guillaume apollinaire...wilhelm albert wlodzimierz apolinary de waz-kostrowicki, dito guillaume...
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Título:ALEPRA
Autor:GuillaumeApollinaire(1880–1918).
Tradução:PauloSoriano.
Imagemdacapa:François-AndréVincent(1746–1816)
Leiautedacapa:Canva.
Série:ClássicosEstrangeiros–vol.20.
Editor:FreeBooksEditoraVirtual.
Site:www.freebookseditora.com
Direitosdatradução:©PauloSoriano.Proibidaareproduçãosemautorizaçãopréviaeexpressadoeditor
Ano:2017
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ALEPRA
Comohaviamacabadodedizerqueoidiomaitalianooferecemuitopoucasdificuldades, o barão d’Omesan respondeu com a certeza de quem fala duasdúziasemeiadelínguaseuropeiaseasiáticas:
—Oitalianonãoédifícil?Ora,istoestáerrado!Podeserqueasdificuldadesnãosejamfrequentementeobserváveis,maselasnãodeixamdeexistir, creiamemmim.Nisto, tenho experiência.Por causadestasdificuldades, euquase caívítimadalepra,estaterríveldoençaque,àsemelhançadasdificuldadesdalínguaitaliana,seocultasorrateiramente, levando-nosacreremseudesaparecimento,quando,narealidade,continuaaexpandir-se,eacausarmalefíciospelascincopartesdomundo.
—Alepra!
—Porcausadoitaliano?
—Conte-nosessahistória!
—Devetersidohorrível!
Quandoouviu tais exclamações,queprovavamo sucessode suaparadoxaldeclaração, o barão d’Ormesan sorriu. Entreguei-lhe a caixa de charutos. Eleescolheu um e o acendeu, depois de tirar-lhe a etiqueta, que colocou no dedoanular, seguindo um hábito estúpido que adquirira na Alemanha. Depois delançaralgumasbaforadas triunfaissobreosouvintes,começoua falarcomumtomdemuivãcondescendência:
—Háunsdozeanos,euestavaemviagempelaItália.Naépoca,eueraumlinguistadeverasignorante.Falavapessimamenteoinglêseoalemão.Quantoaoitaliano, eu o macarronizava. Ou seja: empregava termos franceses aos quaisjuntava terminações sonoras, e usava também palavras em latim. Em síntese:fazia-meentender.
Eu havia percorrido, a pé, uma parte significativa da Toscana, quandocheguei, certa tarde, por volta das seis horas, a uma bela aldeia, onde iriapernoitar.Naúnicapousadadolugar,disseram-mequetodososquartosestavamocupadosporumgrupodeingleses.
Oestalajadeiromeaconselhouaprocurarhospedagemcomopadre.Estemerecebeumuitobemepareceu encantadocomomeu linguajarhíbrido, que, de
boa vontade, fazendo-me grande honra, comparou à língua do Sonho dePolifilo
1. Respondi que me contentava em imitar involuntariamente Merlin
Coccaeie2.Eleriumuito,dizendo-mequeoseunomeerajustamenteFolengo,o
quelhepareceuumacoincidênciadeverasextraordinária.Entãoelemeconduziuao seu quarto, que pôs àminha disposição. Tentei recusar,mas não adiantou.AqueledignosacerdoteFolengoentendiaahospitalidadeàmaneiratoscana,semdúvida, porque nem sequermanifestou a intenção demudar os lençóis de suacama e eu não consegui encontrar umbompretexto para pedir ao bompadre,semofendê-lo,lençóislimpos.
Jantei sozinho com o padre Folengo. O cardápio era tão delicado que euesqueciosinfelizeslençóis,entreosquaismerecolhiàsdezdanoite.Adormeciimediatamente.Meusonodurouapenasumpardehoras,porquefuidespertadopor vozes que vinham do quarto contíguo. Dom Folengo conversava com agovernanta, uma respeitável senhora de setenta anos, que tinha preparado adeliciosa refeição que eu ainda digeria. O padre falava animadamente. Suagovernanta respondia com voz agridoce. Uma palavra, repetida várias vezesduranteaconversa,mechocou:lepra.Fiqueiaimaginarporquemotivofalavamelesdessaterríveldoença:alepra.
EntãoevoqueiafiguradopadreFolengo.Pareceu-mequeeleestavainchado.Suasmãoserammuitogrossas.Continuandomeuraciocínio, tivedeconcordarque o padre toscano era imberbe, apesar de sua idade avançada. Isto foisuficiente. O terror se apoderou de meu espírito. Algumas aldeias italianas,assimcomocertasaldeotasfrancesas,sãoverdadeirosviveirosdelepra.Eagoratinhacerteza:domFolengoeraumlazarento.Eeuestavadeitadonoleitodeumleproso.Os lençóis sequer haviam sido trocados.Nessemomento, as vozes secalaram.Depois, o padre pôs-se a roncar longamente no quarto vizinho.Ouviestalaremosdegrausdeumaescadademadeira:agovernantasubiaparadormirnosótão.Meuterrorcrescia.Pensavaqueosmédicosaindanãohaviamchegadoa uma conclusão quanto ao contágio da lepra. Esses pensamentos não eramadequadosatranquilizar-me.Eumediziaqueopadremeofereceraasuacamacomoatodecaridade,masque,duranteanoite,lembrou-sedequepoderiamuitobemtransmitir-measuaenfermidade.Eradissoquefalavacomasuagovernantae,semdúvida,antesdedormir, rogaraaDeusparaqueasua imprudêncianãotivesse um resultado nefando. Coberto por um suor frio, levantei-me e fui àjanela.
Orelógiodaigrejadeumeia-noite.Eunãojáaguentavamaise,exausto,mesenteinochão.Adormeciencostadoàparede.Ofrescordamanhãmedespertoupelasquatrohoras.Espirreiumas trintavezeseestremeciaoolharparao leitofatal.Acordandocomosmeusespirros,opadreentrounoquarto.
—Oquevocêestáfazendoemcamisacontraajanela?—perguntou-me.—Euacho,meucarohóspede,queestariamelhornessacama.
Olheiparaopadre.Suapeleerarosada.Eleeraroliço,massuasaúde, tivequeadmitir,pareciaflorescente.
—Osenhor—disse-lhe—sabequeoclimadeParis—odaIle-de-Franceemgeral—époucofavorávelaodesenvolvimentodalepra.Esseclimatem,atémesmo,asaudávelpropriedadedecoibiressadoença.MuitosleprososdaÁsiaou da Colômbia, na América, onde esta enfermidade é muito frequente, têmcomoobjetivode suas existências formarumpecúlioque lhespermitamviverdois ou três anos em Paris.Após esse período, a lepra é atenuada; então elesvoltam aos seus países para angariar uma nova fortuna que lhes garanta outratemporadaàsmargensdoSena.
—Aondevocêquerchegar?—perguntou-meopadreFolengo.—Vocêfala,se não me engano, da lepra, la lebbra, essa terrível enfermidade que causoutantosestragosnaIdadeMédia.
— Não causa menos estragos atualmente — respondi, olhando-oseveramente.— E quanto aos sacerdotes acometidos por este mal, creio quemelhorestariamnosleprosáriosdeHonoluluouemoutrascolôniasdeleprososasiáticas.Elespoderiamtratardeseuscompanheirosdeinfortúnio...
—Masporquevocêmefaladessascoisashorríveistãocedo?—respondeuopadreFolengo.—Nãosãoaindacincohoras.OSolmaldespontanohorizonte.A aurora que tinge de púrpura o céu não me parece concebida para inspirarpensamentostãofúnebres.
—Confesselogo,senhorcura!—exclamei.—Osenhoréleproso.Ouvioqueosenhordiziaontemànoite...
DomFolengopareciaestupefatoechocado:
— Senhor francês— disse-me o padre—, você está enganado. Não souleproso.Emeperguntodeondeveiotãoangustianteideia.
—Não, senhorpadre—afirmei.—Euoouvinanoitepassada.Osenhor
falavadalepracomasuagovernantanoquartovizinho.
OpadreFolengosoltouumagargalhada:
—Vocês franceses—disse, rindo até as lágrimas—nãopodemchegar àItália sem que venham com este tipo de história, dando testemunho de Paul-Louis Courier
3, que conta algo um pouco semelhante em suas cartas... Lepre
significa“lebre”emitaliano.Atemporadadecaçaestáaberta.Nestesdias,umdemeus paroquianosme trouxe uma lebremaravilhosa. Era sobre ela que eufalava,ontem,comaminhagovernanta,poismeparecequeelajáestáaoponto.Alebreseráservidahojemesmo,aomeio-dia.Vocêhádeseregalarcomelaesefelicitaráporhaveraumentadoa suabagagemdeconhecimentos linguísticosàcustadeumapéssimanoite.
Fiquei acabrunhado. Mas a lebre me pareceu deliciosa. É que as piorescoisas,atémesmoalepra,podemsetornarexcelentesquandosesabeacomodá-laseacomodar-seaelas.
SOBREOAUTOR
WilhelmAlbertWlodzimierzApolinarydeWaz-Kostrowicki,ditoGuillaumeApollinaire,escritorfrancêsdeorigemitaliana,éumíconedosmovimentosdevanguardado iníciodoséculoXX.Escreveupoemas,dramas,novelas,caligramasecontos.Faleceuaos38anos,em1918,vítimadagripeespanhola.
Notes
[←1]Referência ao livroHypnerotomachia Poliphili, atribuído ao frade dominicano italiano FrancescoColona(c.1433–1527),impressoepublicadoem1499porAldusManutius.