guimarães arte e cultura | jornal teatro oficina | 1º semestre 2016

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TEATRO OFICINA 2016 GUIMARÃES “O Teatro Oficina tem uma longa história que marca a vida desta cidade, e cuja importância pode ser medida pela relevância que a criação artística contemporânea teve na afirmação recente de Guimarães, como referência nas políticas locais de cultura no nosso território.(...)”

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Page 1: Guimarães Arte e Cultura | Jornal Teatro Oficina | 1º semestre 2016

TEATROOFICINA2016G U I M A R Ã E S

“ O T e a t r o O f i c i n a t e m u m a l o n g a h i s t ó r i a q u e m a r c a a v i d a

d e s t a c i d a d e , e c u j a i m p o r t â n c i a p o d e s e r m e d i d a p e l a

r e l e v â n c i a q u e a c r i a ç ã o a r t í s t i c a c o n t e m p o r â n e a t e v e

n a a f i r m a ç ã o r e c e n t e d e G u i m a r ã e s , c o m o r e f e r ê n c i a n a s

p o l í t i c a s l o c a i s d e c u l t u r a n o n o s s o t e r r i t ó r i o . ( . . . ) ”

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– 2 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

O Teatro Oficina tem uma longa história que marca a vida desta cidade, e cuja importância pode ser medida pela relevância que a criação artística contemporânea teve na afirmação recente de Guimarães, como referência nas políticas locais de cultura no nosso território.Esta história será de certeza um dia contada, e convém que o seja por quem consiga ser mais objetivo do que eu, refém sempre do meu envolvimento demasiado próximo destes últimos oito anos, onde me envolveria fatalmente numa luta insanável entre a falsa modéstia e o orgulho desmedido.Eu, entretanto, para falar do futuro recuo exatamente vinte anos, até um natal em Moreira de Cónegos, onde o meu tio Jorge me fa-lava de uma nova companhia de teatro que causava entusiasmo pela cidade. Eu, no meio dos estudos de teatro em Londres, perdi-do nas dificuldades do pentâmetro iâmbico, e longe de imaginar um futuro profissional em Guimarães, sorri, entre mexidos, for-migos e rabanadas, perante a descrição de desfiles e espetáculos de rua inéditos por estas bandas. Foram tempos que marcaram a cidade, e que influenciaram de forma definitiva o panorama artístico nacional, dando origem a uma nova geração de atores e criadores que hoje são nomes de re-ferência no teatro e na dança portugueses. Depois, o Teatro Oficina foi sendo muitas coisas mais, numa his-tória que se fez de uma transição do amador para o profissional, passando por diversos estilos e modos de fazer teatro, com in-cursões curiosas nos universos das marionetas ou da commedia dell'arte, um pouco ao sabor das diferentes direções artísticas que por cá foram passando. Manteve sempre como companhia uma preocupação em perceber como é que o seu trabalho de criação deveria ser o reflexo de uma ideia de cidade, e talvez seja essa a chave para a compreensão da pertinência, longevidade e resistên-cia do nosso Teatro Oficina. Mais recentemente e ainda antes da minha chegada, e num hori-zonte de uma Capital Europeia da Cultura, a companhia fez uma sábia viragem para as novas dramaturgias, numa preocupação válida e justa com o desenvolvimento da criação de novos textos em português, e para a tradução de inúmeros autores nossos con-temporâneos, o que abriu caminho à incursão de novos modos de criação dentro da companhia. E é aqui que aparece o Teatro Ofi-cina a pensar naquilo que deve ser o Teatro, ou naquilo que pode ser. E para isso abre-se, e deixa-se levar pelas palavras de Will Eno, Jacinto Lucas Pires, José Tolentino Mendonça ou invadir pelos universos de Brice Coupey, Giselle Vienne, Rogério de Carvalho ou Sanja Mitrovic, ou contagiar pelas histórias das Comédias do Minho, da Mala Voadora, da Útero e do Teatro Experimental do Porto. Nesta nossa urgência de contar histórias, fomos também

“ESTE PEQUENO MUNDO, ESTA PEDRA PRECIOSA COLOCADA

NO MAR DE PRATA”

contando uma história paralela da criação artística, misturando territórios e formas de fazer. No fundo no fundo, estamos a ten-tar ser fiéis a essa ideia que não fomos nós que tivemos, e à qual devemos reverência e agradecimento, e que nos obriga a um rein-ventar constante do papel do Teatro Oficina. Uma ideia de cida-de com uma companhia no seu centro, e com a inteligência para perceber que esse centro é móvel, e que quando se mexe, leva a cidade consigo.E é verdade que o Teatro Oficina mudou. E aparece, em 2016, com um dramaturgo residente: Jacinto Lucas Pires. E com uma série de artistas associados à companhia, que não tendo um vínculo permanente desenvolvem um trabalho regular e em relação com a companhia. Nesta equipa estão os atores Anabela Faustino, Alheli Guerrero, Carolina Amaral, Tânia Dinis, Ivo Alexandre, Hugo Tor-res, Nuno Preto, Marta Pazos, André Júlio Teixeira, mas também criadores como Ricardo Preto (cenografia), Susana Abreu (figuri-nos), Jorge Quintela (vídeo), Luis Noain (música), Pedro Vieira de Carvalho (luz) e Carlos Ribeiro (luz). E se este é o lado do Teatro, existe também o lado da Oficina, que se personifica mais na pro-dutora Susana Pinheiro, mas que é na verdade transversal a uma equipa que vai desde quem faz frente de sala, e recebe o espeta-dor, até à menina aparentemente invisível da contabilidade que introduz números num computador.Esta é a equipa que estará a criar os novos espetáculos deste ano, desde estas jacinticas “Grande Cena” e “Um Pontinho no meio dos olhos”, à nossa versão d' “O Conto de Inverno”, numa forma de fazer teatro que coloca o protagonismo no público, agarrando-se ferozmente ao texto.Essa utopia, da cidade real, que se deixa habitar pela ficção, e per-mite de forma coerente e estruturada, que uma e outra avancem lado a lado, por vezes cruzando-se e sobrepondo-se, é a missão que alegremente vamos defendendo. Usando como argumento não a palavra solta e livre dos salões, mas sim a palavra que é ação em ci-ma do palco. Como quem diz, vamos fazendo. Fazer teatro: nos pal-cos do CCVF e da Fábrica Asa, no Espaço Oficina, mas também nas diferentes freguesias da cidade, exclamando enquanto dizemos William Shakespeare ou Carlos Poças Falcão, que isto, este fazer, é de todos, e que dizer estes autores é um ato cívico de construção da nossa jovem e imatura democracia. Lutamos, sem medo dos de-magogos e dos cínicos, por um lugar no centro da atividade da ci-dade, combatendo de cara levantada o centralismo exacerbado, a destruição diária do património imaterial, contribuindo para que na construção do futuro deste lugar se inclua um maior número possível de protagonistas, tornando assim, esta nossa história que vamos contando, mais verdadeira, mais eficaz, mais consequente. Marcos Barbosa, Diretor Artístico do Teatro Oficina

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Se algo é intrínseco na natureza humana, esse algo chama-se co-municação. Ter em comum, repartir, dividir, falar, conversar, pro-pagar. Desde logo, a comunicação tem como fundação o nosso próprio corpo no movimento que gera o pensamento, a ideia, o debate interior, para se libertar a posteriori e procurar o espaço do outro. O pensamento que se liberta em palavra ou em gesto procu-ra a concordância. A voz e a pantomina, ora no “faz de conta”, ora no jogo, ora na sedução capaz de captar o espetador para a neces-sidade de agir perante o dado. O corpo, obra de arte viva, desafia-se a si próprio. Emociona-se! Convoca-nos. É esta a força do teatro.A participação vital que Rancière postula na sua teoria da eman-cipação do espetador poderia servir como base para um reflexão sobre o papel do teatro enquanto operador da transformação que restaura a energia coletiva, que faz do ato de ver um momento de ação. O teatro não como puro vislumbre estético, antes como processo de significado. O teatro enquanto aquele “determina-do espaço” a que Coliini chama político. O teatro enquanto fuga à estupefação, que nos convoca e convida. A inversão de papéis brechtiana. A metáfora que recria e abre outros mundos e tantas

Guimarães, na sua

política cultural, tem vindo a “criar mundos”

através do teatro.

“ALGUÉM ATRAVESSA ESSE ESPAÇO VAZIO ENQUANTO

ALGUÉM OBSERVA, ISSO BASTA PARA QUE O ATO

TEATRAL ESTEJA LANÇADO” (O ESPAÇO VAZIO, PETER BROOK)

outras verdades. Nelson Goodman diz existirem “modos de criar mundos”. O teatro é um desses modos.Guimarães, na sua política cultural, tem vindo a “criar mundos” através do teatro. Tem vindo a falar de nós para nós, abrindo o espaço que medeia o espetador e o mundo, os mundos. Pulleyn, Beckett, Vicente, Shawn, Shakespeare, DeLillo. Quão estranhos poderão ser estes mundos? Que possibilidades orgânicas e afetivas se abrem nesta comunicação? Que mundos são estes que a cultura do teatro nos revela? O teatro é a arte mais próxima da vida, o jogo que Freud diz ser a continuação da infância.Ao longo da sua existência, o Teatro Oficina tem levado a cena inúmeros textos fundamentais da produção teatral universal, dos clássicos à nova criação contemporânea. Tem investido na for-mação de públicos e de atores e tem dado corpo a uma ideia de partilha cultural de que Guimarães nunca prescindirá. Através do teatro. Sim, o Teatro.Longa vida, Teatro Oficina! José Bastos, Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Guimarães

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– 4 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

GRANDE CENA

DE

Texto Jacinto Lucas Pires; Encenação Marcos Barbosa; Cenografia Ricardo Preto; Desenho de luz Pedro Vieira de Carvalho; Interpretação Alheli Guerrero, Anabela Faustino, Ivo Alexandre e Marcos Barbosa;

Produção executiva Teatro Oficina; Agradecimentos Linha Recta – Mobiliário Contemporâneo, Lda · Maiores de 12

J A C I N T O L U C A S P I R E S

QUINTA 28 A DOMINGO 31 JANEIROCCVF / PEQUENO AUDITÓRIO

22H00 (QUI A SÁB) E 17H00 (DOM) “Grande Cena” é uma peça sobre atores. Isto é, sobre o teatro. Isto é, sobre estar vivo agora, no mundo. Mário e Esmeralda, Sandra e Eduardo juntam-se para comer e conversar. Dois casais de atores, com histórias, sonhos, linguagens muito diferentes, tentam divertir-se juntos e acabam por revelar-se no processo. É possível juntar em cena guacamole, terrorismo, alta literatura, cultura pop, comédia barata, teatro isabelino, amizade, casamento, política, memória, desejo e uma quantidade astronómica de mal entendidos, e ainda assim acabar com uma peça de t-e-a-t-r-o?“Grande Cena” é o Teatro Oficina a começar 2016 com Jacinto Lucas Pires. Voltamos a um autor que tem trabalhado muito connosco em Guimarães, e que será durante o ano o nosso dramaturgo residente. Novo ano, novo teatro e uma peça muito nova, para estrear no Pequeno Auditório do nosso CCVF. Enquanto a vamos fazendo, escrevendo, interpretando, encenando, vamos passar por diferentes locais do nosso concelho, num convite olhos nos olhos, para dizer que ensaiando, vamos também convidando todos os habitantes de Guimarães, que o nosso teatro é teatro e é nosso (de todos). Marcos Barbosa

G R A N D E C E N A

Apoio

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– 5 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S G R A N D E C E N A

SOBRE A AGITAÇÃO “E esta coisa de Paris?”, per-

gunta Mário. Tardará um pouco a retomar o tema, mas

ainda há-de falar-se dos aten-tados recentes na capital

francesa, do Daesh e de fana-tismo religioso. Também de

violência no México e de tea-tro. Sobretudo de teatro. É as-sim “Grande Cena”, a primei-ra produção do Teatro Oficina em 2016. É o teatro a falar-nos de assuntos sérios, a questio-nar, a provocar as ideias. Têm sido assim os últimos anos da companhia, quase sempre em-

penhada em colocar-nos pe-rante questões importantes.

O texto de Jacinto Lucas Pires para o novo espetá-culo do Teatro Oficina convocou-me a memória de uma frase de um vimaranense ilustre do século XIX. “Fazer pensar é tudo; e a agitação a única alavanca que pode deslocar esse mundo”, escrevia, em 1884, Alberto Sampaio. O que tem isto a ver com teatro? Nesta conturbada segunda década do século XXI, tem tudo.Vivemos uma era de consensos forçados, de opinião ligeira e de consumo rápido. O alvoroço quotidiano não podia estar mais longe da agitação de que fala-va Sampaio. Essa é uma necessidade permanente de sairmos do lugar, de questionarmos a norma. É a única forma de provocarmos algo novo. E é também todo o contrário da época em que estamos: Tempos em que não é fácil encontrar espaço para a agitação; para confrontar o pensamento equívoco. O teatro tornou-se, por isso, um dos últimos lugares de re-sistência onde podemos tornar a agitação possível.Não há muitos outros lugares onde, pelo menos durante uma hora ou duas, estamos juntos, numa sala. Desligados das desatenções tecnológicas, a olhar para o mesmo assunto, a pensar as mesmas

coisas – necessariamen-te de forma diferente. O teatro, nesta conturbada segunda década do sécu-lo XXI, deve ser este ato de comunhão e este con-vite ao questionamento. O papel de uma compa-nhia não pode ser outro que não o de convocar a agitação. E ainda mais quando se trata, como é o caso desta, de uma es-trutura pública, que ob-viamente tem uma res-ponsabilidade acrescida neste campo.“Grande Cena” será ape-

nas um capítulo novo, porque há muito que o Te-atro Oficina coloca a cidade que o acolhe perante questões vitais. Desde a pré-história da companhia, há mais de 20 anos, que esta tem confrontado Gui-marães com a sua normalidade, de a desassossegar. Esta história de agitação começou aí, mas acelerou-se, nos últimos dez, coincidindo com a afirmação do Centro Cultural Vila Flor e com a Capital Europeia da Cultura.Por exemplo, “Rei Lear”, que acabaria por valer à companhia a Menção Especial nos prémios da Asso-ciação Portuguesa de Críticos de Teatro, começou a ser preparado, em 2012, no Japão e transportou para o palco parte da experiência intensa de uma comu-nidade ainda a viver com as consequências do co-lapso da central nuclear de Fukushima. Na mesma altura, uma criadora incontornável da criação con-temporânea como é Sanja Mitrovic fez-nos entrar por uma fábrica têxtil dentro, encarando de frente as fricções do passado industrial.São apenas dois exemplos, de uma lista que podia incluir a oportunidade extraordinária de estarmos perto de um diretor lendário do teatro nacional co-mo Rogério de Carvalho; as colaborações com estru-turas como o TEP ou a mala voadora; as incursões pelas obras de alguns dos mais relevantes drama-turgos deste tempo, como Will Eno ou Don Delillo; o contributo para a produção dramatúrgica nacional com trabalhos a partir de textos novíssimos. Mas também um trabalho menos visível, levando o tea-tro às freguesias da periferia do concelho, tentando reforçar a ligação ao território, ou o seu trabalho de formação com as turmas de iniciação teatral.Duas décadas depois desde a sua germinação e uma década desde a sua reinvenção, talvez seja o momen-to de o Teatro Oficina fazer este balanço e perceber por onde andou e onde pode ir em seguida. Arris-cando adiantar já uma reflexão que deverá ser mais profunda, creio ser justo dizer-se que o Teatro Ofici-na tem cumprido o seu papel de trazer o mundo pa-ra Guimarães. A capacidade de convocar contribu-tos de vários espaços para aqui confluírem tem sido bem-sucedida e ter permitido manter a agitação que nos faz pensar a todos.Falta, porém, que o Teatro Oficina seja capaz de complementar este trabalho, levando a realização daquilo que faz dentro de portas para outros palcos. A circulação – e por via disso o seu reconhecimento externo – é talvez a mais séria questão que a estru-tura tem que resolver no seu futuro mais próximo. O espaço de resistência que é o teatro é esguio e cabe a

todos alargá-lo. Além disso, por mais relevante que seja o trabalho feito e a capacidade de chegar ao pú-blico que está mais próximo, o questionamento que tem sido uma das marcas desta companhia só está completo quando for capaz de chegar mais longe do que a sua área de influência mais direta. Talvez aí a agitação de que falava Sampaio seja mais evidente.

Samuel Silva, jornalista

NOTAS SOBRE

ESCREVER TEATRO

Usar todos os expedientes pa-ra juntar ilusão e distância —

até que não haja nem uma nem outra, só outra coisa que não cabe em nenhum dos termos.Escrever o mínimo de didas-

cálias; não cair na tentação de “encenar” por escrito. Imagi-

nar tudo com grande pormenor e depois apagar até restar ape-nas o essencial (o coração, o os-so) de cada momento ou cena.

A lição que há no modo distraído e puro com que dizemos as deixas quando, nos ensaios, alguém per-gunta “Vamos de onde?”A ideia de “deixa”: é mais disso que se trata, “deixar” as frases, do que de “fazer” qualquer coisa com elas ou sobre elas.Não ter medo da tensão entre a língua em que es-crevemos e a língua em que falamos. Pelo contrário, usá-la a favor do que queremos dizer.Pausas e silêncios não são vazios; têm existência e corpo. Só fazem sentido como palavras em branco, frases em negativo. (A língua em que ouvimos.)Lição que os atores me ensinaram: uma voz constrói--se à volta de um mistério.Buscar o ponto ótimo em que tudo é normalmente misterioso e espantosamente claro.O teatro é o presente, o “isto” do presente. Exige que se “esteja lá” quando as personagens falam ou fazem alguma coisa.Falas são ações; movimentos de avanço, recuo, ocul-tação, revelação; palavras que querem coisas.Definir um código tão coerente e rigoroso quanto possível para que, no limite, o texto possa valer co-mo uma pauta: música escrita onde tudo está pre-visto, tom, tempo, pausas, interrupções, sobreposi-ções, etc.Em última análise, um texto não se explica. Ou seja, é a sua própria explicação.Achar a forma simples e única de, ao mesmo tem-po, contar a história e contar a história de contar a história.Escrever é pensar o outro, tentar o ponto de vista do

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outro — pormo-nos, inteiros, do “lado de lá”. Nunca esquecer a importância da contracena.Encontrar o terreno limitadíssimo da nossa peça. E depois, cumprindo escrupulosamente esses limites, construir uma totalidade.Falar do que, de verdade, se tem medo e se deseja — por vias travessas.Diálogos são duas pessoas à conversa, mas também cada uma à conversa consigo própria.As personagens são aquelas específicas construções. São aquilo que fazem e dizem ali, daquela maneira. São despsicológicas (perdoem-me a palavra) e não têm “vidas” para trás ou para frente. São o que são na peça. Podem espelhar as circunstâncias concretas em que apareceram e usar o presente de todas as for-mas concebíveis, mas não devem ficar dependentes de certo contexto, atores, aquela encenação, o texto da folha de sala, a explicação na entrevista, a nota de rodapé não sei onde, etc.O conselho mais importante é talvez o da solidão.Economia de gestos e rigor em cada um. Também as ações devem ser substantivas, suficientes, enxutas. Um palco e atores sob as luzes — isso já traz consigo muita História e muito peso. O teatro deve inventar uma verdade (óbvio) mas com uma espécie de (aten-ção, palavras equívocas) pudor ou leveza.Aprender com as cenas silenciosas. Como pode ser fundamental o momento em que alguém decide quebrar um ramo, não pegar numa chave, tocar noutra pessoa.Não impor, “de fora”, um certo tempo às cenas. (“Tempo” usado aqui no triplo significado de dura-ção, ritmo e “sentir”.) Seguir o compasso que as estru-tura “por dentro”. Ver o que nos diz o nosso esquema, mas ver também o que sugere o próprio desenrolar da cena. Ser lúcido, mas confiar também naquilo que os poetas chamam “uma atenção” e os mortais cha-mam “ter ouvido”.Ideias que — desmontadas, retrabalhadas, ilumina-das, esquecidas — se tornam cenas.Não há dois espetáculos iguais, diz-se. De forma aná-loga, também todas as peças devem ser feitas como as primeiras de alguma coisa. Arriscadas com espírito

inaugural, fundador até — peças sempre espantáveis.Tem de haver qualquer tipo de estranheza, ainda que do género mais subtil. Um ligeiro descentramento, um desequilíbrio. Experimentar novas formas de cruzar o “contar” com o “mostrar”. Sem perder de vista que quem conta uma história — num monólogo, por exemplo — se vai revelando nesse contar, e que quem fala sobre coisas sem importância — num diálogo, por exem-plo — conta histórias sobre si próprio.A ideia de pessoas-personagens; personagens que também são atores de si próprios. E a ideia de narra-dores-pessoas; personagens que se autossuspendem para nos darem o seu ponto de vista a partir de dentro.Na zona entre o puro verosímil e o levemente descen-trado, falas que pedem dos atores alguma coisa entre o quase-espantado e o quase-automático.Falas que — não — valham sozinhas. Uma imagem teórica: a cena como um lugar ao mes-mo tempo abstrato e concreto onde há pessoas e dois níveis de matéria: o das coisas-coisas, uma cadeira, uma mesa, uma faca, uma flor; e o das coisas-palavras, uma “cadeira”, uma “mesa”, uma “faca”, uma “flor”.A linguagem é o “onde” de todo o amor, todo o ódio, todo o desejo, etc. As pessoas movem-se é aí dentro. (Dito isto, atenção aos excessos de “linguagem”.)O que se diz deve ser tão claro que, do nada, faça nas-cer alguma coisa. Mas também tão dissimulado que sugira a existência de uma outra coisa escondida ou perdida, uma coisa sempre por dizer. A grande decisão da escrita é, porventura, a do que não se diz. Não começar a escrever até haver alguma coisa no lugar de ser escrita.Tratar os segredos mais negros, as fantasias mais lou-cas, as violências mais brutais, com o máximo de (aten-ção, palavras equívocas) simplicidade e contenção.Utopicamente, ideia=imagem.As personagens devem sofrer alguma transformação, chegar ao fim diferentes do que eram — isto é, “mais iguais” ao que são. A estrutura não serve apenas para organizar ou “emol-durar” um corpo de ideias e imaginações; deve ser o

mecanismo que põe esse corpo “em movimento”. Escrever por uma razão. Mas sem buscar um re-sultado. Escrever desde o fim. Descobrindo o final, descobre-se muitas vezes a chave para desmontar, destruir, re-trabalhar o que está para trás, acertando o texto no sentido certo.(De modo análogo, descobre-se mais facilmente co-mo é que certa personagem fala se se souber o que ela esconde.)Dizer alto as falas. Há uma lição natural no som das frases. A importância da pontuação; de um código que, mais do que ajudar quem lê, ajude a formar aquelas vozes.Se há algo de particularmente estranho e difícil de agarrar nas entrelinhas do texto — algo sobre o qual possivelmente só temos uma vaga intuição —, é melhor parar e tentar perceber o que é. Pode ser (quem sabe? milagre!) alguma coisa mesmo nossa, mesmo nova. No fim de contas, depois de todas as regras ou princí-pios, é na nossa visão que temos de confiar – o nosso primeiro relance, o que nos lançou doidamente na-quele mundo, naquele texto. Conseguir ganhar um mínimo de distância sobre o que se escreveu e pen-sar o que poderá ali haver de um qualquer mínimo novo-verdadeiro.O contrário de uma coisa ajuda a ver melhor tudo o que poderá ser essa coisa.A ficção é sempre uma forma de manipulação do tempo. Tempo que se concentra, que se expande, que se suspende; tempo fora do tempo.Em certo sentido, escreve-se contra a vida. A arte das histórias é uma arte abstrata. Primeiro, toda a loucura, ousar tudo. Segundo, toda a censura, cortar tudo. Terceiro, de novo.Questionar cada palavra, cada pormenor. E depois deixar espaço para o irrazoável.Tudo pode muito bem começar só com uma ima-gem ou uma frase. Ou menos até, um silêncio. (Por exemplo, um silêncio desconfortável, “de elevador”, entre dois desconhecidos, num lugar de onde não podem sair.)

Uma peça é para ser atravessada por

corpos num palco, mas também é “só” um texto —

queira-se ou não, isso está sempre lá.

G R A N D E C E N A

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Por exemplo: numa estação de com-boios um homem, que quer dinheiro rápido, vê uma mulher sozinha senta-da num banco. Por vezes ajuda ser o mais simples possível, o mais prosai-co. Ele faz o quê? Quem é ele? E ela? E o que é que ela quer, em troca? Algumas personagens precisam de um tempo caladas, para as conhecermos bem antes de começarem a falar, pa-ra que não se desmanchem pela voz. Outras só aparecem quando dizem al-guma coisa. Desconfiar das “palavras bonitas”. Pro-vavelmente estarão a mais.Alguns textos precisam de breves espa-ços de respiração: canções, parêntesis, suspensões, humor.As regras não são as da vida, são as do texto — e daquele texto especificamen-te. Há, claro, convenções conhecidas, “universais”, mas cada peça deve esta-belecer e tornar claras as suas próprias leis. Depois, dentro desse corpo coe-rente, pode acontecer tudo e mais al-guma coisa, qualquer subversão, qual-quer impossível.Usar as pausas com moderação — va-lem ouro.Ouvir as opiniões dos outros com aber-tura, franqueza, espírito crítico. Acei-tar tudo o que possa ajudar o desen-volvimento da ideia central do texto. E, em caso de dúvida absoluta, seguir a nossa primeiríssima visão.As limitações práticas (de elenco ou de espaço, por exemplo) não devem ser ignoradas. Pelo contrário, é útil tê-las bem presentes para que possamos usá-las a nosso favor, a favor da peça — e assim vermo-nos livres delas. Uma cena é feita de pessoas num mes-mo espaço num dado momento. A ten-são implícita entre dois corpos já é um acontecimento. Uma pré-frase. Pode-se dizer que quase sempre se escreve em cima disso. Personagens: pessoas que são vistas a fazer coisas; isso faz parte delas, do que elas são. Queira-se ou não, isso está sem-pre lá. (O caráter “ao vivo” do teatro.)Uma peça é para ser atravessada por corpos num palco, mas também é “só” um texto — queira-se ou não, isso está sempre lá.De um encenador, espera-se o má-ximo de rigor na leitura da peça e o máximo de fidelidade ao que ela é (no osso, no coração). E depois espera-se que nos surpreenda.Uma pessoa exposta como um ator num palco já é um começo: desequilí-brio, tensão, pergunta.Não cair na tentação de explicar logo tudo de entrada. Ser “claro” não quer dizer ser “explicadinho”. Tudo o que é informação deve ser dado só quando é realmente necessário.Um final tem de resolver a coisa. Fazer-nos perceber que acabou, que baixa a

luz sobre aquele mundo, aquele assun-to. Um fim é um fim. Pode até ser “aber-to”, mas tem de ser “final”.A difícil arte do “aparte”: o comentário como forma não de estreitar a compre-ensão da história, mas de a fazer expan-dir em novos, insuspeitos significados; de a estilhaçar ou sabotar, de a trans-formar ironicamente, de lhe dar outros lados, prismas novos; de a reescrever.A repetição como máquina de signifi-cação; não como fórmula.O momento especialmente comovente que se segue a uma gargalhada a sério.Enquanto se conta uma história, fazer outra coisa. Por exemplo, desmontar uma ideia feita, fotografar o presente, inventar uma língua.Respeitar as personagens. Não julgá- -las, nem salvá-las. Particular atenção às “metáforas”...É sempre boa conselheira aquela regra do cinema que, em relação à escrita de uma cena, diz “entrar tarde e sair cedo”. Nem tudo é verificável, contabilizá-vel, analisável. O todo, como se costu-ma dizer, é mais do que a mera soma das partes.Não cair no que é fácil e já demasiado testado, conhecido. Mas também não ter medo do óbvio.Dar nomes às personagens é defini-las — no sentido próprio de as limitar, dar--lhes um fim. Não se trata, portanto, de um mero detalhe.O teatro não é um território separado do mundo e da vida; ou só o é como são todas as vidas quando sonham no es-curo. (De olhos abertos! De novo crédu-los e livres como em crianças.)Teatro escreve-se com sotaque. Por ve-zes, pode até parecer conversa mole, mas nunca deve é soar a coisa neutra. O teatro, digo eu, precisa das muitas lín-guas da nossa língua, todas as mil va-riantes e variações, todas as entoações e deslizes, todas as gírias e frases-fei-tas, toda a estranheza, toda a diferen-ça. Tudo o que for pretexto para a vida. E a vida é sempre, claro, a vida toda. Por isso, o teatro não é de fronteiras, de nenhumas fronteiras, mas um país para todos os possíveis e imaginários.Pôr pessoas dentro da língua portugue-sa: elas ajustam-se e ela alarga-se.Escrever teatro: frases só lembráveis, não memoráveis.Lição que os atores me ensinaram: a palavra é um acontecimento físico.Quem escreve: ser muito sério sem se levar muito a sério.Idealmente, comédia=tragédia.Poucas palavras são melhores do que muitas palavras.Jacinto Lucas Pires, escritor

DO SOL.

Quando li um livro do Jacinto Lucas Pires,

pela primeira vez, senti que me estava a

trair. Explico.

Todos os autores que mais admirava, eram norte-americanos ou ingleses, escreviam sobre Brooklyn, LA ou Lon-dres, tinham tido vidas avassaladora-mente entupidas por barbitúricos, fes-tas ou encontros pouco casuais. Sentia que o meu coração pertencia mais ao inglês do que ao português. Pensava: porque raio nasci eu num raio de um país onde se fala esta língua tão estra-nha e que me toca tão pouco. As pala-vras não soavam da mesma forma que em inglês e era tão mais glamoroso ler numa língua estrangeira. A escola não ajuda a amar a nossa língua. Pelo con-trário. Aprendemos a detestá-la des-de pequenos com a caneta vermelha nos erros, com as leituras obrigatórias, com as composições forçadas sobre as férias da páscoa, com a análise visce-ral ao texto e a interpretação única da poesia, do autor. Não sei porque comprei o livro “do sol”. Mas, sei que quando lhe peguei e comecei a percorrer aquelas palavras, não consegui parar. Era uma sensação realmente estranha, de reconciliação com algo que julgava não ser reconci-liável, de amar pela primeira vez, de surpresa. Lia várias frases a mesma vez porque o som daquelas palavras

juntas compunha uma melodia en-tusiasmante. Ouvir uma e outra vez. Uma e outra vez. Uma e outra vez. E depois dei por mim a sorrir, um sorri-so parvo e solitário de apaixonada, de tradução impossível. No início de dezembro, conheci-o pe-la primeira vez. Estava a escrever uma peça para a Oficina e trabalhava com os atores em formato de improvisações para um texto. No silêncio da bancada, observava-o a marcar o ritmo das pa-lavras como um verdadeiro maestro. “Parem. Retomem a conversa naquele momento em que ele começa a falar do espetáculo que quer fazer”. Escrever desta forma é um ato de generosida-de, não só dos atores, como também do dramaturgo que parte em busca de pistas e aceita caminhos traçados por eles. Escolhe palavras, escolhe temas, cria conceitos visuais que são didascá-lias tão soberanas como o ato falado. E depois, pausa. Fala com quem está na plateia a observar, fala como quem co-nhece as entranhas da escrita, a pulsa-ção do teatro e, principalmente como quem se sente confortável a partilhar. Recordo o entusiasmo dos meus alu-nos, da vontade de escreverem assim, da curiosidade do processo de escrita, das ideias que tiveram ao ver aquilo que aconteceu naquele palco. Não tenho por hábito pedir para me assinarem livros, mas o “do sol” é es-pecial. Disse-lhe: “Este foi o primeiro dos teus livros que li. Foi ele que fez com que me reconciliasse com a língua portuguesa. Obrigada.” Cátia Faísco, professora da Licenciatura em

Teatro da Universidade do Minho

Depois de nos últimos anos ter visi-tado Guimarães com

espetáculos de várias companhias, surgiu

agora a oportunidade de colaborar com o

Teatro Oficina.

E é com muito gosto que participo no próximo projeto, pois pude encontrar e reencontrar artistas com quem me identifico (no caso do Marcos e do Ja-cinto, não trabalhávamos juntos há do-ze anos!...).Começámos os ensaios do espetáculo “Grande Cena” em novembro do ano passado. O texto foi surgindo com ba-se em improvisações, a partir das quais o Jacinto fez sair personagens e his-tórias, que agora procuram existir em palco. A partir daí, outra fase do traba-lho; procurar sentidos, encontrar ca-minhos, concretizar. Apesar das muitas horas dentro da sala

de ensaios, temos tido a oportunidade de partilhar o que vamos criando, com grupos de teatro amador de diferentes freguesias de Guimarães. Através da realização de ensaios abertos, o Teatro Oficina convida todos os que queiram a ver o processo de criação por dentro. Uma oportunidade para trocar ideias, para receber um primeiro olhar, uma primeira reação ao inacabado. Criando novos públicos, não só atra-vés do contacto com os grupos de tea-tro amador, bem como apostando em cursos de iniciação teatral, o Teatro Oficina tem criado um público infor-mado, atento e mais crítico, ao longo destes anos. Um grande contributo pa-ra a grande dinâmica cultural que Gui-marães possui.Estamos agora na fase final dos en-saios, todos os pormenores estão a ser revistos e tudo está quase pronto. Só falta o público para haver teatro.O nosso espetáculo estreia no dia 28 de janeiro. O vosso também. Até lá!Ivo Alexandre, ator e encenador

G R A N D E C E N A

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COLABORACAO COM A CIDADEO Teatro acordou e anda pela cidade. A dizer poemas do sublime poeta, a ensaiar de porta aberta num salão paroquial, ou a conversar sobre teatro com um grupo de estudantes na cafetaria da escola. Estamos por aí, com vontade de partilhar o nosso trabalho, e com a cer-teza que esse gesto se transforma num convite permanente. Escrevemos, então, uma his-tória partilhada do nosso Teatro Oficina. Neste ano, e numa ideia de continuidade do que temos feito, e a pensar sempre no futuro, estaremos a trabalhar de forma muito próxima quer com as diferentes freguesias da cidade, respondendo a desafios e desafiando, quer com o curso de teatro da Universidade do Minho, aproximando as artes de quem faz, ao de-sejo de todos que connosco querem fazer.

APRESENTAÇÕES NAS FREGUESIAS DO CONCELHO DE GUIMARÃES

EMAIL (DESTA TUA

MÃE QUE TANTO TE

AMA)

Uma mulher escreve um email ao filho morto. E, durante esse processo, vai contando a sua história, tentando soltar-se do estado de negação em que vive há muito tempo. Agora que a sua vida parece querer voltar a pôr-se em movimento, Maria tenta arrumar a casa e limpar todos os fantasmas. “Email (desta tua mãe que tanto te ama)” é um monólogo feminino, uma comédia agridoce, uma pauta para voz e quarta parede, uma... monóloga?

(...) Talvez não escreva nada aqui no es-pacinho do “assunto”, afinal de contas. O que é que achas? Pode ser, não pode? Se a alma é um vapor de ossos que es-truma a terra para florescermos eter-namente no outro mundo, eu também posso mandar um email sem nada es-crito no espacinho próprio para o “as-sunto” ou não? (...)

Texto Jacinto Lucas Pires; Encenação Ivo Alexandre; Músico José Pedro Ferraz; Desenho de Luz Rui

Azevedo; Interpretação Anabela Faustino; Produção executiva Ninguém · Maiores de 12

D E J A C I N T O L U C A S P I R E S

D E J A C I N T O L U C A S P I R E S

dos nossos pés, dos rabos que sentamos nas cadeiras desconfortáveis... que nos fazem doer desde o cóccix, ó caneco, até ao... (aponta para o centro do pei-to) até... este... até aqui. Desculpem, já vou... peço perdão, mas... Deixem-me recomeçar, sim? (...)

“Adalberto Silva Silva – Um espetáculo de realidade” é o telejornal da alma de um anti-herói português. Adalberto é um solitário e um tímido, o comum dos mortais que se apaixona perdidamente por uma desconhecida no supermercado e conta a sua história de teleponto e auricular, entre anúncios publicitários e interrupções para “compromissos espirituais”. Neste noticiário, não há solenes diretos nem reportagens sobre o nascimento de pandas em zoológicos do Oriente, mas também se apresentam “momentos belíssimos”, “acontecimentos marcantes” e “casos de crise e oportunidade”. Dramaturgo cuja escrita é marcada pelo gosto de baralhar-e-voltar-a-dar géneros, convenções e linguagens, Jacinto Lucas Pires brinca agora com o formato televisivo e os seus tiques e truques. Espetáculo criado em condições austeritárias – resultado apenas do encontro de um autor e um ator, agentes de si próprios, sem encenador, sonoplasta, figurinista, produtor ou companhia –, “Adalberto Silva Silva” é interpretado por Ivo Alexandre, pivô desta comédia de bolso sobre o desejo, o sonho e os chamados problemas práticos. É a sério, sim, e é para rir, pois. Para rir a sério?

(...) Boa noite, bem-vindos aqui, eu sou o Adalberto Silva Silva. Estranho, não é? Dizemos “boa noite”, “bem-vindos”, mesmo quando tudo é mau e nenhuma coisa nunca será bem-vinda. Palavras papagaias, não é? Palavras inteiras que aprendemos a engolir sem mastigar, palavras invioláveis que aprendemos a violar, repetindo-as com cara séria para que o mundo não rebente debaixo

Texto Jacinto Lucas Pires; Encenação Jacinto Lucas Pires e Ivo Alexandre; Interpretação Ivo Alexandre;

Produção executiva Ninguém · Maiores de 12

ADALBERTO SILVA SILVA

UM PONTINHO NO MEIO

DOS OLHOS [ESTREIA ABSOLUTA]

“Abre para cá” é um livro de contos, onde redescobrimos este “Um Pontinho no meio dos olhos”, para na voz desta atriz muito nova, fazer teatro, na primeira pessoa, um pouco por cada lugar da nossa cidade. Contamos um história, de forma simples, abrindo para cá, para dentro da cidade, todo o mundo que esta nova atriz muita nova tem dentro, enquanto a vemos partir, levando a nossa cidade com ela.

(...) O tempo passou (como uma coisa na janela), os dias iam crescendo e a amei-xoeira pequena e bonita estava sempre a mudar. A minha mãe mandou-me uma carta em que me perguntava se eu já tinha namorado e quando é que ia casar e dizia que não era por nada mas

D E J A C I N T O L U C A S P I R E S

Texto Jacinto Lucas Pires; Encenação Marcos Barbosa; Cenografia Ricardo Preto; Desenho de Luz Pedro Vieira de Carvalho; Interpretação Carolina

Amaral; Produção executiva Teatro Oficina Maiores de 12

que a minha prima, que era mais no-va que eu dois anos, já se tinha casado (uma cerimónia maravilhosa) e já esta-va grávida, e que se eu demorasse muito daqui a uns anos nenhum homem me havia de querer, que agora as rapari-gas eram umas desavergonhadas e os homens tinham tudo o que queriam, sem esforço, já não era como dantes, no tempo dela, etcétera, etcétera, e muitas saudades para o meu bebé, da tua que-rida mãezinha. (...)

*Convulsar

(CAIR EM CONVULSÕES)Manifesto de se ser terrível

I.iníciogolpejo.golpejo.golpejo.golpejo.golpejo.golpe-jo.golpejo.golpejo.golpejo.golpejo.Não ignorar a reverberação alevantada e cir-culada à minha frente deste movimento pri-meiro. Há aqui a violência (do que é derradeiro) e celebra-se o iniciar do sistema, olhá-lo nessa abertura. Trabalhar as ruínas, ALtas, de matéria escor-regadia e húmida. Erguidas pelo meio da so-freguidão, em descampados ensolarados, uma presença escura de fundação. Disto de se consumir num atelier, etapas:1. Deparar-me com a necessidade de criar uma metodologia individual de abordagem ao pro-jeto artístico (lançar proposições reconheci-das lalalalalalalala...) - de qualquer dos modos, uma primeira concetualização.2. Relampejar inconsequentemente. As rajadas de ação espontânea. 3. Sofregamente carregar a. 4. Notar o movimento dos olhos que duvidam, registar os lugares que estes olhos tocam, per-ceber como estes encurvam outros pedaços do físico-indagar isto enquanto exploramos.

C O L A B O R A Ç Ã O C O M A C I D A D E

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– 9 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

SERMÕES?

Ao contrário do que possa parecer, isto não é um espetáculo. Nem é um monólogo, nem muito menos uma peça unipessoal. É uma construção, partindo da presença de um ator e de um público, de uma conversa sobre o ato criativo, sobre o ritual, ou sobre o teatro, tendo como ponto de chegada os textos escritos pelo Padre António Vieira, S.J. No falhanço de qualquer acordo ortográfico, construímos da forma mais partilhada possível, um acordo performático. Marcos Barbosa

A PA R T I R D A L E I T U R A D E T E X T O SD E PA D R E A N T Ó N I O V I E I R A

Texto e Interpretação Marcos Barbosa; Vídeo Jorge Quintela; Produção executiva Teatro Oficina

Maiores de 12

5. Premir zonas e atentar ao afloramento de coisas estranhas.II.“...eu e a minha cara na floresta.”1 A proposição é a de compor uma performance em que me descaia ao que me inquieta ferve-rosamente utilizando o conto que me foi pro-posto “Um pontinho entre os olhos” do Jacinto Lucas Pires. LargAR-ME num sítio que treme|luz|.Aferições:Não, já não me apetece empurrar para dentro a dança tal como não me apetece empurrar para dentro o teatro. Abrir, sim, um espaço para as aparições de potências transformadoras, onde estas se es-vaiam. Decido encarar o texto posto, de modo a dele soltar as coordenadas dramatúrgicas orienta-doras para o episódio da fascinação.Assim: falar desse espaço-tempo, sala grande e vazia, da solidão que devemos encontrar-nos para daí surgirmo-nos aos outros mais incon-sequentemente. Reclamo esse habitar aí. É um susto, é alarmante mas é a condição pa-ra que possamos confrontar-nos com o que de nós vamos dizer aos outros (através das ações que tomamos), a nossa individualidade pujan-te. A liberdade de fazer acontecer discurso sem que sejamos pois pregadores de conceitos e ju-ízos que nos foram passados e aos quais não fizemos experiência (e que portanto não pode impedir-nos de nos lançarmos na descoberta de tudo o que nos atravessa por nós), é o âm-bito do recolhimento. Retornar a um espaço em suspenso, vibran-te em que despojada de pretendimentos, me encontro em observação dos acontecimentos, dos fenómenos, dos mecanismos que descor-tino, cambaleando para as paredes esfriadas em que escorro e me restabeleço do que des-cobri que sou.Por isso esta jovem, colocando-se tanto em posições estratégicas de desapego como em situações drásticas atordoantes, vai testando esse território escuro de onde brota. Emanci-pando-se da influência familiar, dos interesses da geração à qual pertence, dos pressupostos associados à sua condição de jovem estudante, ela (de)para-se com a questão da liberdade que pode experimentar por si no mundo em que se encontra. Ela dispara-se. Dança, terror. Aqui percebo que algumas motivações artís-ticas que já se me apareciam reconditamente podem intervir neste lugar. Designo-as através de uma série de movimentos que denuncio Sé-ries de Emergência.#1 A QUEDAprimeiro de tudo, cair.lá, o advir.Só depois deste acontecimento que é um mo-vimento afirmado “de um momento para o outro”,daí, dessa matriz é que se poderá vir a ecoar (=escorrer).#2 DE SE SER ACOSSADOmgrrrrrrrrrr glhglhglh tqvtqvtv bfk bfk bfk tttt-tttttttttttttt zxwzxw jl t mmmmmrrrrs(é pois o corpo que propõe a vogal)Tremer até aos confins, DESTRAVAR.

#3 OS ESPELHOSPara falar comigo para comigo, chamo-me Ali-ce e chamo-me alto. Tem que ver com não temer atravessar os SÍ-TIOS onde dói. Os espelhos estão espalhados até onde eu dei-xo de aparecer que é quando eu deixo de cair. Ainda não apareceu o meu desaparecimento. Nos sítios mais escuros vejo MAL. entro, não identificando o que é que isso constitui. Só o espelho revela para os que miram. Estou den-tro dali e é então que Apareço derramadamen-te. Aí retumbo algo que vem antes de mim e é por isso não me esvou.#4 O RECÔNDIDO. encurvar-se, ativar o corpo côncavo.O poço enquanto lugar de onde se puxa, insis-tentemente.#5 TUDO O QUE ESBRACEJARavisar, assinalar freneticamente o que se avis-tou, o que foi (?)#6 ANDAR DE RASTOScircular sem parar com mesmo muito peso, o que transtorna o reconhecimento.escorregar portanto e deslizar dolentemente. Gemer.#7 O SAGRADOeletricidade estática.#8 EXILARpegar-se e forjar-se daqui. estar de lado, entornar.Isolar regiões revoltosas, deixá-las REVOLTAR.Abandonar o que é tentador naquele canto, deixá-lo cantaROLARDivorciar, deixá-la SOZINHA.#9 JAZER-ALI ESTAR.lidar com os olhares a postos, treinar o desape-go mas deixar o corpo vibrar desafiante.perceber como a ambição faz pender, um de-sequilíbrio que acentua uma parte só, que so-bressai. #10 DESILUDIRApós tantos anos a viver em Guimarães (onde nasci, onde me convulsionei, onde me entu-siasmei pela criação artística, onde experien-ciei processos fabulosos na CEC 2012, local real de onde me lancei, de onde fugi...), surge agora a oportunidade e depois de encontrar torna-dos no Porto, em Lisboa e em Paris, de assaltar, mais propriamente de me pôr aos saltos à ima-gem que poderiam vir a ter os que me repara-ram, apagando com desenvoltura e eficácia o que seria expectável. Afigurasse-me como fulcral este deparamen-to com o público da minha cidade - este que me circundou no meu crescimento, para que me aperceba do que sobrevivi artisticamente e do que trago ribombante, para que compre-enda a reação que invoco nos meus conterrâ-neos (com quem partilho antes de mais uma primeira identidade cultural e uma memória coletiva local) e para que possa induzir-lhes e remoer-lhes profusamente de paisagens ines-peradas e chocantes. Carolina Amaral, atriz

1 in “Um pontinho entre os olhos”, Jacinto Lucas Pires.

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– 10 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

EM FUSÃO

Ao longo dos últimos anos, alguns teóricos do teatro têm vindo a testar a aplicação do

conceito de “fusão concetual” [“conceptual blending”] à ex-

periência do espetador de teatro. A sua novidade é

muito promissora, sobretudo quando permite uma reavalia-

ção de conceitos clássicos na teoria do teatro, tão estimá-veis quanto rebatíveis, como

“empatia”, “identificação” ou “distanciamento”.

A fusão concetual consiste na atividade cognitiva de combinar diferentes perceções ou categorizações so-bre perceções, de um evento ou de um objeto, cons-truindo um conceito “universal” com base numa abstração que permite isolar uma caraterística, ou caraterísticas, que são comuns ou mais salientes ao longo de uma série de perceções do mesmo fenóme-no. É deste modo que, comparando várias observa-ções de cavalos, conseguimos chegar à forma cara-terística do cavalo. Ou do rosto humano. Os jogos de “faz-de-conta”, que as crianças come-çam a praticar a partir dos 2 anos são instâncias deste exercício de fusão. Através deles, a criança vai compreendendo os limites de conceitos como “eu”, “outro”, “próprio” e “diferente”, ao mesmo tempo que ensaia a sua sobreposição. Através destes jogos, emerge a noção de “papel”, no sentido de função ou estatuto, à medida que a criança vai imitando as ati-vidades diárias daqueles que as rodeiam. Um dado significativo, que tem sido sublinhado por vários psi-cólogos, prende-se com o facto de, ao longo destes jogos, a criança procurar reservar sempre para si a possibilidade de colocar, a qualquer momento, um pé fora do “faz-de-conta”, rindo-se daquilo que está a fazer ou assumindo, em geral, aquilo que chama-ríamos um meta-comportamento, a observação, do exterior, daquilo que está a fazer.Estes dias no conjuntivo (“e se?”) das crianças têm sido interpretados, por vários filósofos contempo-râneos, como estando na origem da experiência fic-cional e, em particular, como constituindo a base da experiência do espetador de teatro. Em Um ator prepara-se, Stanislavski referia-se ao “se mágico” que rodeava a ida ao teatro e colocava na base do trabalho do ator a mesma questão que a criança se poderia colocar ao iniciar mais uma tarde de brinca-deira: “se eu fosse esta personagem nesta situação, o que é que eu faria?”

Este trabalho de composição de um “faz-de-conta” processa-se a partir de um exercício de fusão conce-tual. A criança ou o ator vai combinando, progres-sivamente, caraterísticas suas com caraterísticas da personagem que considera mais salientes. Porque se trata, desde logo, do talento para avaliar o que é mais ou menos saliente naquilo que está a ser repre-sentado, este exercício carateriza-se por uma enor-me seletividade, aproveitando-se traços que passam no filtro, barrando outros que poderiam baralhar o processo de fusão. Ao descrever a princesa Salomé da sua peça, Oscar Wilde pedia que a vestissem de verde, “como um lagarto”, para que a sensualida-de reptiliana da filha de Heordíades fosse mais rapidamente integrada pela atriz que desem-penhasse o papel. Pode acrescentar-se que, nes-te processo de osmose, a criança aprende igual-mente a eleger, de entre as caraterísticas que lhe são próprias, aquelas que melhor podem servir o desenho do faz de conta. Uma parte considerável da construção do género passa por aqui.Este trabalho de fusão pa-rece repetir-se na experi-ência do espetador, que se caracteriza por uma combinação / fusão en-tre caraterísticas da per-sonagem e traços idios-sincráticos do ator. Uma fusão que é igualmente marcada por uma grande seletividade: o espetador “ignora” que Lear morre no final, sobretudo se já viu a peça, e barra cons-tantemente a intromissão da persona do ator, para que “Jorge Andrade” não impeça o acesso a “Hamlet”. Quando tal não acon-tece, e quando o ator interrompe o “fluxo” ficcional, travando esse vaivém entre personagem e ator, ocor-re aquilo que os psicólogos designam por “pop out”, pelo que deixamos “no” ator a personagem.A fusão tem vindo a impor-se como uma explicação alternativa às venerandas noções para-aristotélicas de empatia, reconhecimento, identificação ou ao brechtiano distanciamento, como modelo para a ex-periência teatral. O modelo aristotélico impunha a ilusão como condição necessária para a “suspensão da descrença”, na estafada fórmula de Coleridge, pois só assim se lograria a identificação pré-catár-tica do espetador com a personagem. Brecht via no teatro um instrumento para uma contínua desmiti-ficação dos processos burgueses de obscurecimento

da realidade, o que supunha o exercício permanen-te da competência do espetador para furar o véu de Maya que o ator insiste em puxar sobre si próprio. Uma explicação do teatro assente em noções como a de fusão concetual prefere pensar a experiência do espetador como uma passagem contínua entre com-preensão ficcional e consciência do artifício mas sem nunca abandonar qualquer dos elementos do vaivém. Este modelo explicativo parece correspon-der mais exatamente à fenomenologia do espetador de teatro. O fascínio pela densidade semiótica e psi-cológica da personagem avança e recua à medida que oscila a nossa admiração pelo trabalho perfor-

mativo do ator – ele pró-prio ativando um mesmo tipo de oscilação entre a consciência do sentido da peça e a atenção pro-saica ao ambiente na pla-teia ou ao estado de espí-rito dos colegas. A flutuação ao longo des-te exercício de fusão é um dado perfeitamente admitido e todos os par-ticipantes acabam por ser conduzidos a uma re-flexão sobre a duplicida-de inerente ao teatro. Em outras culturas teatrais, atingir esta fusão de ele-mentos pode ser ainda mais exigente, como no caso da dança-teatro Ka-thakali, na Índia, onde para elaborar uma mes-ma personagem é neces-sário o trabalho conjunto de um ator / bailarino, um cantor / locutor e um con-junto de músicos percus-sionistas.De um ponto de vista evo-lucionista, a prática da fu-são concetual no teatro estimula o mesmo traba-

lho de ligações neuronais que resultava tão valioso no jogo de “faz-de-conta” da infância. De um ponto de vista ético-político, tanto pode ser tido, “aristo-telicamente”, como fomentador de uma maior com-preensão do outro – pelo exercício da nossa capaci-dade em simular uma personalidade alternativa de crenças e desejos – como, brechtianamente, uma via de ensaio sistemático da nossa capacidade para nos darmos conta dos mecanismos da ilusão. Em todo o caso, é uma experiência que deve ser defendida co-mo valiosa em si mesma, sem nenhuma justificação adicional, como o valor inestimável do riso da crian-ça quando se dá conta dos modos de fazer de conta. Vítor Moura, diretor da Licenciatura em Teatro da Univer-

sidade do Minho

De um ponto de vista evolucionista, a prática da

fusão concetual no teatro estimula o

mesmo trabalho de ligações neuronais

que resultava tão valioso no jogo de

“faz-de-conta” da infância.

ESTUDAR TEATRO

C O L A B O R A Ç Ã O C O M A C I D A D E

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– 11 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

Como um jovem artista, recentemente inserido no meio profissional, zelo pela minha área, aliás, como qualquer outro profissional, com gosto pela sua atividade, zela pela do mesmo.

Só que, infelizmente, quando falamos da área artística, o zelo e o cuidado por estas tão sensíveis práticas, por muito grandes que sejam, não são suficientes. É muito difícil a arte

tornar-se autossustentável, pelo menos no nosso país. Não há incentivo cultural, ou pelo menos o que chegue, em diversas regiões deste nosso canto de antigos conquistadores de

quem tanto nos orgulhamos.

Ao lerem o parágrafo que antecedeu este, já devem ter alguns juízos de valor quanto à minha parte, co-mo por exemplo, “Olha mais um a queixar-se que nada está bem e tudo vai mal. E que ser artista é que é difícil e tal.” Permitam-me que pare as vossas ava-liações em relação a mim, pois não foram essas as ra-zões que me levaram a escrever este texto. A minha intenção é bem contrária àquela que estas primeiras linhas apontam. Escrevo este texto não para apontar o dedo a quem não apoia a cultura, mas para valori-zar a quem, e muito bem, o faz. Valorizo todos aqueles, que de forma direta e indire-ta, apoiam e contribuem para a cultura. Não, esta não é a minha forma de homenagear as pessoas que referi antes, mas é a maneira de lhes mostrar o meu apreço por elas de forma breve e cla-ra, e isto por dois motivos. O primeiro porque se fos-se nomear individualmente a cada um as páginas desta edição não seriam suficientes, assim como as palavras, e o segundo porque vou ser mais específico e escrever sobre um caso em particular. A cidade que

me acolheu durante três anos como estudante e me acolhe pelo quarto como profissional, Guimarães. A cidade onde nasceu Portugal é, provavelmente, uma das poucas urbanizações que mais impulsiona e apela à cultura nacional e internacional. Por algu-ma razão terá sido Capital Europeia da Cultura em 2012 e que continue a parecer todos os anos. E isto deve-se não só ao facto de ser uma cidade bastante proactiva e energética, mas também às organizações que lhe pertencem e trabalham em prol de melho-rar cada vez mais os meios constituintes da mesma. Como um jovem artista é reconfortante ver uma ci-dade tão empenhada e interessada na cultura, e ver a capacidade de várias instituições trabalharem, em conjunto, no sentido de alcançar os seus objetivos, cada vez mais ambiciosos, de forma a continuar a enriquecer e a estimular culturalmente, não só a ci-dade, mas também o país. Guimarães tem um rol extenso de atividades, espetáculos e festivais, como o Guimarães Jazz, os Festivais Gil Vicente, o Festival de Inverno, entre outros, muitos destes organizados

e promovidos pela Oficina, que é a organização que mais contribuiu e de forma bastante relevante para o desenvolvimento cultural da cidade. É bom saber que há pessoas que se interessam com a área e fazem tudo o que puderem para que ela persista e a levam como uma parte séria da sua vida, ou até é mesmo a sua vida. É bom saber que há pessoas que levam este interesse mais além e tentam criar oportunida-des para os mais jovens se inserirem no meio, ou pe-lo menos estar mais perto dele. É bom saber que há pessoas que se juntam e criam organizações como a Oficina com o objetivo de o futuro da arte e dos artis-tas tornar-se progressivamente mais seguro. É bom saber que existem locais em que nos podemos sentir abrigados e acolhidos por obras e peças incríveis que muitos se esforçam para nos poderem proporcionar.Mário Alberto Pereira, ator (licenciado em Teatro pela Universidade do Minho 2012-2015)

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TURMAS DE INICIACAO TEATRAL

PLÁGIO

PIRAN-DELLO

APRESENTAÇÃO DA TURMA PROTÓTIPO

APRESENTAÇÃO FINAL DAS TURMAS DE

INICIAÇÃO TEATRAL

QUINTA 18 E SEXTA 19 FEVEREIROESPAÇO OFICINA

21H30

Quem tem algo a dizer que levante o braço e diga. Mas que diga mesmo. Com o corpo entregue à palavra. Com a palavra ao serviço da imaginação. Com a imaginação ao encargo da vontade. Se alguém tem algo a dizer que o faça... completo. Que não seja uma mera imitação das palavras de um autor. Que levante o braço e que o corpo vá atrás. Até lá serão apenas massas que transportam as palavras de um autor. Meras imitações da vontade de um encenador. Em “Plágio” encontramos um grupo de massas que debitam palavras de um autor. Debitam-nas porque foram ensinados a fazerem-no daquela forma. Sem saber muito bem porquê. Sem o questionarem. Até ao momento em que as massas desaparecem e decidem levantar o braço. Ganham voz. Revolucionam-se. Revolucionam-se contra as “páginas” que os registavam. Mas se alguém tem algo a dizer que o faça completo sem ir atrás ou será sempre uma massa plagiada de alguém, de um autor. Nuno Preto, ator e encenador

DOMINGO 22 MAIOCCVF / GRANDE AUDITÓRIO

17H00

Este é o verdadeiro espetáculo da cidade, onde quem levantou o braço e disse: sim, eu quero fazer teatro, se encontra num grande palco, e atravessando um enorme espaço vazio, olha o público olhos nos olhos. Nuno Preto encena, e atores todos muito novos, de idades muitos díspares, e todos bastantes valentes, festejam a alegria de estar dentro do grande teatro do nosso mundo. Quem vem? Quem vive?

T U R M A S D E I N I C I A Ç Ã O T E A T R A L

Turma ProtótipoFrancisca SilvaBruno BarretoAngelina SilvaElisabete AbreuNuno PachecoEdite MendesDiana VianaMaria LisboaRui CunhaElisabete EustáquioIsabel MouraPatrícia CarvalhoPaulo SilvaFilipa PereiraPatrício TorresPedro Lemos

Turma Adultos Iniciação Iola CastroAntónio MatosCristiana GomesAlbertina CastroNuno CastroAndreia SoaresMaria Teresa CoimbraAna Francisca RibeiroSara CamõesMaria de Fatima SilvaMaria Inês GonçalvesMaria José CarvalhoRenato BacêloRosana MunozElisabete TeixeiraJoaquim SilvaPaula PintoSilvia FreitasDalila FernandesAdriana FerreiraTânia PintoAndreia RibeiroFrancisca PereiraLara Linhares

Turma AdolescentesVania TimóteoRita MagalhãesRodrigo DiasAna João SilvaJoana RibeiroBruno PereiraTeresa CarvalhoEduarda SilvérioBeatriz RodriguesElsa Machado Turma InfantilTeresa RibeiroAna Leonor FerreiraMatilde CostaInês CastroMargarida AmaralAna Sofia GonçalvesMafalda FreitasSimão CunhaBeatriz FernandesLucas Sampaio

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– 13 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

“Qual o verdadeiro impacto da cultura?” A pergunta é do

Jornal de Negócios, a resposta que por lá se encontra é cara-terística da tipologia do jor-

nal. E qual será?

Pessoalmente, já não consigo responder de forma isenta, o impacto é diário, seja por “bater com a cabe-ça na parede”, potente de impacto; seja pela realiza-ção de um projeto que sempre quis fazer e sentir-me realizado com ele, também potente de impacto mas com uma expressão bem diferente. Bom, impacto tem. Se a questão me fosse dirigida a resposta seria breve, nada impactante, mas eu faço parte dos 10% que o Jornal de Negócios designa por “trabalhadores das artes do espetáculo”.Agora, ao colocar a questão aos 90% que sobram, quantos se sentiriam impactados por ela? Quantos se sentiriam com vontade de responder? Quantos responderiam com outra questão?E a questão é errada, a meu ver. A verdade é que não deveria criar impacto nenhum.Impactante é assistir a um tsunami. Impactante é ver alguém que não se vê há muito tempo. Impac-tante é um pimento padron realmente picante.E a “cultura” não deveria criar impacto, deveria, sim, estar presente, enraizada, sustentada. E a palavra “sustentada” não aparece com o mesmo significado que o Jornal de Negócios nos dá. A “sustentação” neste texto, esta “sustentação” da “cultura” não existe na maior parte dos casos.

Quando me perguntam o que me levou ao teatro e o que sin-to desta experiência, é difícil dizer alguma coisa que ainda

não tenha sido dita.

Não vão ouvir nada de novo ou revelador da minha parte. Não sou escritora nem poeta, não tenho o dom da palavra nem da escrita. Só sei o que sinto. Todos os clichés se adequam aqui, tudo o que ouviram falar do teatro é verdade, multiplicado por dez! A alegria, o êxtase, o encantamento, mas também o medo e o pânico, às vezes. Tudo existe, e tudo é bom! É uma aprendizagem contínua, descobrimos fraquezas e limitações e somos desafiados a ultrapassá-las. Cres-cemos conhecendo-nos melhor. É um desafio cons-tante, é divertido e estimulante. No teatro só nos pedem uma coisa, que sejamos nós próprios, e que libertador que isso é! O teatro conquistou-me, en-volveu-me, tem-me levado por caminhos que nem sabia ser capaz de percorrer! E poder fazer isso com pessoas tão diferentes de mim, com visões e objeti-vos diferentes é o que de mais bonito e enriquece-dor levo daqui! Para mim o teatro são as pessoas, o contato, a partilha de ideias, de desejos e medos. O teatro para mim é isso tudo, um sentimento! Ah e os aplausos, os aplausos são realmente qualquer coisa de muito viciante!!!Andreia Soares, aluna das Turmas de Iniciação Teatral

Mas não existe se persistirmos, se apenas quisermos criar com “impacto”. Não existe se o pensamento for moldado pelo “im-pacto”.Não existe pelo impacto. Não existe. Até se poderá inventar um ano de projetos impac-tantes que o impacto vai desaparecer, desaparece de malas aviadas para outra “freguesia”, porque o dia a dia é uma seca, é um marasmo, é um mar cal-mo, são pessoas desconhecidas, são pimentos indi-ferentes ao paladar. Este é o dia a dia. E não é mau. E é precisamente neste dia a dia que a “cultura” aos poucos se tem que enraizar, sem estrondo, mas com um dia seguinte um pouco diferente. Um estômago bem melhor. Alguém que se conhece aos poucos. Uma paisagem bem mais calma, sustentada. Fazer da “cultura” uma coisa cultural. Realmente cultural. Daquelas banalidades que por tão enraizadas estarem, já nem se notam (aparente-mente). Faz parte. Deveria fazer parte. E os finais de tarde no Espaço Oficina são de forma entusiasmante uma seca, são peculiarmente repe-titivos. São o dia a dia e deixa-me feliz ver que de uma Turma de Iniciação Teatral se vai criando uma acidental comunidade cultural.Por isso, qual o verdadeiro impacto que a cultura tem? É uma questão que me deixa triste enquanto décima parte percentual. Por se colocar e por ainda se falar dele: do pimento padron, do tsunami, desse amigo que não se vê há muito tempo.Nuno Preto, ator e encenador

E a “cultura”

não deveria criar impacto,

deveria, sim, estar presente,

enraizada, sustentada.

O problema é quando

a luz apaga.

Nos dias de hoje há uma famí-lia que impera: a família de

nome "Automático". É quase divina, pois parece estar pre-sente em todo lado e aparece

de muitas formas.

Os automáticos apresentam-se quase sempre com ar moderno e inteligente.Queremos abrir um carro, carregamos no botão e é automático, o carro abre.Queremos ir ao 18º andar de um prédio, carregamos no botão do elevador e é automático, lá subimos.Entramos na casa de banho de um restaurante e a luz acende, é automático.O problema é quando a luz apaga.Lá começamos a rabiar, a erguer um braço ou a esti-car uma perna para luz acender novamente.E quando ela volta, já trás consigo uma pocinha à volta do urinol!O automatismo às vezes também falha.Por isso, temos de estar preparados.Também no teatro aprendo a estar preparado para a falha.Aquela coisa de poder esquecer uma deixa ou entrar em cena fora de tempo dá uma vertigem na barriga, que quando começamos a atuar parece que entra-mos em piloto automático.

T U R M A S D E I N I C I A Ç Ã O T E A T R A L

Mas o mais viciante do teatro é a falha, ou antes, o recuperar dela. Quando olhamos para o outro ator a pensar - fod*-se, e agora?! quem é agora falar?! - e temos de improvi-sar no meio da cena para a coisa não ficar a meio ou acabar no nada, esse sim, é o sal.É isso que me dá a adrenalina para continuar em palco. O palco que me dá mais cor.O teatro dá-me a oportunidade de improvisar e, com isso, ajuda-me a criar.O teatro ajuda-me a libertar de um mundo cada vez mais automático (infelizmente, o nosso).Pedro Lemos, aluno das Turmas de Iniciação Teatral

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– 14 –T E A T R O O F I C I N A 2 0 1 6 G U I M A R Ã E S

TRADUZIR PARA O

TEATRO – HOSPITALIDADE,

PARTILHA E EMPODERAMENTO.

Quando se traduz para o tea-tro e, no caso de Shakespeare, gostaria de destacar três pon-tos que precisam ser levados em conta para a produção de

um texto aceitável.

1. O texto literário traz consigo uma série de deter-minantes linguísticas e culturais impostas por uma cultura que não é o da língua-alvo nem mesmo do público contemporâneo Inglês. Apesar de no caso específico de Shakespeare, que contribuiu tanto pa-ra a forma da linguagem que é usada nas diferen-tes variedades do Inglês hoje faladas, não podemos ignorar o facto de que essa língua que foi ori-ginalmente usada pe-los atores isabelinos era um perfeito mis-tério para os vários sé-culos de tradição de palco inglês. Toda es-sa tradição de representar Shakespeare funcionou na língua que os atores e o público partilhavam ao longo da história, tentando ser fiéis ao Bardo. Os lin-guistas David e Ben Cristal têm-se dedicado a pes-quisar qual o som da pronúncia original das peças

de Shakespeare, a que se usaria na dicção na época isabelina. Esse longo trabalho de investigação deu frutos práticos em 2004 quando se apresentou no Globe a primeira produção completa em Pronuncia Original de Romeu e Julieta.2. O texto traduzido, ou o original são parte de um pro-jeto maior, um processo de comunicação teatral mais

amplo como Keir Elam tão bem descreve com o seu modelo de comunicação tea-tral simplificada, (Elam 1980, 24). Por isso, o texto

traduzido é parte de um todo inteiro, cuja responsa-bilidade está nas mãos finais do diretor. No palco, o texto é apenas um componente da peça e nem sempre o mais importante3. Contudo, gostaria de propor que o tradutor

O C O N T O D E I N V E R N O

QUINTA 15 A DOMINGO 18 SETEMBROCCVF / GRANDE AUDITÓRIO

22H00 (QUI A SÁB) E 17H00 (DOM)

Escrita em 1610-11, esta peça foi inicialmente publicada em 1623. “O Conto de Inverno” é um conto de fadas trágico. Não. “O Conto de Inverno” é uma comédia pagã. Quer dizer… Também é uma peça cristã, de certa forma. E é realista e romântica. Idílica, talvez? É uma peça sobre o amor, o milagre, o dom, a ressurreição, o perdão. É, sobretudo, uma peça muito sobre o teatro. É por isso que, neste ano de 2016, a levamos a cena, nos 400 anos da morte do autor.

O CONTO DE INVERNO

DEW I L L I A M S H A K E S P E A R E

Encenação Marcos Barbosa; Tradução Fernando Villas-Boas; Cenografia Ricardo Preto; Desenho de Luz Pedro Vieira de Carvalho; Figurinos Susana Abreu; Vídeo Jorge Quintela; Direção Musical Manuel Fúria; Músicos a confirmar; Piano Luis

Noain; Interpretação Alheli Guerrero, Anabela Faustino, Carolina Amaral, Borja Fernandez, Diego Anido, Fernando Epelde, Hugo Torres, Ivo Alexandre, José Diaz, Marta Pazos, Nuno Preto e Tânia Dinis · A classificar pelo IGAC

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também é um autor criativo. Seguindo a proposi-ção de Susan Bassnett sobre da capacidade autoral e criativa do tradutor," a tradução não é nem mais nem menos que a interpretação que um leitor faz de um texto. Isto significa que o tradutor é o reescritor criativo desse texto".Consideramos que literatura em tradução, mesmo quando se utiliza a linguagem normalizadora do im-perialismo, pode ser um processo emancipador. Se-amus Heaney identificou que este processo dá aos tradutores uma sensação de liberdade de expressão que de outra forma seria problemática em face das linhas de tensão da memória histórica e da pressão para se identificar com objetivos políticos dos gru-pos contemporâneos, como foi o seu caso em mui-

tas das suas traduções de tragédias gregas. (Heaney, 1989, 15) Traduzir peças gregas para inglês dava a possibilidade de expressar de maneira distanciada problemas que são muito prementes e fraturantes para serem abordados num contexto de conflito con-temporâneo. Dá-se assim um espaço possível de ex-pressão, um lugar onde se podem criar imagens, ex-por o que é muito estranho ou doloroso num espaço consensual, acolhedor de diferenças.Para Yeats, a tradução tem um papel fundamental na formação de "imagens para os afetos", porque atra-vés da tradução os indivíduos percebem que, apesar das distinções entre línguas e culturas, partilham com todas as outras pessoas essa capacidade de cria-ção de linguagem. Para Robert Welch, a tradução é uma legítima indagação intelectual:Toda a legítima indagação intelectual pode ser vista como um tipo de tradução: toma um texto, uma fase da história, um evento, um instante de reconheci-mento, e passa a entendê-lo, revivendo-o no proces-so de recriação [...] nesse estado de mudança e sua re-criação o objeto revela-se mais completamente do que nunca. (Welch, 1993: xi)Defendendo o seu postulado sobre o uso da lín-gua de modo livre e autónomo no Manifesto pour l'hospitalité, Derrida apresenta-o num quadro mais político, o dos limites do uso da linguagem. Em úl-tima instância este argumento leva à proposição de uma maior liberdade na tradução. Como Benjamin argumentou em A Tarefa do Tradutor isso teria o objetivo de libertar die reine Sprache, a sua própria língua que está sob o domínio de um outro (autor); o trabalho do tradutor será o de pelo processo de re-criação /tradução libertar a sua língua que está con-tida nesse texto (Benjamin 1992: 81).No caso de Shakespeare, como em outras traduções para o palco, o desvelar, recriar essa Reine Sprache para o palco apresenta necessidades específicas. É sem dúvida uma espécie de hospitalidade criar na nossa língua uma voz legítima para o que nos era estranho. Cada tradutor providencia esse espaço de maneiras específicas à sua arte de traduzir.Vou considerar a tradução de Rei Lear por Fernando Villas-Boas representado aqui em Guimarães pelo

Teatro Oficina com encenação de Marcos Barbosa.Hospitalidade e dizibilidade são aspetos desta tra-dução, e por isso mesmo considero que tanto a tra-dução como a encenação produziu um texto empo-derador e libertador.Traduzir peças para o palco faz o tradutor enfrentar desafios e dificuldades específicos decorrentes do meio em particular que é o teatro. Uma peça é escri-ta para ser representada. O autor escreveu para um diretor desenhar um projeto, dirigi-lo, de modo que os atores o representem e o público o possa apreciar. No palco, o texto é apenas um componente da peça e nem sempre o mais importante. A linguagem tea-tral não se limita à troca de diálogos. Muitas vezes, o texto é "ausente", cheio de lacunas, não dito. Os

silêncios, comprimento de palavra, ritmo, tom ou melodia, tudo o que não é verbal, que poderia ser chamado de "música" é altamente significativo.Também a linguagem poética do teatro, a interação entre todos os elementos teatrais (iluminação, ceno-grafia, movimento, decoração, trajes) que interferem uns com os outros.A consciência das relações entre os diferentes ele-mentos do processo teatral, a capacidade de ouvir o que a musicalidade do texto confere, tudo isso é também da responsabilidade do tradutor. Contudo, a verdade é que qualquer tradutor deve traduzir um texto escrito. Mas o público vem para "ver" uma peça e o texto é apreendido pelo ouvido, através dos atores. Se simplificarmos grosseiramente o modelo de co-municação teatral de Keir Elam, há uma fonte que leva o texto original ao ator que vai usar o texto na sua língua, essa fonte é o tradutor, e este texto vai ter um outro intermediário - o ator - entre o texto na sua versão escrita e aquilo que o espetador “vê”.Fernando Villas-Boas reúne as qualidades de um tra-dutor sensível e exigente: amor e respeito pelo texto, um bom ouvido, sensibilidade aos ritmos de ambas as línguas e uma escrita rica e elegante em português.Em alguns casos felizes de colaboração como o desta produção o diretor e os atores puderam consultar o tradutor sobre problemas de dicção ou, durante os ensaios, um ator podia manifestar a sua dificuldade em pronunciar uma palavra em particular e o tradu-tor tentava encontrar outra que também servisse o texto. Assim, os atores poderiam trabalhar em um texto que foi adaptado à sua própria dicção e ao pro-jeto do diretor.Quando vamos ver uma peça ouvimos o texto uma vez. Não podemos folhear o livro para trás para per-ceber melhor ou apreciar de novo uma frase. Por is-so, a importância de dicção. Mas nesta produção especial, o público pode ter uma maior interação com o texto. Ele era-lhe mais acessí-vel. Como os atores representavam, o texto era pro-jetado em quatro telas permitindo ao público senta-do à mesa seguir o texto. Permitia também quando houve oportunidade que o público tomasse a voz de

um personagem e dissesse as falas desse momento, tendo assim parte ativa naquele repasto teatral. Não esqueçamos também que as pessoas com dificulda-des auditivas podiam assim acompanhar a represen-tação porque lhes era possível ler o texto dito. Este esforço de cooperação com o público - a oportu-nidade de o público intervir na peça - como Marcos Barbosa referiu foi exigente e mais esgotante para os atores dado que tendo de partilhar tanto o espa-ço cénico como as falas com o público os retirou da sua zona de conforto profissional. Para o público foi um momento de empoderamento e de responsabi-lização. Quando Edmund ataca o pai, todos somos cúmplices daquele crime. Este tema, o da hospitalidade da tradução, é aqui

levado a este outro nível de par-tilha, a difícil tarefa dos atores, a generosa proposta do encena-dor e a mais exposta posição do tradutor que teve patente a sua versão do texto, oral e por escrito, dando-se assim ao escrutínio do público por duas vezes. Num tempo em que discutimos e ensaiamos novos modos de vi-vermos no nosso mundo global,

gerando espaços de hospitalidade como formas de sobrevivência física (a dos refugiados) e moral (a dos nossos princípios e valores), é muito salutar ver que em Guimarães se ensaia essa partilha de espaço e de voz a todos os cidadãos.Filomena Louro, professora da Licenciatura em Teatro da

Universidade do Minho

O Conto de Inverno exibe al-gum do verso mais complexo de toda a obra de Shakespea-re, mesmo contando as gran-des tragédias, e seguiu-as no

curso da obra. Pertence à série derradeira dos “Romances”, peças inspiradas no folclore intemporal dos contos mora-lizantes que recuam à antiguidade britânica ou clás-sica, esta última neste caso. A peça não costuma ser valorizada pela sua intensa carga política, e realismo das suas crueldades, mas antes como um conto ad-monitório algo fantasioso sobre os males do ciúme e sobre a energia renovadora que a Natureza concede a todas as reconciliações.A carga política fala-nos com maior intensidade se, como Arthur Schitzler, acharmos que “Épocas em que a verdade pode não só tornar-se perigosa para aqueles que a dizem mas também para aqueles que a escutam, são profundamente doentias.” A esta luz, a fábula deixa de ser um devaneio sentimental para entreter a corte (assim foi encomendada), mesmo se algo sombrio, e passa a ser um ensaio arriscado sobre a tirania na sua própria casa. Assim a viu o ensaísta Jonathan Bate, por exemplo, que viu nela esta inter-rogação que só nos pode ser próxima: “Quão longe poderá um conselheiro ir – ou já agora um drama-turgo, cujas obras são montadas na corte –, no dizer de verdades que os chefes não querem ouvir?”Fernando Villas-Boas, tradutor

O C O N T O D E I N V E R N O

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