gregolin, maria do rosário. michel pêcheux e a história epistemológica da linguística

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Estudos da Língua(gem) Vitória da Conquista n. 1 p. 99-111 junho/2005 Michel Pêcheux e a História Epistemológica da Lingüística Michel Pêcheux y la Historia Epistemologica de la Linguistica Maria do Rosário Valencise GREGOLIN * UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (Unesp) RESUMO Interessado em entender a história da ciência da linguagem, Michel Pêcheux produziu uma série de textos nos quais traça o percurso das idéias saussureanas e recompõe a história das teorias lingüísticas no século XX. Com base nas sínteses realizadas por Pêcheux, este artigo propõe acompanhar o trajeto epistemológico que produziu um lugar para a Análise de Discurso no interior da ciência da linguagem. Trata-se de visualizar um entre-lugar em que se recortam grandes debates entre teorias lingüísticas e onde se desenha o espaço da Análise de Discurso como um entrecruzamento da língua, do sujeito, da sociedade e da história. PALAVRAS-CHAVE Lingüística. História. Língua. Análise de Discurso. Epistemologia. RESUMEN Michel Pêcheux, interesado en entender la historia de la ciencia del lenguaje, produjo una serie de textos en los que manifiesta el transcurso de las ideas saussureanas y recompone la historia de las teorías lingüísticas del siglo XX. Este articulo propone un recorrido epistemológico a partir de las síntesis realizadas por Pêcheux, con el objeto de acompañar el trayecto que dio lugar al Análisis de Discurso dentro de la ciencia del lenguaje. Propone por lo tanto la mirada desde un “entre-lugar” en el que se producen grandes debates entre teorías lingüísticas y en dónde se ubica el espacio del Análisis de Discurso como un entrecruzamiento de la lengua, del sujeto, de la sociedad y de la historia. PALABRAS-CLAVE Lingüística. Historia. Lengua. Análisis de Discurso. Epistemología. * Sobre a autora ver pagina 111. Estudos da Língua(gem) Michel Pêcheux e a Análise de Discurso

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GREGOLIN, Maria do Rosário. Michel Pêcheux e a história epistemológica da Linguística

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  • Estudos da Lngua(gem) Vitria da Conquista n. 1 p. 99-111 junho/2005

    Michel Pcheux e a HistriaEpistemolgica da Lingstica

    Michel Pcheux y la Historia Epistemologica de la Linguistica

    Maria do Rosrio Valencise GREGOLIN*UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (Unesp)

    RESUMOInteressado em entender a histria da cincia da linguagem, Michel Pcheux produziu uma srie detextos nos quais traa o percurso das idias saussureanas e recompe a histria das teorias lingsticasno sculo XX. Com base nas snteses realizadas por Pcheux, este artigo prope acompanhar otrajeto epistemolgico que produziu um lugar para a Anlise de Discurso no interior da cincia dalinguagem. Trata-se de visualizar um entre-lugar em que se recortam grandes debates entre teoriaslingsticas e onde se desenha o espao da Anlise de Discurso como um entrecruzamento dalngua, do sujeito, da sociedade e da histria.

    PALAVRAS-CHAVELingstica. Histria. Lngua. Anlise de Discurso. Epistemologia.

    RESUMENMichel Pcheux, interesado en entender la historia de la ciencia del lenguaje, produjo una serie de textos en los quemanifiesta el transcurso de las ideas saussureanas y recompone la historia de las teoras lingsticas del siglo XX.Este articulo propone un recorrido epistemolgico a partir de las sntesis realizadas por Pcheux, con el objeto deacompaar el trayecto que dio lugar al Anlisis de Discurso dentro de la ciencia del lenguaje. Propone por lo tantola mirada desde un entre-lugar en el que se producen grandes debates entre teoras lingsticas y en dnde se ubicael espacio del Anlisis de Discurso como un entrecruzamiento de la lengua, del sujeto, de la sociedad y de lahistoria.

    PALABRAS-CLAVELingstica. Historia. Lengua. Anlisis de Discurso. Epistemologa.

    * Sobre a autora ver pagina 111.

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    Michel Pcheux: no corao da lngua e dahistria

    Michel Pcheux foi apaixonado pela histriada cincia: disso so provas no s os vriosartigos em que toca, direta ou tangencialmente,na determinao, sempre estreita, da histriasobre a cincia, como o fato de t-la tomado comoobjeto de reflexo no livro escrito com Fichant(1969). Particularmente, interessou-se pelahistria da cincia da linguagem. Ele a abordouem vrios textos, entre os anos 1970 e 1980 e, deforma mais estendida, no livro La langueintrouvable, publicado com Gadet em 1981.1 Aleitura desses seus textos nos conduz por umtrajeto em que se mostra uma escrita da histriada Lingstica que, por ser histrica, exibe o olhardo filsofo e recompe um panorama dos debatesque animaram a construo de um campo dosaber durante o sculo XX. Esses textos podemser lidos como documentos: Neles sero encontradosvestgios que nos levam a compreender osenunciados fundadores das concepes essenciaisdas correntes da Lingstica. No entanto,optamos, neste ensaio, por uma leitura dessestextos peuchetianos pela sua sntese, efetuada noartigo A desconstruo das teoriaslingsticas. Para situ-la, recorremos a um textoanterior (H uma via para a Lingstica forado logicismo e do sociologismo?) e a doistextos posteriores (Sobre os contextosepistemolgicos da anlise de discurso; Odiscurso: estrutura ou acontecimento?),pensando, assim, mostrar a permanncia de umaproblematizao que produz efeitos naconstruo do edifcio terico da Anlise deDiscurso. Realizamos, ento, uma leitura queprope recompor o trajeto da preocupao dePcheux com a histria epistemolgica da

    Lingstica enxergando seus textos comomonumentos: Produzidos em um certo lugar e emum certo momento histrico, eles no apenastraam uma histria da Lingstica, como tambmexibem os entornos das vozes (do autor emdilogo com outros autores) convocadas para essaescrita. Pegadas da heterogeneidade, inscriesdo Outro no fio do discurso cientfico: esseemaranhado deixa aparecer uma singularidade quedeveria estar dissimulada no gnero cientfico?Entretanto, envolvido na tarefa incessante de (re)construo do campo da Anlise de Discurso,Michel Pcheux vai mostrando a heterogeneidade medida que indaga as suas vizinhanas, as suasfronteiras, os seus limites. Compreender a histriaepistemolgica da Lingstica uma urgnciaterica essencial nessa tarefa, pois por ela quePcheux pode desenhar uma paisagemproblemtica (um embate entre o formalismo e osociologismo), inserindo a anlise do discursonum entre-lugar no corao da incontornvelrelao entre a lngua e a Histria.

    H uma via para a Lingstica entre ologicismo e o sociologismo?

    Do ponto de vista de Pcheux, a histriada Lingstica deixa entrever um combate entretendncias que oscilam do logicismo aosociologismo. Isso estar no centro da construo/desconstruo das teorias lingsticas, a seroperada luz das leituras de Saussure feitas nodecorrer do sculo XX.

    Essa a temtica central do texto Existeuma via para a lingstica fora do logicismo edo sociologismo?, escrito com Franoise Gadet(1977), apresentado em um colquio emBruxelas. A pergunta enunciada no ttulo retomauma discusso j iniciada em textos anteriores,

    1 Essa preocupao, recorrente na obra de Michel Pcheux, o tema dos artigos Remontemos de Foucault a Spinoza (1977a), H uma viapara a Lingstica fora do logicismo e do sociologismo? (1977b); Sobre os contextos epistemolgicos da Anlise do Discurso (1983a)e O discurso, estrutura ou acontecimento? (1983b).

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    sobre as tendncias em jogo dentro da histriada Lingstica. Desenha-se, aqui, a idia de queo discurso deve situar-se num outro lugar e,portanto, pode constituir-se como uma via paraque a Lingstica saia tanto do sociologismoquanto do logicismo. A anlise da tendncia dologicismo (inscrita na evoluo da gramticagerativa) e da tendncia do sociologismo(ilustrada pelo desenvolvimento dasociolingstica) revela uma crise permanente daLingstica, motivada pelas divergncias sobreos conceitos de lngua e de sujeito. Naquelemomento (1977), essa crise se materializava nahegemonia que a Lingstica formal adquiria nomeio francs, ao mesmo tempo em que seanunciava o fim do estruturalismo e ofortalecimento da sociolingstica. Para Pcheuxe Gadet, enquanto o logicismo pagava qualquerpossibilidade de que se inclusse a histria, osujeito e a sociedade e, portanto, afastava adiscusso poltica a sociolingstica era umlugar de recobrimento da poltica pela psicologia,um lugar onde se reiteravam as evidncias dosujeito individual e coletivo, da comunicaointersubjetiva.

    Criticando a denegao do poltico quetanto o logicismo (explicitamente) quanto osociologismo (implicitamente) e, portanto, cadaum a seu modo provocavam, Pcheux e Gadet(1977, p. 15-18) propem que

    as noes de discurso e de formaodiscursiva desempenham o papel dedesubjetivao da teoria da linguagem e ajudama pensar a relao de intrincamento entre a lnguae as formaes ideolgicas, atravs da qualprticas lingsticas tendencialmente antagonistasvm se desenvolver sobre uma mesma baselingstica.

    Assim, na relao entre o sistema dalngua (base comum de processos discursivosdiferenciados) e a formao discursiva (aquilo que,em uma determinada formao ideolgica, a

    partir de uma posio dada em uma conjunturadada determinada pelo estado da luta de classes,determina o que pode e deve ser dito) que serealizam as prticas discursivas, os processosdiscursivos diferenciados, por meio dos quais ossujeitos produzem e reconhecem os sentidos nahistria. Encontra-se, portanto, nesse texto, apista para se pensar o relacionamento entre olingstico e o discursivo. Esclarece-se, conformea oposio entre logicismo e sociologismo,que a anlise de discurso prope um outro lugar,uma outra via para os estudos da linguagem. Ahistria, que costurou as retomadas e osdeslocamentos entre formalismo e sociologismo,ser abordada no texto de 1982, em um panoramano qual se delineiam as leituras e releituras doCurso de Lingstica Geral durante o sculo XX.

    A desconstruo das teorias lingsticas

    Saussure ficou sozinho com suas idias... Emtorno dessa afirmao, Michel Pcheux (1982)analisa a histria epistemolgica da Lingstica,tecendo observaes sobre as tendncias desconstruo das teorias, conforme a anlise dasalianas tericas que se estabeleceram com econtra Saussure.

    Trata-se de um texto polifnico: Pcheux,nos anos 80, dialoga com a fala de Benvenistedos anos 60, meio sculo aps a publicao doCurso de Lingstica Geral. Por sua vez, o textobenvenisteano rebate a fala de Meillet (dos anos20) de que Saussure no havia cumprido seudestino. Para Benveniste, meio sculo depois,no h lingista que no deva algo a Saussure.Retomando a fala de Benveniste (anos 60),Pcheux (1982) resgata a voz de Meillet,reinserindo-a na histria dos debates em tornode Saussure. Ao atualizar esse percurso de vozes,Pcheux instala trs marcos temporaisdescontnuos: o primeiro momento da leitura deSaussure (anos 20), a sua re-leitura por Benveniste

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    nos anos triunfantes dos estruturalismos franceses(anos 60) e a nova re-leitura do momento de falaem crise (Pcheux, anos 1980). A essa descon-tinuidade Pcheux denomina como disporas ereunificaes em torno de Saussure.

    Para Pcheux (1982), essas retomadas edeslocamentos so derivadas do fato de queSaussure ps-se a pensar contra seu tempo ao buscaro prprio da lngua, realizando o corte episte-molgico que fundou a cincia lingstica. Eleabriu, assim, a possibilidade das polmicas e, porisso, a afirmao triunfal de Benveniste precisaser polemizada, j que a maioria dos lingistas,nos anos 80, pensa contra Saussure e debanda paraa sociologia, a lgica, a esttica, a pragmtica, apsicologia... Olhando agudamente para a situaoda Lingstica naquele incio dos anos 80,Pcheux observa que o prprio da lnguatornou-se um objeto residual da pesquisalingstica, levando desconstruo terica docorte inaugural de Saussure.

    O olhar de Pcheux (1982) vai-se deslocar,ento, para a histria epistemolgica daLingstica que, desde o seu incio, no parou dese negar atravs de uma alternncia de disporasreais e de reunificaes enganadoras. Estranhodestino da histria das idias lingsticas, queno se faz por um desenvolvimento autnomo,retilneo e cumulativo de um ncleo deconhecimentos do objeto lngua, mas por uma sriede retomadas e de negaes. Exposta aos efeitoscomplexos do processo conjuntural que constituio espao no qual sua histria se produz, asdeterminaes histricas provocaram sucessivasredes de afinidades e, por isso, o prprio daLingstica indissocivel das escolhas pormeio das quais se constitui e se transforma arede de suas alianas. Essa trama histrica, paraPcheux, pode ser vislumbrada em algunsmomentos nos quais as disporas e reunificaes

    decidiram o destino das pesquisas em torno deaceitaes e recusas s propostas saussureanas.E ele vai situ-las em alguns momentosdescontnuos em que se pode observar a aoda Histria sobre as teorias.

    Disporas e reunificaes...

    A primeira dispora aconteceu entre os anos1920 e 1940, momento em que a Lingstica vaivagar de crculo em crculo Moscou, Praga,Viena, Copenhagen com diferentes interpre-taes sociologistas, logicistas ou psicologistas dasintuies saussureanas. Certamente, essecircunlquio que vai instaurando a histria dasinterpretaes das idias saussureanas acompanha a Histria das revolues e das guerrasdo sculo XX: Trubetzkoy e Jakobson fugindo sperseguies migram de um crculo a outro.Trubetzkoy desaparece, Jakobson sobrevive emigra para os Estados Unidos e da Amrica fazas idias saussureanas chegarem Frana...2

    No ps-guerra dos anos 50, ocorre umaaparente reunificao, e, do funcionalismo deMartinet s teorias behavioristas da comunicao,o pensamento de Saussure se estende aoestruturalismo de Bloomfield, deste a Harris e ataos primeiros trabalhos de Chomsky. E neles,

    a herana do estruturalismo saussureano pareciase dirigir para suas melhores condies derealizao, atravs da espetacular retomada, nonvel sinttico, dos fundamentos tericos queSaussure havia formulado no plano fonolgicoe morfolgico (PCHUEX, 1982, p. 10).

    Essa aparente unificao da Lingsticacoincide com a retomada do desenvolvimentoindustrial do ps-guerra e o conseqentedesenvolvimento e difuso de novas tecnologias(na produo, na formao profissional, na

    2 Enredo de uma histria ainda a ser reconstituda, em que o trgico funciona como motor da histria da cincia da linguagem.

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    educao, na sade). No entanto, a teoria dainformao, a psicologia behaviorista, aciberntica, a computao, a traduo automtica,a inteligncia artificial fizeram a Lingsticamatematizar-se, buscando na lgica a naturezada linguagem. Assim, apesar dos esforos deJakobson, de fazer valer o estatuto potico da linguagemhumana, a Lingstica dos anos 50 continuoupresa nesse imaginrio interdisciplinar dacomunicao como regulao funcional controlada(PCHEUX, 1982, p. 16).

    Essa unidade acadmica da Lingsticaps-saussureana novamente se esfacela no inciodos anos 1960, sob o efeito de dois processos: a)a hegemonia terica da Gramtica GerativoTransformacional; b) o aparecimento de novacorrente (filosfica, epistemolgica epoliticamente heterognea), de um novodispositivo filosfico, que se constituiu pela re-leitura de Marx, Freud e Saussure, operada porLvi-Strauss, Lacan, Althusser, Foucault, Derrida.Essa (re)leitura de Saussure foi um dos principaismotores do grande movimento cujo objetivo eraseparar a Lingstica do funcionalismo scio-psicologista, apoiando-se, principalmente, nostrabalhos de Jakobson e de Benveniste. A Anlisede Discurso francesa surge nesse contexto, comodisciplina transversal fortemente marcada por essaconjuntura epistemolgica. Na Frana, duranteas dcadas de 60 e 70, os argumentos dochomskismo no convenceram,

    diante da subverso terica da trplice alianaestruturalista [Marx, Freud, Saussure] quecolocava a antropologia, a histria, a poltica, aescrita literria e a poesia ao lado da Lingsticae da Psicanlise (PCHEUX, 1982, p. 12).

    Ocorre, nesse perodo (que vai de 1960 a1975) uma reestruturao global da rede deafinidades disciplinares em torno da Lingstica.Essa reestruturao foi obra do estruturalismo,que marcou o fim da hegemonia filosfica dafenomenologia e do existencialismo, com o

    aparecimento da antropologia estrutural, arenovao da epistemologia e da histria dascincias, a psicanlise antipsicologista, novasformas de experimentao na escrita literria, aretomada da teoria marxista. Quando as trs teoriasse encontraram (psicanaltica, marxista,lingstica/antropolgica), criou-se um efeitosubversivo, que trazia a promessa de umarevoluo cultural, na medida em que colocavaem causa as evidncias da ordem humana, comoordem estritamente biossocial, e o recon-hecimento de um fato estrutural prprio da ordemhumana: o da castrao simblica (PCHEUX, 1999,p. 17). No contexto poltico dos anos 60, o efeitosubversivo estruturalista ultrapassou o quadrouniversitrio, e a teoria e a literatura tornaram-selugares de interveno ideolgica, afetando oconjunto do campo scio-poltico. Instaurou-seum trabalho do significante no registro poltico, visandoa uma nova maneira de ouvir a poltica. A partirde 1975 isso vai-se desmoronar progres-sivamente, com a crise do lacanismo, domarxismo, e vai-se instalar a revoluo culturalabortada. O esgotamento dos efeitos domovimento estruturalista acarretou, para aLingstica, uma re-configurao de seudispositivo de embasamentos epistemolgicos.

    Assim, o incio dos anos 1980 marcadopor uma nova mudana no regime das pesquisaslingsticas. Ocorreu, simultaneamente, o final domaterialismo estrutural francesa e dochomskismo. Houve a formao de um largoconsenso anti-saussureano e anti-chomskiano,baseado na idia simples, porm eficaz de que aLingstica formal falaciosa e intil, e que mais doque urgente se ocupar de outra coisa (PCHEUX, 1982,p. 13). Nesse movimento em que se desco-nhecem as diferenas e ocorre a identificao deSaussure e Chomsky cresce uma aversoinconsciente pelo prprio da lngua.Caracteriza-se, ento, o que Pcheux denomina adesconstruo das teorias lingsticas: uma

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    nova dispora intelectual, que tende a mergulhara Lingstica em questes de biologia, de lgica ede psicologia. Novamente Saussure ficou sozinho comsuas idias... Desconstrudas as teoriaslingsticas, instaura-se um esforo para atingir onvel internacional do positivismo bio-psico-funcional!(PCHEUX, 1999, p. 21).

    Nesse momento de sria crise, a Lingsticateve que escolher entre o esfacelamento e aintegrao. O roteiro do esfacelamento implica adissociao institucional entre uma Lingstica docrebro e uma Lingstica social. A Lingstica docrebro pensa a lngua como uma classe deprogramas entre outros (inteligncia artificial,ciberntica, hardware etc.), como parte das Cinciasda Vida. A Lingstica social fica em uma posiodominada e marginal ou, pelo contrrio, integradano grande projeto poltico biossocial. As teoriaspragmticas, com a sociologia das interaes, osatos indiretos de linguagem, os clculos inferenciaisetc. inscrevem-se massivamente nessa tendncia,no interior da qual impossvel pensar

    a ordem simblica como fato estrutural poiso jogo mallarmeano dos significantes, aincidncia inconsciente do chiste e tudo o queda lngua escapa ao sujeito falante [...] incongruente para essa nova ordem (PCHEUX,1982, p. 23).

    O registro do literrio e do potico (apesardos trabalhos de Jakobson, Benveniste, Barthes,Kristeva) considerado um luxo aristocrtico paraos tempos de paz, que deve saber apagar-sediante da presso lgica da urgncia (PCHEUX,1982, p. 24).

    Da crise da Lingstica (entre o crebro e osocial), o que poder resultar?

    Analisando o panorama do incio dos anos80, Pcheux conclui que o sufocamento do

    estruturalismo poltico francs coincide com ocrescimento da recepo desses trabalhos em outrospases, que descobrem o estruturalismo nomomento em que a intelectualidade francesa viraa pgina, desenvolvendo um ressentimento macioface a teorias, suspeitas de terem pretendido falarem nome das massas, produzindo uma longa sriede gestos simblicos ineficazes e performativospolticos infelizes (PCHEUX, 1982, p. 18).3

    Essa nova crise trouxe a necessidade deuma reviso terica que colocou em causa osobjetos do estruturalismo, excessivamentecentrado nos grandes Textos, e obrigou ospesquisadores a olharem o que se passavaembaixo nos espaos que constituem oordinrio das massas, especialmente em perodosde crise a necessidade de entender esse discurso(quase sempre silencioso), de se pr na escuta dascirculaes cotidianas, tomadas no ordinrio do sentido.Trata-se, portanto, de incorporar aos estudoslingsticos as formulaes desenvolvidas poruma nova concepo de histria amicrohistria, a histria do cotidiano, a novahistria que olha para o que fazem e dizem ossujeitos do cotidiano, principalmentedesenvolvida por Michel de Certeau. ParaPcheux, por essa via que se pode fugir do perigodo discurso triunfante do psicobiologismo,principalmente naquele momento em que asofisticao da tecnologia e a presso populistada urgncia comeavam a oferecer um espaopropcio para que o domnio biossocial pudessedesabrochar. Nesse ambiente, em que osprogramas interdisciplinares da intelignciaartificial e do tratamento da informaopromoviam um novo sistema de alianas,instalava-se a idia tentadora de uma Lingsticaque deveria aceitar tratar o simblico como um sinal ea linguagem como um instrumento lgico (PCHEUX,1982, p. 20) e fazer da Psicologia a nova cincia-

    3 Seria o caso de nos perguntarmos, hoje, em que medida o destino da anlise de discurso brasileira foi afetado por essa crise francesa doincio dos anos 1980, j que ela iniciou-se, aqui no Brasil, exatamente nessa poca.

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    piloto. A partir do chomskysmo, essa concepode Lingstica bastante aceita. Disso resulta orecalque da ordem simblica, o restabelecimentode um sujeito dono de si mesmo e responsvel porsuas escolhas, curado da inqualificvel ferida que podiaconstituir a suposio de que a lngua, ou qualquer coisadela, escapa-lhe. Dessa crise, o que poderia resultar?Pensando a anlise de discurso como um campoque se situa entre a lngua e a histria, Pcheuxprope uma diviso de universos discursivos quesepara fatos de natureza psicobiolgica e outrosque acolhem as incertezas do histrico.

    A partir dessa diviso, Pcheux prope aexistncia de diversas sries de universosdiscursivos logicamente estabilizados inscritos no espao das matemticas, das cinciasda natureza, das tecnologias industriais, nasesferas sociais dos dispositivos de gesto-controleadministrativos que se apiam em certaspropriedades das lnguas naturais, autorizandooperaes, dicotomizaes, clculo lgico,metalngua etc. a existncia desses espaos daurgncia que garante a abordagem formalista, isto, o embasamento da reflexo lingstica emconceitos lgicos, semnticos e pragmticos.

    No entanto, continua Pcheux, necessrioreconhecer que qualquer lngua natural tambm,antes de tudo, a condio de existncia deuniversos no-estabilizados logicamente,prprios ao espao scio-histrico dos rituaisideolgicos, dos discursos filosficos, dosenunciados polticos, da expresso cultural eesttica. Nesses, a ambigidade e o equvococonstituem um fato estrutural incontornvel. Ojogo das diferenas, alteraes, contradies nopode a ser visto como um amolecimento de umncleo duro lgico. Esse o espao da anlise dediscurso enquanto um campo do saber que secaracteriza pela interpretao e que se interessapelo sentido como um ponto de deriva.

    Pensando com Milner que nada da poesia estranho lngua e que nenhuma lngua pode ser pensada

    completamente, se a ela no se integra a possibilidade desua poesia, Pcheux prope construir proce-dimentos para abordar o fato lingstico doequvoco como fato estrutural implicado pelaordem simblica. O objeto da Lingstica (oprprio da lngua) atravessado por uma divisodiscursiva entre dois espaos: a) o da manipulaodas significaes estabilizadas, normalizadas poruma higiene pedaggica do pensamento; b) o detransformaes do sentido, escapando a qualquernorma estabelecida a priori, de um trabalho dosentido sobre o sentido, tomados no relanarindefinido das interpretaes. A fronteira entreesses dois espaos muito difcil de determinar.H uma zona intermediria de processosdiscursivos (derivando do jurdico, doadministrativo e das convenes da vidacotidiana) que oscilam em torno dela: nessa regiodiscursiva intermediria, as propriedades lgicasdos objetos deixam de funcionar os objetos tme no tm esta ou aquela propriedade e instaura-se uma zona de paradoxos, de ambigidades quefazem parte da natureza da linguagem.

    Ao mostrar essa diviso de universosdiscursivos, Pcheux critica o estruturalismo, parao qual esse carter oscilante do registro do ordinrio dosentido escapou completamente [fechando-o] totalmenteno inferno da ideologia dominante e do empirismo prtico,considerados como ponto-cego, lugar de pura reproduodo sentido. Trata-se de uma autocrtica que apontaum erro na base das concepes do modeloestruturalista. E esse erro consistiu no fato depensar os espaos do simblico e do ideolgicocomo um processo excepcional, o momento hericoe solitrio do terico e do potico (Marx eMallarm) como trabalho extraordinrio dosignificante. O erro foi, portanto, o de terdeixado de fora os discursos ordinrios (osproletrios no podem dar-se o luxo de terem uminconsciente?!). Essa concepo aristocrticatrazia embutida a velha certeza elitista de que asclasses dominadas no inventam jamais nada,

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    porque elas esto to absorvidas pelas lgicas docotidiano que os jogos de ordem simblica nolhes diriam respeito... Sarcasticamente, concluiPcheux: o humor e o trao potico no so odomingo do pensamento; eles pertencem aosmeios fundamentais de que dispem os sujeitosao utilizarem as estruturas do sistema dalinguagem.

    O que , ento, o prprio da lngua objetoprimordial da Lingstica saussureana?

    Esse exerccio reflexivo realizado porPcheux, ao evocar a desconstruo das teoriaslingsticas, tem o objetivo de interrogar aconcepo lingstica que se tornava dominantea partir dos anos 1980, essa lingstica que,segundo ele, cedia de antemo psicologia dosujeito dono de si e responsvel por suas escolhas,e que elidia, como conseqncia, o real da lngua,princpio fundamental da proposta de Saussure.Para Pcheux, o que h de primordial na doutrinasaussureana o fato de ela propor que alinguagem, sob qualquer ponto de vista estudado, sempre um objeto duplo. Por um princpiosimtrico da dualidade, a linguagem oscila entrea felicidade pela simetria (Jakobson e seustrabalhos sobre os embreadores) e o drama daabertura de cada palavra (Benveniste e suasanlises sobre os pronomes pessoais, os temposverbais etc.). Entre a simetria (atravs da qual o outroaparece como o reflexo do mesmo, por uma regra deconverso) e o equvoco (no qual a identidade do mesmose desregula, se altera a partir do interior), o paradoxoda lngua toca duas vezes na ordem da regra: pelo jogonas regras, e pelo jogo sobre as regras (PCHEUX, 1982,p. 27). A sintaxe o lugar em que esse jogo mais visvel, por isso a que se pode tocar mais

    perto no prprio da lngua como ordem simblica:toda construo sinttica capaz de deixaraparecer uma outra, no momento em que umapalavra desliza sobre outras palavras.4

    O reconhecimento dessa realidade dual dalngua traz conseqncias metodolgicas, pois preciso pens-la como um corpo atravessado por falhas(PCHEUX, 1982, p. 28). Longe de tentar apagar,pela matematizao, isso que o prprio da lngua(sua dualidade na e sobre as regras), Pcheuxprope que a Lingstica precisa acolher aambigidade, a contradio, o jogo: essaspropriedades intrnsecas ao seu objeto.

    A Anlise de Discurso situa-se nesse entre-lugar

    Toda essa trajetria de reflexo sobre ahistria da Lingstica tem, em Michel Pcheux,o objetivo de pensar o lugar da Anlise deDiscurso no interior das diversas crises da cinciada linguagem. Ela culmina, em seus ltimostextos, com a instalao de uma regiotransdisciplinar, na qual ser possvel enxergar osentrecruzamentos que esto na base da relaoentre a lngua, o sujeito, a sociedade e a Histria.Portanto, em torno de Saussure, Freud e Marx5 edas suas releituras durante o sculo XX. So doistextos, principalmente, escritos em seu ltimomomento (1983), que refletem sobre esse tripbsico na constituio da anlise de discurso eque nos deixam os indicadores daquilo que poderser o caminho a ser trilhado a partir de ento.

    Sobre os contextos epistemolgicos daanlise de discurso , ao mesmo tempo, umasntese do que aparecer, de forma maisaprofundada, em O discurso: estrutura ouacontecimento? e um balano da edificao da

    4 Certamente, essa percepo sobre a centralidade da sintaxe [ainda uma herana do estruturalismo?] determinou os trabalhos realizados porPcheux sobre as relativas, os encaixamentos, as completivas (respectivamente: Pcheux (1981a); Pcheux, M. (1981b); Pcheux e Leon (1981)Gadet, Leon, Pcheux (1984).5 Que Pcheux denominava como a trplice aliana.

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    Anlise de Discurso. Ao retomar os contextosepistemolgicos da anlise de discurso, Pcheuxtorna visveis as confluncias tericas quesustentaram suas proposies, baseadas na idiada transdisciplinaridade e que permitem delimitaros acordos e desacordos entre a Lingstica e oscampos da sociologia, da histria e da psicanlise.

    Situando-se em um momento de fortedisciplinarizao, na Frana, de um campodenominado anlise de discurso e, definiti-vamente, no concordando com essa etiqueta,Pcheux afirma que se nos baseamos nas designaesacadmicas em uso no Centre National de la RechercheScientifique (CNRS) e na Universidade, a anlise dediscurso na Frana um trabalho de lingistas(Dubois e o distribucionalismo harrisiano), dehistoriadores e de psiclogos (da psicologiasocial, em ruptura crtica com essa disciplina).No entanto, diz ele, para alm das designaesacadmicas, a anlise de discurso deriva deproblemticas filosficas e polticas, em curso nosanos 60, que formaram a base concreta,transdisciplinar de um encontro (confronto) sobrea questo da discursividade dos processosideolgicos.

    essa transdisciplinaridade que interessaa Pcheux (1983a) analisar, a fim de evidenciar,no contexto epistemolgico da Anlise deDiscurso, aquilo que formata a sua especificidade.Com esse objetivo, ele elenca alguns campos dosaber que tm reas de contato (e limites) com aanlise de discurso. Primeiramente, as pesquisasscio-histricas, que, antes da anlise de discurso,j trabalhavam na anlise das lutas polticas, dosfuncionamentos institucionais, dos debates econfrontos de toda ordem. No entanto, ahistoriografia documental no tematizava adiscursividade do documento (sua lngua, seu estilo,

    sua escrita); eram e so ainda, em 1983,qualitativas ou quantitativas. Essa dificul-dade foi ultrapassada pela histria social dasmentalidades (principalmente pelos historiadoresde uma nova histria, como Aris, Le Goff,Nora, Chartier etc.), pois, ao interpretarem ostextos, colocam em causa a transparncia dalngua; assim, ao interpretarem sries textuais emque se inscrevem discursivamente determinadasfiguras (do louco, da infncia, da sexualidade etc.),abandonam as certezas associadas ao enunciadodocumental. Eles quebram, portanto, a idiatradicional da transparncia e da evidncia dalinguagem, orientando os estudos histricos paraa ambigidade, para o equvoco, para a polissemiada lngua.

    Nesse particular, um lugar especial dadopor Pcheux (1983a) ao trabalho de Foucault.Para ele, a Arqueologia do Saber (1969), quetrata explicitamente o documento textual comoum monumento (vestgio discursivo em umahistria, um n singular em uma rede), prope aanlise das discursividades e permitiu aconstruo terica da intertextualidade e, demaneira mais geral, do interdiscurso. Com essacontribuio de Foucault, a anlise de discursofoi levada a afastar-se, ainda mais, de umaconcepo classificatria que dava privilgio aosdiscursos oficiais legitimados. No entanto,segundo Pcheux, falta aprimorar a metodologiaproposta por Foucault, o que faz com que asanlises sejam, ainda, demasiadamente pontuaise triviais.6

    No que diz respeito ao campo daspesquisas sociolgicas, Pcheux (1983a) julga queas anlises se transformaram consideravelmente.Para isso, contriburam os questionamentos sobrealguns pontos: a) o seu conteudismo; b) a anlise

    6 Pcheux ressalva, entretanto, que esse problema poder ser resolvido, a longo ou a mdio prazo, com a metodologia da informtica quefortalecer os trabalhos feitos pelos historiadores. Esse prenncio viria a ser confirmado pelos trabalhos realizados [a partir dos anos 1980e 1990] pelos historiadores reunidos naquilo que se convencionou denominar anlise de discurso do lado da histria, cujos expoentesso R. Robin, J. Guilhaumou e D. Maldidier. Um lugar especial nesse aprimoramento sugerido por Pcheux, no necessariamente pela viada informtica, precisa ser dado, ainda, aos trabalhos de J. J. Courtine. Ver: Gregolin, 2004.

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    extensiva de sries de entrevistas; c) o seucentramento sobre os funcionamentos institu-cionais; d) a sua atitude documental. O interessepor formas pr-institucionais levou numerosospesquisadores anlise dos rituais discursivos deassujeitamento, de tomada da palavra, deinterpelao, de troca dialgica etc. Buscandomarcar as diferenas, no interior da anlise dediscurso francesa, entre os trabalhos de seu grupoe aqueles de inspirao americana (discourseanalysis), Pcheux acentua que os sociolingistas na abordagem da linguagem ordinria tomameixos macro-sociolgicos (o contato entre lnguasde estatutos sociais diferentes; os desnive-lamentos intralingsticos entre cdigos sociaisdiferenciados) e micro-sociolgicos (atos de fala,relaes pragmticas, mecanismos argumen-tativos, narrativos, descritivos, visando a analisaras estratgias de poder manipuladas nasinteraes dos sujeitos falantes na situao) masainda no resolveram sua relao com as teoriassadas da psicologia social americana, no estudodas relaes verbais entre sujeitos. Por noquestionarem essa base psicolgica, eles tomam asituao como uma cena fechada, a-histrica, na quala linguagem (falas, textos, discursos) imediatamenteidentificada a seqncias observveis de aes (condutas,comportamentos) de trocas entre os protagonistas dainterao (PCHEUX, 1983a, p. 11).

    A Anlise de Discurso proposta porPcheux quer marcar uma ruptura com essasabordagens, na medida em que elas elidem o triploregistro da histria, da lngua e do inconsciente.Ele retoma, aqui, a crtica j feita anteriormente,quilo que denomina como uma mistura entreuma Lingstica do crebro e uma Lingsticasocial. Por querer tratar desse triplo registro(lngua, histria, inconsciente), o trabalhoproposto por Pcheux teve que se confrontar como mito omni-eficiente do sujeito psicolgico(PCHEUX, 1983a, p. 11), desvelando onarcisismo universal do pensamento humano,

    por meio do qual o sujeito pensado comoestrategista consciente, racional e lgico-operatrio, cujos poderes so limitados pelobiolgico e pelo social:

    No espao desse mito psicolgico, a histriano outra coisa do que a resultante de umasrie de situaes de interaes, reais ousimblicas; a lngua no outra coisa que uma[fraca] poro dessas interaes simblicas,e o inconsciente no outra coisa que a no-conscincia afetando negativamente este ouaquele setor da atividade do sujeito, emfuno das determinaes biolgicas e/ousociais mencionadas nesse instante (PCHEUX,1983a, p. 12).

    Os psiclogos profissionais no so osnicos responsveis por esse mito, pois, segundoPcheux, eles apenas lhe deram forma. Esse mito uma evidncia da epistemologia espontnea daao humana. O analista freudiano, pelo contrrio,apia-se no saber inconsciente do sujeito sem tera iluso de que domina esse saber (pois ele,analista, tambm est sujeito ferida narcsica).Mas os lingistas, os historiadores ou socilogosno esto suficientemente advertidos sobre essadiferena; o que pode lev-los a confundirpsicologia e psicanlise em uma global teoria dosujeito que eles esperam que os ajude a pensar oestatuto do locutor e do enunciador, da atividadesimblica, do agente scio-histrico. ParaPcheux, essa questo incide, de fato, sobre oconjunto das disciplinas da interpretao, entre as quaisse situa a anlise de discurso. Inserindo a anlisede discurso na problemtica da interpretao,Pcheux retoma a idia da no-transparncia dosentido e da iluso de subjetividade provocadapelo assujeitamento ideolgico do sujeito, eestabelece a concepo de sujeito e de sentido aopropor o objetivo da anlise:

    A anlise do discurso no pretende se instituirem especialista da interpretao, dominando osentido dos textos, mas somente construirprocedimentos expondo o olhar-leitor a nveis

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    opacos ao estratgica de um sujeito [taiscomo a relao discursiva entre sintaxe e lxicono regime dos enunciados, com o efeito dointerdiscurso induzido nesse regime, sob aforma do no-dito que a emerge, comodiscurso outro, discurso de um outro oudiscurso do Outro] (PCHEUX, 1983a, p. 14).

    Assim, por entender a leitura comoatividade de um sujeito que , ao mesmo tempo,despossudo e responsvel pelo sentido que l, aAnlise de Discurso (em sua relao com ahistria, com a lngua e com o inconsciente) nose satisfaz nem com os observveis discursivoscomportamentais, nem com as estruturas dosujeito epistmico da psicologia cognitiva.Pensando sobre as relaes conflituosas daanlise de discurso com outros campos, Pcheuxconsidera que o campo da psicologia social amais problemtica, j que as outras disciplinas (asociologia, a histria) se reconhecem maisfacilmente como disciplinas de interpretao. Noentanto, afirmando o carter polmico datransdisciplinaridade da anlise de discurso,Pcheux (1983a, p. 16) acentua:

    A Anlise de Discurso no tem nenhumavocao particular em dar um fim a essainterminvel srie de conflitos. Para ela suficiente colocar suas prprias problemticase procedimentos: a questo crucial construirinterpretaes sem jamais neutraliz-las no no-importa-o-qu de um discurso sobre odiscurso, nem em um espao lgico estabilizadocom pretenso universal.

    A Lingstica, a histria, a anlise de discurso

    A leitura dos textos de Pcheux aquiapresentada mostra a construo de pontosessenciais para a relao entre Lingstica ehistria, fundamentada na preocupao com aconstituio da Anlise de Discurso como campotransdisciplinar. A histria epistemolgica daLingstica e a insero da anlise de discursono interior desse imenso campo de problemticas

    tem o objetivo de estabelecer suas fronteiras,seus limites, seus dilogos. Nesses dilogos,fronteiras e limites que tematizam a heteroge-neidade, a alteridade, as relaes entre intradiscursoe interdiscurso encontram-se as fontes de vriaslutas tericas que envolveram as releituras datrplice aliana (Marx-Saussure-Freud), asdivergncias/confluncias do pensamento dePcheux com os de Benveniste, Jakobson, Harris,Chomsky, Foucault etc. Pcheux quis, sempre,inserir sua fala de filsofo no interior daLingstica. Por isso, esses entrecruzamentosdesenham os caminhos que a Anlise de Discursotomou nos anos 80 e 90. Nesses dilogos, recusas,retomadas, deslocamentos, a anlise de discursoedificada por Michel Pcheux fez do discurso umobjeto de enfrentamentos tericos e polticos.

    exatamente essa vocao para oconflito, essa problematizao do lugar da anlisedo discurso no interior da cincia da linguagemque torna pertinente convocarmos a fala deMaldidier (1990) para reafirmar a atualidade daspropostas de Michel Pcheux:

    O percurso de Michel Pcheux deslocou algumacoisa. De um ponto a outro, aquilo que foiteorizado sob o nome de discurso o esboode algumas idias to simples quantoinsuportveis: o sujeito no a fonte do sentido,o sentido se forma na histria por meio dotrabalho da memria, a incessante retomada doj-dito; o sentido pode ser perseguido, mas eleescapa sempre. Por causa dessas reflexes deMichel Pcheux, o discurso, no campo francs,no se confunde com sua evidncia emprica;ele representa uma forma de resistnciaintelectual tentao pragmtica. Estepensamento continua a trabalhar em certaspesquisas sobre o discurso. Alm da lingstica,ele permitiu a abertura de pistas novas emhistria, em sociologia, em psicologia e,sobretudo onde se trata de textos, onde seproduz o encontro da lngua e do sujeito(MALDIDIER, 1990, p. 89).

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    So Carlos, novembro de 2003.

    Revisado em maio de 2005.

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    SOBRE A AUTORA

    Maria do Rosrio Valencise GREGOLIN doutora em Lingstica pela Unesp. Realizoups-doutorado na Universidade de Aveiro, Portugal. professora da Graduao e do Programade Ps-graduao em Lingstica e Lngua Portuguesa da Unesp/Araraquara. Lder do Grupode Estudos de Anlise do Discurso de Araraquara (CNPq/Unesp). Membro do grupo de pesquisaHistria da Leitura, do livro e das bibliotecas (CNPq/Unesp). Autora de vrios artigos, entre osquais Os sentidos na mdia: rastros da histria na guerra das cores; O Jeca nacional: mltiplos olhares dointerdiscurso; A Leitura Na Escola: Formando Coraes e Mentes; O Autor, o texto, o leitor: em torno de o Loboe o Cordeiro; Discurso e memria: movimentos na bruma da histria. Co-organizadora de vrios livros,entre os quais Discurso e mdia. A cultura do espetculo; Anlise do Discurso: as materialidades do sentido;Anlise do Discurso: entornos do sentido; Filigranas do Discurso: as vozes da Histria. Autora de vrioslivros, entre os quais Foucault e Pcheux na anlise do discurso. Dilogos & Duelos.