guia didático - filosofia moderna (1)
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FilosoFia Moderna
www.unipar.br
UNIVERSIDADE PARANAENSE MANTENEDORA
Associação Paranaense de Ensino e Cultura – APEC
REITORCarlos Eduardo Garcia
Vice-Reitora ExecutivaNeiva Pavan Machado Garcia
Vice-Reitor ChancelerCandido Garcia
Diretorias Executivas de Gestão Administrativa
Diretorias Executivas de Gestão Acadêmica
Diretor Executivo de Gestão dos Assuntos ComunitáriosCássio Eugênio Garcia
Diretora Executiva de Gestão da Cultura e da Divulgação InstitucionalCláudia Elaine Garcia Custódio
Diretora Executiva de Gestão e Auditoria de Bens Materiais Permanentes e de ConsumoRosilamar de Paula Garcia
Diretor Executivo de Gestão dos Recursos FinanceirosRui de Souza Martins
Diretora Executiva de Gestão do Planejamento AcadêmicoSônia Regina da Costa Oliveira
Diretor Executivo de Gestão das Relações TrabalhistasJânio Tramontin Paganini
Diretor Executivo de Gestão dos Assuntos JurídicosLino Massayuki Ito
Diretora Executiva de Gestão do Ensino SuperiorMaria Regina Celi de Oliveira
Diretora Executiva de Gestão da Pesquisa e da Pós-GraduaçãoEvellyn Cláudia Wietzikoski
Diretor Executivo de Gestão da Extensão UniversitáriaAdriano Augusto Martins
Diretor Executivo de Gestão da Dinâmica UniversitáriaJosé de Oliveira Filho
Diretorias dos Institutos Superiores das CiênciasDiretora do Instituto Superior de Ciências Exatas, Agrárias, Tecnológicas e GeociênciasGiani Andréa Linde Colauto
Diretora do Núcleo dos Institutos Superiores de Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes, Ciências Sociais Aplicadas e EducaçãoFernanda Garcia Velásquez
Diretora do Instituto Superior de Ciências Biológicas, Médicas e da SaúdeIrinéia Paulina Baretta
SEMEAD – SECRETARIA ESPECIAL MULTICAMPI DE EDUCAçãO A DISTâNCIA
Secretário ExecutivoCarlos Eduardo Garcia
Coordenação Geral de EADAna Cristina de Oliveira Cirino Codato
Coordenador dos Cursos Superiores de Licenciatura e de Graduação Plena (História, Letras, Pedagogia e Filosofia)
Heiji Tanaka
Coordenador dos Cursos Superiores de Tecnologia e Bacharelado do Eixo Tecnológico de Gestão e Negócios (Gestão Comercial, Logística, Marketing,
Processos Gerenciais e Administração)Evandro Mendes de Aguiar
Coordenadora dos Cursos Superiores de Tecnologia e Bacharelado do Eixo Tecnológico de Gestão e Negócios (Gestão Financeira,
Gestão Pública, Recursos Humanos e Ciências Contábeis)Isabel Cristina Gozer
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da UNIPAR
U58f UNIPAR - Universidade Paranaense. Filosofia moderna / Jorge Antônio Vieira (Org.). – Umuarama: Unipar, 2015. 58 f.
ISBN: 978-85-8498-067-3
1. Filosofia. 2. Filosofia moderna. 3. Ensino a distância – EAD. Universidade Paranaense. II. Título.
(21 ed.) CDD: 190
Assessoria pedagógica
Daniele Silva Marques e Marcia Dias
Diagramação e Capa
Renata Sguissardi e Fernando Truculo Evangelista
* Material de uso exclusivo da Universidade Paranaense – UNIPAR com todos os direitos da edição a ela reservados.
Sumário
Unidade i - O raciOnalismO ........................................................15
descartes: filosofia e método .............................................................................15
dúvida e filosofia .....................................................................................................16
metafísica ...................................................................................................................17
O erro e a liberdade: ..............................................................................................19
Psicologia ....................................................................................................................20
Unidade ii - O emPirismO ...............................................................23
John locke ..................................................................................................................23
O empirismo ..............................................................................................................24
O empirismo das ideias ........................................................................................24
a doutrina lockiana das ideias ..........................................................................25
O conhecimento .......................................................................................................27
O julgamento e a dimensão das verdades prováveis (Judgment) .......28
Hume e as consequências céticas do empirismo ......................................29
FiloSoFia moderna
Unidade iii - Kant e a filOsOfia crítica ............................33
Vida e obras ...............................................................................................................33
a “revolução copernicana” de Kant: O conhecimento sintético a priori e seu fundamento ......................................................................................34
a revolução copernicana em filosofia ...........................................................37
espaço e tempo: as formas puras do conhecimento sensível ..............38
a doutrina do conhecimento intelectivo e as formas a priori do intelecto ...................................................................................................40
as noções de fenômeno e númeno ..................................................................42
a crítica da metafísica ...........................................................................................43
Unidade iV - Kant e a filOsOfia Prática ...........................47
a filosofia moral .....................................................................................................47
O imperativo categórico .......................................................................................48
a lei moral e a liberdade da vontade ..............................................................50
imortalidade e existência de deus ...................................................................54
referências ..........................................................................................58
apresentação
Diante dos novos desafios trazidos pelo mundo contemporâneo e o surgimento de um
novo paradigma educacional frente às Tecnologias de Informação e Comunicação dis-
poníveis que favorecem a construção do conhecimento, a revolução educacional está
entre os mais pungentes, levando as universidades a assumirem a sua missão como
instituição formadora, com competência e comprometimento, optando por uma gestão
mais aberta e flexível, democratizando o conhecimento científico e tecnológico, atra-
vés da Educação a Distância.
Sendo assim, a Universidade Paranaense - UNIPAR - atenta a este novo cenário e
buscando formar profissionais cada vez mais preparados, autônomos, criativos, res-
ponsáveis, críticos e comprometidos com a formação de uma sociedade mais demo-
crática, vem oferecer-lhe o Ensino a Distância, como uma opção dinâmica e acessível
estimulando o processo de autoaprendizagem.
Como parte deste processo e dos recursos didático-pedagógicos do programa da
Educação a Distância oferecida por esta universidade, este Guia Didático tem como
objetivo oferecer a você, acadêmico(a), meios para que, através do autoestudo, possa
construir o conhecimento e, ao mesmo tempo, refletir sobre a importância dele em sua
formação profissional.
Seja bem-vindo(a) ao Programa de Educação a Distância da UNIPAR.
Carlos Eduardo Garcia Reitor
Seja bem-vindo caro(a) acadêmico(a),
Os cursos e/ou programas da UNIPAR, ofertados na modalidade de educação a dis-
tância, são compostos de atividades de autoestudo, atividades de tutoria e atividades
presenciais obrigatórias, os quais individualmente e no conjunto são planejados e or-
ganizados de forma a garantir a interatividade e o alcance dos objetivos pedagógicos
estabelecidos em seus respectivos projetos.
As atividades de autoestudo, de caráter individual, compreendem o cumprimento das
atividades propostas pelo professor e pelo tutor mediador, a partir de métodos e práti-
cas de ensino-aprendizagem que incorporem a mediação de recursos didáticos orga-
nizados em diferentes suportes de informação e comunicação.
As atividades de tutoria, também de caráter individual, compreendem atividades de
comunicação pessoal entre você e o tutor mediador, que está apto a: esclarecer as
dúvidas que, no decorrer deste estudo, venham a surgir; trocar informações sobre as-
suntos concernentes à disciplina; auxiliá-lo na execução das atividades propostas no
material didático, conforme calendário estabelecido, enfim, acompanhá-lo e orientá-lo
no que for necessário.
As atividades presenciais, de âmbito coletivo para toda a turma, destinam-se obriga-
toriamente à realização das avaliações oficiais e outras atividades, conforme dispuser
o plano de ensino da disciplina.
Neste contexto, este Guia Didático foi produzido a partir do esforço coletivo de uma
equipe de profissionais multidisciplinares totalmente integrados que se preocupa
com a construção do seu conhecimento, independente da distância geográfica que
você se encontra.
O Programa de Educação a Distância adotado pela UNIPAR prioriza a interatividade,
e respeita a sua autonomia, assegurando que o conhecimento ora disponibilizado seja
construído e apropriado de forma que, progressivamente, novos comportamentos, no-
vas atitudes e novos valores sejam desenvolvidos por você.
A interatividade será vivenciada principalmente no ambiente virtual de aprendizagem
– AVA, nele serão disponibilizados os materiais de autoestudo e as atividades de tuto-
ria que possibilitarão o desenvolvimento de competências necessárias para que você
se aproprie do conhecimento.
Recomendo que durante a realização de seu curso, você explore os textos sugeridos
e as indicações de leituras, resolva às atividades propostas e participe dos fóruns de
discussão, considerando que estas atividades são fundamentais para o sucesso da
sua aprendizagem.
Bons estudos! e-@braços.
Ana Cristina de Oliveira Cirino Codato
Coordenadora Geral da EAD
introdução
Prezado(a) estudante, o material a seguir apresenta temas para um estudo introdu-
tório sobre alguns conteúdos pertencentes ao desenvolvimento da filosofia moderna.
Esses temas serão apresentados juntamente com alguns filósofos na modernidade
que contribuíram para o desenvolvimento histórico e conceitual da filosofia. As unida-
des não se organizam por cronologia e não apresentam biografias dos filósofos, ocu-
pando-se mais do desenvolvimento conceitual e temático de alguns conceitos e pro-
blemas. O material tem caráter didático e preliminar ao estudo da filosofia moderna;
portanto não traz aprofundamentos de temas e não tem a intenção de ser uma apre-
sentação abrangente do pensamento moderno.
O material à vossa disposição está organizado em quatro unidades: na primeira uni-
dade será estudado o racionalismo moderno em sua estruturação com o pensamento
de René Descartes. O pensamento cartesiano abre a modernidade com a pretensão
de fundamentar os saberes humanos em termos de certeza e evidência. Nesse sen-
tido, a partir da dúvida metódica Descartes busca uma fundamentação metafísica dos
saberes a partir da certeza evidente da razão: penso, logo existo.
A seguir, na segunda unidade será apresentado o pensamento empirista estruturado a
partir das reflexões de John Locke e David Hume. Locke é considerado o filósofo fun-
dador do empirismo moderno, precursor do Iluminismo e o primeiro a formular de modo
metódico o problema “crítico” do conhecimento a partir da noção de experiência sen-
sível e da investigação e avaliação dos poderes e limites do intelecto humano. David
Hume radicaliza o empirismo moderno e estabelece argumentos para criticar as pre-
tensões da metafísica e do conhecimento racional. Os fundamentos desta crítica es-
tão na visão de Hume de que o nosso conhecimento é apenas fenomênico e empírico.
A terceira e quarta unidades estão dedicadas ao estudo de pontos do pensamento
kantiano, o filósofo de maior destaque na modernidade. Immanuel Kant desenvolve a
filosofia crítica, a qual busca, a partir das discussões do racionalista e empiristas, justi-
ficar o conhecimento científico e delimitar os limites e (im)possibilidades da metafísica.
A terceira unidade tratará dessa filosofia do conhecimento kantiana.
A quarta unidade apresentará as contribuições de Kant no campo da moral. Com sua
filosofia prática (moral) Kant busca uma fundamentação para a ação humana que não
esteja ligada aos interesses, aos sentimentos, ou até mesmo às promessas e puni-
ções. Por isso, Kant irá recorrer à “razão” em seu uso prático, irá analisar se podemos
encontrar na razão os critérios para determinar a vontade para agir, apresentando as-
sim, o roteiro e temática para o formalismo ético.
Bons estudos!
Caro(a) acadêmico(a),
Este Guia Didático é composto de informações e exercícios de análise, interpretação
e compreensão dos conteúdos programáticos da disciplina de Filosofia Moderna do
Curso de Graduação em que você se encontra matriculado.
O Guia Didático foi elaborado por um Professor Conteudista, embasado no plano de
ensino da disciplina, conforme os critérios estabelecidos no Projeto Pedagógico do
Curso. Abaixo, apresentamos, resumidamente, o currículo do Professor Conteudista
responsável pela elaboração deste material:
Disciplina: Filosofia Moderna
Autor: Jorge Antonio Vieira
Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Mestre e
Doutor em Filosofia Contemporânea pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma
(ITA); atualmente exerce função de docente na UNIPAR.
Além do professor conteudista, existe uma equipe de professores e tutores mediado-
res devidamente preparados para acompanhá-lo(a) e auxiliá-lo(a), de forma colabora-
tiva, na construção de seu conhecimento.
Bons momentos de estudos!
e-@braços.
Heiji Tanaka Coordenador do Núcleo de Cursos nas áreas de Educação, Linguística, Letras e
Artes e Ciências Humanas
Unidade i - O raciOnalismO
Descartes: filosofia e métoDo
René Descartes (1596-1649) – latinamente Cartésio – destacado pensador francês, é
geralmente aceito como o fundador do racionalismo moderno, bem como da própria fi-
losofia moderna. Seu trabalho intelectual se desenvolveu nos campos da matemática,
física, medicina, música e filosofia. Estudou com os jesuítas (Colégio La Flèche) e re-
cebeu sólida formação no aristotelismo escolástico. Inicialmente dedicou-se à carreira
militar, mas sua verdadeira carreira se concentrou na pesquisa científica e filosófica.
As obras propriamente filosóficas de Descartes são:
• Discurso do método (1637); Meditações sobre filosofia primeira (1641);
• Princípios da filosofia (1644);
• Tratado sobre as paixões da alma (1649).
O projeto de renovação científica inicia-se com a proposta de uma nova metodologia
baseada em quatro princípios: a) o ponto de partida da investigação é aquilo que é
verdadeiro e sabido com evidência (clareza e distinção); b) todos os questionamentos
da investigação devem ser subdivididos em assuntos específicos em um procedimen-
to analítico; c) deve-se começar pelos assuntos mais simples e compreensíveis com
facilidade e depois deve-se passar para as coisas mais complexas; d) por fim, deve-
se rever todos os passos da investigação em um procedimento sintético (Descartes,
Regras para a direção do espírito, disponível em: <http://www.4shared.com/office/
W2wP6SCn/Ren_Descartes_-_Regras_Para_a_.htm>. Acesso em: 24 jul. 2015).
Quais as regras para conduzir os pensamentos com Inteligência para alcançar afirma-
ções verdadeiras?
16 FilosoFia Moderna
Dúvida e filosofia
Essa nova abordagem é apresentada por Descartes em seu texto “O discurso do
método: para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências” (disponível
em: <http://www.4shared.com/office/km5Etmnd/Descartes_Rene_-_Discurso_do_m.
htm>. Acesso em: 25 jul. 2015).
O primeiro preceito do método – que engloba os outros preceitos:
“O primeiro era nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa, sem a conhecer evi-
dentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não
incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao
meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de o pôr em dúvida”.
A palavra-chave neste início do método é a dúvida. A boa condução do pensamento
é sustentada por uma dúvida de que nem todos os princípios são claros: “era preciso
rejeitar, como absolutamente falso, tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor
dúvida, a fim de ver se, depois disso, não restaria qualquer coisa nas minhas opini-
ões que fosse inteiramente indubitável”. “A dúvida não é apenas um momento numa
filosofia, é também um estado de espírito filosófico e científico” (PHILONENKO, A.).
O método da dúvida possui três etapas:
Em primeiro lugar está a crítica dos sentidos externos (cinco sentidos): “Assim, porque
os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que não existia nenhuma
coisa que fosse tal como eles nos fazem imaginá-la”.
Em segundo lugar tem-se a dúvida em relação às proposições matemáticas: “e por-
que há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo em relação às matérias mais
simples de Geometria, e nelas fazem paralogismos, julgando que estava tão sujeito a
falhar como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões de que até então me
servia nas demonstrações”.
17FilosoFia Moderna
A terceira etapa da dúvida refere-se às sensações internas (o argumento do sonho):
“E finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos, estando acorda-
dos, nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que nenhum deles, nessa
altura, seja verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que alguma vez entraram no
meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos”.
O resultado destes argumentos é a afirmação de que eu que duvido não deixo de pen-
sar, e para pensar é preciso existir: “Cogito ergo sum”, “Penso logo existo”. Primeira
proposição verdadeira.
O que Descartes entende por pensar? “Pela palavra pensar, entendo tudo o que se
produz em nós de tal forma que é imediatamente percebido por nós próprios; e é por
isso que não só entender, querer, imaginar, mas também sentir, é aqui a mesma coisa
que pensar” (AT. IX, II, p. 28).
“Eu sou, eu existo é necessariamente verdadeira”.
A regra geral da verdade: “As coisas que concebemos mui clara e mui distintamente
são todas verdadeiras”.
metafísica
“Em Descartes a metafísica não existe para si mesma; ela tem como finalidade as ci-
ências”: “Assim, toda filosofia é como uma árvore, em que as raízes são a metafísica,
o tronco é a física e os ramos que saem desse tronco são todas as outras ciências re-
duzidas a três principais: a medicina, a mecânica e a moral. Refiro-me à mais elevada
e perfeita moral que, pressupondo um conhecimento integral das outras ciências, é o
último grau da sabedoria”. Confiram o texto: DESCARTES, R. Meditações concer-
nentes à primeira filosofia nas quais a existência de Deus e a distinção real entre
a alma e o corpo do homem são demonstradas.
18 FilosoFia Moderna
A análise prossegue logicamente com a reflexão sobre a natureza desse eu que pen-
sa. A primeira observação se refere à natureza do corpo: “uma máquina composta de
carne e osso”.
Após tratar da presença do pensamento, Descartes trata da substância pensante (res
cogitans), a alma, de modo que ele julga ter demonstrado a existência da alma, cuja
essência está no pensamento. A segunda verdade da filosofia cartesiana: minha na-
tureza é puro pensamento excluindo todo elemento corporal. Para a demonstração
dessa verdade veja a Segunda Meditação, 6-17.
A análise de Descartes vai da dúvida ao pensamento e do pensamento à alma.
Na sequência, ele passa da alma à demonstração da existência de Deus, cuja
ideia está contida no pensamento (Meditação Terceira). Os dois argumentos da
demonstração:
parte da ideia de perfeito, à qual chegaríamos, segundo Descartes, partindo da nossa
imperfeição. Visto que essa ideia não pode derivar das coisas, que são certamente
limitadas, nem de nós, que somos imperfeitos, tem que derivar de um ser perfeito, isto
é, de Deus. A segunda prova [...] como o argumento ontológico. Pelo fato de haver na
nossa mente a ideia de um ser perfeitíssimo, este deve também existir, isto é, deve ter
a perfeição da existência, ou então, diversamente não seria mais perfeito. Logo Deus
existe (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990, p.292).
A natureza de Deus: para Descartes, Deus é substância absoluta, a única verdadei-
ra; a sua veracidade garante a validade do nosso conhecimento. Descartes admite a
criação do mundo físico. Sua filosofia natural distingue entre a existência e a essência
do mundo. A existência do mundo não é evidente, clara e distinta, inteligível; mas nós
temos a crença de que temos o conhecimento verdadeiro do mundo. Contudo, tal co-
nhecimento somente é garantido pela veracidade de Deus.
19FilosoFia Moderna
Em relação à essência do mundo, Descartes considera as qualidades secundárias
das coisas (cores, sons, sabores, odores) como sendo subjetivas e sem valor para
o conhecimento. Ao contrário, afirma que as qualidades objetivas (primárias) são as
propriedades da matéria (dimensões, figuras, peso, posição, movimento) que seriam
conhecidas clara e distintamente pelo intelecto. E estas ideias não derivam de nenhu-
ma experiência, mas são inatas por causa de sua evidência.
A propriedade essencial da matéria é a extensão, a qual determina-se na figura, no
movimento, no espaço etc., que seriam os modos da matéria. A extensão é infinita e,
portanto, a matéria é infinita. Outra propriedade do mundo físico é a força. Por meio
da extensão, matéria inerte, força, movimento local, Descartes julga explicar (pela ge-
ometria e pela mecânica) todo o mundo material. Sua filosofia natural é mecanicista:
o universo é uma máquina, o corpo é uma máquina.
O erro e a liberdade:
Por que erramos? Deus em sua perfeição não nos pode enganar; e quando utilizamos
nosso juízo não podemos nos enganar, se a utilizamos bem.
Refletindo sobre mim mesmo descobre-se que o erro depende de duas causas: do
conhecimento e da liberdade (intelecto e vontade). O intelecto apresenta ideias e tem
conteúdo limitado. Mas a minha liberdade não tem limites e não pode ser determina-
da por uma força externa (coação). Ora, a vontade é mais ampla e pode mais que o
intelecto (posso querer mais do que aquilo que vejo) e, portanto, o erro é uma trans-
gressão da vontade.
20 FilosoFia Moderna
Psicologia
O tema do dualismo cartesiano: diferente dos outros seres, no homem se encontram
duas substâncias distintas claramente entre si: a res cogitans (a mente) e a res
extensa (o corpo). A alma é pensamento e não vida, ao passo que o corpo é uma
máquina composta de órgãos e partes cujo funcionamento (a vida) é explicado por
causas fisiológicas.
A tese da integração mente e corpo: apesar desta distinção, a mente e o corpo não
estão separados, mas em união e em interferência mútua constante: “A natureza
me ensina que por esses sentimentos de fome, sede, dor, etc., que não somente
estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso,
lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que
componho com ele um único todo” (MEDITAÇÕES, 6,24).
Descartes fez pesquisas sobre anatomia e fisiologia humanas com objetivo de en-
tender os movimentos corporais e processos físicos-orgânicos (por ex.: a circulação
do sangue) e sua interação com os sentimentos e estados psíquicos (“Tratado do
homem”, “As paixões da alma”).
O que se deve destacar no raciocínio cartesiano é a tese da integração mente e corpo.
21FILOSOFIA MODERNA
atiViDaDes Para comPreensÃo Do conteúDo
1) Esta questão trata das regras úteis para dirigir a inteligência na pesquisa da ver-
dade, segundo Descartes. Para fazer o exercício é necessário ler o texto “Regras
para a Direção do Espírito”, regras II e III:
a) Explique o que Descartes entende por conhecimento “certo e indubitável”.
b) Por que a Aritmética e a geometria são muito mais certas que as outras disci-
plinas, segundo Descartes?
c) Quais os dois modos pelos quais se adquire ciência (conhecimento certo e
seguro) segundo Descartes. Explique.
2) Após a leitura da quarta parte do Discurso do Método:
d) Explique o argumento cartesiano para afi rmar a verdade “eu penso, logo existo”.
e) Apresente os dois argumentos de Descartes para a demonstração da existên-
cia de Deus.
3) Explique o que se entende por dualismo cartesiano.
4) Comente a tese cartesiana da integração entre mente e corpo.
Unidade ii - O emPirismO
John locke
John Locke (1632-1704) é o personagem fundador do empirismo moderno, precursor
do Iluminismo e o primeiro a formular de modo metódico o problema “crítico” do co-
nhecimento. Sua obra fundamental para a teoria do conhecimento é o “Ensaio sobre o
intelecto humano” (Essay concerning human understanding), publicado em 1690. Em
termos de filosofia política sua obra principal é “Dois tratados do governo civil” na qual
desenvolve os fundamentos do liberalismo moderno.
A intenção geral do “Ensaio sobre o intelecto humano”: O “Ensaio” é o livro no qual
Locke desenvolve sua teoria do conhecimento e inaugura a problemática maior da fi-
losofia moderna. Essa problemática é o exame do próprio intelecto, suas capacidades,
funções e seus limites. Para Locke, o objetivo não é examinar o emprego do conheci-
mento ou da faculdade humana de elaborar conhecimentos (o “intelecto”, a faculdade
de elaborar entendimento), mas o propósito é estabelecer a origem, a natureza e o
valor do conhecimento humano, como também definir os limites e fronteiras dentro das
quais nós humanos poderemos exercer nossa capacidade de conhecimento.
Esse é o problema “crítico” da filosofia moderna que Locke inaugura: examinar (fazer
uma critica, no sentido etimológico do termo) os poderes no nosso intelecto, avaliar
seus poderes e limites; fazer uma inspeção (investigação) do nosso intelecto, ou seja,
uma análise dos limites, das condições e possibilidades do conhecimento humano.
Em resumo, com seu livro “Ensaio sobre o entendimento humano” Locke faz teoria do
conhecimento, trata de temas afins a essa disciplina, e com isso, fortalece na filosofia
moderna a preocupação com o estudo do conhecimento humano.
24 FilosoFia Moderna
O empirismo
O empirismo de Locke pode ser resumido na seguinte afirmação: todo o nosso co-
nhecimento provém da experiência. Essa frase tem como pressuposto a posição
filosófica do realismo, ou seja, “(I) existe um mundo em sua existência e constitui-
ção independente do fato de ser conhecido; (II) este mundo é – no que se refere a
seu inventário e constituição – em princípio (ao menos parcialmente) cognoscível.
A estruturação especificamente empírica do realismo consiste na tese gnosioló-
gica adicional: (III) todo conhecimento baseia-se exclusivamente na experiência”
(PUSTER, 2000, p.121).
O empirismo das ideias
O significado do termo “ideia” é muito amplo. Para Locke, cada conteúdo da consci-
ência é uma ideia: sob a expressão ideia estão contidas as atividades racionais, mas
também as percepções sensitivas e as atividades da vontade e da imaginação. Por
exemplo, a mesa real é aquela que existe no mundo; quando uma pessoa vê uma
mesa, a visão e o pensamento se ocupam com a ideia (representação) da mesa.
Segundo Locke todas as nossas ideias derivam das nossas experiências sensíveis.
Não existem ideias nem princípios inatos, pois a mente humana por ocasião do
nascimento é uma tabula rasa, uma folha de papel em branco sem nada escrito.
Locke dedica o primeiro livro do Ensaio para criticar a posição dos inatistas que
afirmam a presença na mente de conteúdos (lógicos, matemáticos, morais e teo-
lógicos) anteriores à experiência. Seu argumento básico é que todos os nossos
conhecimentos e ideias procedem e derivam da experiência. O ser humano
possui, na verdade, duas capacidades inatas para adquirir ideias: a faculdade da
sensação e da reflexão.
25FilosoFia Moderna
A doutrina lockiana das ideias
As capacidades humanas correspondentes à sensação e à reflexão tornam possível
o que Locke chama de experiência: pela sensação (cinco sentidos) experimentamos
objetos sensíveis externos (as coisas do mundo) e pela faculdade de “reflexão” sen-
timos as operações internas da mente (vontade, pensamento, desejo, imaginação).
Do primeiro tipo de experiência (sensível) derivam as ideias de sensação (por ex.: as
ideias de cor, som, sabor, extensão, movimento, imobilidade etc.); do segundo tipo
de experiência (experiência das operações internas da mente) derivam as ideias de
reflexão ( por exemplo, as ideias de prazer, dor, desejo etc.).
A distinção de Locke conduz à necessidade de justificar o realismo (a existência real
das coisas no mundo) e o mentalismo (a natureza mental, psíquica das ideias). Por
isso Locke afirma que as ideias estão dentro da mente (mentalismo), mas fora (no
mundo exterior) existe alguma coisa que tem a força de produzi-las na mente. De
modo que Locke chama “qualidades” essas forças que têm o poder de despertar cau-
salmente as nossas ideias.
Chamo de ideia tudo aquilo que o espírito percebe em si mesmo ou que é objeto imediato
da percepção, do pensamento ou do intelecto; já o poder de produzir uma ideia em nosso
espírito eu chamo de qualidade do sujeito em que reside tal poder. Assim, por exemplo,
uma bola de neve tem o poder de produzir em nós as ideias de branco, frio e redondo.
Após a distinção entre ideias e qualidades, Locke afirma a correspondência entre
elas: segundo ele, o branco, o frio e o redondo são tratados como qualidades enquan-
to estão na bola de neve, e como ideias, enquanto são percepções em nosso intelec-
to. Essa distinção entre ideias e qualidades é explicada pela doutrina das qualidades
primárias e secundárias. As qualidades primárias são características reais das
coisas, que sempre se encontram nelas (são inerentes a elas e por isso, insepará-
veis). Assim, são qualidades primárias dos corpos a solidez, a extensão, a firmeza, o
tamanho, a forma, o número, a posição e o movimento. Essas qualidades são também
26 FilosoFia Moderna
chamadas de objetivas, pois são forças inerentes às coisas capazes de despertar em
nossa mente impressões de como essas coisas são em “em si mesmas”.
As qualidades secundárias, que nós costumamos atribuir às coisas materiais são de-
pendentes da nossa percepção. Por exemplo, “o chocolate não é realmente doce; doce
é unicamente a impressão de gosto que o chocolate desperta em nosso paladar com
base em suas qualidades primárias; e o gosto somente existe enquanto ele é sentido”
(PUSTER, 2000, p.133). Assim também o amargo, o doce, o quente, o frio, a cor são
todos exemplos de qualidades secundárias atribuídas às coisas pelo sujeito, que po-
dem ser separadas das coisas e cuja existência consiste na sua percepção subjetiva.
Na experiência das qualidades primárias o sujeito reproduz mentalmente caracterís-
ticas inerentes às coisas, enquanto que na experiência das qualidades secundárias o
sujeito representa mentalmente características atribuídas às coisas por meio de uma
percepção vivencial. O esforço de Locke é para manter a natureza mental da ideia
(qualidades secundárias) e não perder a relação das ideias com o mundo (o surgi-
mento das ideias a partir da percepção sensitiva das qualidades primárias); e assim
um esforço para salvar a premissa do realismo.
O empirismo das ideias poderia ser questionado com uma objeção: se uma pessoa
imagina uma montanha dourada, sua mente está ocupada com uma ideia de uma
montanha dourada. Mas já que não existem montanhas douradas, não se pode enten-
der como essa pessoa obteve tal ideia a partir da experiência. Locke responde desta
forma: a ideia de montanha dourada pode ser decomposta em dois componentes que
se juntaram para compor a ideia de montanha dourada, ou seja, a ideia de ouro e a
ideia de montanha; ambas as ideias são retiradas da experiência e por isso, a ideia
composta de montanha dourada se origina mediante a experiência.
Com essa resposta Locke distingue dois tipos de ideias: as ideias simples e as
ideias complexas. As ideias simples (de sensação, de reflexão ou de sensação e
27FilosoFia Moderna
reflexão juntas) são obtidas por meio da experiência; as ideias complexas são com-
postas pela mente humana a partir de ideias simples. Com esse raciocínio, Locke se
apoia no modelo da física atomista para a qual existem partículas simples (os áto-
mos) que se combinam, se misturam para formar o composto que é um determinado
objeto; da mesma forma, na esfera mental, a enorme variedade de conteúdos da
consciência (as ideias) se explica a partir de elementos simples, provenientes da ex-
periência (as ideias simples, os “átomos” da mente) os quais seriam combinados pela
própria mente formando ideias complexas. Por exemplo, a ideia de “maçã do amor”
é uma ideia complexa, pois o intelecto realiza uma operação mental que combina as
ideias simples de “maçã” e de “amor”.
No livro segundo do “Ensaio” Locke apresenta uma tabela de classificação das
ideias com o objetivo de tornar convincente como o intelecto humano a partir de ele-
mentos atomizados da experiência (ideias simples) consegue formar o vasto mundo
de ideias e conhecimentos humanos.
O conhecimento
No livro quarto do “Ensaio” Locke desenvolve suas reflexões sobre o conheci-
mento humano.
As ideias são o material do conhecimento, mas não o conhecimento propriamente dito.
Para Locke, o conhecimento (Knowledge) nada mais é do que a percepção da cone-
xão e da concordância ou então da discordância e do contraste entre as nossas ideias.
O intelecto humano pode perceber a concordância ou discordância entre duas
ideias por:
I. Intuição, ou seja, imediatamente por meio das próprias ideias. Assim, por
exemplo, o intelecto percebe por evidência imediata que o branco não o
28 FilosoFia Moderna
vermelho, que o triângulo não o círculo (conhecimento intuitivo). Temos co-
nhecimento intuitivo da nossa existência, e nesse ponto Locke assume a no-
ção de evidência cartesiana.
II. Demonstração, isto é, mediante a intervenção de outras ideias, percebendo
os nexos não imediatamente evidentes entre as ideias. Por exemplo: o conhe-
cimento que temos dos teoremas geométricos são conhecimentos demonstra-
tivos; temos conhecimento da existência de Deus mediante “demonstração”.
III. Sensação ou conhecimento sensível no qual a concordância ou discordância
entre ideias é obtida com o auxílio dos sentidos. Assim, temos conhecimento
da existência das outras coisas materiais do mundo por meio de “sensação”.
O julgamento e a dimensão das verdades prováveis (Judgment)
O âmbito do conhecimento certo (Knowledge) é muito restrito. Muitos dos nossos co-
nhecimentos são apenas aproximativos, isto é, supomos que existe uma concordân-
cia ou discordância entre ideias de modo apenas provável e aparente. Este é o campo
dos conhecimentos por probabilidade nos quais existe a suposição de que há concor-
dância ou discordância entre duas ideias. O conhecimento provável está baseado em
dois fundamentos: a conformidade de algo com as nossas experiências passadas e o
testemunho dos outros homens. Não podemos ter certeza dos nossos conhecimentos
que provém desta modalidade, contudo eles são, segundo Locke, válidos.
Há casos em que a probabilidade não está baseada nem sobre a experiência pessoal
nem sobre o testemunho dos outros, mas sim sobre o testemunho de Deus; o teste-
munho de Deus chama-se revelação e o assentimento (a concordância, a anuência)
humano chama-se fé (Faith).
Locke elabora sua versão da diferença entre razão e fé (Ensaio, IV, XVIII, 2). A ra-
zão (Reason) é a faculdade que temos que nos possibilita descobrir a certeza ou
29FilosoFia Moderna
probabilidade das proposições, as quais o intelecto por dedução feita a partir das
ideias obtidas mediante o uso das faculdades naturais, ou seja, a sensação e a refle-
xão. A fé (Faith) é a anuência dada a uma proposição não obtida por meio de dedu-
ções da razão, mas sobre o testemunho divino.
Hume e as consequências céticas do empirismo
David Hume (1711-1776), Edimburgo, Escócia.
A importância da posição filosófica de Hume na filosofia moderna deve-se a sua filoso-
fia crítica em relação ao conhecimento e à religião. A crítica de Hume ao conhecimen-
to o impossibilita de elaborar uma metafísica e estabelece argumentos para criticar as
pretensões da metafísica. Os fundamentos desta crítica estão na visão de Hume de
que o nosso conhecimento é apenas fenomênico e empírico.
A crítica do conhecimento estabelece que todo o nosso conhecimento é unicamente
empírico, sensível. Os elementos originários do conhecimento, que se unem para
constituí-lo, são as impressões e as ideias. Nesse ponto, Hume utiliza o mesmo ra-
ciocínio de Locke. As impressões e as ideais ligam-se entre si pela associação, como
átomos físicos se combinam para formar a matéria. Desta forma, as impressões e as
ideias ligadas pela associação explicam todos os nossos conhecimentos. É impor-
tante notar o papel da lei da associação no conhecimento humano.
Uma distinção importante no raciocínio de Hume é a diferenciação entre dois tipos de
conteúdos mentais, que ele chama de (i) relações de ideias e (ii) relações de fato.
As “relações de ideias” são conteúdos mentais descobertos por simples operações do
pensamento, independente daquilo que existe ou não no mundo. Assim, por exem-
plo, os conhecimentos da aritmética, álgebra e da geometria são “relações de ideias”
pois alcançamos esses conhecimentos por mera análise racional: dada a definição do
30 FilosoFia Moderna
triângulo, podemos obter por mera análise racional as relações de ideias de que “o
quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados”; e obtemos esse conhe-
cimento mesmo se não existissem triângulos na natureza. A regra para obter relações
de ideias é o princípio de não contradição.
Os “dados de fato” são informações a respeito de acontecimentos (fatos) da realidade
baseadas na relação de causa e efeito, e que, portanto estão ligados à experiência e
não à análise racional. Esses raciocínios dizem respeito à realidade dos fatos do mun-
do. Assim, por exemplo, a proposição de que “amanhã o sol não surgirá” e a afirmação
de que “o sol não surgirá” não são contraditórias do ponto de vista da análise lógica;
a verdade ou falsidade destas afirmações está ligada a dados de fatos da natureza
e depende das impressões vivenciadas pelos sujeitos (experiência). As experiências
humanas passadas de que o sol surge pela manhã é o fundamento para o “dado de
fato” de que o sol surgirá amanhã.
Outro ponto de inovação na filosofia de Hume é sua crítica ao conceito de cau-
salidade. As ideias de causa e efeito são distintas entre si e o fundamento para
nossas conclusões sobre a causa e o efeito é a experiência. Quando inferimos a
causa do efeito ou o efeito a partir de uma causa passamos de uma impressão
a uma ideia.
Por exemplo, da impressão de fumaça passamos à ideia de fogo. Segundo Hume
fazemos essa passagem por costume ou hábito devido ao fato das nossas experiên-
cias mostrarem que ao fogo segue-se a fumaça ou que a fumaça acompanha o fogo.
Contudo, como a relação de causa-efeito está baseada no costume (hábito) podemos
apenas dizer que, até agora, baseado nas minhas vivências (experiência) ou dos ou-
tros, o fogo é causa da fumaça.
31FilosoFia Moderna
Com este tipo de raciocínio Hume está afirmando que a relação entre causa e efeito
não é necessária, que não existe uma conexão necessária que liga uma causa a um
efeito, mas apenas a crença que nos dá a impressão de que estamos diante de uma
conexão necessária entre fogo e fumaça: por exemplo, tendo constatado, em muitos
casos, que chama e calor, neve e frio sempre estiveram juntas, quando uma chama
ou a neve se apresenta aos sentidos, a mente é levada pelo costume a esperar que o
frio ou o calor exista e a acreditar que isso se repetirá no futuro.
Além deste ponto, Hume, a partir dos pressupostos empiristas, derruba também o
conceito de substância (material e espiritual): não se pode afirmar um substrato imu-
tável das nossas percepções porque conhecemos apenas percepções. O que chama-
mos de “substância” nada mais é do que uma constante associação de percepções,
tirada da experiência.
Com a filosofia de Hume o empirismo atinge seu desenvolvimento maior na moderni-
dade, libertando-se do dogmatismo metafísico, moral e religioso. O dogmatismo me-
tafísico dos filósofos precedentes estava em não questionar a premissa do realismo,
ou seja, não se questionava a ideia de que a realidade existe independente da percep-
ção subjetiva. Para Hume não existem substâncias materiais. Todo conhecimento é a
combinação de sensações subjetivas (fenomenismo empírico) e que nada sabemos
(além da experiência subjetiva) em torno de Deus, da alma e das coisas. Desse modo,
Hume acaba por demolir a existência da metafísica.
32 FILOSOFIA MODERNA
atiViDaDes Para comPreensÃo Do conteúDo
1) Qual é a intenção geral de Locke em seu livro “Ensaio sobre o entendimento humano”?
2) Quais as afi rmações básicas da posição fi losófi ca chamada de realismo?
3) Explique o que Locke entende por “ideia”.
4) Por que Locke afi rma que não existem ideias inatas?
5) O que Locke entende por capacidade de sensação e capacidade de refl exão?
6) Explique o que são qualidades primárias e qualidade secundárias para Locke.
7) Explique o que são ideias simples e ideais complexas para Locke.
8) O que Locke entende por “conhecimento” e quais as suas formas?
9) O que signifi ca para Locke “conhecimento provável”. Exemplifi que.
10) Por que D. Hume tem importância fi losófi ca para a modernidade?
11) O que Hume entende por “relações de ideias” e “relações de fato”?
12) Qual a crítica de Hume ao conceito de causalidade?
13) Qual a crítica de Hume ao conceito de substância?
14) Por que Hume rompe com o dogmatismo metafísico?
Unidade iii - Kant e a filOsOfia crítica
ViDa e obras
Immanuel Kant nasceu em Königsberg em 1724, de modesta família de artesãos
protestantes. Sua mãe Regina Reuter educou o filho dentro dos rigores do pietis-
mo. Em 1740 ingressou na universidade de Königsberg, frequentou cursos de ci-
ência e filosofia e terminou os estudos em 1747. Em 1755 conseguiu o doutorado e
ingressou na Universidade de Königsberg como livre-docente. Em 1770, tornou-se
professor ordinário da universidade e ensinou filosofia até 1796 quando teve de se
afastar do ensino por motivos de saúde e de idade. O período entre 1770 e 1781
é fundamental para a formação da filosofia kantiana e resultou na publicação dos
maiores textos kantianos: a “Crítica da razão pura” (1781), a “Crítica da razão prá-
tica” (1788) e a “Crítica do juízo” (1890). Morreu aos oitenta anos em Königsberg
sem nunca se afastar de sua cidade. Levou vida rotineira e sem família, dedicada
aos estudos e ao ensino.
O itinerário filosófico de Kant se divide em dois períodos: (i) o período pré-crítico
marcado pelo interesse nas ciências naturais e no sistema de Newton, como também
pelo estudo dos empiristas Locke e Hume. O estudo destes empiristas levou Kant a
criticar a filosofia racionalista de sua época (a filosofia de Leibniz e Woff). Em 1766
aparece um texto (“Os sonhos da metafísica explicados com os sonhos de um visio-
nário”) no qual Kant esboça a crítica à metafísica dos racionalistas. A partir de 1769
Kant desenvolve uma perspectiva revolucionária para superar o racionalismo e o
empirismo, o dogmatismo e o ceticismo modernos.
O período crítico da filosofia kantiana se estende a partir de 1781 com a publicação da
obra “Crítica da razão pura”. Neste período crítico encontramos a produção filosófica
34 FilosoFia Moderna
da maturidade kantiana e as grandes contribuições em matéria de filosofia teorética e
filosofia prática.
A “Revolução Copernicana” de Kant: O conhecimento sintético a
priori e seu fundamento
Nesta unidade serão estudados os temas centrais da filosofia teorética de Kant apre-
sentados na obra “Crítica da razão pura”: em primeiro lugar será explicado que Kant
entende o problema básico da teoria do conhecimento como sendo o problema da
possibilidade do “juízo sintético a priori”, e em segundo lugar as etapas que Kant de-
senvolve para demonstrar que o conhecimento sintético a priori é possível.
O problema geral da filosofia teorética kantiana (o problema crítico) está contido nesta
pergunta: “Como são possíveis os juízos sintéticos a priori” (B19). Mas antes de aprofun-
dar este problema, é preciso entender o que é um “juízo sintético a priori” segundo Kant.
Para entender isso é preciso examinar a teoria dos juízos. Um juízo (uma proposi-
ção) é uma frase que conecta (liga) dois conceitos (A) sujeito e (B) predicado. Quando
na afirmação o predicado já está contido implicitamente no sujeito e pode ser extra-
ído por uma análise, teremos então um juízo analítico. Por exemplo, na proposição
“Todo corpo é extenso” o predicado “extenso” está contido na ideia de corporeidade,
de modo que quando falo que “todo corpo é extenso” nada mais faço do que explicar
e explicitar o que se entende por corpo.
Quando na proposição o conceito predicativo não se encontra implícito no sujeito,
mas acrescenta uma informação nova não contida no conceito do sujeito teremos
então um juízo sintético. Por exemplo, o juízo “O corpo é pesado” é sintético, pois o
conceito de pesado não pode ser extraído por análise do sujeito corpo. Assim também
a proposição “Um dia chuvoso é um dia quente” é um juízo sintético, pois não está
35FilosoFia Moderna
implícito no conceito de “dia chuvoso” o conceito de “dia quente”, visto que um dia
chuvoso é necessariamente um dia quente.
Ora, um juízo analítico é uma proposição que formulamos de modo a priori, pois não
se tem a necessidade de recorrer à experiência para conectar o predicado ao sujeito.
Por exemplo, não é necessário buscar na experiência informações para saber que
todo corpo tem extensão, ou que um dia chuvoso é um dia úmido. Um juízo a priori é
uma proposição cujo conteúdo é obtido independentemente da experiência. Em con-
sequência, um juízo a priori expressa um conteúdo universal e necessário; contudo,
um juízo analítico a priori não amplia nosso conhecimento, pois já sabemos implicita-
mente que corpo tem extensão.
Um juízo sintético, no qual o predicado acrescenta algo novo no conceito de sujeito,
é amplificador do conhecimento: dizemos algo novo que não estava contido implici-
tamente na ideia do sujeito e fazemos isso recorrendo às experiências. Como muitas
vezes recorremos às experiências para produzir uma proposição sintética podemos
dizer que esses juízos obtidos por meio de experiências são juízos sintéticos a poste-
riori. Assim, por exemplo, temos que recorrer à experiência (um termômetro) para afir-
mar que um dia chuvoso é um dia quente. Este tipo de juízo é um juízo sintético, mas
de forma a posteriori. Os juízos sintéticos a posteriori não expressam algo universal e
necessário, pois nem sempre um dia chuvoso é um dia quente.
Ora, as afirmações da ciência não são juízos analíticos, mas sintéticos, visto que
acrescentam algo ao nosso conhecimento. Mas o nosso conhecimento é apenas
analítico (relações entre ideias) e sintético a posteriori (dependente de observação
e experiência), assim como afirmava Hume? Kant responde que não afirma que é
possível os conhecimentos sintéticos a priori. A ciência não pode se basear nos juízos
sintéticos a posteriori, pois esses não podem ser universais e necessários, e a ciência
afirma um conteúdo de universalidade e necessidade.
36 FilosoFia Moderna
Portanto, Kant afirma que os juízos da ciência são juízos sintéticos a priori. Uma
proposição sintética a priori é um juízo que amplia nosso conhecimento, acrescenta
algo no conceito do sujeito que não estava implícito; contudo para fazer a ligação en-
tre sujeito e predicado não recorre à experiência e é obtido independentemente das
experiências. Por isso, os juízos sintéticos a priori são universais e necessários. Kant
dedica-se a demonstrar que os juízos sintéticos a priori são possíveis; e vai mais além
ao afirmar que as ciências expressam proposições sintéticas a priori: ele busca os
exemplos de juízos sintéticos a priori na aritmética, geometria e na física.
Por exemplo, a proposição “a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos”, é
sintética pois o conceito de reta não contém nada de quantitativo, mas sim uma qua-
lidade. O conceito de “mais curta” não está implícito no conceito de “linha reta” e não
pode ser extraído de nenhuma análise do conceito de linha reta. Como a proposição
“a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos” comporta uma necessidade
não retirada da experiência, este juízo é a priori.
Na “Crítica da razão pura” (B18) Kant considera que também na metafísica “deve
haver juízos sintéticos a priori”, querendo dizer que a metafísica não seria apenas um
conhecimento obtido por decomposição analítica de conceitos, mas alarga o nosso
conhecimento a priori. Como exemplo de uma proposição sintética a priori da metafí-
sica Kant cita o juízo de “o mundo tem de ter um primeiro começo”.
Nos argumentos centrais da “Crítica da razão pura” está o objetivo de Kant de
demonstrar e tornar compreensível a validade objetiva dos conceitos a priori do
intelecto (provar que temos conhecimentos sintéticos a priori na matemática, na
ciência e na metafísica), bem como explicar como tal conhecimento sintético a
priori é possível (A XVI).
37FilosoFia Moderna
A Revolução copernicana em filosofia
Como Kant consegue nos mostrar que os princípios primeiros da matemática, da ci-
ência e da filosofia são proposições sintéticas conhecidas a priori (independente da
experiência) sem que os seus argumentos caiam em especulações metafísicas infun-
dadas? A solução de Kant é tentar um procedimento similar ao que fez Copérnico:
Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo
prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda multidão
de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer
antes girar o espectador e deixar os astros imóveis (B XVI).
No campo da metafísica a sugestão seria realizar o mesmo:
Na metafísica pode-se tentar o mesmo no que diz respeito à intuição dos objetos (sen-
sibilidade). Se a intuição tivesse de se guiar pela natureza dos objetos, não vejo como
deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objeto (enquanto objeto dos
sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente
representar essa possibilidade. Como, porém, não posso deter-me nessas intuições,
desde o momento em que devem tornar-se conhecimentos; como é preciso pelo con-
trário, que as reporte, como representações, a qualquer coisa que seja seu objeto e que
determino por meio delas, terei que admitir que ou os conceitos, com a ajuda dos quais
opero esta determinação, se regulam também pelo objeto e incorro na mesma dificul-
dade acerca do modo como poderei saber algo a priori; ou então os objetos, ou o que é
o mesmo, a experiência pela qual nos são conhecidos (como objetos dados) regula-se
por esses conceitos e assim vejo um modo mais simples de sair do embaraço (B XVII).
O que Kant está afirmando é que, se aceitarmos que as formas básicas da sensi-
bilidade (intuição) e os conceitos dos objetos (ou seja, representações sensíveis
destes objetos e a organização conceitual destes mesmos objetos) são derivados
das nossas experiências dos objetos, então, o nosso conhecimento a respeito deles
será meramente a posteriori, contingente e limitado; mas se conseguirmos descobrir
dentro da nossa própria mente as formas fundamentais da representação sensível
38 FilosoFia Moderna
(conhecimento sensível) e da organização conceitual dos objetos, então essas formas
seriam as regras pelas quais todo o nosso conhecimento se orientaria, e essas formas
se aplicariam – de modo necessário e universal – aos objetos do nosso conhecimento,
isto é, elas seriam sintéticas a priori.
Em resumo, Kant considera que não é o sujeito que, ao ter conhecimento sensível e
intelectual do objeto, descobre leis e conteúdos do objeto em questão, mas ao contrá-
rio, é o objeto que ao ser conhecido se adapta às leis da sensibilidade e do intelecto:
não é o nosso conhecimento sensível ou intelectual que se regulam pela natureza dos
objetos, mas são os objetos que se regulam pelas condições das nossas faculdades
da sensibilidade e do entendimento.
Espaço e tempo: as formas puras do conhecimento sensível
Com sua revolução “copernicana” Kant está dizendo que o fundamento dos nossos
conhecimentos é o próprio sujeito que sente e pensa; o sujeito possui modos ou es-
truturas que regulam o conhecimento sensível e intelectual. Kant dá o nome de trans-
cendentais a esses modos subjetivos a priori da sensibilidade e do intelecto:
“Chamo ‘transcendental’ todo conhecimento que não se relaciona com objetos, mas
sim com o nosso modo de conhecer os objetos, enquanto for possível a priori” (B 25).
O passo seguinte de Kant em sua filosofia teorética é tratar dessas formas trans-
cendentais que tornam possível todo o nosso conhecimento. A estratégia kantiana
é tratar primeiramente das formas a priori que tornam possível o conhecimento
sensível, o que se encontra na chamada “Estética transcendental”; em segundo
lugar Kant trata das formas que são condições transcendentais que tornam possí-
vel pensar os objetos (o conhecimento intelectual), e isso é explicado na chamada
“Analítica transcendental”.
39FilosoFia Moderna
Esta divisão acontece porque o nosso conhecimento se divide em dois ramos: o co-
nhecimento dos sentidos e o conhecimento do intelecto (racional). Segundo Kant:
“Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência. [...]
Se, porém, todo o nosso conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova
que todo ele derive da experiência” (B1).
O esforço de Kant nas duas primeiras partes da “Crítica da razão pura” é justificar esta
sua proposta e conseguir superar os problemas do racionalismo e empirismo modernos.
Kant começa seu estudo pela sensibilidade, pois primeiro os objetos precisam ser
dados, para somente depois serem pensados. A parte que trata das leis estruturais do
pensamento é chamada de “lógica transcendental”, ou seja, formas a priori do enten-
dimento que permite pensar os objetos. A parte que trata das condições formais ou
estruturais da sensibilidade humana se refere à “estética”, cujo conteúdo demonstrará
que as condições pelas quais os objetos são recebidos pelos sujeitos são as formas a
priori do espaço e do tempo.
O ser humano possui a faculdade de receber sensações e essa faculdade se chama
“sensibilidade”. Kant chama de intuição o conhecimento direto (imediato) que recebe-
mos pelas sensações por meio dos cinco sentidos. O conteúdo das intuições, as quais
podem apenas ser sensíveis, chama-se fenômeno; ou seja, no conhecimento sensível
não recebemos o objeto como ele seria em si mesmo, mas apenas como ele aparece
(se manifesta) para nós segundo o espaço e o tempo. A palavra “fenômeno” significa
a manifestação ou o aparecimento das coisas para a nossa sensibilidade. Isso porque
nossa sensibilidade possui condições para a recepção de informações sensíveis das
coisas, e essas condições estruturais são as formas espaço-temporais.
Espaço e tempo são as formas estruturais da sensibilidade. Nós somente captamos
as coisas como espacialmente e temporalmente determinadas. Tudo o que a nossa
40 FilosoFia Moderna
sensibilidade nos oferece chega até nós dentro de um espaço e de um tempo. O es-
paço é uma estrutura que nos permite representar as coisas exteriormente enquanto
que o tempo é uma estrutura que nos permite representar as coisas internamente: a
estrutura espacial constitui as coisas aparecendo exteriormente, e a estrutura tempo-
ral abarca as coisas que podem se manifestar interiormente.
A novidade que Kant traz na filosofia do tempo e espaço é considerar essas formas
não como realidades externas, absolutas ou inerentes às coisas, mas sim como for-
mas da nossa sensibilidade, isto é, espaço e tempo não são formas das coisas, mas
formas do sujeito. Outro ponto a considerar é que essas formas são a priori no sentido
que as conhecemos antes de qualquer percepção real, e também são representações
necessárias que possibilitam nossos conhecimentos empíricos das coisas.
A doutrina do conhecimento intelectivo e as formas a priori do intelecto
Além da sensibilidade, o homem tem uma segunda fonte de conhecimento – o inte-
lecto. O intelecto é a faculdade de conhecer por conceitos. Segundo Kant “intuições
e conceitos constituem os elementos de todo no nosso conhecimento, de tal modo
que nem conceitos sem intuições que de qualquer modo lhes corresponda, nem uma
intuição sem conceitos podem dar um conhecimento” (B74).
Kant vai além dos problemas do racionalismo e do empirismo ao sustentar que “ne-
nhuma destas (faculdades) tem primazia sobre a outra. Sem sensibilidade, nenhum
objeto nos seria dado; sem o entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos
sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (B75).
Kant prossegue sua investigação tratando das formas do intelecto que possibilitam
pensar nossas percepções. Ora, segundo Kant, a ciência do intelecto chama-se lógica.
41FilosoFia Moderna
Porém, o filósofo pretende analisar os conteúdos formais a priori do intelecto e por isso
chama sua lógica de “lógica transcendental”: nesta parte da “Crítica da razão pura”
Kant decompõe a faculdade intelectiva para pesquisar a possibilidade e validade dos
conceitos a priori do próprio intelecto. Segundo ele, os objetos devem se submeter aos
conceitos do intelecto, que funcionam como leis, para se tornar conhecidos por nós.
O intelecto é a faculdade que unifica, organiza e ordena os dados da sensibilidade
em um discurso. Kant chama essa atividade intelectual de “síntese”, ou seja, a ação
unificadora e organizadora das nossas percepções. Porém, essa ação organizadora
(pensamento) é realizada por meio de funções ou conceitos que Kant chama de “ca-
tegorias” do intelecto. Por isso, as categorias são as leis da mente, formas sintetizado-
ras do conhecimento sensível, que possibilitam a formulação de juízos (proposições).
Então, para descobrir quantas e quais são essas categorias basta, segundo Kant,
analisar as várias modalidades na quais as proposições são formuladas. Nesse senti-
do, Kant apresenta uma tábua dos juízos (B 95) e, em consequência, uma tábua das
categorias (B 106). Por exemplo, das proposições universais deriva a categoria de
unidade: o juízo “todo homem é mortal” apresenta a função de unidade. O importante
desta descoberta kantiana é entender as categorias como formas a priori que tornam
possível o pensamento humano e que, contudo, não derivam da experiência.
Porém, uma tarefa mais árdua está em justificar como esses conceitos são aplicados
ao conhecimento das coisas, ou seja, mostrar que os conceitos do intelecto são ne-
cessários e válidos para organizar a multiplicidade de nossas representações. Kant
chama essa tarefa de “Dedução transcendental” e dedica um longo capítulo da “Críti-
ca da razão pura” a esse assunto.
42 FilosoFia Moderna
as noções De fenômeno e númeno
As análises de Kant sobre o conhecimento sensível e intelectual mostram que só é
possível conhecimento científico de algo quando o objeto é constituído primeiramente
dentro das formas a priori da sensibilidade e, a seguir, organizado pelas categorias do
intelecto. Ora, as formas e categorias a priori (puras) são subjetivas e não estão no
objeto – os elementos de universalidade e necessidade derivam apenas do sujeito e
de suas estruturas a priori; além disso o objeto, para ser conhecido, deve se confor-
mar a essas condições transcendentais da experiência e do pensamento (confira o
sentido da revolução copernicana de Kant). Isso significa que o conhecimento cientí-
fico é universal e necessário, mas também fenomênico.
Nesse sentido, o fenômeno é a coisa tal como se manifesta (aparece) para nós a
partir das nossas condições de sensibilidade e pensamento. Como os objetos de-
vem se conformar de alguma maneira às condições subjetivas da sensibilidade e do
pensamento para serem por nós sentidas e pensadas, então todo o conhecimento
humano é fenomênico, isto é, conhecemos as coisas assim como elas se manifestam
para nós.
Contudo, a noção de fenômeno abarca um âmbito restrito de conhecimentos, como se
fosse uma ilha no oceano. Segundo Kant, existe um âmbito muito maior da realidade
(“um vasto mar”, B 295) que não temos condições de conhecer por limites da nossa
condição transcendental da sensibilidade e do pensamento. Esse âmbito vasto é o
mundo da “coisa em si” (o númeno). Ora, se o fenômeno é a coisa assim como ela
aparece para o sujeito, logo a noção de fenômeno pressupõe a existência da coisa
como ela é em si mesma, independente da nossa percepção e pensamento:
No entanto, quando denominamos certos objetos, enquanto fenômenos, seres dos
sentidos (phaenomena), distinguindo a maneira pela qual os intuímos, da sua natureza
em si, já na nossa mente contrapomos a estes seres dos sentidos, quer os mesmos
objetos, considerados na sua natureza em si, embora não os intuamos nela, quer
43FilosoFia Moderna
outras coisas possíveis, que não são objetos dos nossos sentidos (enquanto objetos
pensados simplesmente pelo entendimento) e designamo-los por seres do entendi-
mento (noumena) (B306).
Mas as formas da sensibilidade e os conceitos do intelecto podem se aplicar somente
aos objetos empíricos, tornando-os objetos de uma experiência possível. O território
do conhecimento fenomênico é o único que fornece conhecimento seguro pois o nosso
intelecto nunca pode ultrapassar os limites dados pelas condições espaço-temporais
da sensibilidade e se aventurar a fornecer conteúdos dos objetos. O intelecto não tem
intuições (percepções sensíveis), apenas pensa conteúdos dados na sensibilidade.
Kant também limita o uso dos conceitos do intelecto ao âmbito empírico e invalida
o uso de um conceito do entendimento para referi-lo a coisas em geral ou em si
(B 297-298). Em nós (humanos) o intelecto e a sensibilidade tem que estar unidos
para determinar em conhecimento um objeto. Se separarmos sensibilidade e intelecto
temos somente intuições sem conceitos ou conceitos sem intuições. Por isso, não
podemos ir além do fenômeno. Isso significa, para Kant, que não é possível um co-
nhecimento validado e objetivo das coisas como são em si mesmas.
Ora, a esfera da coisa em si é justamente a esfera da metafísica. Nesse sentido, a fi-
losofia teorética de Kant conduz a um posicionamento crítico em relação à Metafísica.
a crítica Da metafísica
A posição crítica de Kant em relação à metafísica é exposta na parte da “Crítica da
razão pura” chamada de “dialética transcendental”. Kant usa a palavra dialética em
sentido negativo como um discurso crítico das ilusões.
Nos pontos anteriores que explicaram a revolução copernicana de Kant, notou-se que
o homem possui formas e conceitos puros (a priori) da sensibilidade e do intelecto
que precedem a experiência, mas que tem validade apenas se considerados como
44 FilosoFia Moderna
condições estruturais da experiência humana real, mas que são vazios em si e que
sozinhos não têm condições de nos fornecer outro tipo de conhecimento, por exem-
plo, um conhecimento intelectual separado dos conteúdos empíricos. Dessa forma,
não podemos ir além do horizonte da nossa experiência.
Entretanto, o pensamento humano tem uma tendência natural e incontrolável para ir
além da experiência e se dedica a pensar em conteúdos que estão muito além da
experiência, por exemplo, Deus, alma, liberdade etc. Mas ao aventurar-se pelo terri-
tório da metafísica, que é exatamente a dimensão do além da experiência, o homem
cai em ilusões. A última parte da “Crítica da razão pura” estuda quais e quantos são
esses erros e ilusões, e também explica as razões pelas quais são cometidos. A razão
é a faculdade que tenta usar os conceitos do intelecto para ir além da experiência e
ao fazê-lo cai em uma série de erros e ilusões.
Para o termo “razão” Kant apresenta dois sentidos: significa a faculdade de conheci-
mento em geral (veja a expressão “razão pura”) e a razão como atividade do intelecto
quando extrapola os limites do conhecimento possível. Nesse segundo sentido, a
razão faculdade ligada à metafísica, a “faculdade do incondicionado”; o incondiciona-
do é a dimensão além do finito, além do horizonte da experiência e conhecimento, o
campo da atividade da razão que usa apenas conceitos intelectuais e não intuições
da sensibilidade. Por esse motivo, para Kant a metafísica não é ciência, mas pensa-
mentos da razão.
O resultado da atividade da razão são as três ideias da razão e que resumem as par-
tes da metafísica:
A. a ideia psicológica (a alma);
B. a ideia cosmológica (ideia de mundo como unidade); e
C. a ideia teológica (Deus).
45FILOSOFIA MODERNA
Esses três conceitos da razão são apenas ideias, ou seja, pensamentos vazios de
conteúdo cognoscitivo. Contudo, Kant não considera essas ideias supérfl uas sem va-
lor. O motivo é que, apesar destas ideias não determinarem nenhum objeto, por meio
delas podemos passar do conhecimento da natureza para os conceitos morais. O que
Kant está dizendo é que as ideias de alma, mundo e Deus não acrescentam nada ao
nosso conhecimento das coisas e da natureza, mas se aplicam às ideias morais (a
fi losofi a prática).
atiViDaDes Para comPreensÃo Do conteúDo
1) Qual a divisão que os historiadores do pensamento kantiano elaboram para orga-
nizar suas obras? Cite as obras importantes de cada período indicando a temática
fi losófi ca geral presente em cada período.
2) O que Kant entende por juízo analítico e juízo sintético?
3) O que são juízos a priori e juízos a posteriori? Exemplifi que.
4) Explique qual a problemática geral da fi losofi a teorética de Kant cujo demonstra-
ção está na obra “Crítica da razão pura”.
5) Kant poderia ser chamado de o “Copérnico da fi losofi a”. O que é a “revolução co-
pernicana” de Kant?
6) Explique o que são o espaço e o tempo para Kant.
7) O que Kant entende por “intuição” e “fenômeno”?
8) Explique em que sentido Kant vai além e supera os problemas do racionalismo e
do empirismo modernos.
46 FilosoFia Moderna
9) O que Kant entende por “intelecto” e por “categorias” do intelecto?
10) Por que, para Kant, todo conhecimento humano é fenomênico?
11) O que Kant entende por “númeno”?
12) Por que para Kant a metafísica não é ciência?
13) Quais as ideias metafísicas fundamentais para Kant e qual o seu valor para a
filosofia kantiana?
Unidade iV - Kant e a filOsOfia Prática
a filosofia moral
As contribuições de Kant para o campo da filosofia moral encontram-se sistematiza-
das em suas obras “Fundamentação da metafísica dos costumes” e “Crítica da razão
prática”. A expressão “razão prática” é usada para diferenciar o aspecto moral e a
dimensão do conhecimento científico (razão especulativa), e a expressão significa um
aspecto da razão que é capaz de determinar a vontade e a ação moral do sujeito. A
unidade da razão é concentrada em três interrogações, segundo Kant (B833):
I. O que posso saber?
II. O que devo fazer?
III. Que me é permitido esperar?
A primeira é uma questão especulativa e pertence ao âmbito da razão pura (teorética);
a segunda é uma interrogação prática tratada no campo da moral e a terceira é uma
questão tanto teórica quanto prática que abrange o estudo das finalidades da ação,
ou seja, o campo da esperança e da felicidade: se faço o que devo fazer, que me é
permitido esperar?
O objetivo de Kant ao tratar do campo moral é buscar uma fundamentação para a
ação que não esteja no âmbito dos motivos empíricos que condicionam a ação, uma
motivação que não esteja ligada aos interesses, aos sentimentos, ou até mesmo às
promessas e punições. Por isso, o recurso à “razão” em seu uso prático, ou seja, ana-
lisar se podemos encontrar na razão os critérios para determinar a vontade para agir.
48 FilosoFia Moderna
o imPeratiVo categórico
A tarefa de Kant em sua filosofia prática (moral) é mostrar que a razão pura (isto é por
si só sem recorrer aos impulsos sensíveis, os sentimentos, interesses) pode mover
a vontade do sujeito a agir. Somente nesse caso, segundo Kant, poderia se falar de
princípios morais válidos para todos os homens (valor universal dos princípios mo-
rais). O princípio fundamental da moralidade deve ser incondicionalmente válido para
todo ser racional. Tal princípio fundamental seria uma lei moral.
Para o homem como um ser racional imperfeito (pois existe o elemento irracional
presente em seu ser – os desejos, interesses, paixões), a lei moral aparece como
constrangedora da vontade e obrigatória, e não simplesmente como um princípio
aconselhador ou condicional da ação, por exemplo, seria um princípio condicional “se
queres boa saúde pratique esporte”. Por isso o princípio fundamental da moralidade é
formulado como um imperativo categórico: é categórico porque suas exigências são
incondicionadas ou não aceitam condições; é imperativo, pois possui a forma de uma
lei que comanda a vontade a sempre querer o que o princípio demanda.
O ponto seguinte é derivar o imperativo categórico da razão pura, ou seja, a ra-
zão sem as interferências dos impulsos e interesses práticos. Mas para isso, Kant
afirma que a felicidade não pode ser a base para a lei moral, pois as nossas con-
cepções de felicidade são indeterminadas; frequentemente o que achamos que
nos fará felizes neste momento entra em conflito com o que achamos que nos fará
felizes amanhã.
Além disso, Kant argumenta que o princípio fundamental da moralidade não pode
estar baseado no mero desejo de alcançar alguma finalidade ou no interesse da von-
tade. É nesse sentido que Kant apresenta uma concepção formalística do imperati-
vo categórico ou que Kant apresenta uma moral formal. Esta concepção formalística
significa que a lei moral não depende do conteúdo para ser aceita, ele nos comanda
49FilosoFia Moderna
enquanto lei e não enquanto matéria. Isso significa que a moralidade não depende
das coisas que nós queremos, mas sim do princípio pelo qual as queremos.
Por isso Kant afirma que a moralidade está na forma e não no conteúdo. E devido
a essa formalidade a lei moral é caracterizada como universal:
Se pensar um imperativo categórico, então sei imediatamente o que é que ele contém.
Por que, não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima que
manda conforma-se com esta lei, e não contendo a lei nenhuma condição que a limite,
nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da ação
deve ser conforme, conformidade essa que só o imperativo nos representa propria-
mente como necessária. O imperativo categórico é portanto um único, que é este: Age
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ele se torne lei uni-
versal (KANT, 1980, p.129).
Kant oferece uma segunda formulação da lei moral baseada em um fim de valor in-
condicional pois enquanto racional, um ser racional precisa de um motivo racional
para aderir à lei, um fim racional incondicionalmente válido. E esse fim de valor incon-
dicional é o ser humano:
Admitindo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto
e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa coisa e só
nela é que estará a base de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei
prática. Ora, digo eu: o homem, e, de uma maneira geral, todo ser racional, existe como
fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.
Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como
nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simul-
taneamente como fim (KANT, 1980, pp.134-135).
Desse argumento Kant deriva a segunda formulação do imperativo categórico: “Age
de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qual-
quer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”
(KANT, 1980, p.135).
50 FilosoFia Moderna
a lei moral e a liberDaDe Da VontaDe
O problema da liberdade da vontade e a responsabilidade moral é um assunto fre-
quente na filosofia kantiana, apesar da predominância da questão da validade da lei
moral nas obras centrais da filosofia prática de Kant. Pode-se dividir em cinco fases o
pensamento de Kant sobre a liberdade da vontade:
I. A posição inicial na qual ele rejeita as alternativas ao determinismo e entende que
as ações humanas livres têm uma causa interna e não externa. Kant critica o que
ele chama de “liberdade de indiferença”, ou seja, a ideia de que a pessoa é real-
mente livre somente quando todos os fatores antecedentes - como o caráter e as
circunstâncias – deixam sua vontade em um estado de indiferença em relação às
alternativas possíveis da escolha de modo que os antecedentes não determinam
a escolha por uma alternativa. A objeção de Kant a isso significa indeterminismo
e que a pessoa não teria controle de suas ações, de modo que mesmo que ela
tivesse se comprometido com o bem, nada a determinaria a não escolher o mal.
O indeterminismo não deixa espaço para falar da responsabilidade.
A proposta de Kant é que a liberdade deve ser compatível com o determinismo de al-
guma forma e, assim, Kant entende que a liberdade existe quando o poder de escolha
é determinado em conformidade com a representação do que é o melhor ao invés
de ser determinado por algo externo. As pessoas são livres quando agem de acordo
com suas concepções próprias sobre o que é o melhor e não quando são forçadas por
algum fator externo a elas.
II. Na “Crítica da razão pura” Kant desenvolve uma posição que abre espaço me-
tafísico para a possibilidade de ações humanas livres (não ditadas pelas leis
determinísticas da natureza) apesar de manter a impossibilidade de provar a
existência de tais ações livres.
51FilosoFia Moderna
Kant esclarece que a distinção entre nível fenomênico e nível numênico abre espaço
para se pensar em duas modalidades de causalidade: uma causalidade segundo as
leis da natureza, provada no nível dos fenômenos ou eventos que se sucedem de
acordo com leis causais determinísticas; e um segundo tipo de causalidade por meio
da liberdade que não estaria em conformidade com as leis naturais e que pertenceria
ao nível das coisas em si mesmas.
Segundo Kant, podemos conceber um ato de liberdade que não seja determinado por
uma causa temporal antecedente e assim tornar compreensível a origem do mundo.
Ou seja, Kant argumenta que ao encontrar espaço para a ação livre de Deus ao criar
o mundo também abrimos espaço conceitual para a possibilidade da livre iniciação de
uma série de eventos por um ser humano (B476-478).
No nível dos eventos que acontecem existem sim as causas determinísticas, contudo,
Kant afirma que existe também, no mundo dos eventos possibilidade da intervenção
das escolhas livres. Veja o exemplo:
Considere-se uma ação voluntária, por exemplo, uma mentira maldosa, pela qual um
homem introduziu uma certa desordem na sociedade; e que se investigam primeiro
as razões determinantes que a suscitaram. [...] Examina-se primeiro o caráter empí-
rico desse homem até às suas fontes, que se procuram na má educação, nas más
companhias e, em parte também, na maldade de uma índole insensível à vergonha,
atribuindo-se também, em parte, à leviandade e irreflexão e não deixando de ter em
conta os motivos ocasionais que a motivaram. Ora, embora se creia que a ação foi
assim determinada, nem por isso se censura menos o seu autor; não, aliás, pela sua
má índole, nem pelas circunstâncias que sobre ele influíram, nem sequer pela sua con-
duta anterior; pois se pressupõe que se podia pôr inteiramente de parte essa conduta
e considerar a série passada de condições como não tendo acontecido e essa ação
inteiramente incondicionada em relação ao estado anterior, como se o autor começasse
absolutamente com ela uma série de consequências.... a ação é atribuída ao caráter
inteligível do autor (KANT, 1994, B582-583).
52 FilosoFia Moderna
Com seu argumento Kant apenas mostrou que a liberdade da vontade é possível; e
que a existência da vontade livre não pode ser provada empiricamente pois o nível
empírico é essencialmente determinista, e também não pode ser provada a partir dos
conceitos teóricos do intelecto. Por isso, segundo Kant a liberdade da vontade pode ser
provada somente no campo prático como um pressuposto necessário à moralidade.
III. O próximo passo de Kant para provar que somos realmente livres é argumen-
tar que a existência da liberdade humana pode ser aceita analiticamente a
partir do conceito de um ser racional. Kant desenvolve esse tema em sua obra
“Fundamentação da metafísica dos costumes”.
Inicialmente Kant define que “a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vi-
vos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual
ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem”
(1980, p.150). Esse sentido negativo de liberdade é a propriedade de agir sem ser
determinado por “causas estranhas”. Mas desta definição decorre um sentido positivo
de liberdade: agir segundo leis da própria vontade. Então, Kant argumenta que:
A necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes; pois todo o efeito
era só possível segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse à causalidade
a causa eficiente; que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão a auto-
nomia, isto é, a propriedade da vontade de ser lei para si mesma? Mas a proposição:
‘a vontade é, em todas as ações, uma lei para si mesma’ caracteriza apenas o princípio
de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que possa ter-se
a si mesma por objeto como lei universal. Isto, porém, é precisamente a fórmula do
imperativo categórico e o princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade
submetida a leis morais são uma e a mesma coisa (KANT, 1980, p.150).
Note-se no argumento o vínculo entre liberdade como autonomia e o imperativo cate-
górico (a lei moral). A conclusão é que ao provar que somos seres livres Kant também
provou que por isso estamos sujeitos à lei moral.
53FilosoFia Moderna
IV. Na obra “Crítica da razão prática” aparece outro argumento de Kant para
provar que temos a liberdade da vontade segue a estratégia de começar
pelo fato da nossa consciência sobre a obrigação da lei moral e disso inferir
a liberdade da nossa vontade. O pressuposto do argumento é que a liberda-
de e a lei moral incondicionada se implicam mutuamente. Isso é a base para
afirmar que a lei moral (imperativo categórico) requer a determinação da von-
tade pela mera forma da lei independente de qualquer sentimento, interesse
ou motivação empírica.
Kant chama de “fato da razão” a nossa consciência da lei moral e sua obrigatoriedade.
E esse é o ponto de partida: nós conhecemos primeiro a lei moral como fato da razão.
Ora, nós somente podemos ser obrigados a fazer algo que para nós fosse possível fa-
zer, ou seja, se devo fazer é porque posso fazer. Por exemplo, se devo dizer a verda-
de (obrigatoriedade da lei moral), portanto também posso dizer a verdade (liberdade
da vontade). Ou seja, “deves, portanto podes”.
A nossa consciência da obrigação moral somada à nossa convicção de que somente
podemos ser obrigados a fazer aquilo que podemos fazer, nos leva a concluir que
somos sempre livres para fazer aquilo que a lei moral requer.
Mas se a lei moral é a lei necessária e causal da vontade, então como explicar a pos-
sibilidade de vontade livre escolher o oposto da lei moral, ou violar a lei moral? Essa
questão leva Kant a tratar da possibilidade de uma ação imoral livremente escolhida.
v) Essas questões são tratadas na obra “A religião dentro dos limites da simples ra-
zão”. Nessa fase, Kant não está mais preocupado em provar a existência da vontade
livre, mas sim em mostrar que o seu exercício implica a possibilidade da ação má e
também na possibilidade da conversão humana para o bem.
54 FilosoFia Moderna
O argumento de Kant é que apesar de nós termos predisposições ou tendências natu-
rais para o bem e para o mal, nós não somos de fato bons ou maus por natureza, mas
apenas por resultado da nossa escolha livre em basear nossa conduta na moralidade
(bem) ou no amor-próprio (mal). A premissa inicial é que nossa vontade não é automa-
ticamente determinada pela lei moral, mas somos verdadeiramente livres para escolher
entre a moralidade e o seu oposto. Portanto, o bem ou o mal são sempre produtos de
uma escolha livre. A liberdade radical significa que temos a possibilidade de escolher
com liberdade sermos bons ou maus. Então, se a ação imoral é o resultado de uma es-
colha livre assim também será a possibilidade de uma ação moral, a escolha livre para
ser bom.
Em resumo, a posição de Kant sobre o tema da lei moral e da liberdade: todos nós
temos conhecimento da lei moral; desse fato podemos fazer inferência da nossa liber-
dade. Essa liberdade é a liberdade de escolher o bem ou o mal sem a determinação
interna (tendências naturais, caráter) ou externa (circunstâncias sociais etc.).
imortaliDaDe e existência De Deus
A filosofia prática de Kant apresenta por um lado, como já foi mostrado, a possibili-
dade da moralidade e da liberdade; e por outro lado, Kant mostra também o objeto
da moralidade. O que seria esse “objeto da moralidade”? Para Kant o objeto da
moralidade é o que ele chama de “ideal do sumo bem” (Crítica da Razão Pura, B
832). Na exposição deste objeto da moralidade Kant o vincula ao “reino dos fins” e
à necessidade de postular a existência de Deus e da imortalidade.
Segundo Kant, a felicidade é o objetivo natural dos seres humanos. Mas também
afirma que a lei moral nos indica como podemos nos tornar dignos da felicida-
de (B 834). Em outras palavras, nosso objetivo é a felicidade e esse objetivo se
55FilosoFia Moderna
conjuga com a moralidade no sentido de que devemos nos comportar para nos
tornarmos dignos da felicidade (“Faz o que pode para tornar-te digno de ser feliz”
(B 837). O objetivo da moralidade é indicar como se tornar digno de ser feliz.
Kant entende por sumo bem “toda a felicidade do mundo, na medida em que esta
felicidade está em exata relação com a moralidade (com o mérito de ser feliz)”
(B 838). A expressão “toda felicidade do mundo” significa a felicidade de todos
os homens (sumo bem) e como tal não é a ideia de uma combinação dos fins
individuais para alcançar a felicidade com a moralidade. A ideia da “felicidade de
todos” é uma ideia moral, um “sistema de felicidade” que resultaria em um mun-
do moral: um mundo onde as pessoas pudessem satisfazer suas finalidades de
acordo com a moralidade:
Chamo mundo moral, o mundo na medida em que está conforme a todas as leis moral
(tal como pode sê-lo, segundo a liberdade dos seres racionais e tal como deve sê-lo,
segundo as leis necessárias da moralidade. [...] Ora, num mundo inteligível, isto é, num
mundo moral, em cujo conceito fazemos abstração de todos os obstáculos à moralida-
de (as inclinações), pode pensar-se também como necessário semelhante sistema de
felicidade, proporcionadamente ligado com a moralidade, porque a liberdade, em parte
movida e que em parte restringida pelas leis morais, seria ela mesma a causa da feli-
cidade geral e, portanto, os próprios seres racionais, sob a orientação de semelhantes
princípios, seriam os autores do seu próprio bem-estar durável e ao mesmo tempo do
bem-estar dos outros (B 836-837).
Mas por que essa concepção de moralidade está ligada ao postulado da existência de
Deus e da imortalidade humana? Pelo seguinte motivo: “este sistema de moralidade
que se recompensa a si própria é apenas uma ideia, cuja realização repousa sob a
condição de cada qual fazer o que deve” (B 838).
O argumento é o seguinte: é racional buscar um objeto somente se tivermos bons mo-
tivos para pensar que esse objetivo poderia ser alcançado; o objetivo da moralidade
56 FilosoFia Moderna
(a felicidade de todos) não pode ser alcançado neste mundo natural por causa das
escolhas imorais; portanto, devemos acreditar e supor um mundo sobrenatural além
dos limites do tempo e da nossa experiência cotidiana, que seria governado por Deus,
o sumo bem original:
Designo por ideal do sumo bem a ideia de semelhante inteligência, na qual a vontade
moralmente mais perfeita, ligada à suprema beatitude, é a causa de toda a felicidade
no mundo, na medida em que esta felicidade está em exata relação com a moralidade
(com o mérito de ser feliz). Assim, a razão pura só pode encontrar no ideal do sumo
bem originário o princípio da ligação praticamente necessária dos dois elementos do
sumo bem derivado, ou seja, de um mundo inteligível, isto é, moral. Ora, como devemos
representar-nos necessariamente, pela razão, como fazendo parte de semelhante mun-
do, embora os sentidos não nos apresentem senão um mundo de fenômenos, devere-
mos admitir esse mundo como uma consequência da nossa conduta no mundo sensível
e porque este último não nos oferece uma tal ligação, como um mundo futuro para nós.
Deus e a vida futura são, portanto, segundo os princípios da razão pura, pressupostos
inseparáveis da obrigação que nos impõe essa mesma razão (B838-839).
57FILOSOFIA MODERNA
atiViDaDes Para comPreensÃo Do conteúDo
1) O que Kant entende por razão prática?
2) Qual o objetivo de Kant a tratar do campo moral?
3) Em que sentido o imperativo categórico é formal e incondicionado?
4) Comente a primeira formulação do imperativo categórico.
5) Qual argumento Kant usa para formular a segunda versão do imperativo categórico?
6) Como Kant entende a compatibilidade entre liberdade e determinismo?
7) Qual o argumento que Kant usa na Crítica da razão pura para mostrar que é
possível a liberdade humana?
8) Como Kant mostra que a existência da liberdade humana pode ser aceita analiti-
camente a partir do conceito de um ser racional?
9) Que argumento Kant utiliza pra mostrar que a partir da obrigatoriedade da lei mo-
ral podemos aceitar a liberdade humana?
10) Como Kant explica que é possível uma ação imoral livre?
11) O que Kant entende por sumo bem?
12) Por que a concepção de moralidade, segundo Kant, está ligada ao postulado da
existência de Deus e da imortalidade humana?
58 FILOSOFIA MODERNA
referências
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