guerra do contestado (llinguagem dos caboclos) livraria vuirtual issuu/edipel -2014-
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A epopeia da GUERRA DO CONTESTADO, é sem dúvida um fato histórico relevante vivido pelos nossos caboclos que deixaram um legado de heroísmo e linguagem singular que merece ser registrado...TRANSCRIPT
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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REINALDO ASSIS PELLIZZARO
GUERRA
DO
CONTESTADO (Linguagem dos Caboclos)
-Edipel-
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Quando nóis era jagunço
Tava bem arrumadinho
Muito oro nos cuscóis
E camisa cularinho!.
(Linguagem dos caboclos, demonstrando que quando lutavam
como jagunços estavam, bem...)
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
3
1@. Edição – 2.014
Reinaldo Assis Pellizzaro
PELLIZZARO, Reinaldo Assis
GUERRA DO CONTESTADO (Linguagem dos
Caboclos)
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
ÍNDICE GERAL
A Guerra do Contestado................ 5
Teste Militar.................................. 9
Monge Zé Maria.......................... 19
Adeodato..................................... 25
Linguagem falada p/ caboclos.... 32
Bibliografia...................................52
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
5
A GUERRA DO CONTESTADO
A Guerra do Contestado, foi um conflito
armado entre a populaçãocabocla e os
representantes do poder estadual e federal
brasileiro travado entre outubro de 1912 a
agosto de 1916, numa região rica em erva-
mate emadeira, disputada pelos estados
brasileiros do Paraná e de Santa Catarina
Decorrente de problemas sociais,
decorrentes principalmente da falta de
regularização da posse de terras e da
insatisfação da população hipossuficiente, numa
região em que a presença do poder público era
pífia, o embate foi agravado ainda pelo
fanatismo religioso, expresso
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
pelomessianismo e pela crença, por parte dos
caboclos revoltados, de que se tratava de
uma guerra santa.
A região fronteiriça entre os estados
do Paraná e Santa Catarina recebeu o nome de
Contestado devido ao fato de que os agricultores
contestaram a doação que o
governo brasileiro fez aos madeireiros e
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
7
à Southern Brazil Lumber & Colonization
Company.
Como foi uma região de muitos
conflitos, ficou conhecida como Contestado, por
ser uma região de disputas de limites entre os
dois estados brasileiros.
Uma das maiores e mais sangrentas
revoltas camponesas da História da Humanidade
aconteceu em Santa Catarina.
No dia 22 de outubro de 1912, na cidade
de Irani, tropas paranaenses comandadas pelo
coronel João Gualberto travaram um violento
combate com um grupo de sertanejos sem-terra,
liderados pelo “monge” José Maria que pregava
a volta da Monarquia e a construção de uma
sociedade igualitária.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
O conflito, que se alastrou por dezenas de
cidades catarinenses, durou quatro anos e
causou a morte de cerca de 20 mil pessoas.
Vários acontecimentos produziram este
levante popular: a disputa de limites entre
Paraná e Santa Catarina; a construção da estrada
de ferro São Paulo - Rio Grande, pela poderosa
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
9
multinacional Brazil Railway pertencente ao
Sindicato Farquhar; a instalação da segunda
maior madeireira da América, a Southern Brazil
Lumber & Colonization Company Inc.
Floresta de araucárias dizimada pela Lumber
Este conjunto de fatores convergia para uma
mesma direção: a expulsão dos camponeses,
habitantes nativos da região, a ocupação de suas
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
terras e a exploração das ricas reservas de
pinheiro araucária. Nesse período praticou-se a
primeira devastação ecológica industrialmente
planejada na América Latina com a derrubada
de mais de 2 milhões de pinheiros e outras
madeiras nobres.
TESTE MILITAR
A Guerra do Contestado mobilizou dois
terços do Exército Brasileiro de então, milícias
estaduais e forças paramilitares. Foi o grande
teste do exército moderno: pela primeira vez, na
América Latina, utilizaram-se aviões com fins
militares, bombas de fragmentação e
aprimoradas técnicas de contra-insurgência, só
esboçadas na Guerra de Canudos.
Os camponeses, profundos conhecedores
do sertão catarinense e movidos por uma fé
mística baseada na imortalidade, resistiram
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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ferozmente até a sua derrota utilizando
eficientes técnicas de guerrilha.
Caboclos armados de facão de
madeira
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Além da luta pela terra, messianismo,
sebastianismo e desejos de volta à Monarquia
permeavam o imaginário dos sertanejos.
Analisando a Guerra do Contestado, a
partir de questão religiosa Angelo Vaninei
Cordeiro, faz um expressivo e esclarecedor
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
13
relato histórico, que merece ser transcrito, para
compreendermos o que realmente ocorreu nessa
conturbada quadra da nossa historia, verbis:
“ O imaginário religioso. O que nos
propusemos a debater no início deste artigo foi
a questão religiosa, esse contexto acima mostra
as várias faces desta guerra o que denota a
importância de buscar um entendimento amplo
da questão, desta forma, passaremos agora a
discutir as visões e a religiosidade em contraste
com uma guerra, a Guerra do Contestado.
O Contestado por ser uma guerra de
caráter messiânico, pode ser visto e discutido a
partir de práticas religiosas, mas as práticas
que se articulavam com o modo de vida dos
sertanejos, e ao mesmo tempo revelam a
própria concepção de mundo deste povo.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Autores como Paulo Ramos Derengoski,
Élio Serpa, Aureliano Pinto de Moura, em suas
obras concebem a existência de três Monges
chamados João Maria, importantes, para a
compreensão dos desdobramentos que seguiram
antes e durante o conflito do Contestado no que
tange a religiosidade. A própria pedagogia
utilizada por estes monges vai de encontro as
necessidades da população, a “partilha do
cotidiano dos caboclos dava ao monge
condições para falar do sofrimento e das
esperanças e entender as necessidades7” desta
população. A lógica da convivência dava aos
líderes religiosos o conhecimento de como agir,
falar e tentar sanar os problemas locais, assim
os seus discursos e práticas eram
compartilhados pelos sertanejos, pois o que se
pregava tinha sentido e revelava a condição em
que se encontravam.
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
15
A presença dos monges na região do
Contestado antecede a guerra.“Há um primeiro
João Maria (de Jesus), de quem pouco se fala e
pouco se sabe. Surgiu na região ISSN:
19837429 n.11 – março de 2013 no início do
século XIX (1810?)”8, Moura afirma não haver
informações precisas sobre o primeiro Monge,
já Derengoski, escreve que “O primeiro foi
Gianmaria d’Agostini, um italiano natural de
Piemonte que em 1844 deixou registrado e
assinado num cartório de Sorocaba seu
ingresso no Brasil”9, este se auto-intitulava
“solitário Eremita”.
Ao se referir ao segundo monge,
Derengoski, escreve: “do segundo João Maria
já se tem preto no branco – foto, desenhos e
relatos. Ele se chamava Atanás (ou Anastás)
Markaff, imigrante do Levante para
Argentina”10. Serpa ao falar do segundo
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Monge, João Maria de Jesus, o chamou de
“Anastás Marcaf, de origem francesa11” este
tinha um carisma muito agradável e era muito
bem acolhido entre os sertanejos.
O terceiro monge, José Maria, segundo
Serpa “por volta de 1911. Despontava na
região de Campos Novos (SC), no seio do povo,
outro profeta, e corria no sertão a notícia de
que o grande profeta havia ressurgido”12.
Cabral, afirma que o nome verdadeiro do
terceiro monge era “Miguel Lucena de
Boaventura”13, e o descreve como sendo um
pouco diferente de seus antecessores, “ao
contrário dos outros, era amigo da
popularidade e gostava de ajuntamentos – que
houve mister disciplinar a horda.
Como ex-militar, organizou então os
acampamentos, os quais denominou de Quadros
Santos”14, porém o povo não era capaz de
visualizar ou identificar as diferenças, pois um
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
17
seria a continuidade do outro, ou a própria
encarnação,
O grande imaginário religioso nasce
destas profecias, de que após a morte sempre
tem alguém para suceder o que se foi, e assim
se perpetua no sertão um ideário, em que os
monges após a morte ainda estão em batalhas,
ajudando e comandando os combates.
Podemos nos perguntar, por que os
monges em suas pregações e peregrinações
pela região tinham tanto sucesso? A resposta
pode estar no seio da região e no modo de
ISSN: 19837429 n.11 – março de 2013 vida e
também no abandono da população, estes não
tinham aconselhamentos com padres, ou
pastores, estavam entregues a própria sorte,
viviam na pobreza, sem educação, saúde e
qualquer outra forma de orientação, desta
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
forma era fácil e até entendível que o povo
aceitasse e procurasse se orientar, pelas
pregações destes homens que se diziam santos e
que acabavam por ser no meio desta multidão a
liderança mias importante.
Durante a Guerra do Contestado, na
batalha de Irani, vários caboclos foram mortos,
e dentre eles também tombou o monge José
Maria. Pode ser entendido como um marco
inicial do Contestado, e para a questão fanática
religiosa muito mais, pois “José Maria
encontraria muitos herdeiros, dispostos a
cobrar a dívida. As profecias do seu antecessor
iriam realizar-se: - viria a guerra. E veio. E o
sangue, efetivamente, voltou a correr.”15, este
último da sucessão de três monges, foi o mais
envolvido na guerra, até por ser ele o líder
venerado entre os caboclos, e é decorrente de
sua morte que vai se perpetuar essa ideia entre
os sertanejos da presença constante do mesmo
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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entre eles ajudando nas batalhas. 15 Idibem, p.
184 e 185.
Esse imaginário moveu muita gente a
lutar e acreditar que após a morte também iria
ressuscitar, é aqui que se faz necessário
entender o quanto a religião e a própria crença
é capaz de envolver as pessoas, este
pensamento de que a força sobrenatural está
em atividade na vida das pessoas nos campos
de batalha e no próprio cotidiano, alenta e da
esperança a pessoas que estavam abandonados,
sem emprego e vivendo uma vida miserável, ou
seja, a prática religiosa era capaz de preencher
o vazio de tantas necessidades materiais e até
espirituais, não satisfeitas pelos órgãos
competentes que deveriam estar agindo nesta
região brasileira e até mesmo em outras, como
Canudos na Bahia. A promessa da volta, ou da
liderança conduzia este povo a lutarem pela
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
terra prometida, a irem em busca de seus
ideais, e assim muitos sofreram a força bruta
das tropas republicanas.
“A morte de José Maria, no combate de
Irani, fez com que os sertanejos fizessem uso
intenso do imaginário religioso. Assim,
enterraram José Maria em cova bastante rasa,
coberto com algumas tábuas, pois acreditavam
que iria ressuscitar.
Isto criava nos sertanejos a esperança de
tê-lo junto, ISSN: 19837429 n.11 – março de
2013 reencaarnava vencendo a morte. Mais
tarde passam a divulgar que quem morresse
lutando também ressuscitaria, o que mobilizava
os moradores no sentido de se manterem unidos
diante do desaparecimento do profeta”16.
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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Monge José Maria
Esta ideia de Serpa, ilustra bem como se
conservou a memória viva do monge, e o
quanto ele mobilizou as pessoas à luta até
mesmo após a sua morte, pois ao morrer “havia
entrado para o “Exército Encantado”, o
Exército de São Sebastião, cujo comandante era
o próprio São Sebastião”17. Dessa forma
ninguém morreria, somente passaria para a
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
eternidade, nem mesmo no combate de Irani as
pessoas tinham morrido, apenas haviam
passado para o Exército de São Sebastião
juntamente com o Monge José Maria.
É visível esta perpetuação iniciada pelos
monges que não tardou para aparecerem os que
diziam ter contato com José Maria, e foi nestes
intérpretes, ou adivinhos e videntes, que a
presença do monge se fez constante na vida das
pessoas e na organização da guerra e no
cotidiano da região. A primeira liderança
espiritual coube a Euzébio Ferreira dos Santos,
pai de família e comerciante, e demonstrava
grande apreço ao monge. Por este se inicia uma
série de personagens que encarnam e tem
contato com o monge. A primeira a ter esse
privilégio seguindo a crença popular dos
sertanejos foi a neta de Euzébio Ferreira dos
Santos, uma menina de 11 anos chamada de
Teodora.
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
23
Segundo Moura, “em agosto de 1913,
Teodora veio a tardinha dizer que num galpão
um pouco afastado estavam três homens, um
dos quais era o José Maria. Para lá todos se
dirigiram rezando e avistaram, no entardecer,
uma luz que subia ao céu”18. Ninguém foi
capaz de enxergar o monge, somente a menina,
dessa forma a partir desse fato, espalhou-se na
região que Teodora seria a ponte de ligação
entre os sertanejos e José Maria, dando
continuidade à presença do mesmo nos embates
travados pela população local.
Aos poucos Teodora foi perdendo a
confiança das pessoas e foi substituída por
Manoel, um jovem de 18 anos, este filho de
Euzébio, “Manoel se encontrava com o ISSN:
19837429 n.11 – março de monge, nas matas
com regularidade”19, portanto agora Manuel
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
era responsáveis por passar as informações de
José Maria as pessoas e os combatentes do
Contestado. Em um dos contatos, o monge
“passou a ordem de que era necessário
convocar gente para a guerra de São Sebastião
e de que seguissem todos para Taquaruçu, pois
nesse local ele apareceria para todos”20.
O que se nota a partir desse fato é que
essa cidade passa a ser um local de
peregrinação, pois ali o monge se revelava, ou
estava presente. Manuel continuava o líder e
vidente, porém, este organizou a comunidade e
passou a exigir alguns ritos e até submissão das
pessoas, ao ponto de exigir que para chegar na
cidade era necessário a ordem, e algumas
saudações ao líder espiritual, portador das
mensagens do monge, até que disse ter uma
ordem de José Maria para ele dormir com duas
virgens.
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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Conta Moura, que por essa atitude,
Manoel “foi submetido a julgamento e
condenado a uma surra com vara de
marmeleiro nas nádegas”21, mesmo a
capacidade de vidente foi questionada pelo
povo, baseado nos ensinamentos do monge, que
no imaginário dos sertanejos, José Maria não
daria uma ordem dessas, ou aprovaria tal ato.
O julgamento dos caboclos era
consciente, mesmo morto José Maria não
desapontaria seus seguidores, assim, as
práticas dos videntes para serem aceitas pelos
membros da comunidade teriam que ter algo
ético e que viesse de encontro com aquilo que
eles esperavam de seu protetor, o qual falava e
comunicava seus decretos por meio de seus
intérpretes.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Com a queda de Manoel, quem o
substituiu foi o neto de Euzébio, chamado de
Joaquim, com apenas 11 anos de idade, e em
Caraguatá quem fazia o intermediário entre
José Maria e o povo era Maria Rosa, uma
menina de 15 anos.
MARIA ROSA
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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Maria Rosa é como ficou conhecida
a personagem brasileira que foi uma das
líderes da Guerra do Contestado (1912-
1916), menina dotada de poderes místicos e
visões)
Dizem os historiadores que, com
apenas 15 anos, Maria Rosa lutou como
homem nesta guerra. Considerada como
uma Joana D'Arc do sertão, "combatia
montada em um cavalo branco com arreios
forrados de veludo, vestida de branco, com
flores nos cabelos e no fuzil".
Assumiu a liderança espiritual e
militar de todos os revoltosos do
Contestado, então eram cerca de 6000
homens, após a morte do dito monge João
Maria. Este monge santo, cujo nome era
Miguel Lucena de Boaventura - ,e que
também se autodenominava José Maria
Agostinho, tem registro de passagem como
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
militar no Paraná, foragido após cometer
delitos.
Maria Rosa morreu em 28 de
Março de 1915, da vila de Reinchardt,
lutando contra o capitão Tertuliano
Potyguara e um efetivo de cerca de 710
homens. Maria Rosa morreu às margens
do rio Caçador.
Com todos esses personagens se efetivava
a organização dos sertanejos, a existência
pobre, no sertão, tinha uma esperança, mesmo
se morresse em combate, continuaria vivo no
Exército de São Sebastião.
Os próprios combates e emboscadas
eram previstos pelos videntes, assim os
sertanejos se organizavam e criavam
estratégias ISSN: 19837429 n.11 – março de
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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2013 de guerra, pois as previsões colocavam o
povo em alerta, e assim acreditavam que era a
comunicação direta com o monge, que estava
presente nas batalhas.
Adeodato preso entre dois soldados
Terminada a guerra os membros do
Exército de São Sebastião, fiéis ao monge José
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Maria, começaram a se dispersar, sobrou
apenas dois guerreiros, Elias de Moraes e
Adeodato Ramos, este último cumpre prisões,
escapa e é novamente capturado, até que um
dia, é assassinado pela polícia tentando fugir
depois de ter atacado um oficial e lhes roubado
a arma, porém:
“depois de morto, diz a lenda Adeodato
se transformou num grande carancho de
penacho branco, mas que voa para trás e para
o alto, no tempo e no espaço. E que daqui a mil
anos voltará para montar no cavalo farrapo e
percorrer novamente os carrascais o Iguaçu.
Ele surgirá do alto do morro encantado do
Taió, aos pés do sol, e trará entre os cabelos um
ninho de sete cobras venenosas. Em algum
ponto do Planalto reconstruirá a Cidade-Santa
de Taquaruçu. Neste dia, diz a lenda, o
carrascal vai virar mar e o mar vai virar
carrascal”22.
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
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É mais uma lenda que mostra esse
imaginário da crença na volta após a morte, a
eternidade sempre perpassou a história da
humanidade, e os meios de superá-la sempre
foram cobiçados, e no Contestado temos uma
presença dessa concepção muito forte e
constante, ali se fez presente nas batalhas, no
cotidiano sofrido, a esperança de viver algo
além da vida e ainda interferir no mundo
material, como fazia o monge, alertando seus
fiéis quando um ataque estava para ocorrer.
Nessa relação entre monges e caboclos
temos uma aproximação, ou seja, não foi algo
imposto pelos monges, nem pelo povo, esta
amistosa compreensão de ambos se deu pelo
reconhecimento das práticas e discursos dos
monges e os problemas dos caboclos, a
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
experiências diárias e as ações concretas do
cotidiano aproxima o povo de seu líder, que
através da oralidade vai de encontro com os
princípios e necessidades dos sertanejos, ou
seja “os monges foram reconhecidos pelos
caboclos, na medida em que se mostraram
sensíveis e legitimaram suas práticas23”.
A relação é amistosa e aceita por quem
houve e por quem prega. José Maria tinha um
discurso voltado para as questões da natureza,
para a terra, ou o cuidado com a própria terra
e aquilo que a natureza provia, assim, fala da
existência do povo, do seu simbolismo, da
essência vivida por eles e vai se consolidando
como santo, a ser venerado em vida e após a
sua morte.
Essa relação exprime uma relação
cultural, pois os monges deveriam saber o que
falar, mas para isso precisavam saber para
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
33
quem estavam falando, deste modo o
conhecimento da existência local com tudo que
fazia parte cotidiana do sertão tinha que ser
falado, e não propor algo alheio ao mundo dos
caboclos.
A religiosidade fala, mas fala daquilo que
trás esperança e faz sentido para um
determinado povo, ela perpassa a história da
humanidade e está presente significando ações,
“é uma possibilidade permanente da vida
cotidiana, constituindo-se em um dado
histórico-cultural muito importante para o
conhecimento das sociedades”24.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
A REZA DOS CABOCLOS
Livro de reza dos caboclos
Orações rezadas diariamente – em
cada família sempre tinha um parente
letrado- com muita fé, invocando a
proteção divina, que revigorava o corpo e o
espírito, orações dotadas de força poderosa
e milagrosa, transmitida de geração em
geração até os dias atuais:
Ao acordar rezavam...
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
35
“Pelo santo batismo de JESUS
CRISTO, por JOÃO no RIO JORDÃO,
parai todas as armas para que não
disparem sobre mim pela palavra de
Nosso Senhor JESUS CRISTO, que nos
salvou da perdição, e por nós morreu na
cruz, parai MEU DEUS, longe de mim
tudo o que for contra mim. DEUS todo
poderoso, compadecei-vos de nós! Em
nome do PAI, do FILHO e do ESPIRITO
SANTOS. Amém! Pai nosso que estais no
Céu...”
No final do dia, antes de dormir,
rezavam:
“Em minha cama me deito com
JESUS CRUCIFICADO, em meu peito e
em meu lado, para que livre a minha alma
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
de culpa e meu corpo de pecados, PAI
NOSSO, AVE MARIA, chagas abertas,
coração ferido, NOSSO SENHOR, entre
mim e o perigo”.
O Contestado foi exemplo disso, as
práticas dos líderes só tinha sentido a partir do
momento que revelava a vida vivida da
população, José Maria esteve ao lado dos
caboclos empobrecidos e necessitados,
compartilhava a vida com eles, entrou em
batalhas, o exemplo do líder torna-o mais
aceitável ainda, pois fala e age junto com as
pessoas, assim tem uma cumplicidade, respeita
as práticas da comunidade e acima de tudo se
insere nelas, e a partir delas monta um discurso
e uma prática agradável a todos, e assim vai se
eternizando na memória e no imaginário dos
sertanejos, ao ponto de ser relacionado com o
sagrado, toda ação do monge estava ligado ao
sagrado, “atitudes e objetos ligados ao monge
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
37
eram tidos como remédios poderosos. Até
mesmo os lugares nos quais o monge
pernoitava eram considerados sagrados, e o
povo se apossava das cinzas que restavam da
fogueira, bem como das folhas e cascas de
árvores sobre as quais se recostara, para fazer
remédios, geralmente considerados
infalíveis”25.
Essas representações que dão sentido a
vida dos caboclos, nas próprias orações de
proteção e força, carregavam os sertanejos de
esperança para enfrentarem as adversidades da
vida
A proteção traria esse imaginário de
corpo fechado na guerra, revelando uma
grande coragem e disposição sem medo da
morte, pois a morte no fundo não existia, era
apenas uma passagem de lado, e a luta no
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
exército de São Sebastião continuaria ao lado
do monge José Maria. É importante perceber,
que esta fé, alicerçava a luta, e não obstante
também atingia as tropas do governo, pois o
medo da transcendência do lado oposto também
tinha forte incidência.
Estar lutando com protegidos de José
Maria não era algo comum, e algumas baixas
poderiam ser atribuídas ao poder sobrenatural,
mesmo que o Exército governamental
considerasse os caboclos de intelectualidade
inferior, a religiosidade e o imaginário eterno
atingiam ambos os lados, uns impulsionados
pela crença e outros atingidos, ou simplesmente
convivendo com essa possibilidade.
O imaginário religioso esteve presente e
se perpetuou na memória do povo do
Contestado, agiu, e foi decisivo para a
organização dos sertanejos na resistência, e
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
39
preservação de seus valores e princípios
ligados a terra e ao seu simbolismo próprio
conduziu, foi criativo, e acima de tudo manteve
viva a relação dos vivos com os mortos, numa
ligação de cumplicidade, e ajuda mútua” IN.
CORDEIRO, Angelo Vandinei (FURB) O
imáginário Religioso na Gurra do Contrestado,
Revista Litteris nr.11-Março 2013 que
ilustramos).
LINGUAGEM FALADA PELOS
CABOCLOS NA GUERRA DO
CONTESTADO
Na Guerra do Contestado, os caboclos
utilizavam uma linguagem muito peculiar, cujos
termos perduram até os nossos dias...
Nossa senhora, foi de arripiá as cadeia...
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
O fervo só carmô quando chegô os
meganha...
O intrevero foi feio: de faca, revorve,
tinha inté mosquetão...
Ele troxe os OTRO pra morre...
Qanto mais curria mais se aligerava...
In riba do burro não tinha quem
alcançasse o baita veio...
Muito ativo, dos MAIÓ que tinha
naquele lugar.
Si uns ia, tudo ia...
Tinha UNS mais novo, OTROS casado.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Não sei, mas diz que lá tavam
ENTERRADO.
As cachorrada eram BRABU.
Os MEUS tio vieram vindo pra cá.
Eles eram ACOSTUMADO no mato, né?
E ficavam TODOS junto, ali (
02P1L32MAE)
Teve padre que tirô TODAS as imagem.
Naquele tempo eram POUCAS pessoa
que tinha estudo.
Lá no Cará, chegou os DEIS alemão.
Ele via MUITA gente, MUITAS cruiz...
46
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
35
Pialô a reis bem pela munheca...
Intupiro o desinfeliz de chumbo..
E despois torcero o pescoço dele que nem
matá galinha...
Sangro bem no morredô...
Nóis achemo, umas panela de ferro,
MUITAS panela de ferro.
Esse fais MUITOS ano já, no tempo do
Contestado, cê já viu, né?
Eles matavam MUITOS soldado.
ESSAS barata era pra comê.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Fazia AQUELES pão, assim, bem
salgado.
Não aborreça muito AS pessoa.
De repente veio um avião. AQUELAS
veinha, minha Nossa Senhora!
Minha mãe chamava AS criança pra se
junta com ela.
AS muié chorava por não ter o que dá de
comê pros fio.
Quando tava OS alemão fazendo
colônia.
O bicho se infurno na tiguera, ligero que
nem u’curisco...
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
37
Daí Os porco fuçaram e ele se incostô
assim e ficô sentadinho.
Consegui me agarra nos barranco,
NUMAS raiz.
AS muié chorava por não ter o que dá de
comê pros fio.
Quando tava OS alemão fazendo
colônia.
Daí Os porco fuçaram e ele se incostô
assim e ficô sentadinho.
Consegui me agarra nOS barranco,
NUMAS raiz.
Nem sei dizê quantas muié morreram
co’as SUAS criança naquele lugar.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Só sobrô, daquelas pessoa, uns MÉSERO
morador.
Os DOIS lenço vermeio, no pescoço.
Daí eles falava que tinha boitatá, mula-
sem-cabeça, tudo ESSAS história, tudo eles
falava.
Tacô espada nas COSTA do homem.
Os OTRO invés de me acudi, não.
Um de a cavalo, ali, apertava bem os
meus ARREIO
Nem sei dize quantas muié morreram
co’as suas CRIANÇA naquele lugar.
Os dois LENÇO vermeio no pescoço...
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
39
Então nóis apiava dos cavalos e
amarrava tudo naqueles DORMENTO.
Passaram muita fome, co’as barriga
VAZIA.
E dai a muié INCANZINADA botô chifre
no cuera veio, que fico cum duas guampa im
riba da testa e daí sim chamava ele do TORO
DA MARIANA....
Quando viero os parente o baita de
amoitô fingindo morto...
Mas bá tá bão que nossa...
Vá fincando o cassete que já se acarma...
I’eu não disse para se espertá... agora
foi-se p”ro beleleu...
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
João Maria e José Maria viero em datas
DIFERENTE.
Cos cabelo AMARRADO, impinando uma
pinga...
Qundo digo não...é não memo, não
carece esmuriçá!
Tá muito véio...não da mais no coro.
Esse bicho artero tem que levá uma tunda
de pau...
Não adianta rezá, o capeta já levô o
finado p’ra fornaia...
Nóis dizia o potrero dOS PORCO, né?
Ele tava falando dos tempo dOS
JAGUNÇO.
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
41
O segundo monge gostava de oiá as
muié DOS FAZENDERO.
Foi tirado a maioria das image DAS
IGREJA.
O baita se gavava que tava c’os pila...
Os cavalo correndo tudo côas carroça
VÉIA BRECADA
So foi ficando pelas RAIZ da minha gente
Eles iam por trais daquelas CRUIZ ,
fazendo esquisito.
Consegui me agarra nos BARRANCO,
numas RAIZ.
GUERRA DO CONTESTADO/LINGUAGEM DOS CABOCLOS
Quando eu era piá, de DÉIS ANO, eu
tava estudando ali, no Taquara Verde, ali.
Que nunca passe o que NOSSAS RAÍZES
passou. TUDO vão cavocá, fazê trincheira
MINHA MÃE dizia que ELES andavam
APURADO
ELES são VALENTE que é um colosso
Mas que tipo, DO BAITA, fica só
lagartiando no sor...
Quando vi o cuera veio, sartô de vereda e
se aligerô no rumo do carrascá e o vivente fico
tudo arruinado...
Deu as foia, fez siná de gato, só pra
passa um facão, e já perdeu a demão, quebrado
que nem paçoca no pilão...
REINALDO ASSIS PELLIZZARO
43
Quando o MAROMBA veio, cruzá PRO
MEIO DA VILLA de Curitibano, as coisa vái
virá num purungá...
44
BIBLIOGRAFIA__________________
FELIPE, Euclides José. O Monge ou o
Profeta São João Maria - Boletim da
Comissão Catarinense de Folclore, 1 (4): 22-
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novos estudos sobre o movimento do
contestado. Florianópolis: Editora da UFSC,
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Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003.
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11 SERPA, Élio. A Guerra do
Contestado (1912 – 1916). Florianópolis:
Editora da UFSC, 1999. p. 35
13 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A
campanha do contestado. Florianópolis:
Editora Lunardelli, 1997. p. 180. 14 Idem, p.
180.