as decisões sobre ela ocorrem, invariavelmente, ligadas a factores de ordem, quer ideológica, quer política, que emergem em paralelo com o contexto histórico e social desse Estado.

É nesta óptica de ideias que o presente estudo, por um lado, responde a questões colocadas, por exemplo, por Bamgbose (1991), no âmbito do papel desempenhado pela planificação linguística na educação, tais como: que língua? Para que propósito? Em que nível; e, por outro lado, analisa as inconveniências relacionadas com o ensino e aprendizagem exclusivamente feitos em língua portuguesa (LP) na AEA, e descreve os fenómenos linguísticos de natureza social, ideológica e cultural envolvidos no processo de ensino e aprendizagem em LP.

Olhando atentamente para a AEA promovida pelo governo moçambicano e por algumas organizações não-governamentais desde a proclamação da independência até aos dias actuais, há uma política61 voltada a activi-dades que privilegiam a aprendizagem da LP (cf. leitura, escrita, cálculo, etc.), pondo em causa o ensino em LMs (i. e., as maioritariamente faladas pela população62). Note-se, ainda, que o conceito de ‘alfabetização’ carece de muita teorização para o contexto moçambicano. Veja-se, por exemplo: (i) até que ponto um indivíduo é alfabeti-zado? (ii) É analfabeto o indivíduo que não sabe ler e escrever em LP? São algumas das questões que podem ser mais aprofundadas, tal como discute Lopes (1991)63.

Estas e outras razões despertaram interesse pelo tema e espera-se que, em primeiro lugar, com os resul-tados da pesquisa, se forneça dados relevantes para o reajustamento da actual política linguística na educação, em especial na AEA. Em segundo lugar, é importante não só olhar de forma linear o percurso desta actividade64 como uma educação com propósitos políticos, ou seja, com objectivos de redução da pobreza absoluta; propon-do teorias e políticas linguísticas a partir do presente estudo, dar-se-á também uma viragem na busca de uma melhor forma de ensino e aprendizagem na AEA através da introdução de LMs.

Relativamente à metodologia, tratando-se de um estudo de campo que decorreu em 2010, nos meses de Julho a Setembro, além da pesquisa documental, foi usada a observação directa. Com um guião previamente ela-borado, durante 3 meses, esta técnica permitiu observar o processo de ensino e aprendizagem no Centro Social Flori e no Centro Comunitário Goal. Observou-se, intensivamente, através da assistência às aulas, o processo de ensino e aprendizagem sobretudo nas disciplinas de Numeracia e Português. Foi avaliado o grau de incidência dos programas de AEA a nível organizacional, pedagógico e metodológico.

60 A planificação linguística é a percepção dos problemas linguísticos que carecem de uma solução. Tais problemas podem incluir a escolha de uma língua para um propósito específico em situações multilingues, a expansão de um vocabulário a novos domínios e a reforma ortográfica (Bamgbose, op. cit. pág. 109). Appel & Muysken (1987: 47/54) definem planificação linguística como sendo parte ou uma realização factual de uma política linguística: o governo adopta uma política apoiada particularmente em línguas faladas nessa ‘nação’.

61 Refira-se que, aquando da proclamação da independência, a alfabetização em LP era orientada pela dimensão política, virada essencialmente para a redução do ‘anal-fabetismo’ e da pobreza absoluta, porque, para o governo, sendo expandida a LP, esta serviria de instrumento que garantisse a unidade nacional e integridade do país.

62 (Cf: os resultados do Censo Geral da População de 1997 e 2007).63 De acordo com este autor, não há parâmetros pré-definidos para esclarecer a noção de alfabetização no contexto moçambicano.64 A AEA foi promovida pelo governo aquando da proclamação da independência (cf. Mário, 2002) apud (Mário & Nandja, 2005).

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Em relação ao perfil dos informantes, a população-alvo foi constituída por alfabetizadores e alfabetizan-dos de ambos os Centros. Foi administrado o inquérito sociolinguístico aos informantes, que consistiu num questionário preenchido por 15 alfabetizandos, de ambos os sexos e 6 alfabetizadores, sendo 3 em cada Centro, também de ambos os sexos. O questionário continha questões sociolinguísticas, ligadas à atitude linguística dos alfabetizadores em relação ao actual ensino e aprendizagem na AEA.

Entretanto, o estudo centrou-se na análise do processo interactivo. Esta técnica permitiu a descrição, em plenas aulas, dos comportamentos, atitudes dos alfabetizandos em relação ao processo de ensino e aprendiza-gem, destacando os problemas mais comuns ligados ao ensino em LP. Outro método usado na análise de dados foi o método indutivo; indo das constatações mais particulares às gerais, foi formulada a teoria a partir da ob-servação efectuada em ambos os Centros, tendo como perspectiva os modelos inerentes à política e planificação linguística propostos por Bamgbose (1991), já que se pretende propor uma política linguística baseada na escolha de uma LM (Xichangana) para um propósito específico (meio de instrução nalguns níveis e disciplina em todos os níveis na alfabetização inicial).

2. Política linguística na educação em Moçambique

Moçambique é um país plurilingue e multicultural, caracterizado por uma grande diversidade linguística, étnica e cultural. Decorre deste fenómeno que as políticas referentes à educação atendam a essa diversidade, uma vez que a identidade cultural de uma comunidade linguística só pode ser promovida se todos forem edu-cados na sua língua materna (L1). Para que o processo seja funcional em comunidades linguísticas alargadas, as políticas sobre a educação devem atender às necessidades específicas de cada grupo étnico.

Assim, neste ponto são explorados alguns estudos já realizados em torno da planificação e política lin-guística65 em Moçambique. Lopes (2004: 53/4) propõe um conjunto de conteúdos que poderiam, certamente, contribuir para uma melhor política linguística em Moçambique, tais como: (i) a escolha/definição das línguas bantu, do Português, do Urdu e do Gujarati como línguas oficiais; (ii) promoção do Português como língua de unidade nacional; (iii) introdução de línguas maternas na alfabetização inicial; (iv) introdução dos modelos de instrução bilingue, etc. Refere ainda que a atribuição de direitos e de estatuto de línguas oficiais às línguas bantu seria um caminho adequado e um dos primeiros passos para a revitalização e promoção explícita destas línguas, num enquadramento orientado para a manutenção.

Numa abordagem sobre o impacto da educação no processo de desenvolvimento e o papel do indivíduo e o seu grupo social, Liphola (s/d: 231/2), partindo do factor diversidade linguística e cultural, considera que qual-quer tipo de educação atinge primeiramente o indivíduo como sujeito. Sustenta que uma educação (formal) que visa o desenvolvimento em Moçambique deve ter em conta a necessidade de se introduzir, nos primeiros anos de escolaridade, as LMs. Elas constituem o meio através do qual o homem conhece e dimensiona o mundo em que vive. Além disso, elas reflectem um conjunto de valores socioculturais que têm uma forte influência nas diversas esferas da vida política, social e económica dos moçambicanos.

Em conformidade com Lopes (1997), Firmino (2002) e Lindonde (2005), as línguas autóctones constituem parte do processo de construção da ‘nação estado’ e agem como indicadores mais salientes na simbologia da identidade étnica; são repositórios da herança cultural moçambicana; têm o mesmo valor e são capazes de ex-primir quaisquer pensamentos e conceitos; têm os mesmos direitos e podem ser utilizados em vários domínios, incluindo na educação.

65 Noss (1971: 25) apud Bamgbose (op. cit: 111) refere que existem 3 tipos de política linguística, nomeadamente, política linguística oficial (na qual o propósito de uma língua é reconhecido e sugerido pelo governo); política linguística educacional (o uso de uma língua como meio de instrução ou como disciplina a vários níveis de educação é decidido pelas autoridades educacionais); e política geral (implica o reconhecimento ou tolerância sobre o uso de uma língua na imprensa bem como nos contactos com estrangeiros).

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Em paralelo com as ideias acima referenciadas, para a valorização dos valores socioculturais que hoje são reconhecidos, surge a necessidade da redefinição da actual política linguística que possa harmonizar as diferen-tes esferas que compõem o sector da educação em Moçambique. É por isso que Liphola (op. cit: 233/5) considera que dissociar o sistema de educação dos papéis estabelecidos pela comunidade em que o indivíduo se integra é uma espécie de destruição de uma das bases em que assentam as diversas políticas de desenvolvimento, já que as LMs garantem a integração do indivíduo na sua comunidade.

Para Lindonde (2005: 209), é obvio que a ausência de estudos sobre as LMs tornou impossível, numa pri-meira fase, a sua padronização que, por seu turno, permitiria o desenvolvimento da escrita e a existência de gramáticas e dicionários, premissas, estas fundamentais para a definição de uma política linguística apropriada.

No que respeita à política linguística na alfabetização, Lopes (op. cit: 154) propõe um modelo ‘bi-literacia inicial’ que consiste no uso de uma língua bantu e da LP como co-língua. Segundo este autor, dar-se-ia um imenso contributo da alfabetização para a consolidação da paz, à medida que iria privilegiar o direito do adulto ao ensino através do uso da sua L1 e reduziria os riscos de aquisição de uma literacia empobrecida em Português.

Ainda na óptica de Lopes (1997: 24/9), a utilização das línguas bantu no funcionamento dos tribunais cons-tituiria seguramente um exemplo pragmático de um tipo de política susceptível de ser materializada a curto e médio prazos. Futuras experiências como, p. e., ao nível rural, indicariam a vontade, por parte das autoridades em promover as LMs e assegurar que a justiça fosse adequadamente exercida. Por seu turno, defende a língua bantu como língua de ensino na alfabetização e nos primeiros anos de escola primária dadas as actuais limitações de alargar esta prática a classes mais avançadas para as crianças moçambicanas falantes de línguas bantu como L1.

Relativamente à política linguística que emergiu após a independência, foi, efectivamente, o ‘nacionalis-mo’66 o principal factor considerado para a adopção da LP como oficial, i. e., optou-se por uma Língua de Co-municação mais Ampla (LWC), visto que preocupavam ao governo a eficiência e integração socioeconómica e, como confere Firmino (2002: 273), esta língua, embora representada por cerca de 4.8.% da população total como sua L1, era falada por 39% da população total, estando em posição de funcionar como língua de Estado, porque superava a maior parte dos problemas que eram colocados pelas línguas autóctones. Em contrapartida, o uso das línguas autóctones na AEA, onde a LP não é normalmente usada, constituiria umas das acções positivas, por parte do governo, em valorizar este traço cultural (cf. MEC67, 1983: 13) apud (Firmino, op. cit. pág. 282).

3. Perspectivas em torno de alfabetização após a independência de Moçambique em 1975

Este ponto faz uma breve leitura da problemática que se levanta em torno da alfabetização68 em Moçambi-que, buscando fundamentos e elementos teóricos, na perspectiva de vários estudiosos, que ajudem aperceber a actual situação da política linguística em Moçambique.

Segundo Bamgbose (op. cit: 99), a erradicação do analfabetismo é já aceite como o maior objectivo na polí-tica africana para o desenvolvimento socioeconómico. Esta aceitação deve ser ligada a um grande compromisso na promoção ou no aumento de fundos para os programas de alfabetização, enfatizando a ligação entre o treina-mento da leitura/escrita e o desenvolvimento (a alfabetização é concebida como um componente fundamental para o desenvolvimento socioeconómico).

66 Cf. Bamgbose (1991) sobre os 5 factores considerados para a adopção de uma língua como oficial ou nacional.67 Ministério da Educação e Cultura.68 No período após independência, Ribaué (1975) apud Latifo (1996: 18) define a alfabetização como um ‘meio’ para libertar a iniciativa criadora do povo moçambicano,

um meio para as massas populares usarem a sua própria energia para a sua completa independência e para a reconstrução nacional. Por seu turno, Latifo (op. cit: 19) vê a noção de alfabetização sendo infelizmente definida como um ‘meio’ e não como um ‘fim’. A título de exemplo, é a sua utilização para fins políticos. A alfabetização é um termo socialmente contestado, podendo ser usado com variadíssimos significados. É nesta perspectiva que parecem objectivas e pertinentes as ideias de Lopes (1991), Latifo (1996) na definição de alfabetização. A escolha destes autores coincide justamente pelo facto de, numa perspectiva metodológica, serem unânimes e convergirem na percepção da alfabetização como um elemento que se pode comparar, por um lado, com a relação existente entre os actos de leitura, cálculo e escrita (i. e., uso da linguagem de forma geral) e, por outro lado, com questões sociais ligadas à língua no geral durante o processo de ensino e aprendizagem, ou seja, há que ter em conta todos os recursos existentes no sentido de se maximizar o potencial psico-pedagógico e didáctico do alfabetizando.

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Na verdade, foi na década de 70 que foi atribuída ao Ministério da Educação e Cultura (MEC) a tarefa de organizar e dinamizar todo o programa de AEA, tendo sido criado, no ano seguinte, a Direcção Nacional de Al-fabetização e Educação de Adultos com o objectivo de orientar e controlar o Subsistema de Educação de Adultos (SEA). Foi assim que em 1978 se realizou a primeira campanha nacional de AEA subordinada ao lema “Façamos do país inteiro uma escola onde todos aprendemos e ensinamos” (Gómez, 1999, pág. 370).

Segundo o relatório do INDE (1997: 161/2) no que concerne ao ensino e aprendizagem em LP na AEA, veri-ficou-se que:

“O Português não é uma língua veicular na maior parte do país, e a sua aprendizagem não se insere na realidade sociocultural e económica do alfabetizando; a aprendizagem numa língua segunda (L2) cria sérios problemas ao nível metodológico; o alfabetizador fala e escreve a LP de maneira bastante deficiente; o aproveitamento é baixo quer a nível da aquisição da leitura/escrita, quer a nível de aquisição de conhecimentos gerais […]”.

Por sua vez, o documento refere que os alfabetizandos, por não dominarem a língua de ensino, encontra-vam-se na sala de aulas numa situação ‘frustrante’, sentindo-se como crianças que só podiam ouvir e repetir o que dizia o alfabetizador. Face a estes factores, chegou-se à conclusão de que a alfabetização em LP dificulta o cumprimento das linhas gerais do SNE tanto dos princípios pedagógicos como dos objectivos formulados para o SEA (INDE, op. cit. pág. 146/62).

De acordo com Rungo (2004: 7), a necessidade da aprendizagem em LP está ligada à ideia de que o Portu-guês é uma língua franca, pelos seus benefícios socioeconómicos e por permitir uma aprendizagem contínua nas classes posteriores. Com isto, compreende-se que as LMs não são estimulantes porque as publicações são dominantemente em LP, mas na AEA a aprendizagem na língua que os alfabetizandos dominam tem largas vantagens psico-pedagógicas.

Após a declaração da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em 1951, vários argumentos foram considerados em torno das discussões sobre as línguas maioritárias e/ou minoritárias na educação. De entre eles, um sustenta o facto de, nos países do terceiro mundo, o ensinamento em línguas nativas poder ser visto como um melhor caminho para reintegrar grupos isolados, quer dizer, membros de cada grupo podem começar com a alfabetização inicial usando as suas línguas nativas (Appel & Muysken, op. cit. pág. 61/2). Também,

“A alfabetização é indispensável dado que ao saber ler e escrever constitui-se uma capacidade necessária em si mesma, sendo ainda o fundamento de outras habilidades vitais. A alfabeti-zação na L1 fortalece a identidade e a herança cultural. Outras necessidades podem ser satis-feitas mediante a capacitação técnica (UNESCO: Declaração Mundial sobre Educação para Todos, 1998, art.5.°)”.

Mário & Nandja (2005: 8/9) sublinham o facto de a grande maioria da população de origem bantu não do-minar a LP, que constitui, até então, a língua de ensino na maior parte dos centros de AEA no país, como um dos factores que contribui para a fraca participação e os elevados índices de desistência na alfabetização em Moçam-bique. É por isso que Gee (1990) apud Latifo (op. cit: 11) sustenta que o foco dos estudos sobre a alfabetização não se pode centrar na linguagem como tem acontecido tradicionalmente. Pelo contrário, a sua investigação deve estar centrada nas práticas sociais; é preciso olhar a língua (gem) como um elemento social, i. e., existem certos factores que determinam o seu funcionamento numa sociedade.

Repare-se que na Declaração de Hamburgo sobre a educação de adultos se incentivou que a alfabetização devia modelar a identidade do cidadão e dar um passo significativo à sua vida. O mesmo documento advoga que seja essencial que as abordagens de AEA estejam baseadas no património cultural, nos valores e nas experiencias

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de cada comunidade e que sejam implementadas de modo a facilitar e a estimular o engajamento activo e as ex-pressões dos cidadãos nas comunidades em que vivem (UNESCO, 1999. pág. 15/19). Por este motivo, propor uma política linguística que dê prioridades ao uso das LMs na alfabetização inicial69 seria uma forma de valorizar este património cultural moçambicano.

Na perspectiva de Robinson (1996: 117/23), a alfabetização na L1 no contexto mais alargado desempenha um papel crucial no estabelecimento de uma estratégia de desenvolvimento que coloca os povos nativos no centro de debate. Respeita a sua identidade cultural e permite-lhes fixar os seus próprios programas de desenvolvimen-to socioeconómico e cultural; mas a solução que facilita o desenvolvimento equilibrado dos grupos maioritários e/ou minoritários encontra-se na utilização da sua L1 na alfabetização e em outras formas de comunicação ou nos domínios em que são mais eficazes.

O ensino e aprendizagem em LP em Moçambique não favorece o desenvolvimento das competências que asseguram a melhoria da qualidade de ensino, pelo contrário, muitos professores não são falantes nativos do Português e o seu nível de competência nesta língua pode ser descrito como restrito (Lindonde, op. cit. pág. 214).

Em torno das políticas sobre a AEA, pode-se depreender que todos os autores enfatizam a necessidade de uma alfabetização na L1 do alfabetizando. As necessidades básicas do ensino e aprendizagem de adolescentes, jovens e adultos são diversas e, dependendo de cada comunidade linguística, devem ser atendidas mediante as variedades de sistemas (económico, social, cultural e político) vigentes.

4. As inconveniências relacionadas com o ensino e aprendizagem em LP na AEA: apresentação das experiências do Centro Social Flori e do Centro Comunitário Goal

Ao nível administrativo e organizacional, por um lado, o Centro Comunitário Goal possui 5 alfabetizado-res, distribuídos pelas 5 turmas, estando, até ao período do estudo, a funcionar, unicamente, com a turma de IIº nível, constituida por 30 alfabetizandos, maioritariamente mulheres domésticas e camponesas, falantes nativas do Xichangana. Porém, de entre elas, 1 era falante nativa de Echuwabo, 1 de Swahil, 1 de Cisena e 2 de Cinyanja. Por outro lado, o Centro Social Flori está estruturada em 3 áreas, nomeadamente: a primeira, ligada à informá-tica; a segunda, voltada a actividades socioculturais, que incluem artesanato, produção de tijolos e manteiga de amendoim para a venda; e, a última, que vela pelo processo de ensino e aprendizagem de adolescentes e adultos. O Centro Social Flori possui 7 salas de aulas, uma secretaria, uma sala de professores, um grupo constituído por monitores, alfabetizadores e assistentes. Com um total de 7 turmas, estas funcionam somente para o período diurno, divididas em duas para Iº nível, 3 para IIº nível e 2 também para IIIº nível.

Além da situação administrativa e organizacional apresentada, este ponto não só descreve as exeperiências relacionadas com o ensino67, exclusivamente feito em LP em ambos os Centros, como também faz a sua avalia-ção. Em relação ao Centro Social Flori, constatou-se que:

(i) Os alfabetizandos não dominam o Português, a língua de ensino. É uma língua que não corresponde efectivamente à sua vida quotidiana;

(ii) Foram verificadas frequentes ‘infelicidades discursivas’, tanto na fala como na escrita; (iii) Em termos didácticos, os alfabetizadores apresentavam uma metodologia ‘empobrecida’ durante a

mediação dos conteúdos e um fraco domínio dos mesmos; (iv) Os alfabetizandos, principalmente os do Iº nível, não conseguiam estabelecer uma comunicação efi-

caz na LP, sobretudo na formação de frases complexas, porém, sempre que o fizessem, recorriam, muitas das vezes, ao Xichangana.

69 A aprendizagem compreende a mudança de comportamento resultante da experiência, constitui uma resposta modificada estável, durável, interiorizada e consoli-dada no cérebro do indivíduo. A aprendizagem põe em jogo uma relação integrada entre o indivíduo e o seu meio, colocando uma relação inteligível entre condições externas e internas, (Fonseca, 1995. pág. 40).

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Ainda no Centro Social Flori, relativamente às aulas de Literacia no Iº nível, observou-se que o alfabetizador e os alfabetizandos se encontram na sala de aulas numa situação bastante crítica; a falta do livro do alfabetizando não só dificultava o processo de ensino e aprendizagem, mas também, em termos de conteúdos programáticos, o plano temático de Literacia não correspondia à realidade de indivíduos que se encontravam nos primeiros anos de contacto com o alfabeto e grafemas da LP.

Notou-se que a maior parte dos alfabetizandos do Iº e IIº níveis sabiam ler e interpretar pequenos textos em LP; não obstante, dos que apresentavam enormes dificuldades na compreensão e na interpretação desses textos, sempre que o alfabetizador alternava o código de comunicação para a língua local, eles, motivados por esta atitude, facilmente integravam-se na aula. Alguns alfabetizadores apresentavam uma ortografia ‘deficiente’ devido à influência da sua L1 e ao fraco domínio da língua de ensino.

Durante a assistência às aulas ficou claro que o uso da LP impunha certas limitações aos alfabetizadores, de tal forma que influenciava no aproveitamento pedagógico. É importante frisar que a língua é um factor funda-mental no processo de ensino e aprendizagem. De um modo geral, no Centro Social Flori, pode-se afirmar que a fragilidade na aprendizagem está essencialmente relacionada com a leitura e a redacção, como resultado do não conhecimento de grande parte do léxico da LP, mas foi possível notar que os alfabetizadores e os alfabetizandos são proficientes na sua L1 e, se esta língua constituísse meio de instrução nalguns níveis muitos problemas des-critos poderiam ser minimizados.

Devido à falta do livro do alfabetizando no Centro Comunitário Goal, o alfabetizador, com uma competên-cia linguística minimamente razoável na LP e nalgumas LMs, durante as suas aulas utilizava os manuais da 3ª Classe do SNE (p. e., Matemática e Português), ainda que sejam manuais apropriados para o ensino de crianças e/ou adolescentes e não para os adultos.

Diante da situação em que se encontrava a turma, em termos de métodos de ensino, o alfabetizador adopta-va a elaboração conjunta e a exposição individual. Ele percebia que havia, sim, uma necessidade de implementar, nas suas aulas, como línguas de recurso, as línguas locais. O alfabetizador não se identificava com a ideia segun-do a qual não se deveriam implementar as línguas locais. Ele sempre propunha a alternância de códigos (p. e., Echuwabo, Cinyanja, Swahili, Xichangana e Português) e, diante desta realidade, os alfabetizandos sentiam-se à vontade e expressavam-se perfeitamente na sua L1.

4.1. Interpretação do questionário

Foi adoptado o inquérito como técnica auxiliar durante a recolha de dados e, quanto ao diagnóstico relativo à atitude linguística dos alfabetizadores em relação ao ensino e aprendizagem em LMs, dos 36 questionários distribuídos aos alfabetizadores e aos alfabetizandos, todos mostravam-se a favor da implementação das LMs na alfabetização. Em resposta à questão A, tanto os alfabetizadores como os alfabetizandos responderam que não concordavam que o ensino e aprendizagem somente fosse feito em LP, sendo, para eles, necessária a introdução das LMs. No tocante às questões B e C, os inqueridos responderam que o processo de ensino e aprendizagem em LMs pode, sim, melhorar o aproveitamento pedagógico. Os alfabetizadores deixaram claro que a utilização das línguas moçambicanas na AEA facilitaria na mediação dos conteúdos e na assimilação da matéria.

Em relação à questão D, os alfabetizadores referiram que seria vantajosa uma alfabetização bilingue, ou seja, uso da LP, bem como das LMs, de tal modo que o alfabetizador leccione, socorrendo-se de ambas línguas. No que concerne à questão E, os alfabetizadores não concordaram que o ensino e aprendizagem priorizasse a es-crita em LP e apenas a oralidade em LMs, contudo, reforçaram a ideia de se optar por um modelo em que fossem implementadas as LMs e a LP como línguas de instrução em todos os níveis da AEA. Finalmente, respondendo à questão F, uma vez introduzidas as LMs nos programas de alfabetização, todos os inqueridos foram unânimes em afirmar que o governo estaria a contribuir para a sua valorização.

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4.2. Alfabetização em Xichangana: proposta de um modelo de ensino

Antes de se apresentar o modelo que se propõe para a AEA, importa fazer uma breve descrição do perfil da língua Xichangana70. Para Guthrie (1967: 70/1), o Xichangana71 pertence ao grupo 7, Zona S-53. Da descrição feita por Lopes (2004: 31) sobre as línguas com mais falantes em Moçambique até 2002, em termos numéricos, consta que o Xichangana é uma língua falada por cerca de 4. 622. 974 falantes em Moçambique. Há casos em que esta língua também é designada por Tsonga, mas neste contexto, tal como muitos autores o fazem, parte-se do pres-suposto de que o termo Tsonga abrange 3 línguas mutuamente inteligíveis: Xirhonga, Citshwa e Xichangana.

Demonstrou-se nos pontos anteriores que as LMs fazem parte da realidade social e cultural do povo mo-çambicano. Entretanto, conforme o estudo efectuado em ambos os Centros, notou-se que a maior parte dos alfabetizandos possui uma boa competência linguística ao nível da escrita e da oralidade em Xichangana. É neste sentido que no presente estudo se propõe as seguintes medidas:

a) A LP deve manter-se no Iº nível como disciplina para garantir a aprendizagem das noções básicas de oralidade, do alfabeto e da ortografia;

b) Deve incentivar-se principalmente a oralidade, a leitura e a escrita em Xichangana na disciplina de Xi-changana nos três níveis;

c) Deve manter-se a LP/Literacia como disciplina em todos os níveis, incentivando-se a aprendizagem das 4 habilidades, designadamente, escrita, leitura, oralidade e compreensão;

d) Na disciplina de Numeracia/Matemática, numa primeira fase enfatizar-se-ia o desenvolvimento rápido das capacidades de raciocínio em Xichangana e, numa segunda, a introdução de leitura, escrita e cálculo de números em LP;

e) A disciplina de Comunidade, a ser leccionada em Xichangana no IIIº nível, os seus conteúdos devem reflectir a realidade quotidiana, socioeconómica e cultural do alfabetizando.

Assim, o que ficou anteriormente exposto permite propor o seguinte plano:

70 De acordo com Sitoe & Ngunga (2000: 177), o Xichangana apresenta 5 variantes: Xihlangunu (falada a sudoeste do país, nos Montes Libombos, abrangendo parte dos distritos de Namaacha, Moamba e Magude); Xidzonga (falada nos distritos de Magude, Bilene e parte de Massingir); Xibila (falada no distrito de Limpopo e distrito de Chibuto); Xin’walungu (falada no distrito de Massingir) e Xihlengwe (falada nos distritos de Xai-Xai, Manjacaze, Chibuto, Guijá, Panda, Guijá, Govuro, Vilanculo e Chicualacuala).

71 Numa colectânea de ensaios sobre algumas experiências de desenvolvimento de ortografias de LM sublinha-se o facto de a ortografia de Xichangana estar bem desenvolvida, havendo inclusive muita literatura já publicada apesar de nem sempre respeitar as normas propostas pelo Iº Seminário da Ortografia de 1988 (Veloso, op. cit. pág. 25). O Xichangana constitui um dos grupos linguísticos mais amplos do ponto de vista numérico, correspondendo, de acordo com Lopes (op. cit. pág. 24), a 11.3% da população total de falantes no país e é amplamente falada na província e cidade de Maputo.

NIVEL DISCIPLINAS Iº NÍVEL (i) Língua Portuguesa/ Literacia I (ii) Matemática/Numeracia I (iii) Xichangana I IIº NÍVEL (i) Matemática/Numeracia II (ii) Língua Portuguesa/ Literacia II (iii) Xichangana II IIIº NÍVEL (i) Matemática/Numeracia III (ii) Língua Portuguesa/ Literacia III (iii) Comunidade (C. Sociais e C. Naturais) (iv) Xichangana III

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Neste modelo bilingue, o Xichangana co-ocorre com o Português como meio de instrução e como disci-plina nos três níveis. O alfabetizador pode ensinar, seja em Xichangana seja em LP, contudo, é necessário que este possua uma competência comunicativa nestas línguas, incentivando a leitura e interpretação de pequenos textos, a escrita livre e o sistema gráfico.

Em todos os níveis, o Xichangana, para além de desempenhar o papel de disciplina pode constituir língua de recurso nas disciplinas de LP e Numeracia. É um modelo que apresenta largas vantagens psico-didácticas, pe-dagógicas (i. e., o ensino é feito em Xichangana, uma língua que os alfabetizandos dominam) e socioculturais (a alfabetização surge como uma necessidade de aprendizagem relacionada com contexto social e cultural dos alfa-betizandos). Por isso, os planos temáticos devem espelhar a realidade sociocultural do alfabetizando, veiculando aspectos atinentes à sua comunidade. A identidade cultural de uma comunidade linguística pode ser promovida se todos forem educados na sua L1 e, para que o processo seja funcional, as políticas sobre a alfabetização devem atender às necessidades específicas de cada grupo étnico.

Reitera-se também o princípio de que a alfabetização numa língua conhecida é mais vantajosa e um bom caminho especificamente para comunidades camponesas do que numa L2 pouco conhecida, ainda que a LP funcione como um instrumento que lhes garante o enquadramento ao desenvolvimento social, económico e político do país.

Sendo implementado, é necessário que haja consciencialização de todos os indivíduos envolvidos na prá-tica educativa escolar, desde as instâncias governamentais (MINEDH, INDE, etc.) até à comunidade. Embora se reconheça a falta de manuais, dicionários e gramáticas para um ensino viável em línguas bantu, para que este modelo funcione adequada e eficientemente, é fundamental que os alfabetizadores sejam, no mínimo bilingues, com uma competência comunicativa reconhecível em ambas as línguas. Sendo implementado a médio e/ou longo prazos, seria um modelo apropriado rumo à valorização, estimulação e integração das LMs na educação. Por isso, os linguistas devem colaborar com as autoridades educacionais em actividades referentes à revisão de planos curriculares e temáticos, ao trabalho ortográfico das LMs, etc., para que se proporcione uma educação que aumente as oportunidades de acesso ao ensino básico através da L1 do alfabetizando.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo pretendia propor uma política linguística atinente ao ensino e aprendizagem em Xichangana na AEA através do estudo de dois casos, na cidade de Maputo, nomeadamente, o Centro Social Flori e o Centro Comunitário Goal. Através das abordagens de Bamgbose (1991) e Appel & Muysken (1987) foi possível propor uma política linguística para um modelo de ensino bilingue que consiste na alfabetização tanto em Xichangana como em LP.

Em função da situação da política linguística em Moçambique, o governo deveria dar passos positivos e significativos para garantir o uso das LMs em diversos sectores (i. e., no SNE, na alfabetização, nos serviços no-tariados, nas diversas instituições públicas, etc.) pelo facto de pertencerem ao grupo bantu e partilharem muitos traços linguísticos e padrões idênticos.

Uma melhor política para uma educação voltada ao desenvolvimento socioeconómico e cultural do país bem como das comunidades ‘não letradas’ teria de privilegiar a íntima relação entre língua e comunidade, olhan-do a língua como um sistema abstracto de códigos com uma realização factual dentro de uma comunidade específica.

A utilização da LP como disciplina e meio de instrução na alfabetização dificulta seriamente o alcance das vantagens psico-pedagógicas do alfabetizando, por isso devem ser traçadas e delimitadas acções e práticas linguísticas com vista à utilização do Xichangana e da LP como co-língua na AEA. O uso do Xichangana como língua auxiliar na compreensão dos conteúdos ou como meio de ensino na AEA constituiria uma ferramenta

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importante e um requisito fundamental para o desenvolvimento de uma educação que promove o direito da alfabetização na L1 do indivíduo e a redução dos problemas anteriormente apresentados.

Portanto, propor uma política linguística em que a alfabetização seja em Xichangana, constituiria, não só um passo significativo para a valorização desta língua e a sua integração na educação, como também promoveria uma educação fundamentada por factores linguísticos, sociais, culturais e não meramente políticos. É, obvia-mente, língua com uma forte dinâmica na vida cultural e social da população e, ao ser implementada, consti-tuindo L1 para a maior parte dos alfabetizandos, sentir-se-iam integrados na sua comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O JORNALISMO CIDADÃO EM MOÇAMBIQUE E NO KENYA: ANÁLISE COMPARATIVA DOS WEBSITES @VERDADE E OLHO

DO CIDADÃO & KENYA MONITOR E MZALENDO

MARCOLINO ALEXANDRE SITOE72 [email protected]

RESUMO

A existência de sinais de Jornalismo Cidadão motivou esta pesquisa, procurando compreender as estraté-gias usadas para a sua prática, ligadas à democratização dos povos, em Moçambique e no Kenya. Das análises feitas, constatou-se que uma das tipologias jornalísticas mais predominante na África austral relaciona-se com actos de denúncia de irregularidades protagonizadas por dirigentes sobre os povos, vivendo em comunidades bastante desfavorecidas. Os Websites analisados nesta pesquisa são os que reivindicam esta prática. E, no caso de Moçambique, temos o envolvimento de cidadãos comuns na recolha e difusão de notícias.

PALAVRAS-CHAVE : Jornalismo cidadão; Informação ; Opinião pública ; Usuário;

72 Mestrado em Ciências Humanas e Sociais, menção Informação e Comunicação, especialidade E-rédactionnel – à l�Université de Toulon (Ingémédia). Mestrado em Jornalismo e Estudos Editoriais Universidade Pedagógica. Licenciatura em Ensino de Português.

1. INTRODUÇÃO

Para a realização desta pesquisa foram selecionados os Websites Kenya Monitor e @Verdade por reivin-dicarem, ambos, a prática do Jornalismo Cidadão, em Moçambique, chamando o povo a efectuar denúncias de problemas decorrentes das suas comunidades.

Enquanto no @verdade temos uma rubrica criada para relatos dos cidadãos e espaços reservados para blo-guistas colunistas e de agregação de notícias doutros Médias, o Olho do Cidadão é na sua totalidade usado para relatos de usuários comuns (activistas ou não) e bloguistas, a partir da plataforma txeka-lá. Uma plataforma que se encontra actualmente virada para acções de cidadania (saneamento do meio ambiente e empreendedorismo). Os seus membros encontram-se filiados a novos grupos cívicos como é o caso do Sekelekane, fazendo as mesmas actividades de vigilância das irregularidades e práticas que afectam as populações das comunidades mais pobres e desfavorecidas.

Eles interessam-se mais por locais onde há movimentações populares para permitir a exploração dos recur-sos minerais. Os seus trabalhos são feitos por grupos colaboradores, distribuídos em pares pelas comunidades do centro e norte de Moçambique. A sua tarefa é de oferecer material de recolha de informações a estes membros (smart phones) e formá-los, dando-lhes conhecimentos básicos da prática jornalística.

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Em relação aos Websites kenyanos, duas razões são evidenciadas. O Kenya Monitor, explicitamente, re-clama a prática do Jornalismo Cidadão e chama à participação de todos os cidadãos bloguistas na produção de conteúdos. O Kenya Monitor, desde a sua fundação em 2010 mostra-se consistente nas suas actividades, tal como acontece com mzalendo.com. Um Website que contrariamente aos acima descritos, a incitação de acções de ci-dadania e patriotismo não é feita pela participação activa dos cidadãos na produção de notícias, embora tenham isto em vista (a criação de espaços de interação e participação activa dos usuários).

O Mzalendo é composto por um grupo de activistas que procura recolher, tratar e disseminar as informa-ções que julga importantes para o conhecimento da população. Eles são o garante de acesso à informação sem que precisamente seja o usuário a produzi-la.

2. Análise da forma e de conteúdo: As ferramentas de interacção no Website @Verdade

“Uma sociedade cujos Médias promovem a pluralidade das informações tem um espaço públi-co mais alargado, com discussões activas e uma democratização maior e aberta às necessida-des e às tendências de todos os cidadãos (…) os Média as tenderão a aprofundar a democracia e a cidadania através de conteúdos veiculados – a denúncia do desrespeito”. (FERIN, 2011)

De acordo com a citação acima, os usuários como membros da sociedade são chamados a produzir suas pró-prias informações, relatando factos e situações dignas de relatos. O povo define o assunto sobre o qual pretende falar e o momento em que ele que ler ou (se) informar aos outros. factos ou relatos não fogem muito dos eventos do seu dia-a-dia. Eventos que por vezes não têm espaço nas pautas editoriais dos grandes Médias tradicionais.

Para além, é notável, a partir das análises aqui feitas que esta prática toma diferentes características ou tipologias deste mesmo Jornalismo Cidadão. Isto deve-se ao facto de decorrer em contextos diferentes e com es-pecificidades sociopolíticas e culturais típicas. As análises olham as ferramentas e o conteúdo que caracterizam a prática do Jornalismo Cidadão em Moçambique e no Kenya, com o objectivo de entender as estratégias usadas para pôr o anterior cidadão comum a comparticipar da produção de conteúdos, trazendo informações “suple-mentares” aos grandes Médias. Para o efeito, considere-se, então a seguinte figura:

O Website a @verdade apresenta na sua página “d’accueil73” as suas pretensões e a forma como quer que as informações sejam produzidas.

“Cidadão repórter: Denuncie problemas da sua rua, bairro ou cidade por sms para 90440. Este é o espaço democrático onde você pode fazer uma denúncia e exercer a sua cidadania”.

73 Do Francês, acolhimento

Figura I. ��w}ÕÀ>XK�Ê`>Ê«�>Ì>v�À�>ÊÕÃ�>��`�ÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

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As denúncias podem ainda ser enviadas por Tweeter com o #cidadaoreporter, por e-mail ou por preenchi-mento de uma ficha. A seguir a estas informações é apresentado um espaço de envio ou submissão de novos re-latos – denúncias. Este espaço da plataforma apresenta uma estrutura de organização de tais relatos de tal forma que facilite a compreensão por parte da redação.

É necessário que o usuário, cidadão repórter coloque o título, primeiro e depois faça a descrição. É a descri-ção que funciona como informação.

Figura II.Ê,i�>Ì�ÃÊiÊ>ÊV>ÀÌ>Ê}i�}À?wV>ÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

É necessário que o usuário, cidadão repórter coloque o título, primeiro e depois faça a descrição. É a descri-ção que funciona como informação.

Do lado direito está uma carta geográfica de localização. Para o cidadão, basta carregar do menu a indicação da localidade que o mapa irá de imediato o situar. E, algumas das recomendações dadas pela redação é que os cidadãos devem ser (i) realistas; (ii) andar sempre com um bloco de anotações, telemóvel e máquina fotográfica, (iii) ser objectivo e (iv) não inventar os factos.

Entende-se, a partir destas informações, que não se trata de cidadãos colaboradores, previamente sele-cionados. Eles são cidadãos ordinários/comuns que, andando pela rua e tendo um destes dispositivos, relatem quaisquer incidências. O único apelo feito é à responsabilidade do novo repórter. Deve observar alguns princí-pios básicos de redação – a verosimilhança entre o que ele relata e os factos e a objectividade, i.e., ele pode optar por produzir um texto de opinião. O que não faz muito sentido se, se pensar que o envolvimento do cidadão co-mum veio dar, também, vasão a este problema de redução de pessoal profissional assalariado de modo a reduzir os custos. O texto e a carta de localização não se bastam.

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74 Do Francês, carregar ou descarregar 75 http://youtu.be/2uXIPLsH5-4

O @Verdade, junto à plataforma cria uma rubrica para o carregamento de vídeos. E, olhando o lado direito da figura vemos um vídeo relatando a visita presidencial de Filipe Nyusi à Ressano Garcia. O vídeo é feito por um cidadão daquele posto administrativo, pertencente ao distrito de Moamba. O repórter amador, envia um vídeo não editado, contendo ruído e ao mesmo tempo diz “o Nyusi já chegou”. No vídeo, ele focaliza as imagens dos helicópteros. A reportagem está ligada a um acto de denúncia porque Filipe Nyusi tinha garantido ao povo moçambicano, que iria “reduzir ou evitar” o recurso a esses meios para a circulação interna. E tratando-se de um distrito vizinho ter-se-ia optado pela via terrestre, num momento em que Moçambique se encontra em crise.

O @Verdade coloca, na sua página, uma rubrica de interação não em tempo real, i.e., com recurso a mensa-gens por e-mail ou por Whatsapp. Neste campo, o cidadão que não pretende fazer denúncias, pode então colocar as suas preocupações relacionadas com a saúde reprodutiva.

Figura III.Ê*À�`ÕXK�Ê�Õ�Ì��j`�>Ê`iÊÀi�>Ì�ÃÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

Esta situação é assim ultrapassada com recurso aos elementos multimédias de abordagem de conteúdos, derivados do que acima descrevemos como sendo ganhos do web 2.0. Com os avanços informáticos e tecnológi-cos, os cidadãos são chamados a “télécharger74” as suas informações contendo som, imagens, relatos e vídeo75, como se pode ver na figura abaixo:

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Uma outra prática de jornalismo cidadão adoptada pelo @verdade tem que ver com a criação de fóruns e espaços para colunistas, como se observa:

Do lado direito, temos no @Verdade informações importadas do link www.dw.com. O objectivo da colo-cação deste espaço é de permitir que jornalistas Freelance que produzem informações para esta agência Alemã, também vejam publicadas e lidas as suas notícias por leitores fãs ou que pertencem à mesma comunidade leitora do @Verdade e garantir a diversidade de informações nas suas páginas. Assim, o @Verdade tem garantidas as informações sejam do mundo sejam do país. Eles funcionam como colaboradores deste Website.

As ferramentas usadas para relatos e denúncias são acompanhadas de uma carta geográfica funcional. Tal é usada para situar os eventos relatados pelos cidadãos repórteres não profissionais, visto que as suas publicações carecem de verificação antes da publicação. As suas publicações partem e ou devem-se relacionar com as catego-rias previamente definidas e a indicação da cidade ou comunidade, para uma localização automática.

2.1. As temáticas de denúncia no @verdade

Para analisarmos o conteúdo produzido pelos usuários, tomemos alguns casos explícitos das sequências discursivas abaixo:

“SD1@V – No distrito de Meconta-província de Nampula em Moçambique, xcola secundária de Namialo, os professores, não recebem suas horas extras há 1 ano e um mês e saindo algum colectivo d xcola a direção provincial das finanças, dizem terem pago os ordenados e por sua vez o director distrital dizia que não houve nenhum despacho e neste momento estão parali-sadas as aulas!”“SD2@V – Estou num fematro que sai da baixa para Albazine, o motorista acelera demais toda gente que se encontra aqui está reclamando (escesso velocidade) em Maputo”.“SD3@V – No mercado 25 de junho, a casa d banho esta diqualquer maneira fezes (cocó) es-fora, mao cheiro, que nem da p entrar+devemos entrar pork ñ a outra, enquanto paga-mos é ñ vai ao conselho municipal, vai p um sidadão qualquer k ñ toma conta”.

Figura IV.Ê��ÌiÀ>XK�]ÊV��>L�À>XK�ÊiÊv�ÀÕ�ÃÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

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Aqui, a narração deste facto é feita na 3ª pessoa gramatical e com recurso a formas que retiram o envolvi-mento do sujeito denunciante, como o exemplo de “dizem terem”. Trata-se de formas gramaticalmente incorrec-tas, mas características de repórteres de baixo nível de escolaridade. Estes são os colaboradores das comunidades que garantem a recolha e envio de informações para a redação. Esta narração assemelha-se à ilustrada na figura acima. A redação, recebendo as informações, verifica e incorpora-as no seu repertório, cunhando-as da sua responsabilidade, i.e., as marcas da 3ª pessoa implicam o reconhecimento e a partilha de responsabilidade pelo conteúdo publicado.

No entanto, o mesmo, não podemos dizer nas sequências discursivas SD2@V e SD3@V. No SD2@V, temos uma denúncia decorrente de uma experiência, em que o cidadão está envolvido. Ele começa o seu relato dizendo “…estou num fematro que sai da Baixa a Albazine…” Isto denota que não se trata de nenhum acto premeditado ou que ele estivesse ao serviço de algum Média ou grupo com intenções de reportar, como colaborador. O cidadão depara-se com uma situação neste local e no momento exacto efectua a denúncia.

Na construção textual, encontramos formas descuidadas e típicas da velocidade da escrita ou de uma escri-ta informal “xcola; escesso”. Estas formas não anulam a acção de denúncia, mas sim aparecem como marca deste tipo de jornalismo, como vemos ainda na SD3@V.

As mensagens não são bastantemente elaboradas. São curtas, concisas e objectivas, contendo frases sim-ples e com uma mensagem de fácil compreensão. Existem marcas da presença do cidadão no local e de que a sua narração é feita no exacto momento: “a casa de banho esta diqualquer maneira…”. O cidadão repórter, com a necessidade de usar o sanitário, depara-se com esta situação e de imediato efctua a denúncia. Indignado, aponta a corrupção e o desleixo do conselho municipal como factores da inoperacionalidade do colectivo no que cerne ao saneamento do meio.

O texto é totalmente oral e ele socorre-se de expressões populares para enfatizar a gravidade da situação: a palavra “cocó” é usada para reforçar a condição nojenta na qual a casa de banho se encontra. As abreviações, ligações de palavras, formas orais, palavras não acentuadas, o recurso a sinais são prova da velocidade de escrita do cidadão repórter. Elementos característicos e que criam rupturas entre os anteriores paradigmas de produ-ção jornalística e os novos, envolvendo o cidadão comum. Para ele, basta um celular e um sms para relatar ou denunciar casos que enfermam a sociedade. Refira-se que as estórias reportadas/relatadas dificilmente teriam a cobertura dos Médias tradicionais/clássicos devido a vários factores, dos quais o contexto de sua ocorrência.

Figura V. �i�Ö�V�>Ê`iÊÕ�ÊV��Õ��ÃÌ>ÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

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Precisávamos de ter jornalistas viajando de um ponto ao outro; jornalistas frequentando bairros recônditos, passando tardes e dias naqueles locais para experienciar casos de género. O que “não é possível” devido também a vários factores, como o caso de exiguidade de profissionais.As descrições acima feitas mostram as modalidades de participação do cidadão comum, na recolha, relato, denúncia e publicação de informações com valores adi-cionais, por um lado e tornando estes Médias fontes alternativas de acesso à informação, por outro. E, fazendo desta forma, o povo vê os problemas de suas comunidades relatadas e publicados nos Médias. Facto que incen-tiva cada vez mais a sua participação na recolha e publicação como forma de pressionar o governo a mudar e melhorar a sua forma de actuação em tais municípios e comunidades/distritos.

E, para contrastar, consideremos a figura. Trata-se de uma denúncia feita por um colunista, académico e universitário. Ele relata/denuncia um acto ilícito decorrente da Universidade Católica de Moçambique, em comparação com a Universidade Pedagógica, também de Moçambique. Na sua abordagem está clara a sua po-sição de cidadão comum, repórter ou relator amador que, dispondo de um blogue, trabalha como colaborador deste Website, narrando situações que dificilmente seriam reportadas nas pautas da imprensa. Exemplo disso é a informação avançada por si, segundo a qual a qualidade de ensino nesta instituição é baixa pelo facto de as monografias científicas serem encomendadas e não realizadas pelos próprios estudantes, por um lado e pelo facto de o Ensino à Distância durar quatro anos.

Estas informações são de seguida partilhadas por qualquer um pelas redes sociais. O objectivo é de criar um espaço público onde o debate não é censurado. Um debate sobre rubricas “menos importantes” para as redações dos grandes e Médias tradicionais, mas que mexem com as comunidades. Assim, cria-se a opinião pública, capaz de levar a direção e o governo a tomar medidas de averiguação.

3. A interação e a participação de usuários no Website Kenya Monitor

Para analisar as ferramentas de interação e a participação de usuários (a produção de conteúdo/envio de estórias), é importante recordar que este Website se intitula praticante do jornalismo cidadão, ao afirmar que Kenya Monitor is citizen journalism website, a Project by Bloggers Association of Kenya (BAKE) whose aims is to report on important stories from all the counties in Kenya throuth using of bloggers and other online content creators.

Por conta disto, pretendemos demonstrar a praticidade desta actividade, neste Website e no Mzalendo, como contraposição das práticas desenvolvidas em Moçambique, então descritas também neste capítulo.

Este facto deve-se à fraca cobertura de assuntos de interesse humano, segundo informações constantes de suas páginas. O objectivo é de capturar os eventos tal como eles sucedem, usando telefones móveis para carregar informações contendo imagens, fotos e vídeos. De facto, na sua página de acolhimento, lê-se: “Are you blogger? Joint our community today!”

E, na nossa abordagem iremos adoptar uma estratégia mixite, fazendo um melange de análises do conteúdo e seguida da forma devido às características deste Website. Assim, considere-se a figura a seguir:

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Figura VI°Ê>�«�Ê`iÊV��i�Ì?À��ÃÊ��Ê��ÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

A figura apresenta um Menu, contendo pequenas rubricas nas quais os artigos são enquadrados. Trata-se de artigos enviados por jornalistas Freelance pois o Kenya Monitor trabalha somente com indivíduos formados em jornalismo, i.e., profissionais e indivíduos com conhecimentos básicos da actividade jornalística, dirigindo blogues pessoais.

A seguir ao Menu temos dois artigos, integrados na rubrica sobre a governação, escrito pelos bloguistas James Wakibia e George Githinji.

O Kenya Monitor apresenta uma estrutura compositiva dos Médias tradicionais Online, sendo os seus arti-gos produzidos, publicados e encurtados nas características da escrita jornalística Online Standard, usada para perfilar ou arrumar as informações “read more...” Estes artigos são ainda seguidos de um espaço para comentá-rios e links, como se constata abaixo:

Figura VII. ��«�Ê`iÊV��i�Ì?À��ÃÊ��Ê��ÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

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Como se pode observar, cada artigo publicado é seguido de um espaço para comentários. Tais comentários são livres para qualquer usuário. O que significa que a população leitora é a fonte de informação para este We-bsite. Os cidadãos bloguistas, fora dos comentários, dispõem de um campo de submissão do link, conducente ao seu website. Este link pode também funcionar como fonte de informação. Todavia, é importante sublinhar que estas informações não são directamente publicadas. Existe uma equipe de editores que, não censurando as informações, reedita-as e autoriza a sua publicação.

O objectivo destes espaços é de desenvolver debates entre os usuários sobre o dia-a-dia. Com estes debates, cria-se a opinião pública. As pessoas têm a possibilidade de expor os seus sentimentos sobre determinadas irre-gularidades praticadas seja pelo governo seja pelos dirigentes.

Contudo, fora das discussões feitas sobre determinados posts feitos pela redação, nas páginas principais, uma outra estratégia de incitação de debates tem sido de iniciativa própria dos usuários. Eles anexam nos cam-pos de comentários, não identificados, informações de outros Médias.

3.1. A participação de bloguistas e usuários na causa pública

Tal como fizemos menção acima, os bloguistas e académicos ou indivíduos com o mínimo de formação em jornalismo é que são a fonte de informação do Kenya Monitor. Sendo que os usuários ou cidadãos comuns aparecem para tecer comentários sobre determinados actos publicados nas suas páginas. Assim, observemos os excertos abaixo:

Run away corruption is increasing poverty in KenyaSD1KM – By James Wakibia corruption remains one of kenyan’s biggest threat to develop-ment. Every successive year, Transparency International lists our beloved nation amongst the most corrupt nations on the face of the earth. It’s not something to be proud of… Read more…

Why Senate should not be scrapped SD2KM – By George Githinji The function of the Senate are largely related to the counties and laws that touch on the counties. Still, despite the Senate having a lesser legislative portfolio than the National Assembly, it has a crucial role to play in the sphere of politics and governan-ce and the end of it to be scrapped are mere dog barks… Read more

SD3KM – By Kioko wa Kivandi For years, now Kenya has been holding discussions about the formation of a special division within the High Court with a local mandate judicial over crimes… On the night that Nkuru, veteran politician, Mark Mwithaga breathed is last, no one may have taken notice of how significant that night was… Somehow, he has been insignificant and were it not for journalists who looked for him for his comment on the making of post-co-lonial Kenya…

Olhando as três sequências discursivas acima extraídas das páginas do Website Kenya Monitor, em após pesquisas sobre as redes sociais, constatamos que estes artigos são produzidos por jornalistas e académicos formados e que tenham trabalhado nas áreas de comunicação. São actualmente bloguistas que trabalham como jornalistas Freelance, colaboradores do Kenya Monitor. Refira-se que uma das diferenças existente entre o Kenya Monitor e os Websites moçambicanos tem que ver com os pagamentos dos seus membros. O que quer dizer que enquanto em Moçambique os trabalhos de recolha e publicação de informações sobre os Websites não são pagos, o Kenya Monitor paga os editores e aos seus colaboradores oferece alguns subsídios.

Esta atitude é bastante importante para estas pequenas empresas mediáticas digitais, pois permite que os seus colaboradores bloguistas tenham no mínimo um budget para a compra de internet e alimentar constante-

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mente as suas páginas. Tal evita também que os seus membros se desintegrem, como acontece com frequência com o Olho do Cidadão.

O Kenya Monitor, na ausência de parcerias com instituições não-governamentais, desenvolve actividades de rentabilização do projecto e ganha receitas mensais, usadas para pagamento de salários e subsídios.

Ora, retomando as nossas análises vemos que no SD1KM discute a questão da corrupção no país. A partir do seu blogue, James efectua uma reflexão sobre a situação do país e a visão que o mundo tem sobre esta nação, até mesmo o sentimento que os concidadãos têm sobre esta prática. James, citando a Transparency Interna-tional, uma agência responsável pela medição do índice de corrupção no mundo, mostra que o seu país está a ocupar posições preocupantes. E como resultado, ninguém se orgulha por isso.

Na segunda sequência discursiva SD2KM, George discute o papel do Senado no parlamento, em relação aos municípios. Na sua reflexão, publicada nas páginas do Website, ele aponta o Senado como inoperacional e que devia ser destituído. O Senado, sendo um órgão que por excelência se devia relacionar com os municípios e discutir as leis de desenvolvimento dos seus munícipes, nada faz na Assembleia.

Enquanto na terceira sequência discursiva SD3KM, Kioko discute a questão da formação da divisão espe-cial dentro do Alto Tribunal. Para ele, apesar de ter sido tarde, o Governo deu-se o tempo de discutir estes as-pectos. Portanto, relacionado a isto estão os problemas ligados aos mandatos judiciários sobre os crimes locais.

Esta reflexão de Kioko surge após a morte de Mark Mwithaga, o comentarista, não tendo sido reportada nem seguida pelos grandes e Médias tradicionais. Para ele existe um olhar menosprezador por parte destes e, pretende incitar um debate e criação de uma opinião pública sobre tal inoperacionalidade do tribunal sobre os municípios. Na estruturação do seu texto, Kioko opta por hyperconexões, destacadas a vermelho ou sublinha-dos. Tais conduzem a outros artigos precedentes que permitem o acompanhamento e o conhecimento do his-tórico sobre este alvo. São práticas típicas de redação digitais, o que denota um “grande nível” de conhecimento das regras de escrita por parte do bloguista.

Para concluir estas análises, digamos que o conteúdo existente no Kenya Monitor tem origem nos bloguis-tas. Tais bloguistas têm um alto nível de formação académica, nas áreas de comunicações e com larga experiên-cia. Eles trabalham, actualmente como jornalistas bloguistas freelance militantes. Esta constatação resulta das abordagens feitas nos excertos acima, tudo indicando que se dedicam mais a aspectos políticos, criticando as acções dos dirigentes e do governo, sobre as comunidades mais pobres e desfavorecidas. Eles trabalham como advogados do povo, informando-o ainda sobre as acções decorrentes do país e as percepções conjunturais que se tem sobre o Kenya. Os seus textos são complexos e com marcas de um jornalismo profissional, com citações e indicação de fontes feitos rigorosamente, como se pode ler nas páginas da Kenya Monitor.

4. Mzalendo: o acesso unidirecional da informação

Uma última abordagem é proposta, analisando a actual prática de jornalismo cidadão no Website Mzalen-do, criado em 2005, no Kenya. O seu objectivo era mesmo de fiscalizar as acções e atitudes dos parlamentares, em relação ao povo. Um Website que se tinha determinado como Média alternativo aos clássicos e tradicionais Médias filiados e cuidando dos interesses dos dirigentes e do Governo. Os jornalistas tinham então sido aliena-dos e convidados para deputados parlamentardes, em nome da política.

Com o slogan “Keep na eye on the Kenyan parliament”, Mzalendo propõe-se a praticar acção de democra-tização popular e de cidadania, servindo de Média repositório de informações disponíveis no país. Isto porque em 2010, o Governo compromete-se a passar o poder soberano ao povo, conforme se pode ler na figura a seguir:

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Figura VIII.Ê�â>�i�`�ÊiÊ�Ê>ViÃÃ�ÊDÊ��v�À�>XK�ÆÊv��Ìi\Ê�Ê«iõÕ�Ã>`�À

Especificamente, este Website funciona como povo e em nome do povo, não como SER individual. As suas acções são desenvolvidas em nome do povo. Para eles o mais importante das organizações é a existência de um órgão que zela pelas acções dos Senadores e da Assembleia Nacional.

Sobre a estrutura do Mzalendo, constata-se a inexistência de espaços de interação e participação dos usuá-rios de igual medida que descrevemos e demonstramos nas análises feitas nos Websites precedentes. Porém, conscientes desta fragilidade, comprometem-se a criar tais espaços, i.e., propõem-se a disponibilizar espaços e condições para a partilha de informações, alargamento da rede,

engajamento dos usuários e fóruns para debates. O que significa que, considerando-se a voz do povo e ci-dadãos activistas e militantes da causa do povo, são os próprios bloguistas que efectuam a recolha, tratamento e publicação de artigos sobre os aspectos políticos intrinsecamente relacionados com os parlamentares.

Queremos com isto dizer que até ao momento não estão abertos para receber contribuições de cidadãos comuns não membros da Associação e não bloguistas, como se vê na figura abaixo:

Todos os artigos dos blogues são assinados pela redação/equipa de bloguistas. São desta forma disponibi-lizadas todas as informações concernentes às decisões parlamentares e do governo. Pelo que o acesso à informa-ção, garantido por este Website, é ainda unilateral, i.e., não implica de nenhuma forma a participação activa na produção e envio de estórias/informações pelo cidadão comum, não profissional de comunicação/jornalismo.

Mas, se vimos dizendo que existem várias estratégias de envolver o usuário, nas suas redações, o Mzalendo criou então espaços para debates por meio de comentários de informações por eles publicadas.

A transmissão de informações não é mais unilateral, facto que dificulta a sua validação institucional. « A qualidade das informações é definida pelo critério de quantidade » (Morelli, 2009). Este pensamento vem dar vasão à grande discussão que emerge no seio dos profissionais e que nós também retomamos – a questão de critérios de qualidade. Uma questão que com o surgimento de novos paradigmas é renovada, sendo que esta qualidade se baseia nos elementos multimédias associados como um todo de produção de informações. É isto que a autora chama de critério de quantidade. Quanto maior for o número de informações (detalhes) a respeito do mesmo assunto, então temos segura a qualidade. “A ideia de que o jornalismo cidadão não oferece segurança é falaciosa” (Joyce, 2007). Observe-se o seguinte quadro-resumo:

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Figura XI. Quadro resumo e de relação entre os Websites

5. CONCLUSÕES

Como pôdemos demonstrar, As ferramentas mais privilegiadas permitem o envio de artigos vindos de blogues individuais dos usuários, reportando casos de irregularidades e instigando reflexões/debates. Importa salientar que participam dos fóruns somente os indivíduos inscritos como membros. E tais fóruns, iguais aos blogues, funcionam como fontes de informação para os grandes Médias tradicionais – um jornalismo cidadão colaborativo não institucional.

Constatamos que os Websites praticantes do Jornalismo Cidadão agregam informações vindas de outros Médias, por meio de links. O objectivo desta prática é de garantir a diversidade e o acesso à informação; permitir que sirvam de fontes de consulta, construindo uma comunidade leitora assídua devido ao tipo de abordagens. Com isto queremos sustentar a ideia de que estes Websites são fontes alternativas de acesso à informação.

Portanto, para os Websites moçambicanos, os relatos vindos de cidadãos repórteres não activistas, i.e., cidadãos comuns/ordinários carecem de verificação por parte da redação/editores. Tal é feita com recurso a uma carta geográfica (mapa) que ajuda na localização do relator e dos eventos, por consequência.

Em relação aos relatos enviados por cidadãos comuns, sublinhe-se o predomínio de marcas de oralidade, subjectividade e da velocidade escrita. Tais marcas traduzem-se em frases simples, curtas e com uma estrutura textual menos rígida. Há ausência de acentos, usa-se calões, faz-se abreviações, há fraca coesão textual. Estas marcas são frequentes em Moçambique, onde encontramos maior participação de cidadãos comuns, não forma-dos em Jornalismo ou que pouco sabem de que os relatos por eles enviados constituem um acto de jornalismo. São cidadãos que, experienciando determinadas realidades, fazem denúncias instantâneas. Facto que se difere um pouco do Kenya, embora seja também um jornalismo de denúncia. No Kenya encontramos construções mais complexas e com uma estrutura textual também complexa devido ao forte envolvimento de jornalistas Freelan-ce, bloguistas e académicos, frequentando o Ensino Superior em comunicação. Neste país as denúncias são feitas por bloguistas militantes, advogados do povo em certas matérias com o objectivo de levar o povo a debates, por meio de comentários.

@Verdade Olho do cidadão Kenya monitor Mzalendo

Edição de informações

Zonas de atuação

Interação

Plataforma

Dispositivos usados

Baseado em denúnciasActivistas, jornalistas Freelance, cidadãos não profissionais, cidadãos comuns; grandes Médias

Tipo de Jornalismo

Fontes de informação

Reeditadas e não reeditadas

Zonas rurais e distritos

Comentários, sms, e-mail e Livechats

Ushahidi

Sms, relatos, tweets e agregados

Activistas bloguistas, cidadãos não profissio-nais, cidadãos comuns; grandes Médias

Não reeditadas

Zonas urbanas e rurais

Comentários, sms, e-mail

Ushahidi

Sms, relatos e tweets

Jornalistas Freelance, cidadãos comuns, Aca-démico de Comunicação; grandes Médias

Não reeditadas

Zonas urbanas e municipais

Comentários, fóruns e Livechats

Hivos

Blogues, relatos (vídeos) e tweets

Activistas bloguistas, cidadãos comuns

Editadas

Zonas municipais

Comentários

Hivos

Blogues, tweets

Baseado em denúncias Baseado em denúncias Denúncias

Websites

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6. BIBLIOGRAFIA

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DINAMISMO CULTURAL NA PRÁTICA DE KUTCHINGA EM CHIDENGUELE SEDE, 2000-2016

RAFAEL H. MADIME76

[email protected]

RESUMO

O presente artigo faz uma abordagem do “Dinamismo Cultural na Prática de Kutchinga em Chidenguele Sede, 2000-2016”. O mesmo analisa as alterações havidas na prática de Kutchinga na comunidade chopi de Chi-denguele-Sede, como resultado da mutação cultural. A pesquisa foi desenvolvida com recurso ao método etno-gráfico, auxiliado pela pesquisa bibliográfica e pelas técnicas de entrevista no espaço de estudo. Os resultados desta mostram que a prática de Kutchinga, purificação na comunidade chopi de Chidenguele-Sede, tem sofrido várias transformações em virtude da educação, aderência ou filiação a certas religiões, casamentos entre indi-víduos com costumes e origens diferentes, assim como da aliança entre Autoridades Comunitárias, Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique, Governo Local e medicina legal. Em algum momento elas significam perda de certos valores assimilados há longo tempo e, ignoram-se as consequências da perda dos mesmos.

PALAVRAS-CHAVE: Kutchinga; Comunidade; Cultura; Ritual; Transformações.

Relação entre o órgão local do Estado e as Autoridades Tradicionais

O órgão local do Estado, neste caso a localidade de Chidenguele-Sede, tem colaborado com as Autoridades Tradicionais em vários aspectos para o bem-estar social das comunidades, observando a legislação vigente, como o Decreto 15/2000 e Lei 08/2003, que sustenta que deve haver articulação entre os poderes formais, tradicionais e comunitários, preconizando, também, que deve haver coordenação nos aspectos que respeitam a paz, justiça e harmonia social; recenseamento e registo da população, educação cívica e elevação do espírito patriótico, uso e aproveitamento de terra, entre outros (CP, 201577).

A relação destas duas formas de poder nota-se, igualmente, na disseminação de várias informações do Es-tado que se mostram necessárias para o conhecimento e acção das comunidades locais. São ainda as Autoridades Tradicionais que garantem a protecção das comunidades nas diferentes enfermidades, evocando por essa via os espíritos dos antepassados, mesmo no que respeita à preparação prévia e purificação dos espaços necessários para erguer infra-estruturas que visam dar resposta às preocupações sociais: escolas, hospitais, bombas de com-bustíveis e nalgumas vezes até instâncias turísticas. Portanto, verifica-se aqui um grande papel das Autoridades Tradicionais, de tal sorte que há uma reciprocidade no prosseguimento das suas acções com a localidade que representa o Estado.

76 Mestrado em Ciências Políticas e Estudos Africanos e Licenciado em Ensino de História. Docente de História de África e Ciência Política.77 Chefe da Localidade de Chidenguele Sede, em entrevista concedida no dia 04/07/2015

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Dinamismo Cultural e Prática de Kutchinga em Chidenguele Sede, 2000-2016

Comunidade chopi e suas Características Socioantropológicas

A estadia do pesquisar no campo possibilitou notar que a comunidade de Chidenguele-Sede é composta por falantes de língua chopi (chichopi). Porém, existem traços de changana já que faz fronteira com o Distrito de Xai-Xai, onde se fala changana. Outra razão que se presume concorrer para alguma influência da língua changa-na é o intercâmbio que se tem verificado nos âmbitos sociocultural e económico, com destaque para casamentos, busca de mercado de trabalho e comércio.

A comunidade está maioritariamente organizada em grandes famílias, ou melhor, em famílias alargadas. O que dá a entender que após o casamento, os pais admitem a coabitação com os seus filhos, noras e netos. Alguns filhos casados optam em construir nas redondezas das casas dos pais ou mesmo na vizinhança, o que mantém as relações sociais de famílias alargadas. Outrossim, várias são as situações em que as famílias são menos alarga-das pois, por ocasião de casamento e sinal de crescimento, os filhos procuram suas próprias casas, permitindo o alargamento do espaço residencial.

Das várias práticas existentes na comunidade, importa referir que no plano sociocultural, os chopi veneram espíritos dos antepassados através da prática de kuphalha (invocação aos espíritos dos antepassados). Esta práti-ca é comum nos cristãos católicos e anglicanos. Os que professam a Igreja Assembleia de Deus, Velho Apóstolo, Nazareno, Zione, entre outras religiões menos comuns, alegam não venerarem os antepassados. Quanto às ac-tividades económicas, dedicam-se, na sua maioria, à agricultura, pesca artesanal (favorecida pela existência de algumas lagoas), comércio e artesanato.

No que concerne ao aspecto cultural, percebe-se que muitos habitantes adoram várias divindades. Um as-pecto importante é que as diferentes religiões não dividem os habitantes da comunidade, não têm sido motivo de perturbação, antes pelo contrário, nota-se o ecumenismo entre muitas dela.

Contexto da Prática de Kutchinga

Desde o passado pré-colonial até aos dias actuais, a mulher foi sempre regida por uma série de valores que a colocaram numa posição subalterna em relação ao homem. Embora a desigualdade de género favorecendo aos homens tenha sido vivida em vários contextos culturais, nota-se que no período em análise, esta realidade tende a mutações e, por conseguinte, a reconsideração da mulher (Sambo, 2007, p.119). Na iniciação feminina, as donzelas foram sempre motivadas de modo a servirem ao homem em vários aspectos, desde a prática sexual, a culinária, ao cuidado pelas crianças. Este costume persiste até hoje, com frequência nas zonas rurais.

A poligamia é outro aspecto que figura no contexto cultural moçambicano, onde as mulheres, no meio rural, são socializadas para tolerarem a prática, a qual tem contribuído para a propagação do vírus do HIV, vi-timando as mulheres desprovidas do poder de negociação com o homem, sujeitando-se a riscos para a saúde, facto associado à prática de kutchinga, onde a viúva pratica o acto sexual com o respectivo cunhado, violando o carácter voluntário do matrimónio (Ibid., p.120).

A prática de kutchinga surge a partir de uma série de praxes tradicionais feitas, geralmente, por mulheres anciãs que também passaram da viuvez, que deixam as pessoas em estado de viuvez, recentemente, numa situa-ção de impureza ou ndzaka78.

78 Acto ou efeito de impureza que o viúvo ou a viúva adquire após a morte do seu cônjuge. Devendo mais tarde passar da purificação, podendo ser kutchinga ou outras vias localmente aceites.

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A este respeito, Ribeiro (1998) sustenta que “quando morre o marido, a mulher entra na palhota, deita taba-co no chão junto da cabeça do morto” e diz: Ntumu wu gumile. Loko vatxi kugula vatumeleli. Unga nemeli, unga pfukeli maxaka yawena, ungava ningue txivite!79.

Se for uma mulher que morreu, é o marido ou a sogra quem realiza este ritual, acompanhado de outros homens, também no mesmo estado de viuvez. Este processo muito sagrado envolve muita intimidade, a sacrali-dade ganha maior peso nas mulheres, conforme se confere na entrevista:

Quando morreu o meu marido foi o momento em que iniciou ndzaka. Logo que voltamos do funeral, fui levada pelas anciãs para um lugar privado, perguntaram-me se eu tinha algo a ver com a morte do meu marido, e que se tivesse, seria o momento de confessar. Respondi que não sabia nada, então deram-me um ovo cru e fui orientada para colocar entre as pernas na tentativa de partir e consegui. De seguida, trouxeram carvão aceso numa chapa e orientam-me que devia urinar até apagar o fogo e, assim o fiz. Posto isto retornei ao quarto. Um dia antes da deposição de flores, as mesmas anciãs cortaram-me o cabelo e pentelhos80.

Entre os chopi, inicia assim o processo de impureza, que vai culminar com a purificaçã/Kutchinga (relações sexuais do cônjuge vivo com o familiar, em princípio, irmão do defunto ou outras formas de purificação), logo depois de cumprido o período de luto. A impureza, ou ndzaka, neste contexto, é a assunção da tradição que carrega as almas em corpos viventes. Não se pode praticar nenhum acto íntimo nem partilhar os seus bens com outras pessoas puras, antes da cerimónia de Kutchinga.

A citação anteriormente apresentada constitui um exemplo do contexto da prática de Kutchinga, tomando em conta a morte do homem. Não obstante, quando o homem perde a sua esposa também é submetido a este acto de purificação, mas sem especificar com quem, enquanto para a mulher ocorre a purificação/kutchinga geralmente com o irmão do falecido, sendo poucas as vezes em que a viúva tem a liberdade de escolher o homem purificador.

Significado da Prática de Kutchinga

Na comunidade chopi de Chidenguele- Sede acredita-se que quando morre um membro da família, o seu espírito continua a acompanhar os vivos, podendo ser um antepassado tanto protector como perseguidor, com maldições, enfermidades, entre outros actos de origem de contaminação, que põe todos os objectos e todas as pessoas que estiveram em contacto com o morto, todos os parentes, mesmo os que vivem muito longe e traba-lham por lá, num estado de impureza. Em algumas famílias este ritual passa por a viúva manter relações sexuais com um dos irmãos mais novos do falecido, como se refere:

Um ano depois da morte do meu marido, a família convidou todos os irmãos do falecido, para que eu escolhesse o cunhado preferido, chegado o momento, praticamos o coito ritual que não se repete. No dia seguinte, de manhã, tive que preparar um chá e água de banho para os familiares presentes. Este chá foi feito fervendo o pedaço de tecido usado para limpar os órgãos genitais depois do coito. Diziam que a não realização desta purificação, os parentes do falecido correm o risco de contrair tuberculose (ndere) e encontrarem -se numa situação de kuhissa (estar quente)81.

79 Expressão chopi que significa: O trabalho acabou. Tente ser transparente até à sua sepultura. Não crie obstáculos à sua família, não guarde rancor.80 Entrevista concedida por Maria Mavie em Chidenguele no dia 02/07/201581 Entrevista concedida por Leopoldina Mangue em Chidenguele, 02/07/2015

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82 Entrevista concedida por Carlota Chilengue em Chidenguele, 02/07/2015

Noutras famílias, a mulher escolhe o seu purificador, podendo ser um conhecido ou não, desde que se tenha acordado para a realização da cerimónia:

Escolhi o meu purificador, combinámos e ele veio até a minha casa, passámos alguns dias juntos. Um dia ele dava voltas pela aldeia, cruzou-se com a esposa, ele não dirigiu nenhuma palavra, depois da consumação do acto comprei algo especial para levar, como sinal de grati-dão para a esposa do purificador. Chegado a casa ajoelhei-me na porta que dá acesso ao inte-rior da casa, pedindo permissão. A esposa do purificador saiu, recebeu-me e dei-lhe o presente como sinal de receber a cerimónia. Era uma capulana e colocou-a por baixo da almofada. De seguida, praticaram o coito ritual que não se repete, recebendo como símbolo de aceitação da cerimónia.82

Como se pode depreender, esse perigo sempre presente nestas situações é superado apenas com a realiza-ção dos “ritos de purificação”. Porém, elas são também, por vezes, um perigo para o purificador e sua parceira. Ademais, o acto, por vezes, acontece com uma pessoa de fora da linhagem, nos casos em que os familiares do finado aceitam a excepção.

A maioria das vítimas desta prática são as mulheres. Nalgumas situações, caso se recusem a cumprir os actos são obrigadas a devolver os bens desembolsados pelo finado aquando do lobolo, e muitas mulheres aca-bam aceitando por estarem desprovidas de algum dote, mesmo conscientes dos riscos de contracção de certas pandemias.

Percebe-se, desta forma, que a prática de kutchinga, na comunidade de Chidenguele-Sede, é algo que ca-racteriza os habitantes nas suas práticas ritualistas por ocasião de morte. Em termos de significado, a prática representa a saída de uma série de situações de impurezas e enfermidades que afectam a família em geral, e de modo particular a viúva. Trata-se de um acto que se supõe retirar a mesma viúva do caos social e cultural pós-morte.

Transformações na Prática de Kutchinga e suas implicações para a comunidade chopi

Vários entrevistados foram unânimes em afirmar que a prática de Kutchinga é algo que remonta do período bem recuado, mas que a sua efectivação foi e vai sofrendo uma série de alterações devido aos aspectos seguintes: a miscelânea de pessoas oriundas de diferentes pontos do distrito, província e até do país; grau de escolarização de certos membros da família que tem permitido outras formas de ver o fenómeno; contributo das Autoridades tradicionais/comunitárias, em particular os curandeiros que têm proposto outras formas, fruto dos apelos da medicina legal pelo perigo existente da prática desprotegida de relações sexuais; existência de algumas religiões que contrariam estas práticas. Por isso, o tópico seguinte destina-se exclusivamente a explorar essa dinâmica sociocultural da comunidade em questão, não só para aprofundar as razões das transformações, como também as suas implicações localmente.

A situação do dinamismo cultural anteriormente apresentada em relação à prática de Kutchinga é funda-mentada por Mello (2009, p.102) ao considerar difusão cultural como um facto incontestável. Segundo o autor, todos antropólogos são unânimes em reconhecer a importância deste fenómeno. Citando Ralph Linton, afirma o seguinte: “Não existe hoje, provavelmente, cultura alguma que deva mais de dez por cento de seus elementos totais a invenções feitas pelos membros da sua própria sociedade” (Idem).

De facto, o dinamismo na prática de Kutchinga pode ser percebido como se derivando, analogamente, da aculturação, ou seja, de empréstimo de culturas, devido aos intercâmbios entre os homens.

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Concomitante, não se deve confundir aculturação com a endoculturação. Este último ocorre a nível do indivíduo, o outro dá-se a nível do grupo. O processo de difusão cultural tem se constituído num factor muito importante da dinâmica cultural e tem merecido dos estudiosos a atenção de que é merecedora (Ibid., p.108).

Ao que parece, actualmente, analisa-se a prática de “kutchinga” evidenciando o paradigma do risco indivi-dual, não tendo em linha de conta o risco colectivo que a não realização desta cerimónia pode desencadear. Essa escolha parece-nos infeliz, a sobrevalorização do paradigma do risco individual constitui uma educação com base em contra-valores, ou seja, da negação dos valores tradicionais (Castiano, 2005, p.78).

O desenvolvimento de contra-valores tem uma experiência não muito feliz em Moçambique, aquando da vigência da doutrina de formação do “Homem Novo”, modelo de um sistema de educação que concebia “a negação de valores” que eram considerados, entre outros atributos, “sequelas da sociedade tradicional”. A montagem de um sistema de educação sem fundamentos culturais e objectivos resultou em um insucesso do modelo (Ibid., p.80).

Como se pode depreender, o autor procura analisar a prática de kutchinga, tendo em conta as várias trans-formações e até a sua abolição nalgumas famílias, olhando para as respectivas implicações na colectividade social. Quer dizer, sem discordar com as transformações que se operam na prática, ele apela para uma reflexão dessas dinâmicas culturais para uma família ou comunidade e não para uma pessoa.

A cultura chopi é dinâmica consoante os momentos e as concepções que as pessoas vão tendo. De modo particular, a prática de Kutchinga em Chidenguele-Sede tem sofrido transformações, conforme se atesta nos depoimentos a seguir:

Quando perdi o meu marido as anciãs me acompanhavam dentro da casa em que eu me encontrava. Uma dessas anciãs, enfermeira, tinha uma concepção diferente das outras duas em relação à minha viuvez; pois, os vários rituais a que a anciã enfermeira tinha sido sujeita, quando perdeu marido eram algo não bom. Daí que, aconselhou as outras a não me raparem cabelo, pentelhos e nem mandar partir ovos pelas pernas. Aconselhava para que, chegada a fase da purificação, se recorresse à medicina tradicional, pois isso trazia menos riscos e não teria nenhuma implicação negativa para mim. De tudo quanto eu vinha ouvindo de doenças, obrigar a purificar com o meu cunhado…preferi aderir a esta opinião, nada de mal me aconte-ceu, já passam seis anos83

Num outro depoimento:

Eu acho que este já não é o momento de se obrigar uma mulher a manter relações sexuais desprotegidas. Para além de que eu tenho a liberdade de escolher o homem com quem devo me aliar. Por isso, eu não continuo apegada a essa tradição, existem soluções para essas situações usando outras vias84.

Ainda atinente aos fundamentos da dinâmica cultural na prática de Kutchinga, uma outra entrevistada referiu-se nos seguintes termos:

Não posso rejeitar o que os antepassados já vinham fazendo, devo preservar minha saúde, dos meus filhos e familiares do meu marido. Estou disposto a tudo quanto as anciãs me orienta-rem. Negar realizar o acto de Kutchinga com meu cunhado seria aceitar meu próprio sofri-mento. Isso de que os curandeiros depois purificam nem sempre dá certo, conheço pessoas que depois morreram e outras ainda enlouqueceram. É bom evitar esse perigo85.

83 Entrevista concedida por Julieta Mungoi em Chidenguele Sede, 2/07/201584 Entrevista conceida por Rosa Cossa em Chidenguele Sede, 02/07/201585 Entrevista concedida por Belinda Macie em Chidenguele Sede, 03/07/2015

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Analisando os três depoimentos apresentados, percebe-se que as duas primeiras entrevistadas mostram-se a favor das transformações na prática de kutchinga e sustentam as suas razões; elas mostram que a prática deve ser encarada de outra forma. Por seu turno, a terceira entrevistada, conforme o depoimento apresentado, defen-de que a prática deve continuar pois o seu abandono pode trazer implicações nefastas à comunidade e mesmo à viúva. Portanto, as transformações nesta prática estão mesmo em curso, embora existam pessoas que ainda estejam apegadas às formas mais radicais.

As entrevistas acerca do tema em análise foram administradas a outros segmentos sociais - AMETRAMO, líderes tradicionais:

Houve momentos em que kutchinga requeria somente o acto sexual desprotegido, mas, com o decorrer do tempo e a aliança existente entre a AMETRAMO e o Posto Administrativo des-cobriram-se outros mecanismos que não perigam a saúde das pessoas, nem o bem social das comunidades, onde se recorre às ervas e outras plantas, de acordo com o domínio de cada curandeiro. Por isso, ninguém está obrigado, ultimamente, a usar as vias anteriores. Até o Es-tado reconhece nossas mudanças e apoia, em particular os representantes da medicina legal86.

Num outro depoimento teve-se a seguinte afirmação:

Nós conhecemos plantas que preparamos com outros tipos de remédios e purificamos a viúva e a restante família sem recorrer a muitas cerimónias, mesmo os membros da família que se encontrarem distantes pode-se enviar para eles se purificarem onde estiverem ou guardam até que regressem. Isso é algo que nesta nossa comunidade a maioria já aceita. Já fui solicitada por muitas famílias para tal e nunca ouvi reclamações87.

Corroborando a ideia de Matsinhe, Malhezulo sustentou:

Em tempos essa era a única via usada para purificar a viúva, em particular, e a família, no geral. Mas, a dinâmica das comunidades, pelas frequentes viagens, origens diferentes, preven-ção a doenças, as exigências de algumas igrejas fazem com que os curandeiros através da sua Associação encontrem soluções através da água, plantas e outras coisas que eles dão para o banho. Até porque para evitar problemas de viúvas que não se seguram por um ano e acabam se metendo com homens sem que sejam purificadas, criando ndere/kukhossola (tuberculose), é comum a prática de purificar a viúva mesmo no 8º dia pós-morte, ficando apenas o símbolo de vestes pretas ou brancas88.

A afirmação anterior (da Autoridade Tradicional) é retomada e secundada por alguns membros da Igreja Velhos Apóstolos, Conforme o seguinte extrato:

Sou membro da Igreja velhos Apóstolos. Essas práticas de kutchinga não são aceites na minha religião. Nós fazemos a vida rezando, mesmo na situação de luto é suficiente a oração e não se recorre nem a ervas, muito menos ao curandeirismo. Os nossos pais da Igreja sempre apelam para que nos distanciemos dessas práticas89.

86 Entrevista concedida por Andrade Zandamela, membro da AMETRAMO, em Chidenguele Sede, 03/07/201587 Entrevista concedida por Verónica Matsinhe, membro da AMETRAMO, em chidenguele Sede, 03/07/201588 Entrevista concedida por Johane Malhezulo, Autoridade Tradicional, em Chidenguele Sede, 03/07/201589 Entrevista concedida por Cecília Langa, em Chidenguele Sede, 03/07/2015

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Um outro entrevistado, Convertido da Igreja Católica para Velhos Apóstolos, afirmou que:

A prática de Kutchinga não é algo que deve permanecer na mente das pessoas. Isso já deixou de existir na minha família desde que me converti da Católica para Velho Apóstolo. Nós vive-mos a fé. Vivemos conforme a bíblia, em nenhum momento a bíblia recomenda isso. Única coisa que fazemos é vestir luto que até é branco e não preto. A retirada dessas roupas envolve orações e rezas na família e não práticas que envolvem relações sexuais ou recurso a curan-deiros.90

Na minha Igreja, Assembleia de Deus, não se veneram defuntos. Por isso, não existe nenhuma maldade que o morto possa fazer aos vivos. Daí que essa prática de Kutchinga é para quem ainda não aceitou a Deus. Oiço dizer que acontece com algumas famílias e fala-se de várias formas em que ocorre, mas eu nem sei detalhá-las. São coisas muito flexíveis91.

A prática de kutchinga é algo comum para alguns e para outros não. A título de exemplo, os depoimentos dos membros das Igrejas Velho Apóstolo e Assembleia de Deus anteriormente apresentados dão a entender a existência desse ritual. Porém, nas suas seitas esses rituais não são aceites. Disto percebe-se que, de facto, kut-chinga variou ou se modificou, devido à existência de certas seitas religiosas.

Rituais de purificação alternativos para evitar contacto sexual

Tendo em conta que, nos últimos dias, muitos homens perecem por causas relacionadas com o HIV/SIDA, as famílias ganharam certa consciência, na medida em que o ritual de ‘purificação’ da viúva já pode ser substituído por uma cerimónia simbólica, que passa por a viúva preparar e servir papas, ou chá, a todos membros da família do falecido ou em coordenação com AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçam-bique), onde um curandeiro habilitado traz uma série de plantas para misturar com água, a família toma banho com ervas purificadoras, espalha pela casa e pelos utensílios e orienta a viúva para servir chá aos presentes (Sen-da, 2013, p. 41-42).

Quando faleceu meu marido os meus sogros chamaram um curandeiro que trouxe apenas raízes que misturámos com água para purificar a casa, espalhámos por volta da casa e em to-dos os utensílios, e recomendaram-me depois para fazer chá e papas para servir aos presentes consoante a preferência92.

Através da intervenção de entidades da saúde, AMETRAMO e estruturas locais, os actores sociais imple-mentam medidas que não possam pôr em risco a sua saúde. Não abandonar os hábitos culturais, mas o modo como eram feitos, passando a usar raízes, chá e banhos purificadores para a redução do índice de contaminação, mortes e gozar o bem-estar social.

Um dos desafios imediatos para fazer valer esta decisão é a mudança de atitude dos vários actores da so-ciedade, sobretudo os curandeiros enquanto entidades que legitimam a prática de kucthinga. O porta-voz da AMETRAMO93 diz que estão previstas sanções para os curandeiros que persistirem na prática destes rituais envolvendo o sexo, por exemplo, através de uma multa de 2.500MT. Caso o curandeiro reincida, pode ser inter-ditado a exercer a sua profissão.

90 Entrevista concedida por Rosa Mabundo em Chidenguele Sede, 03/07/201591 Entrevista concedida por Helena Massango em Chidenguele – Sede, 03/7/201592 Entrevista concedida por Isaura Chilengue em Chidenguele – Sede, 04/07/201593 Lucas Lholo, entrevistado em Chidenguele-Sede, 04/07/2015

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É preciso envolver a liderança, AMETRAMO, serviços de saúde e todos os actores sociais a incutir nas men-tes a urgência da mudança de mentalidade nesta comunidade sem obrigar a abandonar os hábitos e costumes, mas implementando novas modalidades que não possam pôr em risco a saúde, passando por uma interacção entre a educação formal e a tradicional, de modo a prevenir a infecção pelo HIV, visto que a prática de Kutchinga contribui para os níveis elevados de pobreza. Esta prática obriga a viúva a manter ralações sem poder de negocia-ção, daí a necessidade de redobrar medidas preventivas para a redução do índice de infecção, e a AMETRAMO implementa outras modalidades alternativas.

Elementos Positivos da Prática de Kutchinga

Pensa-se que o ritual Kutchinga contribui para a continuidade de conservadorismo familiar, redução de número de crianças órfãs, crianças chefes de família e reconciliação com o antepassado. Os homens mostram al-gumas reservas em relação à possibilidade de se ocuparem em tarefas outrora desempenhadas pelas mulheres. E as mulheres são apologistas da igualdade de género, na qual os homens começam a ocupar-se em alguns afazeres domésticos embora não tão notório em grande escala por se tratar de uma zona tipicamente rural (CP, 2015)94.

Analisando a educação nos primeiros anos de independência, Golias (1993, p.17) questiona se não seria um erro falar de uma educação revolucionária em Moçambique sem conhecer e compreender profundamente os valores culturais do povo moçambicano veiculados através da chamada educação tradicional. A eliminação da prática de kutchinga pode fazer com que as viúvas dos defuntos fiquem desprotegidas com a consequente perda da herança dos maridos falecidos, aumentando o número das pessoas na pobreza absoluta. Contudo, este autor não se mostra contra a dinâmica/transformações na prática; ele é, sim pela manutenção, de qualquer forma, da prática de educação tradicional.

A eliminação da prática de kutchinga faria com que as crianças, que teriam a protecção de um “pai, ” (no sistema classificatório de designação), se sentissem órfãs de verdade, e corressem o risco de engrossar o número de meninos da rua, em caso de união da mãe a um outro marido de outra linhagem. Caso mais grave ainda, com a eliminação de kutchinga, que é a reconciliação com o antepassado falecido que, eventualmente, não vai ocorrer, podendo ele transformar-se num espírito perseguidor da família e não protector, como é corrente pensar-se nas comunidades rurais guiadas pelo pensamento endógeno (Idem).

Parte dos entrevistados em Chidenguele-Sede reconhece a importância de kutchinga nos moldes referidos acima e acrescentam outro dado ao afirmarem que a prática é boa porque mantém o respeito com os mortos e com a cultura, uma vez que kutchinga é uma prática que foi herdada dos antepassados e merece o seu lugar de destaque.

Elementos Críticos da Prática de kutchinga

Um dos grandes problemas que esta prática traz na sociedade é a elevação do índice de contaminação pelo HIV, relacionado aos seus procedimentos de envolvimento sexual desprevenido. Outro grande problema adveniente da prática de Kutchinga é a obrigatoriedade que a mulher passa em juntar-se com um homem que não seja da sua escolha pessoal. Igualmente, são notáveis situações em que as mulheres não conseguem seguir rigorosamente as orientações que adquirem das anciãs aquando da perda do marido e que, a posterior devem caracterizar a sua vivência, pelo menos por seis meses a um ano. Isso faz com que ao se cruzarem com algum homem, este contraia nkhossola95 (tuberculose). Perante este impasse, surge a necessidade de se encontrar uma

94 Entrevista Concedida a Levi Macave em Chidenguele Sede, 04/07/201595 Entrtevista concedida por Lourino Nhantumbo e Júlio Simbine em Chidenguele-Sede, 04/07/2015

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saída negocial entre a educação formal e a educação tradicional, de modo a contornar-se o risco de contamina-ção, sem ferir, no entanto, a educação tradicional das comunidades.

Os elementos críticos da prática de kutchinga são visíveis, em particular, quando o acto de purificação envolve o contacto sexual desprotegido. Eis, em grande medida, o fundamento de toda dinâmica sociocultural que caracteriza o ritual em análise, tudo com vista a diminuir riscos nos indivíduos e na comunidade em volta.

CONCLUSÃO

No povoado de Chidenguele - Sede, às vezes a morte não é encarada como um facto isolado, buscam-se outros actores relacionados com este fenómeno, como a impureza, a sorte, a purificação, a conservação da li-nhagem e da propriedade económica e as relações com os antepassados. Kutchinga surge como uma série de tratamentos tradicionais feios após a morte de um membro de família que deixa a viúva ou viúvo num estado de impureza, designada de ndzaka. Portanto, o papel de kutchinga é de purificar esta impureza, geralmente pelo contacto sexual desprotegido com o membro mais próximo. Quando se trata da morte de um homem, o irmão mais novo do falecido é escolhido para realizar o acto.

A supressão desta prática pode ser interpretada como sendo uma agressão a um ecossistema sociocultural determinado, com consequências imprevisíveis. Em contrapartida, está-se ciente de que a manutenção de “Kut-chinga” nos moldes actuais, num contexto em que há uma larga difusão de doenças de transmissão sexual pode-rá aumentar as possibilidades de propagação das mesmas. Daí uma dinâmica cada vez maior na implementação desta prática, considerando muitas vezes a intervenção ervanária do poder tradicional local.

A eliminação da prática de “kutchinga” supostamente garante a prevenção da eventual transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, aos indivíduos designados pelo grupo para a purificação através das rela-ções sexuais com as viúvas/viúvos. Contudo, expõe-se todo um grupo familiar e/ou uma aldeia inteira à “conta-minação cultural”, isto é, a ausência do rito de purificação sexual, leva o grupo a crer que está exposto às doenças, e esta convicção poderá, de facto, enfraquecer os seus sistemas imunológicos, levando-os, eventualmente, a contraírem enfermidades como tuberculose e até causando-lhes a morte.

A convivência dos poderes governamentais e tradicionais na comunidade chopi de Chidenguele –Sede gera algumas alterações na prática de Kutchinga, que se caracterizam pelo uso de ervas e raízes para a purificação da viúva e não o contacto sexual com o irmão mais novo do falecido. Ademais, a pesquisa permitiu aferir outros elementos que intervêm na prática de Kutchinga, tais são os casos de chá, papas, certas águas medicinais, entre outros. Igualmente, existem medidas tendentes a desencorajar a via mais negativa de Kutchinga, sem, contudo, aniquilar o ritual.

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Júlio Nhanave Chidenguele-SedeChidenguele-Sede

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26.06.2015

04.06.201502.07.2015

02.07.2015

02.07.2015

02.07.2015

02.07.2015

03.07.201503.07.2015 Membro/AMETRAMO

03.07.2015

03.07.201503.07.2015

03.07.201503.07.2015

04.07.2015

04.07.2015 Chefe/AMETRAMO

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Cecília Jonas Dzimba

Maria MavieLeopoldina MangueCarlota ChilengueJulieta MungoiRosa Cossa

Belinda MacieAndrade Zandamela

Verónica Matsinhe

Johane Malhezulo

Cecília LangaRosa MabundoHelena MassangoIsaura ChilengueLucas LholoLevi MacaveLourino NhantumboJúlio Simbine

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MEMÓRIA E RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICA EM JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

(TEORIA GERAL DE ESQUECIMENTO) E UNGULANI BA KA KHOSA (ENTRE MEMÓRIAS SILENCIADAS)

SALOMÃO MASSINGUE96 [email protected]

RESUMO

Ao discutirmos memória e ressignificação histórica a partir das duas obras que preenchem o corpus, parti-mos do princípio de que a literatura, sendo um espaço de ressignificação da história torna-se, mutatis mutandis, um campo privilegiado de resgate e actualização de memórias. O presente artigo pretende, com efeito, discutir a importância da memória no processo literário de ressignificação da história.

Palavras-chave: Literatura, Memória e Ressignificação Histórica

Conceber a literatura como um lugar de memória, isto é, como potência criadora de imagens capazes de modular determinados aspectos da identidade colectiva, não significa reduzi-la à condição de mero documento histórico portador desta memória, tampouco aderir à criação de um microcosmo ficcional a leitura mecanicista de recortes da realidade.

Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos (adaptado)97

96 Mestre em Literaturas Africanas pela Universidade Pedagógica; Docente de Literaturas Africanas e de Literatura Portuguesa na UP – Maxixe.97 In: Memória e Literatura: Contribuições para um Estudo Dialógico. Linguagem em (Re)vista, Nº 11/12, 2011.98 Doravante designada abreviadamente por EMS99 Doravante designada abreviadamente por TGE

A obra Entre Memórias Silenciadas98, uma das mais recentes, no que ao género romanesco diz respeito, é uma prosa que busca reavivar memórias, aparentemente aluídas, mas simplesmente latentes de uma geração que fez parte do processo histórico de construção da nação moçambicana, focalizando os campos de reeduca-ção, adoptados e implementados logo após a independência de Moçambique, como tema predominante.

Num contexto não distante da obra acima referenciada, enquadra-se o romance Teoria Geral de Esqueci-mento99, do escritor angolano, José Eduardo Agualusa, no qual narra diversas e diferentes transformações his-tóricas pelas quais Angola atravessou, com maior enfoque para a fase da transição do País da Luta de Libertação Nacional para a independência. As peripécias do enredo concentram-se no olhar e na vida de “Ludo”, protago-nista, luso-angolana, enclausurada numa residência na capital angolana, Luanda. Na obra está retratada uma época de transição caracterizada pela emigração em massa de portugueses, de regresso às origens, que detinham uma boa parte do poder económico em Angola. Para além dos colonos, portugueses saiam, em debandada;

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mercenários americanos, ingleses e portugueses, juntamente com militares sul-africanos, combatendo tropas cubanas e angolanas. Era portanto, a época de muita agitação político-social em Angola, onde tudo era instável.

No que se refere à crítica de modelos e posicionamentos, percebe-se a utilização da estratégia de espelha-mento: factos e temas se repetem numa mesma obra ou, até, em outras obras. Essa estratégia acaba por gerar, no interior, uma indagação sobre os vários questionamentos postos em prática nos textos. Para além desta técnica, constata-se que as duas obras usam o relato testemunhal, os diferentes tipos de memória, a ironia, os recursos narrativos usados na metaficção, como estratégias narratológicas/ficcionais para proporem a reescrita ficcional da história dos seus respetivos países.

Sob o ponto de vista ideológico, estes romances querem pensar e problematizar as políticas adoptadas após a independência, enquadradas no contexto da construção da nação, inserindo-se naquilo que Kwame Anthony Appiah chama segunda fase da literatura pós-colonial: textos que deslegitimizam o projecto nacionalista da burguesia nacional pós-colonial.

Na tentativa de periodização do romance africano na perspectiva pós-colonial, Appiah (1997) estabelece dois principais períodos. O primeiro ocorre durante e logo após os processos de independência nacional. Nesta fase, os romances apresentavam uma dupla dependência (ao meio universitário africano – ocidentalizado – e aos editores euro-americanos), e se caracterizavam pelo discurso anticolonial e nacionalista. A segunda fase é a que se inserem os dois romances em estudo: TGE e EMS. Na verdade, essa fase começa a delinear-se a partir de 1960, com o fracasso de muitos projectos nacionalistas convertidos em governos autoritários e corruptos. Segundo Appiah, “longe de ser uma celebração da nação, portanto, os romances da segunda fase – a fase pós-colonial – são romances de deslegitimação, rejeitando o projecto nacionalista da burguesia nacional pós-colonial”, (Appiah, 1997, pp.209-216). Estas narrativas dão continuidade a este projecto literário, onde a relativização das verdades (e das omissões) engendra a trama do enredo. Portanto, se, por um lado, podemos, ideologicamente, inserir os dois romances no quadro acima descrito, podemos, igualmente, afirmar que as mesmas obras dialogam com a teoria pós-colonial de deslegitimação e distopia dos projectos nacionalistas africanos. Massingue (2016).

A este respeito, Barthes (S/d., p. 31) apresenta-nos sugestões estimulantes:

A literatura apresenta-se-nos como instituição e como obra. Como instituição, reúne todos os usos e todas as práticas que regulam o circuito da coisa escrita numa dada sociedade: estatuto social e ideológico do escritor, modos de difusão, condição de fruição, sanções da crítica. Como obra, ela é essencialmente constituída por uma mensagem verbal, escrita, de um certo tipo.

Assim sendo, balanços e releituras periódicas de História são uma obrigação inerente ao labor académico; alguns estudiosos da Sociologia da Literatura e da História, tal é o caso de Benjamim (1997), são peremptórios em considerar que é uma obrigação de cada geração humana. Porém, desde a idade moderna, esta faz-se de acor-do com as diversas correntes de filosofia existentes na formação social no quadro de uma mesma época histórica. O nosso acto faz-se, pois, no quadro dessa necessidade académica. Todavia, Silva & José (1991) alertam que não basta haver vontade seja individual, seja académica; é preciso ter em atenção que em qualquer época ou período histórico, a classe que está no poder determina um certo tipo de produção histórica, manipulação para a qual os investigadores sociais devem sempre estar atentos, na medida em que “não podia senão trazer preocupações an-tigas renovadas, sem intenção de levantar feridas ou então, pungentes memórias, então silenciadas” (Ibd., p. 29).

Para uma análise metódica e estritamente literária da memόria, elegemos a personagem no quadro das categorias da narrativa passíveis de tratamento. Ora, reconhecendo que as potencialidades semionarrativas da personagem definem-se também em função das suas ligações com o narrador, levantámos algumas questões a partir dos juízos emitidos por este último (narrador) sobre todo o universo ficcional e a partir de diálogos possí-veis entre o narrador e o personagem nas obras romanescas referidas. Ainda no que diz respeito à personagem interessou-nos, entre outros elementos, o perfil ideológico-cultural, bem como as suas opções axiológicas e as suas atitudes sociomentais; não admira, pois que a análise e as citações relevem tais aspectos.

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Em EMS e TGE, a memόria de conflito e violência (nas suas diversas dimensões) dá lugar aos conflitos sociais e individuais, suscitando, por conseguinte, personagens desesperadas, em busca de explicações dilace-radas pelas dúvidas e, dentro do contexto estético-ideológico dos romances, “há-de notar-se uma preocupação cognoscitiva, em que os personagens se debatem e interrogam em torno de questões ontológicas, através da interacção favorecida pelos diversificados espaços ali estabelecidos” Massingue (Op cit. p.79).

Iniciámos a análise, desta feita, a partir de uma visão da narrativa orientada pelo personagem, Armando em EMS, e do Pequeno Sobá, em TGE. Armando e Pequeno Sobá vivem vários dilemas existenciais. Queremos, pois, destacar aqui o dilema em torno da memória ligada à violência. A memória individual quase que se con-funde com a memória social nos dois personagens, na medida em que o que se nos é dado a conhecer deles está também ligado ao colectivo, isto é, à Nação. Referimo-nos que a memória de conflito e violência é que está mais subjacente, e vários são os exemplos ilustrativos dessa assertórica. O primeiro tem que ver com a problemática da liberdade, muitas vezes condicionada ou então manipulada. É da fala de Armando que extraímos o seguinte extracto,

[…] foi uma operação maiúscula. Em ordens acertadas e desacertadas, militares, policiais, paramilitares, milícias e outros voluntários, puseram-se ruidosamente nas ruas, prendendo gente jovem e adulta, enfim, os que em classificação não criteriosa eram chamados de ociosos da sociedade. Esses, teriam que ir produzir na província mais desabitada e rica do país. Era o Niassa que já albergava os reeducandos e que agora se prestava a receber novos inquilinos, (Ba Ka Khossa, Op cit., p.116).

Da fala do Pequeno Sobá extraímos um depoimento feito aquando do seu aprisionamento e dos seus con-vivas por conta “do clima de terror – enfatiza o personagem, que se instalou em Angola no pós-independência: “[…] Os interrogatórios pareciam frequentemente erráticos, despropositados […]” (Agualusa, Op cit., p. 192).

Há algum cruzamento temático entre os dois extractos. No primeiro, Armando referia-se, em rememora-ção, à operação produção, uma acção tão impactante na vida de muitas famílias e cidadãos moçambicanos. No segundo, Sobá refere-se, conforme, à perseguição política que resvala em aprisionamentos arbitrários e incon-sequentes. Nesses extractos estão vincadas várias cenas ligadas a coarctação dos direitos fundamentais, como é o caso de prisões arbitrárias, de cidadãos indefesos sem nenhuma base legal. Amiúde, os mesmos personagens vão relatando, com detalhe e personalizando, as acções que configuram violência política e simbólica, decorren-tes das decisões políticas tomadas pelos regimes de então. Assim, diante de uma concomitância de acções dessa natureza, não podem sobrar boas memórias, sentencia Armando.

[…] Não há história para nós. Não há memória. Nunca seremos como os outros que legaram, pelo menos, em respeito à memória, dos grandes e pequenos holocaustos, os testemunhos da sua existência. Quem irá acreditar que um puto de vinte anos foi para reeducação por ter inventado, em finais do século vinte, a história de ser um homossexual, ou que alguém aqui caiu por emborcar uns mililitros de uísque da garrafeira do chefe, ou de quem ousou namorar a filha do governador, do general, ou porque se recusou a levantar o braço do Viva em comícios cansativos? Não haverá memórias destes tempos (Ba Ka Khosa, Op cit, pp.122-123).

A memória de conflito, resgatada do passado por meio da rememoração dos personagens em alusão, im-pregna-se neles em forma de telas afixadas no cérebro. Pequeno Sobá descreve, no trecho abaixo, por exemplo, a insolitude da morte na prisão, encarada de forma insensível, imoral e grotesca: “[…] No meio de tantos crimes, tão imensos, que se cometiam na época, ali mesmo, entre as paredes da prisão, a diminuta morte de Esplendor não afectou ninguém, excepto Pequeno Sobá” (Agualusa, p. 193).

A natureza da violência vincada nestas duas narrativas pode ser compreendida à luz de uma reflexão minu-ciosa do contexto histórico e político que dominava o tempo histórico aqui evocado. Portanto, pode ser interpre-

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tada como consequência da inflexível censura, muitas vezes subtil, protagonizada pelos governos que lideraram os dois países no início da independência.

A esse respeito, Arendt (1994), no seu livro Sobre a violência desenvolve um interessante pensamento em torno da distinção entre violência e política. Na sua óptica, “sempre foi uma grande confusão tomar a violência como um aspecto do poder ou sua fonte de acção, o que implicaria a concepção das relações de poder como um acto de dominação e submissão”. (Arendt, 1994, p. 97).

Contudo, um pouco depois de 2010 têm sido cada vez mais frequentes no país, estudos, narrativas ficcionais, filmes e documentários, crónicas sobre opressões sofridas nos campos de reeducação, bem como nas torturas secretas criadas em Luanda no período monopartidário. Estes documentos trazem revelações importantes sobre os episódios desconhecidos, outrora ocultados (em todo espaço temporal que teria compreendido a revolução em Angola e Moçambique). Os mesmos documentos para além de constituírem fontes importantes para pesqui-sa sobre a umbilical relação entre memória e violência política, constituem mote para uma nova reflexão (mais crítica e engajada) sobre a história de Angola e de Moçambique, e é aí que entram estas duas obras romanescas.

Armando e Pequeno Sobá tornam-se actores que, segundo Pollak (1992) apud De Oliveira (2009) jogam um papel fulcral na ressignificação da história, através do questionamento lúcido da memória de violência e conflito. Dessa forma,

A memória não é estanque. Ela se desloca, se interroga e é interrogada. Os processos histó-ricos ligados às memórias de passados conflituantes têm momentos de latência, de aparente esquecimento ou silêncio. Quando novos actores sociais ou novas circunstâncias se apresen-tam, o passado é ressignificado e, aos poucos, cobra uma divulgação pública. Pollak (1992) Apud De Oliveira (2009, p.70).

Nas duas narrativas a rememoração da violência não constitui a única estratégia de ressignicação da histó-ria. Há que salientar, igualmente, as estratégias mnemónicas desenvolvidas pelos grupos oprimidos e margina-lizados, tendo em vista também a salvaguarda da identidade e memória de cada um. Neste âmbito, queremos vincar o papel do personagem Tomás, um dos deuteragonistas de EMS e de Ludo, protagonista em TGE. En-quanto o indispensável papel de Tomás cingiu - se à eternização das memórias e identidades individuais de cada reeducando ante o esforço deliberado das autoridades civis de ostracização das mesmas nos campos de reeduca-ção; Ludo, por sua vez, activa os seus mecanismos de salvaguarda da memória a partir dos meios pessoais que a circundam na sua auto-enclausura, numa estratégia desesperada de manter vivas as experiências marcantes da vida, de uma identidade que o tempo concorria para esboroar.

Tomás, um dos poucos anciãos cativo, encontra, na sua arte de pintar, inspiração para combater o esqueci-mento forçado de identidades que se foram construindo socialmente. A idade e sobriedade daquele personagem tornaram-se elementos de grande referência e, por conseguinte, de estima e assunção do seu papel por todos os convivas. Assim, a cruz, sua posição e cor reflectirão o tipo e estilo de vida de cada finado. Ou seja, o carácter e o estilo de vida de cada reeducando determinam a posição da cruz e a cor. Seja esta, seja outra posição e cor da cruz, haveria sempre um elemento simbólico e de valor mnemónico.

[…] Era a memória, o testamento, o desejo de querer eternizar-se em paredes de adobe, cons-tantemente fustigadas pela chuva que se tornava dominadora entre os meses quentes de Ou-tubro a Março. As paredes das casas, nesses períodos de chuva, perdiam a alegria das cores terrosas. Era a época triste (Ba Ka Khosa, Op cit., p.85).

Deste modo, a cruz, seus traços envoltos e filamentos, transcendem a simples elementos de identificação do finado ali sepultado e ganham um valor simbólico bastante expressivo; uma chave de armazenamento de um passado que se quer sempre presente na vida presente, por isso que no dizer do narrador textual,

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Bastava alguém sentir que a vida lhe fugia, para que o velho se fizesse presente, como um có-nego em extrema-unção. Pedia-se ao velho que representasse os momentos ainda suspensos na memória. Começaram a surgir rostos de mulheres, olhos de crianças, casas com luz, cenas da alcova, burros de carga., bazares com mulheres de lenço vendendo tudo e nada, algemas, aldeias poligâmicas, charutos, garrafões de vinho, grades de cerveja, vaginas quadrangula-res, elípticas, rectangulares e as que a natureza humana configurou na sua devida proporção (Ibid., p.84).

Se em EMS a cruz releva-se como um mecanismo mnemónico de grande valor simbólico e identitário, em TGE salientam-se, pois, as paredes envoltas a Ludo e os pedaços de carvão que, substituindo as esferográficas e folhas brancas, ora tessem versos, ora projectam textos icónicos nas desérticas paredes. As paredes constituem telas de inscrição da memória na inexistência de alternativas convencionais e comummente aceites; os pedaços de carvão são os pinceis translatícios de uma realidade alheia a um mundo habituado aos clichés e processos repetitivos. “Os dias deslizam como se fossem líquidos. Não tenho mais cadernos onde escrever. Também não tenho mais canetas. Escrevo nas paredes, com pedaços de carvão, versos sucintos” (Agualusa, p.175).

A construção das telas de memória era a única liberdade que os reeducandos tinham. Porém, a estação climatérica determinava, na altura, a arquitectura das telas e, portanto, a forma como cada um gostava que fosse lembrado pelos outros, dentro de um jogo dialéctico entre a memória e identidade. Em TGE, as paredes trans-formadas em telas e em livro constituem os únicos vasos comunicantes da personagem. São, pois, estas paredes que, para além de se transformarem, posteriormente em contra-memória100, também constituem parte dela; é a única expressão viva de algo que resiste ao poder aluinante do tempo, marca indelével de uma vida, um mundo que por ali existiu, “[…] Dou-me conta de que transformei o apartamento inteiro num imenso livro. Depois de queimar a biblioteca, depois de eu morrer, ficará só a minha voz. Nesta casa todas as paredes têm a minha boca” (Agualusa, pp.206-207).

Estes elementos transcendem a dimensão de simples objectos inanimados, ganhando características vitais diante de Ludo; é por isso que a relação da personagem com as paredes e os pedaços de carvão é muito íntima e de cumplicidade.

Ao lado da memória oficial, que exclui, na forma de esquecimento e silêncio, grande parte da história (seja de Moçambique, seja de Angola), emergem, nas duas narrativas, outras memórias. São memórias que, em confronto com as memórias oficialmente conhecidas, entram em conflito, engendrando novos paradigmas de leitura e interpretação. Essas “outras” memórias encontram na narrativa ficcional espaço para a manifestação dos chamados reaccionários desaparecidos, exilados de guerra, outros fuzilados, que ora ressuscitam e retomam seus espaços.

A despeito dessas memórias, Todorov (2000) apud Ferraz (2013, p. 42) adverte que o maior problema que os regimes totalitários deixaram foi a tentativa de supressão da memória. O controlo da informação, a supressão de rastros e a ocultação de cadáveres faziam parte dessa tentativa de suprimir a memória do horror. Por isso, os inimigos do totalitarismo prestigiam a memória. O autor argumenta que, com menor brutalidade, porém com mais eficácia, os Estados democráticos tentam conduzir a sua população ao mesmo destino que os regimes tota-litários: o reino da barbárie. Nesse reino, não é que não exista memória, mas ela é sobrepujada.

O grande problema não se coloca em termos de existir ou não memória, de se fazer ou não selecção de me-mórias, mas de o Estado colocar - se como o controlador delas. “Deve ser esta fase que poderá ficar na história, como uma etapa crucial na construção de uma nova memória, em que as falhas, os erros cometidos pelos heróis são reconhecidos e conhecidos, em que cidadãos apagados pela força do poder político encontram voz e espaço” (Ibid. p. 45).

Desta feita, a escrita de Ungulani e de Agualusa rompe com o discurso histórico oficial e homogeneizante e persegue o que Bhabha (1998) chama discurso “performático”. Seguindo os passos deste autor, é possível ob-

100 Uma expressão emprestada da elaboração teórica de Foucault.

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servar que esses autores, ao formularem um discurso estruturado a partir do signo da diferença, instauram uma rasura na escrita homogeneizante da nação. Os conceitos “pedagógico” e “performático”, formulados pelo autor a partir de sua análise sobre a formação das nações modernas, são bastante úteis para vislumbrar a particularidade desses discursos “marginais” frente à pretensa fala/discurso hegemónico da nação. O acto performativo, nesse sentido, é observado na existência desse discurso contrário e, principalmente, na eclosão de uma escrita que rompe com a homogeneidade proposta pelos discursos pedagógicos. Assim,

O pedagógico funda sua autoridade narrativa numa tradição do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de mo-mentos históricos que representa uma eternidade produzida por auto-geração. O performati-vo intervém na soberania da auto-geração da nação ao lançar uma sombra entre o povo como imagem e sua significação como um signo diferenciador do Eu, distinto do Outro ou Exterior (Bhabha, 1998 p. 29).

É justamente nesse âmbito em que De Oliveira (2009) ressalta que o teor conflitual presente na construção da memória é somado ao carácter selectivo, na análise em questão. Fundamentando o seu posicionamento no pensamento Pollakiano, assevera que se nota que acontecimentos locais e personagens (elementos constitutivos da memória individual e colectiva) estão em consonância com as narrativas.

Nas narrativas em análise, percebemos que as falas dos personagens reconstroem, na generalidade, décadas de conflitos sociais, que se saldaram em crispações, divisões, tribalismos, exclusão social, entre outros fenóme-nos que colocaram em causa a ideia de Nação que se pretendia vincar. A memória desses grupos sobre as acções e reacções que marcaram os períodos acima destacados da história é construída seja pelos personagens, seja pelo narrador por critérios que têm o fim de seleccionar, organizar e sistematizar lembranças daquilo que constitui a experiência.

Cremos que a experiência por que passou o personagem Padre Romeu nos campos de reeducação, em EMS, é síntese de um conflito entre a religião e o poder político. Neste sentido, podem (essas experiências), se aferidas com algum rigor, ser consideradas factos históricos ‘coerentes’, na formulação de White (2005) apud Goenha (2006), com a realidade objectiva dos factos ocorridos (na vida real) ou que ocorrem em certos contextos espá-cio-temporais, para a instauração de uma relação com os acontecimentos ficcionados, isto é, com histórias de sentidos ‘correspondentes’ com o que aconteceu, ou com o que poderia ter acontecido (cf. Goenha, 2006, p.108).

Padre Romeu é tomado metonimicamente como representação figurada de uma franja da população mo-çambicana que fora copiosamente perseguida, torturada e combatida por conta da sua fé. Os campos de ree-ducação são uma metáfora do espaço territorial moçambicano em que se viu e viveu a realidade, conforme se depreende da narração abaixo.

[…] pediu-se-lhe que entoasse, como maestro, quando em concentração no pátio da formatu-ra, aqui chamado assemblement, em alusão e reconhecimento aos campos de formatura na Argélia da solidariedade da libertação, cânticos revolucionários de forte tendência laica. Esse era o destino a que o padre Romeu estava sujeito nas manhãs de formatura […]. Era a forma prática de desgrudá-lo do seu ópio, de libertá-lo das santas e funestas imagens ao tempo novo que se erguia (BA KA KHOSA, Op cit., p.54).

Em TGE, Pequeno Sobá, à semelhança do Padre Romeu, viu-se a si, sua família e convivas directos a serem alvos de uma campanha política que começa logo após a independência, com o intuito de perseguir, torturar e, se possível, fuzilar os chamados “reaccionários”, aqueles combatentes que não alinhavam com o pensamento e ideologia da nova liderança política. Se ao Padre Romeu coube um dos campos de reeducação como lugar do presídio, ao Pequeno Sobá foi-lhe destinado a prisão “dos prisioneiros políticos” de Luanda. Consegue fugir da cadeia, graças à ajuda de alguns camaradas e consegue a protecção de Madalena, uma das suas coadjuvantes no

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intento de busca de liberdade, “Resta-me tirar-te de Luanda. Não sei por quanto tempo conseguirei esconder-te. Se os camaradas te encontram, fuzilam-me também a mim” (Agualusa, Op cit., p.56).

O narrador textual divide a vida de Pequeno Sobá em diferentes episódios que, a nosso ver, não vem por acaso. Os episódios por que passa o personagem são, estrategicamente, a imagem das diferentes fases de trans-formação do movimento político MPLA em Angola.

Esta técnica de usar as rememorações dos diferentes personagens ante as memórias oficiais é salientada por Benjamin (1997) como uma necessidade aflictiva, mas indispensável na ficção contemporânea. Em seu conhe-cido ensaio sobre o conceito de história, o autor aponta para a necessidade de narrar a experiência e afirma que o historicismo “culmina legitimamente na história universal, cujo procedimento é aditivo” (Benjamin, 1997, p. 231).

O historicismo, assim, privilegiaria a “história dos vencedores” e culminaria por acabar a memória dos excluídos, ou seja, dos esquecidos pela memória oficial. Em situações de repressão e de censura, os escritores por vezes são impedidos de relatar suas experiências em autobiografias, recorrendo, então, à ficção na qual as personagens têm a possibilidade de “rememorar” eventos passados.

Os personagens ora descritos nas duas obras não são, senão, figuras metafóricas, em demonstração simbó-lica de resistência de parte de camadas culturalmente marginalizadas, alienadas e oprimidas. Nesta abordagem, as vozes de Armando, Tomás, Maduna, etc., em EMS e as de Ludo, Pequeno Sobá e outros em TGE enquadram-se dentro da análise das representações do passado, as vozes daqueles que foram silenciados e marginalizados pelos discursos dominantes. Assim, na perspectiva Foucault (1980) apud Peralta (2007, pp. 13-14):

As memórias veiculadas por estes discursos estão em constante revisão, incorporando práti-cas discursivas. É por esta razão que a “contra – memória” se pode transformar em discurso dominante à medida que determinados grupos promovem diferentes versões do passado, inte-grando a sua “contra-memória” no “regime de verdade” tido para uma certa sociedade.

No contexto do conceito de narração discutido por Benjamim (1997, p. 40), “as contra-memórias levam-nos à expressão memórias involuntárias”101, onde há experiência, no sentido próprio do termo, certos conteúdos do passado individual entram em conjunção na memória com elementos do passado colectivo.

101 Idem Walter Benjamim (Op cit., .p40).

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CONCLUSÃO

Ao finalizar a presente reflexão em torno da memória e ressignificação histórica nas narrativas supramen-cionadas, pensamos termos ido ao encontro de uma dimensão actual e actuante nas Literaturas Africanas, mor-mente as de Língua Portuguesa, dimensão a que a crítica considera problematizadora do seu sentido de existên-cia e, para dar corpo a esta necessidade estética e ideológica, as intercessões entre literatura, memόria e Histόria constituem um caminho, uma possibilidade. Mas nessa possibilidade e nessa demanda, a crítica literária é in-dubitavelmente chamada a assumir seu papel como discurso analítico, livre e racional em torno da matéria literária. As narrativas analisadas convidam-nos a este diálogo tridimensional: memόria, Histόria e Literatura, e constituem a expressão sugestiva do papel da memόria no processo literário de ressignificacao histόria. Pois, se não se pode estudar a memόria isolada da Histόria, também é verdade que literatura não sendo memόria, é parte sim de uma memória colectiva e, portanto, sendo cada vez mais necessária uma análise focada às intercessões entre estas áreas.

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UMA FILOSOFIA CRÍTICA E INDIVIDUAL INSPIRADA NO MEIO AFRICANO

ANTONIO MABOTA102 [email protected]

RESUMO

O presente trabalho procura demostrar o lugar Placide Tempels na filosofia africana a partir da análise de texto produzidos ao longo da história da filosofia africana depois da publicação da obra obra La Philosophie Bantoue de Tempels em 1959 e apresentar uma posição pessoal sobre o trabalho de Tempels e sobre o que seria a filosofia africana. Os textos produzidos ao longo da história da filosofia africana mostram uma divergência rela-tivamente a importância da obra em questão no desenvolvimento da filosofia em África. Uns são a favor do que Tempels chamou de Filosofia Africana (Mbit, Kagamé, Mudimbe, entre outros), outros não (Towa, Hountondji, Boulaga, Chahay). Todavia, existe entre eles unanimidade com relação ao facto de Tempels ter despoletado a reflexão filosófica em África. Da análise do Texto de Tempels e dos seus críticos, a conclusão é de que a filosofia africana dever se um pensamento crítico e individual inspirada no Meio Africano.

Palavras-Chave: Tempels: Etnofilosofia: Unanimismo e Filosofia Africana

INTRODUÇÃO

A obra La Philosophie Bantoue (1959) de Placide Tempels, ao mesmo tempo que inspirou significativa-mente a reflexão filosófica, foi fortemente criticada por filósofos africanos. De entre as críticas figura a de Paulin Hountoundji. Hountoundji crítica pela primeira vez Tempels em African Philosophy: myth ou reality (1976). Faço neste trabalho uma análise do lugar das obras de Tempels e Hountoundji no seio da filosofia africana. Se Tempels teve o mérito de ser o fundador do debate sobre a filosofia africana, a Hountoundji deve-se o mérito de ter sido o primeiro interlocutor importante de Tempels neste debate. Depois da crítica de Hountoundji, o debate seguiu gravitando entre uma apologia à Tempels (Kagame, Lufaluabo, Muiynya,) e uma rejeição da filosofia Ban-tu de Tempels (por exemplo Towa, Tsamalenga e Boulaga). Acusa-se Tempels de ter feito um estudo etnográfico, ter usado linguagem filosófica na análise dos seus dados etnográficos e chamar de filosofia às conclusões do seu estudo.

Mas a mais grave acusação que recai sobre Tempels é de ter generalizado as conclusões do seu estudo, con-siderando-as válidas para todos africanos, afirmando, assim, o unanimismo.

Entretanto, a consideração excessiva da etnofilosofia numa discussão que se pretende filosófica, ao mesmo tempo que é conveniente para a visão eurocêntrica de ciência, exclui a possibilidade de alguma produção cien-tífica aos povos não ocidentais, atrasa o desenvolvimento da filosofia (Mudimbe) ou então a busca de um futuro melhor (Ngoenha), papel que deve ter a filosofia em África, isto é, um papel crítico inspirado no ambiente e necessidades específicas do continente.

102 Doutorando em Filosofia. Docente na Universidade Pedagogica – Maxixe.

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O trabalho baseia-se na análise de textos críticos a Temples e apresenta uma opinião pessoal relativa-mente ao trabalho de Temples e sobre as reflexões que a história da filosofia africana apresenta sobre o pensa-mento deste autor. Assim, dois pontos essenciais compreendem a minha reflexão, precisamente, 1. Filosofia Bantu do Ser; 2. Uma filosofia etnográfica e unanimista; 3. O Lugar de Tempels no pensamento africano.

1. A Filosofia Bantu de Ser

Placide Tempels foi um padre Belga que trabalhou como missionário na região centro africana do actual Congo, uma região habitada pelo povo Baluba, um grupo étnico Bantu. Tempels, a partir da observação do povo Baluba, chega à conclusão de que existe no seio deste povo um pensamento abstrato que pode ser adjectivado como filosofia, Sendo os Balubas um povo Bantu, Tempels chamou ao que considerou seu pensamento abstrato, de Filosofia Bantu, uma filosofia que compreende uma ontologia sui generis, determinante para compreender o sentido de vida e, por consequência, o comportamento do homem africano.

O ponto de partida de Temples é que “todo o comportamento humano depende de um sistema de princí-pios”. Justifica esta afirmação a partir da convicção de que “nenhum código de comportamento é possível sem que exista nele um sentido de vida”; que “não pode haver nenhuma vontade de determinar a vida sem que seja concebido o fim da vida”, e que “ninguém sem uma filosofia de salvação perseguiria o caminho da redenção” (Tempels; 2006: 9-10). De seguida, afirma que “é geralmente admitido que, entre os povos primitivos, existe a crença em um ser supremo criador e organizador do universo, uma crença que está na raiz de todas as concep-ções religiosas correntes entre os semi-primitivos, como é o caso do animismo, do dinamismo, do fetichismo e da magia” (ibid.:10). Finalmente conclui que o “profundo conhecimento da linguagem, o estudo penetrante da sua ontologia, a investigação crítica da sua lei, ou ainda, a adaptação dos ensinamentos religiosos ao pensamento primitivo, tudo isto revela-nos um coerente sistema ontológico dos Bantu” (id.).

Entretanto, o autor pensa que o ocidente não precisa esperar os africanos, sobretudo os mais jovens serem capazes de oferecer-lhes uma exposição sistemática da sua ontologia. Considera incumbir aos europeus traçar os elementos do pensamento dos Bantu, classifica-los e sistematizá-los de acordo com os sistemas ordenados e disciplinas intelectuais do mundo ocidental. Portanto, pretender que os povos primitivos não possuem um sistema de pensamento, por um lado, seria uma exclusão destes povos da categoria de seres humanos, por outro lado seria uma contradição fatal (id.).

Antes de falar da ontologia Bantu, Temples esclarece a terminologia que usa, sendo um dos termos mais importante, a designação do pensamento dos Bantu de “filosofia da magia”. Esclarece, igualmente, o método de estudo, precisamente, o método comparativo, através do qual compara as línguas, os modos de comportamento, as instituições e os costumes dos Bantu. Tempels faz a análise destes elementos e a separação das suas ideias fundamentais para, finalmente, construir, a partir deles, o sistema do pensamento Bantu (ibid.: 18-19).

Posto isto, o missionário Belga explica a base do comportamento dos Bantu. Considera que certas palavras são constantemente usadas pelos africanos. Trata-se de palavras que expressam os valores supremos dos Bantu, repetindo-se como variações presente na linguagem, pensamento e em todos os actos e feitos do homem africa-no. Este supremo valor é vida, força, viver fortemente ou força vital. Isto significa que a força, a vida potente e a energia vital são o objectivo das orações e evocações a Deus, aos espíritos e aos mortos, assim como a tudo que é usualmente chamado magia, feitiçaria ou remédios mágicos. De acordo com Tempels, os Bantu dizem que vão ao adivinho aprender as palavras da vida e aprender a tornar a vida forte. Afiança que em todas as línguas Bantu é fácil reconhecer as palavras ou frases que denotam a força, tal força que não é usada exclusivamente no sentido corporal, mas também no sentido da integridade de todo nosso corpo (ibid.: 22).

Sobre a ontologia Bantu, Tempels afirma que entre os ocidentais, que concebem a sua metafísica com base numa ideia estática do ser, pode se conceber uma noção transcendental do ser, separando a sua forma do atribu-to, a força; mas os Bantu não podem fazer esta separação porque para eles, a força é um elemento necessário no ser, e o conceito de força é inseparável da sua definição, isto é, sem o elemento força, o ser não pode ser concebi-

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do (ibid.: 24). O que significa que, enquanto o ocidente defende um conceito estático do ser, o Bantu defende o conceito dinâmico. Portanto, na ontologia Bantu, o conceito de ser está ligado ao conceito de força, quer dizer, ser é o que possui força. Mas Tempels pensa que podemos ir mais além. Ele afirma que, para os Bantu, ser é o que possui força e que os Bantu falam, agem como se para eles os seres fossem força. Logo, força é mais do que um atributo necessário dos seres: força é a natureza do ser, força é ser e ser é força (id.).

Assim, Tempels sugere que onde o ocidental pensa em termos do conceito ser, o Bantu usa o conceito força; onde o ocidental vê seres concretos, o Bantu vê forças concretas. Quando o ocidental diz que os seres são diferen-ciados pela essência da sua natureza, o Bantu diz que as forças diferem pela essência da sua natureza. Em fim, o Bantu defende que existem força divina, celestial ou terrestre, força humana, força animal, força vegetal e mes-mo força material ou mineral (ibid.: 25), isto é, em última análise, podemos dizer, com Tempels, que enquanto o conceito transcendental ocidental é ser, para ao Bantu esse conceito é força.

Tempels afirma que os Bantu acreditam também que as forças podem ser fortificadas ou enfraquecidas. Quando o Bantu diz que a força está crescendo significa que o este ser está crescendo como tal, na sua própria natureza está a tornar-se forte, e grande; ou em vez disso, a sua força vital está declinando ou a ser afetada. Re-lativamente à hierarquia das forças, Tempels afirma que entre os Bantu Deus está sobre todas as forças, seguido do homem no sentido de ancestrais (seres espirituais) através dos quais Deus comunica a sua força vital com o poder de exercer a sua influência em toda a sua posteridade. Os ancestrais constituem a mais importante cor-rente que liga o homem, no sentido de vivos (força vital soberana) a Deus. O homem, como força vital soberana, regula a terra e todos os seres que nela vive (ibid.: 29-30).

No quarto capítulo, Temples apresenta a teoria do “Muntu” segundo a qual o “Muntu” é uma força viva, a pessoa, o homem. Assim, para os Bantu, o homem é a força viva, a força do ser que possui a vida verdadeira, plena e elevada. Neste sentido, o homem é a força suprema, a mais poderosa entre os seres criados. Ele domina as plantas, animais e os minerais. Estes seres existem pela sentença divina, apenas para a assistência do ser supe-riormente criado, o homem (ibid.: 46).

Sendo assim, continua Tempels, o “Muntu” pode crescer ontologicamente, tornar-se grande, forte; e ao mesmo tempo, pode diminuir, perder a sua força vital e terminar com a completa aniquilação da sua essência, a paralisia da sua força vital, que tira dele, o poder de ser uma força activa, a vital causa, portanto, morre (ibid.:47). Portanto, para Placide Tempels, a essência do pensamento do Bantu baseia-se nesta ontologia da força vital.

O que o padre belga traça e chama de Filosofia Bantu é o que alguns filósofos, de entre eles, Paulin Houn-tondji, pejorativamente designam de etnofilosofia e unanimismo, respectivamente por basear-se na análise de um grupo étnico e por ser uma generalização do pensamento de uma etnia para o conjunto dos africanos. Refiro-me a seguir à crítica de Hountondji à Filosofia Bantu de Tempels, precisamente, a sua acusação de unanimismos.

2. Uma Filosofia Etnográfica e Unanimista

Ao lado dos académicos (Towa, Hountondji, Boulaga, Chahay, para citar alguns) que não concordam, não com a existência de uma filosofia em África, mas com o que Tempels chama de filosofia africana e/ou a forma como procedeu na construção desta filosofia em La Philosophie Bantoue, designando-a de unanimismo, está Paulin Hountoundji. Fundamentalmente, estes académicos acusam a filosofia Bantu de Tempels de carecer de uma análise crítica individual. Isto é, de considerar a filosofia africana como “uma filosofia comunal, uma visão do mundo que não é, por isso, identificável com um indivíduo em particular”. É, assim, “exercida como uma sabedoria colectiva do povo, partilhada por todos os indivíduos na sociedade. Desta forma distingue-se da filo-sofia ocidental ou europeia que é crítica, abstracta, independente e manifestação de um pensamento objectivo” (Odhiambo; 2012:65).

Na senda das críticas a Tempels considero em primeiro lugar a reação de Hountoudji à La Philosophie Bantoue. A consideração separa de Hountoundji se deve ao facto de ter sido o primeiro interlocutor de relevo de Tempels. A seguir ao filósofo de Beni irei considerar outras críticas a Tempels. Faço esta consideração separada

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porque em alguns casos, as críticas a Tempels que vêm depois de Hountoundji fazem referência a crítica Houn-toundjiana.

Dois trabalhos de Hountondji são importantes neste empreendimento, precisamente, African Philosophy: myth or reality e Knowledge as a Development Issue. Neste último texto, Hountoundji apresenta de uma forma breve a sua crítica à La Philosophie Bantoue. O filósofo de Benin começa dizendo que não há muito tempo, havia uma largamente espalhada crença de que a única maneira dos africanos fazerem filosofia é filosofar sobre África. Mais precisamente, que todos os africanos partilham uma visão de mundo colectiva que pode ser designada de filosofia e que tudo que temos que fazer é descobri-la, estudá-la o mais precisamente possível e demostra-la para supressão intelectual do mundo externo (Hountoundji; 2004: 524). Hountoundji faz, assim, alusão ao discurso de Temples em La Philosophie Bantoue.

Hountoundji refere de seguida que muitos escritos foram feitos para descrever a filosofia africana neste sentido. Tais escritos foram lançados no ocidente, no âmbito da etnografia ocidental. No entanto, os académi-cos africanos tomaram este projecto acriticamente como tendo-lhes sido transmitido pela sua tradição. Como resultado disso, surgiram obras como The Rwanda Philosoph of Being; The Luba Notion of Being; The Dialectics of the Burund; The Idea of Old Age Among the Fulbe; The Sense of Honor Among Wolof; The Conception of Life Among the Yoruba; The African Concept of Time, African Metaphysical Clearings, etc. (id.). Hountoundji asse-vera que estes trabalhos são “trabalhos etnológicos com pretensões filosóficas, ou simplesmente, se posso criar a palavra, um trabalho de etnofilosofia” (Hountoundji; 1983: 34). Portanto, pesquisas feitas usando métodos de antropologia e linguagem filosófica.

Hountoundji vê como problema destes trabalhos o facto de que os africanos fizeram isso sem se perguntar, a si próprios, qual seria a utilidade de tais investigações, qual seria o seu significado para eles mesmos (Hountou-ndji; 2004: 529-30). O facto, pensa Hountondji, é que esta tradição definiu implicitamente a tarefa da filosofia africana aos olhos do ocidente. Assim, o ocidente para clarificar que esta não é a maneira padrão de fazer filoso-fia, descreveu-a como etnofilosofia, isto é, a ramificação do erro da etnologia em filosofia. Dito de uma maneira mais exacta, este tipo de investigação foi considerado para criar um novo padrão de prática filosófica específica para África, e em áreas que são consideradas tradicionalmente como campo de pesquisa de etnógrafos e antro-pólogos. Portanto, este novo padrão foi previsto para impedir os filósofos africanos ou os chamados filósofos primitivos ou semi-primitivos de tratar assuntos com sentido e significado universal (ibid.: 530).

A preocupação de Hountondji é concernente a questões do tipo “em que condições a etnofilosofia surge no ocidente como subdisciplina da etnologia ou antropologia? Qual é a relação entre a etnofilosofia e disciplinas como etnobotânica, etnozoologia e etnociências como um todo? Qual é a origem da antropologia em si? O que acontece quando académicos das sociedades até agora consideradas terreno de estudos antropológicos decidem por si fazer antropologia? Como eles têm geralmente operado e como poderiam eles operar agora? qual é a situa-ção em outras disciplinas? O que acontece, por exemplo, quando os académicos africanos fazem pesquisas em humanidades ou em ciências sociais, incluindo sociologia, economia, ciência política, Direito, geografia, histó-ria, psicologia, linguística, ou classics? O que acontece quando eles fazem matemática, física, química, biologia, ciências da computação, astronomia, ou qualquer das chamadas ciências duras? (id.).

No universo das tentativas de respostas a estas questões Hountoundji inclui a sua. Para ele, a reflexão acerca da etnofilosofia leva a conclusão de que este tipo de abordagem foi baseado em ideias erradas, nomeadamente o unanimismo. O unanimismo consiste na supervalorização da unanimidade em prejuízo do debate entre as pessoas que são estudadas pela antropologia (id.). Assim, os africanos tornam-se em objectos a ser analisados e compreendidos, não são para ser envolvidos no discurso, como pode depreender-se na seguinte citação:

“Os africanos são excluídos da discussão, e a filosofia Bantu é um simples pretexto de disser-tações aprendidas entre os europeus. O negro continua a ser o oposto de um interlocutor: ele permanece um assunto, uma face sem voz sob investigação privada, um objecto a ser definido e não um sujeito de um possível discurso” (Hountoundji; 1983: 14).

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Para Hountounji, esta atitude foi mais além ao ponto de praticamente assumir que nas chamadas culturas primitivas, arcaicas, tradicionais ou simplórias, todos concordam com todos. O unanimismo entendido desta maneira diz Hountoundji, “pareceu-me uma forma sofisticada de um dos pecados originais da antropologia, isto é, a supersimplificação das sociedades e culturas não ocidentais” (id.).

Um outro defeito da etnofilosofia e, por extensão, da antropologia, que Hountoundji apresenta e que o con-sidera o mais sério, não tem nada a ver com a concepção errada, mas sim com a inserção social do tipo de discurso. Neste sentido podem colocar-se questões como as seguintes: quem endereça este discurso? A quem é endereça-do? A resposta de Hountuondji é que, obviamente, o discurso não é endereçado às pessoas de que se fala nele, porque o trabalho dos antropólogos é direcionado à comunidade científica, assumido que nenhum dos membros da sociedade pertence a esta comunidade. Ainda mais, espera-se discretamente que nenhum membro desta co-munidade, alguma vez possa pertencer à comunidade científica. A citação seguinte justifica esta afirmação:

Não vamos esperar o primeiro negro da rua (sobretudo se ele for jovem) que nos ofereça uma sistematização do seu sistema ontológico. Todavia, esta ontologia existe; ela penetra e infor-ma todo o pensamento primitivo e domina todo o seu comportamento. Usando os métodos de análise ou as nossas disciplinas intelectuais podemos e devemos prestar aos “primitivos” o serviço de procurar, classificar e sistematizar os elementos do seu sistema ontológico.

Não estamos a afirmar que os Bantu são capazes de nos apresentar um tratado filosófico complete com um adequado vocabulário. Nós é que devemos providenciar-lhes explanação acurada da sua concepção de entes de maneiras que eles possam se reconhecer nas nossas palavras e, assim, concordarem connosco dizendo: “vocês nos entenderam, vocês nos conhe-cem completamente; vocês nos conhecem da maneira que nos conhecemos a nós mesmos (Tempels [1959] apud Hountoundji (2004: 531).

Assim, Hountoundji sugere que o discurso antropológico ocidental é baseado num tipo de exclusão das pessoas. Acrescenta que, quando a antropologia é considerada ou discutida por académicos dos povos que ela estuda, estas circunstâncias não afetam a natureza, o status e o modo do funcionamento do discurso antro-pológico. A condição e a vida das pessoas permanecem excluídas das discussões centradas no ocidente. O seu discurso é orientado externamente. Depende das questões colocadas pelo ocidente e direcionadas a alimentar as necessidades teóricas e, eventualmente práticas, expressas pelo ocidente (Hountoundji 2004: 531).

Hountoundji apresenta a sua crítica de unanimismo no decurso da discussão desenvolvida dentro e fora de África acerca da etnofilosofia. Reconhece que nenhum grupo humano pode viver num conjunto de assunções partilhados por todos seus membros, seja ou não suficientemente sistemático para ser considerados como um sistema de pensamento, de maneiras que, essas assunções representam apenas o material inicial em relação ao qual a filosofia pode se desenvolver como um corpo crítico, pessoal de pensamento (Hountoundji; 1983:17). Suge-re, assim, que o unanimismo devia ser substituído pelo pluralismo, uma abordagem que consistiria, em primeiro lugar, no reconhecimento do facto da diversidade, incluindo a diversidade de opinião e de crenças em todas as sociedades humanas; em segundo lugar, avaliar a diversidade como sinal de saúde ou riqueza cultural, e como condição para uma intensa criatividade, mesmo em sociedades não ocidentais, em vez de vê-la como doença ou uma forma de pobreza espiritual (Hountoundji; 2004:530-1).

Daqui segue que a preocupação de Hountoundji ao criticar o unanimismo etnofilosófico, não é saber se existe ou não uma filosofia entre africanos. Ele garante que existe. A preocupação de Hountoundji é de explicar porquê os “etnifilósofos” concebem a filosofia como um discurso colectivo (ibid.: 55-56) e o que seria a filosofia em África, portanto, textos escritos por indivíduos (filósofos) africanos, para um público africano e não só, e descritos como filosóficos pelos próprios africanos (ibid.: 33 e 54).

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3. O Lugar de Tempels no Pensamento Africano

Para bem ou para mal, La philosophie Bantoue tem um papel preponderante no debate filosófico em África. Esta preponderância deve-se ao facto de ter despertado o interesse sobre a determinação da existência, e por consequência, da natureza da filosofia em África. Como referi na introdução, sobre estas questões existem con-vergências e divergências ao longo da história da filosofia africana. As divergências, como igualmente me referi acima, vão desde acusação de incentivar uma pesquisa voltada para o passado, atrasando assim a evolução do pensamento africano, até a congratulação por ter aberto uma brecha na parede monolítica da ideologia ociden-tal, para a possibilidade de uma filosofia ou, em última análise, de uma produção científica entre os africanos. São estas divergências que apresento nesta parte, com o objectivo de encontrar o lugar da obra de Tempels no pensamento africano. Assim, irei considerar a posição de Mudimbe, Ngoenha, Castiano e Bono.

3.1 A Gnosis Africana como Anterior ao Contacto com o Ocidente

Mundibe faz a sua crítica à Tempels na obra The Invention of África. Apresenta neste trabalho uma espécie de arqueologia da gnosis africana como um sistema de conhecimento em que as principais questões filosófi-cas recentemente têm surgido. Estas questões são referentes, em primeiro lugar, à forma, conteúdo e estilo da “africanização” do conhecimento; em segundo lugar, ao estatuto dos sistemas tradicionais de pensamento e sua possível relação com o gênero normativo do conhecimento. Partindo da interrogação das imagens ocidentais de África, passando pela análise do poder de antropólogos, missionários e ideólogos, até a filosofia, Mudimbe preocupa-se com os processos de transformação dos tipos de conhecimento.

É nesta perspectiva que o filósofo olha o trabalho de Tempels. Pretende que Tempels, com a sua La Philo-sophie Bantoe, o que na verdade fez, foi captar o que já existia entre os Bantu a partir dos conceitos ocidentais. Fazendo isso, em vez de civilizar ou ensinar os Bantu, ele aprendeu com eles.

Mudimbe parte do pressuposto de que, tal como muitos seguidores de Lévy-Bruhl, Placide Tempels de-fende a tese da diferença em termo de razão entre o “primitivo” e o “civilizado”. Para Mudimbe, La Philosophy Bantoe é um cruzamento de uma série de correntes, precisamente, o evolucionismo do seculo XIX, a tese de Lévy-Bruhl sobre o prelogismo, a missão europeia de civilizar os africanos através da colonização e a envangelização cristã (Mudimbe; 1988: 149). Assim, Tempels está comprometido com a missão de guiar o negro (a quem ele não dava ainda o estatuto de um ser humano completo) para o caminho da civilização, conhecimento e religião (id.).

Mudimbe refere que o livro de Tempels teve uma repercussão extraordinária. Menciona o facto de Gaston Bachelard ter considerado o seu livro um tesouro e o facto de Alioune Diop ter mostrado a sua confiança no tra-balho de Tempels, acrescentando um prefácio na versão francesa, descrevendo-o como o trabalho mais decisivo que alguma vez tinha lido. Entretanto, o autor faz notar que o livro de Tempels não teve falta de inimigos. Aponta como um dos inimigos o Bispo Jean-Mix que, considerando-o herético, insistiu que Roma condenasse o livro e que Tempels fosse expelido do Congo (id.). A verdade é que o livro de Tempels colocava em questão a grandeza da aventura colonial.

Mudimbe pergunta-se o que pensar da La Philosophie Bantoe. De seguida apresenta rapidamente algu-mas reações de académicos ao livro de Tempels, nomeadamente as reações de Mbiti, p´Bitek e Tshiamalenga Ntumba. Mbiti considera que a princimpal contribuição de Tempels foi mais em termos de simpatia e mudança de atitude do que em termos de conteúdo do livro. Para Mundime, de algum modo, Mbiti duvida da concepção dinâmica da ontologia Bantu. p’Bitek ataca Tempels por propor uma generalização da ontologia Bantu. Tshia-malenga Ntumba considera que o método usado por Tempels é simplesmente um método de simpatia. Trata-se, para ele, de um método de comparação rápida e superficial, e uma generalização prematura. Assim, sentencia que, se está claro que a simpatia pode permitir uma hipótese, não decorre daí que a hipótese é fundada (ibid. 153). Portanto, para Tshiamalenga Ntumba, o que Tempels fez com a sua proposta da ontologia Bantu, foi cons-truir uma filosofia, não uma filosofia Bantu (id.).

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Entretanto, o nosso autor pensa que, apesar da sua ambiguidade, o trabalho de Tempels não merece as res-postas extremas que lhe são endereçadas. Refere que se pode acusar Tempels por confundir o sentido vulgar de filosofia com uma definição técnica, mas um retomar insistentemente nesta fraqueza, como se, filosoficamente, constituísse um pecado mortal, os filósofos africanos obstruem um desenvolvimento muito útil na filosofia (ibid.: 153-4). Mudimbe refere que, mesmo os discípulos de Tempels que continuam a usar o conceito controver-so do ser-força, geralmente trazem e estimulam visões e concepções africanas. Como exemplo, apresenta Kaga-me, Lufuluabo, Muiynya (ibid.:154). Mas, para Mudimbe, sem dúvida, o livro de Tempels paradoxalmente abriu algumas brechas na parede monolítica da ideologia colonial (id.).

Assim Mudimbe sugere que, se Tempels não tivesse colocado no título do seu trabalho o termo “filosofia”, e se tivesse apenas organizado os seus dados etnográficos sobre os Luba e comentado sobre eles, o seu trabalho talvez fosse menos provocativo (id.). Isto porque, na verdade, para ele, o livro de Tempels pode situar-se no âm-bito da evolução espiritual do autor. Enquanto tentava “civilizar”, Tempels encontrou o seu momento da verdade no encontro com o povo do qual se pretendia mestre. Tornou-se, assim, em estudante daqueles que era suposto ele ensinar e procurar compreender a sua visão da verdade. Durante este encontro, houve um momento discreto de revelação que complicou radicalmente a convicção do civilizador. A aventura terminou no estabelecimento de um tipo de comunidade cristã sincrética (id.: 154). Isto significa, como Mudimbe pretende demostrar no seu livro, que em termos de manifestação de um pensamento abstrato ou sistema de princípios que orientam a sua vida, não é verdade que a África era uma tábua rasa, antes da chegada do ocidente ao continente. Mesmo não podendo se designar filosofia no sentido técnico, o que Tempels descobriu é pensamento de africanos.

3.2 A Tarefa da Filosofia em África

A posição de Severino Ngoenha relativamente o ao pensamento de Tempels e às suas críticas está na obra Das Independências às liberdades. O objectivo de Ngoenha nesta obra é de apresentar o que, na sua opinião, seria o papel da filosofia em África hoje. Na busca deste objectivo faz uma resenha da filosofia em cada época histórica do continente. O empreendimento de Ngoenha é orientado pela crença de que “em cada momento histórico e em cada clima cultural, o filósofo é chamado a fazer emergir a questão do sentido total e dinâmico da situação específica em que se encontra a viver”. Dai que conclui que, como africanos, “à nossa geração, incumbe a tarefa árdua de participar na elaboração de um futuro diferente, do presente que nos é dado viver e observar”. O futuro de África, para Ngoenha, deve ser diferente da realidade presente, portanto, da realidade marcada pela fome, ignorância, mortalidade infantil, a má nutrição, em fim, de um nível de vida degradante (Ngoenha; 1993: 7).

O posicionamento de Ngoenha relativamente ao pensamento de Tempels e às suas críticas resulta, assim, da consideração do que seria a sua opinião no concernente à tarefa da filosofia em África. Olhando para a filo-sofia africana, Ngoenha observa que ela está no sentido contrário da preocupação das sociedades africanas pelo futuro. A ele parece-lhe que a filosofia africana está preocupada com o passado na medida em que tem no centro a etnologia, porque o debate filosófico africano está entre um apoio (Tempels e Kagame, por exemplo) ou uma crítica (Towa, Hountoundji e Boulaga, por exemplo) à etnofilosofia. Face a esta situação, o filósofo moçambicano pergunta “porque, a nossa reflexão que se quer filosófica, isto é, universal e voltada em direcção ao futuro, deve embater necessariamente num discurso etnológico, que é particularmente voltado para o passado? (id.: 12-13).

Ngoenha justifica esta contradição da filosofia africana com uma referência à passagem da etnologia à etno-filosofia. Este movimento, segundo o autor, terá sido iniciado por Tempels. De acordo com Ngoenha, “partindo de dados etnográficos, e servindo-se da filosofia escolástica como modelo, o missionário belga tenta elaborar uma filosofia sistemática do homem negro. A tese principal é que o comportamento do Bantu deve ser com-preendido como um comportamento racional, que se apoia sobre um sistema de pensamento coerente” (ibid.: 81). Depois de Tempels, Alexis Kagame escreve A Filosofia Bantu Ruandês do ser, obra na qual descrever a on-tologia Bantu, a partir da análise da língua Kiruwanda. Estes filósofos teriam, assim, feito surgir a etnofilosofia (ibid.: 83-87).

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De seguida Ngoenha refere-se à insurreição dos filósofos africanos contra etnofilosofia, exactamente, às issureições de Hountondji, Towa, Boulaga e Chahay. O que incomoda ao filósofo moçambicano é o uso filosófico da etnologia e não a etnologia em si. Com efeito, considera que o esforço do etnofilósofo é regressivo porque

“transforma-se num simples observador, ou quando muito, sintetiza um pensamento já cons-tituído, estático e inconsciente. Este tipo de filosofia não teria, segundo os filósofos críticos, um carácter pessoal que toda a investigação filosófica deve comportar. Para a corrente, existe filosofia simplesmente onde existem filósofos individuais e ser filósofo significa, lançar-se pela via da procura livre e permanente da verdade, verdade que deve ser expressa e não completada” (ibid.: 89).

A partir desta reflexão de Ngoenha percebe-se a sua preocupação relativamente ao pensamento de Tem-pels. Ngoenha não está preocupado em questionar a veracidade ou validade da filosofia Bantu segundo Tempels, ou a validade dos argumentos dos seus críticos. A preocupação de Ngoenha é, justamente, o desvio que os fi-lósofos africanos fazem relativamente ao que seria a tarefa da filosofia, quando centram o debate filosófico em torno da etnologia (marca do passado), em prejuízo da futurologia, o caminho para a superação dos problemas da África de hoje.

3.3 O Significado Epistemológico de La Philosophie Bantoue

A obra de José Castiano relevante para a análise do lugar de Tempels no pensamento africano tem como título Referenciais da Filosofia Africana. Em busca da Intersubjectivação (2010). Castiano, nesta obra, preocupa-se com o reconhecimento do africano como sujeito do seu conhecimento, um objectivo que se pode entender como emancipação epistemológica. Assim, descreve o percurso do africano que vai da objectivação, passando pela subjectivação, rumo à intersubjectivação. Isto significa que o percurso do africano na senda da emancipa-ção epistemológica compreende três momentos. O primeiro momento é aquele no qual o africano é objecto de conhecimento para o ocidente. O segundo momento no qual o africano, paulatinamente, vai entendendo que deve ser ele o fautor da sua história, mesmo que fosse para contar a sua história de dor para o mundo. O terceiro e último momento é aquele no qual o africano, como sujeito do seu conhecimento, pretende torna-se interlocutor dos outros sujeitos de conhecimento na construção do seu conhecimento, num processo de intersubjectivação (Castiano; 2010: 34-37).

Assim, para Castiano, Tempels pertenceria ao primeiro momento, o da objectivação. A subjectivação seria marcada pela filosofia profissional, quando avança as suas críticas à etnofilosofia. A continuidade da prática da etnofilosofia, mas na forma crítica, na “posição epistémica de um dialogador” levaria à intersubjectivação (ibid.: 65). De facto, Castiano comunga das críticas feitas à etnofilosofia nomeadamente a crítica à Mbiti pela sua concepção de tempo ligada apenas ao presente e ao passado, e não orientado ao futuro rumo às soluções dos problemas hodiernos do continente; a crítica de Crahaym que acusa Tempels de ter feito confusão entre filosofia e Weltanschauung de tal forma que a sua obra não pode ser considerada filosofia; crítica unanimista de Houn-tondji contra a redução do pensamento dos Bantu a alguns conceitos e a sua generalização como filosofia de todo homem africano. Entretanto, ele defende a prática da etnofilosofia (ibid.: 97).

É neste sentido que o filósofo moçambicano acusa Hountoundji de ter confinado a filosofia Africana a “es-paço geográfico e excluído preconceituosamente a literatura oral com a sua definição de filosofia africana como textos escritos por africano com o objectivo de produzir filosofia africana. Para o filósofo moçambicano é tardia a retratação de Hountoundji, nomeadamente a inclusão dos textos orais na filosofia africana que Hountondji faz posteriormente à acusação da sua definição de filosofia africana de filosofia de elitista. Esta retratação é tardia porque chega depois de ter provocado sérios danos à filosofia africana, exactamente, a sua fixação na busca da

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natureza da filosofia africana, ao invés de produzir filosofia. O dano consistiu no aumento do abismo entre a fi-losofia académica e a dos filósofos sábios, com a consequência de que muitos abandonaram a pesquisa filosófica para que não fossem considerados etnofilósofos ou unanimistas. Assim, a posição de Castiano é de que, em vez dos filósofos africanos se preocuparem em procurar uma filosofia africana, devem refletir sobre a possibilidade de pensar filosoficamente a realidade africana (ibid.: 105).

3.4 A Hipótese de um Primado Cultural dos Negros sobre os Brancos

A posição de Bono quanto ao lugar de trabalho de Tempels no pensamento africano encontra-se no seu tra-balho de Doutoramento com o título Muntuísmo: a ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea (2014). Como o título sugere, o objectivo de Bono é de exprimir a ideia de pessoa por detrás do conceito Muntu. É neste âmbito que lê e toma posição relativamente ao significado da obra de Tempels na filosofia africana contempo-rânea.

Para Bono, La Philosophie Bantoue é “uma obra cuja importância é, provavelmente, mais histórica do que filosófica”. Entretanto, “não obstante os limites intrínsecos, é uma obra relevante, mesmo pelo mero facto de marcar o início da reflexão filosófica africana contemporânea”. Isto porque “Tempels foi o primeiro a afirmar que a religiosidade dos Bantu […] exprime um pensamento metafísico e não mágico, afirmando que a sua cultura representa um sistema filosófico autêntico” (Bono: 2014: 11).

Os aspectos que Bono considera importante na sua aventura de procura da ideia de pessoa em Tempels, a ideia do Muntu, a psicologia Bantu, o homem concreto e a moral Bantu. Bono faz notar que, em Tempels, a ideia de pessoa (o Muntu) emerge “sobretudo, quando este atravessa momentos de particular dificuldade: mesmo se “civilizado” e cristão, o Muntu retorna sempre às suas origens tradicionais”. Tal atitude deve-se “ao facto de os antepassados terem deixado soluções práticas aos grandes problemas humanos como a vida, a morte, a salvação e a destruição” (id.). A psicologia Bantu é derivada da filosofia Bantu. Por isso, não se deve procurar, de acordo com Tempels, entre os Bantu uma divisão do homem em corpo e alma. Deve-se, portanto, procurar o Muntu, uma “força viva, força pessoal, superior àquela de todos os seres animados” (ibid.:16). O homem concreto é “uma incógnita para o outro, até mesmo para o amigo mais íntimo”. Apenas “os adivinhos podem explorar o seu segredo íntimo”. Relativamente a ética, “para a elaboração dos princípios e normas do bem e do mal, os Bantu recorrem à sua ontologia, filosofia e teodiceia” (id.). Assim, os Bantu reconhecem uma ordem natural: os actos que respeitam tal ordem são bons, aqueles que a negam são maus, de modo que o direito e a política são bons ou maus na medida em que são a favor ou contra a ordem e a moral ontológica (ibid.: 17)

Bono considera que Tempels, ao identificar a noção de força com a de ser, anula a diferença entre a ontolo-gia europeia e a Bantu. Entretanto, se considerarmos a acepção de Tempels, vislumbram-se dois modos diversos de conceber o mesmo ser por parte da filosofia ocidental e Bantu: a primeira privilegia a ideia imanente (ideia abstrata) do ser enquanto a segunda privilegia a económica (força vital) (id.).

Concluindo, Bono afirma que

“o ganho mais importante que podemos obter da obra de Tempels é a hipótese de um primado cultural dos negros sobre os brancos, porque os negros teriam chegado primeiro à intuição da ideia de um Deus único. Consideramos esta antecedência dos negros em relação à concepção de Deus único não irrelevante, porque da verdade sobre Deus […] deriva a verdade sobre o homem” (ibid.: 55).

Por isso, Bono sentencia que “com Tempels começa-se a sublinhar quanto a superioridade de uma cultura sobre outra não diz respeito necessariamente ao campo económico, segundo as ideologias ocidentais, mas con-cerne, sobretudo ao da sageza/sapiência”(id.)

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Este seria, de acordo com Bono, o lugar de La Philosophie Bantoue no pensam

ento africano, sobretudo quando a sua ideia central, “o conceito do prim

ado da vida”, na medida que foi sendo “contestado e criticado

largamente, retorna continuam

ente na obra de muitos filósofos africanos.

Em jeito de Conclusão: um

a filosofia crítica e individual inspirada no meio africano

Um

traço comum

das posições a presentadas aqui é o facto dos leitores de Tempels concordar com

o facto de La Philosophie Bantoue ter despoletado o debate sobre a natureza e a possibilidade de um

a filosofia africana. Esta é um

a posição que dá mérito ao trabalho de Tem

pels. A posição não abonatória a Temples que é igualm

ente com

ungada pelos seus leitores é concernente ao facto do padre belga ter chamado de filosofia e generalizado o

seu estudo etnográfico como filosofia de todo africano. A este estudo e aos posteriores feitos pelos seguidores de

Tempels, H

ountoundji chamou de etnofilosofia e de unanim

ismo, sugerindo que não se adequava aos canons

da verdadeira filosofia, de uma form

a geral caracterizada como um

pensamento crítico, individual e escrito. A

crítica de Hountoundji a Tem

pels foi, desta forma, decisiva para o debate sobre a filosofia africana.

Se para Mudim

be, apesar do pensamento de Tem

pels não poder ser chamado de filosofia no sentido técni-

co, ele constitui um reconhecim

ento de uma gnosis africana anterior ao contacto com

o ocidente, para Ngoenha

é necessário abandonar o retrocedimento que a filosofia em

áfrica faz quando se concentra na etnofilosofia e enveredar por um

a busca de soluções aos problemas de África, naquilo que seria a realização da verdadeira tarefa

da filosofia em áfrica, portanto, a em

ancipação económica com

o complem

ento da emancipação política ganha

com as independências. Só assim

o africano alcançaria a verdadeira liberdade. Já em Castiano, não se trata de

abandonar a etnofilosofia, mas de retom

á-la numa reflexão crítica, rum

o à intersubjectivação, que a apresenta com

o condição da emancipação epistém

ica do africano. E, por fim, Bono, defende que a obra de Tem

pels cons-titui um

a hipótese de um prim

ado cultural dos negros sobre os brancos.D

e todo o exposto ao longo do texto vislumbram

-se dois aspectos importantes. O

primeiro é que a possibi-

lidade de filosofar é inerente à humanidade com

o um todo, desde que o ser hum

ano é dotado de racionalidade com

o ferramenta essencial para interpretar e produzir resposta às questões essenciais da sua existência. Estas

respostas não são outra coisa se não o pensamento desse povo. N

este sentido, Tempels está certo quando afirm

a que quem

pretender que os povos primitivos não possuem

um sistem

a de pensamento, por um

lado, exclui-os da categoria de seres hum

anos, por outro lado, contradiz-se fatalmente. O

segundo aspecto é que um sistem

a de pensam

ento não deve ser necessariamente uniform

e, porque a uniformidade pressupõe a supressão do debate

ou uma situação em

que o debate está concluído. Enquanto vivas e abertas à influência, as culturas são suscep-tíveis de debates relativam

ente às respostas que dão às suas situações de existência. O debate é que possibilita a

evolução das culturas. Reside justamente aqui o ponto fraco de La Philosophie Bantoue.

Considerando a afirmação de N

goenha segundo a qual em cada m

omento histórico e em

cada clima cultu-

ral, o filósofo é chamado a fazer em

ergir a questão do sentido total e dinâmico da situação específica em

que se encontra a viver; considerando igualm

ente a definição da filosofia de Hountoundji, precisam

ente, uma filosofia

crítica, individual e escrita por filósofos africanos; considerando ainda a definição de tarefa da filosofia de busca de um

a emancipação epistem

ológica, entendo que, o exercício de filosofar em África deve se inspirar nos pro-

blemas do m

eio africano, mas tam

bém do m

undo em geral, num

a comparação das soluções existentes para os

problemas sem

elhantes e guiar, assim, a reflexão filosófica na construção de soluções com

vista a solução desses problem

as. A solução desses problemas coincidiria com

a libertação do meio de carências socioeconóm

icas. Estas soluções, podendo vir de indivíduos particulares ou colectivo, torna-se individual, na m

edida em que é

sujeito a reflexão do filósofo que lhe dá o significado, de acordo com os problem

as que pode resolver no seu meio.

Se soluções criadas localmente forem

adequadas para resolução de problemas sem

elhantes em outros m

eios, as soluções locais podem

universalizar-se, num m

ovimento que pode se cham

ar de empírico-indutivo. N

os casos em

que as fontes do conhecimento forem

orais, o conhecimento filosófico que resultar da reflexão ou sistem

a-tização da inform

ação fornecida por essas fontes orais, convêm que seja registado por escrito. Isto porque, com

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o desenvolvimento cultural do mundo globalizado as tradições orais estão em risco. Assim, teríamos em Áfricauma filosofia crítica e individual inspirada no meio africano, mas com pretensão de universalização.

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NORMAS EDITORIAIS

A revista cientifica Guti: Letras e Humanidades publica artigos com previa submissão a dupla avaliação anómina de pares.

O Conselho Editorial salienta que só serão aceites os textos que, depois de positivamente avaliados, cum-prirem todas normas estabelecidas, e atendendo, paralelamente, às seguintes observações:

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§1. A rigorosa delimitação do tema/adequação à uma das áreas já destacadas acima será um elemento aser tomado em consideração na avaliação feita pelo corpo editorial;

§2. Serão aceites trabalhos redigidos em português.Art.2 Os trabalhos deverão ser submetidos em duas versões (uma em formato DOC ou RFT e outra em

formato PDF):§1. Cada trabalho deve ser enviado numa mensagem dedicada de e-mail; autores que submetam mais do

que um trabalho deverão enviar tantas mensagens quanto os trabalhos submetidos;§2. No corpo da mensagem, devem ser claramente indicados: nome(s) do(s) autor(es); faculdade, curso

e ano curricular em que o(s) autores está(ão) inscrito(s); contacto(s) de e-mail do(s) autor(es); título do trabalho submetido; nome do professor ou investigador que subscreve a submissão do trabalho;

Art.3 A submissão de artigos deve obedecer ao prazo estabelecido no “call for papers” (chamada para tex-tos).

§1. Na hipótese de haver prorrogação de prazo, a divulgação da nova data final será feita nos mesmosmoldes do presente edital.

Art. 5 Serão considerados entregues no prazo os trabalhos enviados por e-mail até às 23h59 da data final, horário vigente na República de Moçambique.

Art.6 Reservando-se o direito de devolver aos autores e/ou de não fazer seguir para avaliação textos que não obedeçam às normas editoriais da revista.

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Art. 7 Serão analisados somente os trabalhos inéditos e que não estejam em fase de avaliação por outros periódicos.

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§2. O autor deverá responsabilizar-se pela autoria e plágio.

ESTATUTO EDITORIAL

A revista Guti: Letras e Humanidades foi criada em 2017 pela Direcção para Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da UP-Maxixe, através do Departamento de Pesquisa e Publicação.

Áreas cientí icas e ObjectivoA revista Guti: Letras e Humanidades tem como propósito contribuir na divulgação de estudos sobre lin-guística, literatura e filosofia, bem como propiciar a divulgação de trabalhos inéditos de análise da literatura e cultura moçambicana a partir de diferentes disciplinas, o debate acerca da educação, tendo como eixo a proble-mática identidade/universalidade.

Temas e Secções

Guti: Letras e Humanidades tem a periodicidade semestral e comporta as seguintes áreas:• Ensaios e Artigos científicos e de revisão crítica nas áreas de letras e humanidades;• Resenhas de Obras recém-publicadas;• Entrevistas e Dossiers.Divulgada e distribuída em formato electrónico101, a Guti: Letras e Humanidades poderá publicar, even-

tualmente, números comemorativos em formato convencional.

Língua de Publicação A revista publica, nestes primeiros números, em língua portuguesa. Posteriormente, em função da sua

internacionalização, poderá publicar nas mais importantes línguas académicas (inglês, francês).

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Todos os artigos recebidos pela revista serão avaliados pelo editor e encaminhados a dois pareceristas com o grau académico de Doutor, que fazem parte do Conselho Cientifico. Esta avaliação é cega, pelo que não se aceita qualquer informação no texto que possa conduzir ao nome do autor. Apenas o Editor e a Comissão Editorial da Revista terão acesso aos nomes dos autores ao longo do processo de aprovação do artigo.

No processo de avaliação por pares considera-se o seguinte:• Quando os dois avaliadores recusam o trabalho, este é remetido para o autor;• Quando os dois avaliadores aceitam o trabalho, este passa para a fase seguinte;• Quando um dos dois avaliadores recomenda a revisão do texto, este é reencaminhado a um terceiro pare-

cerista. Somente depois deste parecer, caso a situação anterior prevaleça, o artigo será reencaminhado aoautor para melhorá-lo e submetê-lo novamente. Depois da reformulação é sempre feita uma reavaliação.

Em todos os casos, a avaliação tem que ser seguida de um parecer.

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Volume 1 (2018)

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