gpeixe_artigo

Upload: leonunes80

Post on 03-Jun-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    1/18

    GuerraPeixee

    osmaraca

    tusnoRe

    cife:

    trnsi

    tosentregnerosmusicais(1930

    1950)

    Isabel Cristina Martins Guillen

    Doutora em Histria Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

    Professora do Departamento de Histria da Universidade Federal de Pernambuco(UFPE). Autora, entre outros livros, de Errantes da selva: histrias da migrao

    nordestina para a Amaznia. Recife: Editora da UFPE, 2006. [email protected]

    Desenho.LulaCardosoAyres.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    2/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007236

    A obra de Guerra Peixe, Maracatus do Recife, publicada em 1955,pode ainda hoje ser considerada como o estudo mais completo sobre osmaracatus e tem como mrito indiscutvel uma vasta pesquisa de cam-po, da qual resultou a categorizao dos dois tipos de maracatus existen-tes em Pernambuco: o maracatu-nao (ou de baque-virado) e o maracatude orquestra (ou de baque-solto). Naqueles anos em que Guerra Peixeesteve no Recife (19491952), havia entre folcloristas, jornalistas e de-

    mais intelectuais uma grande impreciso quanto categorizao dosmaracatus. Tinha-se como legtimo maracatu o tipo hoje denominadode nao ou baque-virado, descrito por Pereira da Costa no incio dosculo XX1. Este maracatu constitudo de uma corte real da qual fazemparte rei, rainha, prncipes e princesas, alm de damas da corte, embai-xadores etc. Integram ainda o cortejo real algumas figuras emblemticas,tais como a dama do pao, que carrega a boneca (ou calunga), o plio,que protege rei e rainha, e o estandarte. Esse cortejo acompanhado porum conjunto musical formado por instrumentos de percusso, denomi-nado de batuque (bombos, caixas de guerra e tarol, gongu e mineiro).

    Nas dcadas de 1930 e 1940, outro tipo de maracatu tomava corpona cidade do Recife; Guerra Peixe em seu livro chamaria de orquestra oubaque-solto2. Ele se diferencia do nao principalmente pela composio

    Guerra Peixe e os maracatus noRecife:trnsitos entre gneros musicais (19301950)

    Isabel Cristina Martins Guillen

    1 COSTA, F. A Pereira da.Folklore pernambucano: subsdi-os para a histria da poesiapopular em Pernambuco. Re-cife: Arquivo Pblico Estadu-al, 1974 (prefcio de MauroMota. Primeira edio autno-ma). Publicado originalmente

    na Revista do Instituto Hist-rico e Geogrfico Brasileiroem 1908.

    2Katarina Real, nos anos 1960,vai denominar tal tipo de ma-racatu rural, nome que hojetem certa prevalncia. Essesmaracatus existem em grandenmero na Zona da Mata per-nambucana, regio canavieirapor excelncia, da a escolhade Katarina Real, j que osbrincantes desses grupos so,em sua maioria, trabalhado-res rurais. Ver: REAL, Kata-

    rina. O folclore no carnaval doRecife. Recife: Massangana,1990. Guerra Peixe, no pref-cio segunda edio deMara-catus do Recife, faz uma crtica antroploga norte-america-na por criar um novo nomeque nada diz sobre as carac-tersticas intrnsecas da mani-festao, as caractersticasmusicais, e sim sociolgicas,nem respeita as denomina-es criadas pelos brincantes.PEIXE, Csar Guerra. Maraca-tus do Recife. So Paulo-Reci-fe: Irmos Vitale/Fundaode Cultura Cidade do Recife,1981, p. 14.

    RESUMO

    Este artigo discute as relaes cultu-

    rais construdas em torno dos mara-

    catus nas dcadas de 1930 a 1950 na

    cidade do Recife, principalmente os

    trnsitos que a msica promoveu en-

    tre compositores eruditos, artistas

    populares e grupos considerados fol-clricos. Seu objetivo demonstrar

    que nesses trnsitos as ressignifica-

    es culturais so amplas e comple-

    xas, e seu entendimento pressupe

    a reconstituio das redes sociais e

    culturais em que se deram.

    PALAVRAS-CHAVE:maracatus; Guerra

    Peixe; Recife.

    ABSTRACT

    This article discusses the cultural rela-

    tionship constructed around maracatus

    from the decades of 1930 to 1950 in the

    city of Recife, mainly of the popular traffic

    that music promoted between erudite

    composers, artists and so-called folk

    groups. The objective was to demonstratethat in this traffic the cultural means are

    wide and intricate, and its understanding

    presumes the reconstitution of the social

    and cultural nets in which they took place.

    KEYWORDS :maracatus; Guerra Peixe;

    Recife.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    3/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 237

    a

    r

    t

    ig

    o

    sdo seu conjunto musical, constitudo de um terno (gongu de duascampnulas, porca espcie de cuca , ganz e bombo) e de instru-mentos de sopro. Alm disso, emblemtica do maracatu de orquestra apresena do caboclo de lana, muito conhecido na atualidade e tido comoum dos smbolos da cultura popular pernambucana. Os tuchaus,

    brincantes fantasiados de ndios com grandes cabeleiras de pena, tam-

    bm ganhavam visibilidade, e os encontramos nos dois tipos de maracatus.A no-diferenciao entre as manifestaes existentes denota que o

    significado de maracatu era polissmico, no se referindo exclusivamen-te a um tipo especfico, visto que algumas troas, como o Timbu Coro-ado, formado de esportistas do clube Nutico, designavam-se igualmen-te como maracatu3. Estou denominando de troas esses grupos porqueportavam cartazes de crtica, fossem elas sociais ou crticas de costumes.Esses grupos, no entanto, convidavam os batuques dos maracatus-naopara desfilarem com eles nos dias de carnaval, a exemplo do Estrela Bri-lhante, que acompanhou o Timbu Coroado por muitos anos. A imprensarecifense do perodo no fazia a mnima distino entre os maracatus-nao, como o Elefante ou o Leo Coroado, os maracatus de orquestra,como o Pavo Dourado ou o Estrela da Tarde, e as troas, como o TimbuCoroado e o Cata Lixo. Todos os trs tipos eram tratados como maracatus.

    Entretanto, medida que adquiriam visibilidade, os maracatus deorquestra comearam a ser encarados como mera descaracterizao oudeturpao do autntico maracatu de origem africana, o maracatu-nao. Guerra Peixe foi o primeiro a estabelecer as diferenas entre osdois grupos a partir da anlise dos conjuntos musicais e de suas perfor-mances. Destacou-se, na tica de Guerra Peixe, a discusso em torno daextrema complexidade musical existente nos maracatus, contribuindo

    para a quebra dos conceitos construdos por estudiosos anteriores, quecaracterizavam esses grupos como uma msica primitiva. Alm disso,Guerra Peixe promoveu uma grande reviso bibliogrfica, explicitandoincoerncias e deslizes nas obras de autores que lhe antecederam no es-tudo dos maracatus, a exemplo de Renato Almeida, Mrio de Andrade eAscenso Ferreira.4

    Guerra Peixe tambm foi importante no que diz respeito ao pro-cesso de mediao entre os maracatus e a sociedade recifense, contribu-indo para que eles fossem vistos de maneira mais positiva. A sua obra foimarcante o suficiente para que ainda hoje seja tomada como refernciaque orienta tanto intelectuais interessados no estudo da cultura popular

    como os maracatuzeiros que nele se apiam buscando um referendo paraa legitimidade e autenticidade nos maracatus-nao.

    Em que contexto Guerra Peixe escreveu esse livro? Quais foram osdebates e questes a que o maestro buscava responder na poca? Paraencontrarmos respostas a estas indagaes, no podemos prescindir deuma discusso sobre as relaes, bastante complexas, que se estabelece-ram entre msica erudita, msica popular e folclore no Brasil, nas dca-das de 1930 a 1950, e a insero de Guerra Peixe nesse debate.

    Folclore e msica: o nacionalismo

    em Mrio de Andrade e suas repercusses

    A obra de Guerra Peixe pode ser mais bem compreendida se anali-

    3 Ou seja, era uma brincadei-ra com as manifestaes dacultura afro-descendente. Leo-nardo Dantas Silva observaque, em meados do sculo XIX,grupos de rapazes brancoscostumavam sair no carnavaltravestidos de negros, imitan-do as cortes dos reis e rainhas

    de Congo. SILVA, LeonardoDantas. Maracatus no carna-val do Recife. Jornal do Com-mercio, 26 jan. 1991.

    4Ver ALMEIDA, Renato. His-tria da msica brasileira. Rio deJaneiro: F. Briguiet & Comp,1942; ANDRADE, Mrio de.Danas dramticas do Brasil.Belo Horizonte-Braslia: Ita-tiaia/INL/Fundao Nacio-nal Pr-memria, 1982; FER-REIRA, Ascenso. O maracatu;pres pios e past oris ; o bumb a-meu-boi: ensaios folclricos.

    Recife: Departamento de Cul-tura da Prefeitura da Cidadedo Recife, 1986.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    4/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007238

    sada tomando-se como escopo as idias que Mrio de Andrade colocouem circulao, entre os intelectuais do perodo, sobre a relao entremodernidade e tradio, entre a msica popular e a erudita. Para Mrio,o artista moderno (ou modernista) no deveria se apresentar ou pensarsua produo como negao do passado, mas sim como atualizao domesmo, no se afastando, portanto, de certo compromisso com a tradi-

    o que a cultura popular sintetizaria. Mrio de Andrade props umadiscusso sobre como deveria ser a msica genuinamente nacional,entendendo que caberia ao artista (msico) promover uma transfigura-o erudita das manifestaes populares, enfatizando-se os elementosfolclricos. Essa discusso sobre o papel de Mrio como mediador entremsica erudita e popular, bem como a influncia que ele exerceu sobreos msicos de modo geral, foi encampada pela historiografia5. Tomando-se essa discusso como substrato, importa analisar como Guerra Peixeelaborou alguns desses elementos ao pensar o maracatu-nao, princi-palmente ao formular uma crtica s suas prprias composies no mo-mento em que se confrontou com a cultura popular e os maracatus, demodo especial na cidade do Recife.

    bastante consolidada entre os estudiosos da obra de Guerra Peixea idia de que ele apenas teria incorporado temas nacionalistas em suamusica aps a fase dodecafnica, depois do perodo que passou no Reci-fe. Faria Jnior, no entanto, observa que Guerra Peixe teria tido uma pri-meira fase, que se poderia denominar de protonacionalista, em que ainfluncia das idias de Mrio de Andrade foi patente e reconhecida peloprprio compositor. Em meados da dcada de 1930, Guerra Peixe terialido a obra de Mrio de Andrade, Ensaio sobre a msica brasileira, e, mais,a incorporao e o manuseio de material nacional no se deram apenas

    por influncia de Villa-Lobos, admitida pelo prprio Guerra Peixe, mastambm por coleta direta de material folclrico, anterior sua estadia noRecife. Guerra Peixe teria o hbito de registrar tudo o que ouvia: preges,desafios etc. Faria Jnior, alis, fez uma instigante anlise da primeiraSute infantil, baseada em material indito existente no arquivo do com-positor, demonstrando que Guerra Peixe, nos anos de 1942 e 1943, trans-crevia para sua obra msica popular brasileira, obtida atravs de coletadireta (Fanfarra coleta de fanfarras executadas por clarins porta doTeatro Joo Caetano no carnaval de 1942, porm o mais interessante soos achechs fornecidos por J. Espinguela, o Iraj, e por Donga!). Essespontos no se dissociam da to controversa questo de haver Guerra Pei-

    xe composto e publicado msica popular sob pseudnimo, deslindandoos vus que ocultam as incurses no permitidas dos msicos eruditospelo mercado da msica popular.6

    Rosa Nepomuceno e Vasco Mariz tambm reconhecem a influn-cia de Mrio de Andrade no trabalho de Guerra Peixe, notadamente nasdiretrizes gerais da pesquisa folclrica e sua utilizao na msica erudita7.Mrio seguidamente defendeu a pesquisa do folclore como fonte de re-flexo para o compositor erudito preocupado em criar uma msica naci-onal. Em Ensaio sobre a msica brasileira, ele observava criticamente quepoucos intelectuais no Brasil demonstravam real interesse pelos estudos

    folclricos:Pode-se dizer que o populrio musical brasileiro desconhecido at de ns mesmos.

    5Nesse debate destacam-seNAVES, Santuza Cambraia.O violo azul: modernismo emsica popular. Rio de Janei-ro: Editora Fundao GetlioVargas, 1998, TRAVASSOS,Elizabeth. Modernismo e msi-ca brasileira. Rio de Janeiro: Jor-ge Zahar, 2000, e Os mandarinsmilagrosos:arte e etnografia emMrio deAndrade e Bla Bar-tk.Rio de Janeiro: Funarte/Jorge Zahar, 1997, SQUEFF,Enio e WISNIK, Jos Miguel.O nacional e o popular na cultu-ra brasileira: msicar.2. ed. SoPaulo: Brasiliense, 1983, eCONTIER, Arnaldo D. Passa-rinhada do Brasil: canto orfe-nico, educao e getulismo.Bauru: Edusc, 1998.

    6 Ver FARIA JNIOR. Ant-nio Guerreiro. Guerra Peixe e

    as idias de Mrio de An-drade: uma revelao. Deba-tes, n. 2. Rio de Janeiro: Uni-Rio, 1998, e TRAVASSOS, Eli-zabeth. Modernismo e msicabrasileira, op. cit., p. 10-17.

    7 Ver NEPOMUCENO, Rosa.Csar Guerra-Peixe : a msicasem fronteiras. Rio de Janeiro:Funarte, 2001, e MARIZ,Vasco. Histria da msica noBrasil. Rio de Janeiro: Civili-zao Brasileira, 1981.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    5/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 239

    a

    r

    t

    ig

    o

    sVivemos afirmando que riqussimo e bonito. Est certo. S que me parece mais ricoe bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo. (...)Do que estamoscarecendo imediatamente dum harmonizador simples mas crtico tambm, capaz dese cingir manifestao popular e represent-la com integridade e eficincia.8

    Devido influncia modernista e fora de Mrio de Andrade,

    alm, evidentemente dos modismos vigentes em Paris, que valorizavamo primitivo, especialmente de matriz africana, Villa-Lobos, FranciscoMignone e Camargo Guarnieri, cada um a seu modo e tempo, trataramde incorporar em suas composies elementos da msica popular, cor-rendo muitas vezes o risco de serem criticados por produzirem obrasque eram verdadeiros pastichos da msica folclrica9. Ressalte-se que,no incio dos anos 1930, Francisco Mignone comps as primeiras obrasdo chamado ciclo negro, dentre as quais sobressai Maracatu de Chico Rei.Qual o significado de maracatu nesse contexto? Que tipo de msica apalavra agencia? Batuque, tambores, instrumentos de percusso, sinni-mos de msica folclrica negra. Simbolicamente aliados ao rei negro,que lidera os escravos e libertos, na construo da Igreja de Nossa Senho-ra do Rosrio em Vila Rica.

    Mrio de Andrade envidou denodados esforos para promover arecolha folclrica em bases que considerava mais cientficas. Enquantodiretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de So Paulo, criou aDiscoteca Pblica Municipal, em 1935, e promoveu a Misso de Pesqui-sas Folclricas, que em 1938 realizou um levantamento etnogrfico nasregies Nordeste e Norte, registrando em discos e filmes diversas mani-festaes da cultura popular, principalmente a musical. Essa tarefa Mriode Andrade j havia sinalizado como de primordial importncia quando

    de sua viagem pelo Nordeste e Norte em meados da dcada de 1920, emque ele prprio recolheu msicas por Pernambuco, Paraba e Rio Grandedo Norte, particularmente o coco, base para seu projeto inconcluso Napancada do Ganz.10

    Guerra Peixe tomou as palavras de Mrio de Andrade sobre a reco-lha do folclore como advertncia e indicativo da necessidade de aprofundaro estudo da cultura popular. Em correspondncia a Vasco Mariz, afirma-va:

    O folclore musical brasileiro no est nem recolhido; muito menos estudado e nadaaproveitado. O que tem havido simples imitao da msica urbana principalmente do

    Rio de Janeiro. O folclore musical continua sendo no Brasil o ilustre desconhecido. O seuaproveitamento na msica erudita tem sido uma mistificao. Os nossos compositorestm substitudo o seu aproveitamento por um suposto nacionalismo. Tem-se camufladoa msica erudita com as sugestes da modinha, da valsa, do choro, etc. Mas isso no folclore, nem aqui e nem na China.11

    Nesse sentido, Guerra Peixe aliou-se tradio andradiana, trans-formando-se em folclorista renomado, trabalhando durante sua estadiano Recife na recolha de material para posterior estudo sobre caboclinhos,rezas de defunto, maracatus, xang, cocos, mamulengos e outras mani-

    festaes. Em So Paulo, Guerra Peixe atuou com igual dedicao, graastambm ao apoio de Rossini Tavares de Lima, da Comisso Paulista deFolclore. Pelo interior paulista, Guerra Peixe registrou jongos, caterets,

    8 ANDRADE, Mrio de. En-

    saio sobre a msica brasileira. SoPaulo: Livraria Martins Fon-tes, 1962, p. 20 e 21.

    9 CONTIER, Arnaldo. O naci-onal na msica erudita brasi-leira: Mrio de Andrade e aquesto da identidade cultural.ArtCultura, n. 9, Edufu, Uber-lndia, jul.-dez. 2004, p. 77.

    10 Ver ANDRADE, Mrio de.O turista aprendiz.So Paulo:Duas Cidades, 1976. Sobre aatuao de Mrio no Departa-mento de Cultura, ver Mriode Andrade e a sociedade deetnografia e folclore no Departa-mento de Cultura da Prefeiturado Municpio de So Paulo,19361939. So Paulo-Rio deJaneiro: Secretaria Municipalde Cultura de So Paulo/Fu-narte/Instituto Nacional doFolclore, 1983. Sobre a Missode Pesquisas Folclricas, verCARLINI, lvaro. Cachimbo eMarac: o catimb da Misso(1938). So Paulo: Centro Cul-tural So Paulo, 1993, idem,Cante l que gravam c: Mriode Andrade e a Misso de Pes-quisas Folclricas de 1938. Dis-sertao (Mestrado em Hist-ria Social) FFLCH-USP, SoPaulo, 1994, SANDRONI,Carlo. Notas sobre Mrio deAndrade e a Misso de Pes-quisas Folclricas de 1938.Revista do Patrimnio Histricoe Artstico Nacional, v. 28,Braslia, 1999, p. 60-73. NoRecife, a equipe da misso fol-clrica gravou toques de xan-g e alguns poucos segundos

    do maracatu-nao Leo Co-roado. Nas cadernetas decampo de Lus Saia h pou-qussimas referncias aos ma-racatus. Tais cadernetas en-contram-se no acervo da mis-so no Centro Cultural SoPaulo. Ver tambm ALVA-RENGA, Oneyda. Xang. SoPaulo: Discoteca Publica Mu-nicipal, 1948.

    11 Guerra Peixe para VascoMariz. Recife, 10 fev. 1951.Pasta de correspondncia (1).Acervo Guerra Peixe da Divi-so de Msica e Arquivo So-noro da Fundao BibliotecaNacional, Rio de Janeiro.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    6/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007240

    modas de viola, congados, dentre outras manifestaes que se refletiri-am em suas composies. Sobre seu trabalho de recolha, escreveu doRecife a Vasco Mariz:

    Meti-me a estudar a msica popular desta terra. Quase todas as semanas vou a umbrinquedo qualquer, munido de papel, lpis e uma mquina gravadora. Tenho recolhido

    material que no vida. A parte rtmica, que tem sido to descuidada entre ns, tem sidoo meu alvo principal. Pois, at agora, s de Xang, recolhi cerca de 250 ritmos diferentes.Mais uns 80 de maracatu, uns 30 de caboclinhos, etc. No se contando, naturalmente,as toadas e as loas.Do maracatu j fiz um trabalho completo, anotando o ritmo de cada instrumento, doconjunto e as toadas, conforme a finalidade e a ordem. Dos caboclinhos, idem.No Xang que a coisa se complica. Pois vejo que este estudo requer pelo menos mais umano de trabalho intenso. As toadas so muitas, os ritmos idem, e tudo isso obedece a umacerta ordem que deve ficar esclarecida. No so cantadas a esmo, pois esto subordinadas vinda dos orixs. Por sua vez, os orixs dependem da seita, se nag, gegi, bata, conco[sic], ou o diabo.Tambm tenho visitado um Bumba-meu-boi, uns Guerreiros, uma Ciranda e uma Aruenda. coisa que no acaba mais, e que nossos compositores no conhecem. Mesmo que jtenham assistido a esses brinquedos uma vez ou outra, no basta, porque isso tudo temalgo de muito mais profundo e exige um estudo demorado. Mesmo o teatrinho de bonecostpicos, o Mamulengo, tem sido alvo de minhas atenes.Para o ms irei a Garanhuns para assistir a dois reisados, um inteiramente de homens,outro de mulheres. E os nossos folcloristas (inclusive O. Alvarenga) dizem no haverreisado em Pernambuco. Esses brinquedos no so conhecidos dos nossos compositores,nem mesmo do Villa. Depois dessa pequena srie de manifestaes desconhecidas, comoafirmar que a msica erudita brasileira baseada no folclore?12

    Sua presena no Recife seria, portanto, da maior importncia, re-fletindo-se no s em suas composies. inegvel que Guerra Peixe, apartir dessa recolha, contribuiria decisivamente para a compreenso e oestudo da cultura popular. Se tal estudo foi fundamental para a trajetriade Guerra Peixe, como essas questes eram discutidas em Pernambuco?De que modo ele atuou na cidade e na cena cultural do Recife? Que de-

    bates suscitou?

    Recife: trnsitos entre o popular e o erudito

    Ao se debruar sobre a histria da msica popular brasileira, pode-se constatar a complexidade com que os trnsitos culturais entre populare erudito contriburam para deslindar as fronteiras ento supostamenteto bem estabelecidas entre um e outro. Hoje, hibridismos, mestiagens,transculturao ou mediao cultural so conceitos utilizados para se tentardar cabo dessa complexidade que ps em circulao cultural Villa-Lo-

    bos, Ernesto Nazar, Donga, Mrio de Andrade e muitos outros. A hist-ria do samba no Rio de Janeiro exemplar e muito bem estudada, de-monstrando como Chartier to bem colocou que os trnsitos entreo popular e o erudito dissolvem essas fronteiras13. No entanto, nas dca-

    das de 19301950 essas fronteiras apareciam para muitos intelectuais comoterritrios muito bem demarcados.Torna-se necessrio, no entanto, dilatar a viso dos crculos por onde

    12 Idem.

    13 Ver CHARTIER, Roger.Cultura popular: revisitan-do um conceito historiogrfi-co. Estudos Histricos, n. 16, Riode Janeiro, Fundao GetlioVargas, 1995, VIANNA, Her-mano. Mistr io do samba. Rio

    de Janeiro: Jorge Zahar, 1995,e SANDRONI, Carlos. Feitiodecente:transformaes no sam-bo do Rio de Janeiro (19171933). Rio de Janeiro: JorgeZahar/ Editora UFRJ, 2001.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    7/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 241

    a

    r

    t

    ig

    o

    sse deu esse trnsito com a explcita inteno de mostrar que os percursosso mais amplos e mais complexos, principalmente quando se trata dadiscusso sobre o nacionalismo na histria da msica brasileira, seja elapopular ou erudita. bvio que nessa questo a contribuio de GuerraPeixe ainda precisa ser debatida. notvel, por sinal, a ausncia nahistoriografia brasileira de um debate mais acurado sobre essa temtica

    na dcada de 1950, aps as crticas ao movimento dodecafnico feitaspor Camargo Guarnieri e as defeces de Guerra Peixe e Carlos Santoro,seguindo orientaes do II Congresso Internacional de Compositores eCrticos Musicais, ocorrido em Praga, em 1948, em que explicitamentese recomenda aos compositores que adiram cultura nacional de seuspases.14

    Importa acentuar, para nossa discusso, que, nos anos de 1930 a1950, em meio intensa represso aos maracatus e s religies afro-des-cendentes desencadeada pelo governo de Agamenon Magalhes, houve,sim, um movimento que alou os maracatus-nao do lugar de coisasde negro, reminiscncia de antigas prticas de escravos africanos, para acondio de cultura autenticamente pernambucana, matriz africana namestiagemcultural que se promoveu e valorizou nesse perodo. im-portante destacar que esse movimento foi perpassado por uma forte ten-so social e poltica entre duas grandes tendncias, quais sejam, as queviam na cultura popular as bases para se firmar a identidade regional e Gilberto Freyre seu grande representante e aqueles que, atuandono governo de Agamenon, promoveram a represso cultura afro-des-cendente com o intuito preciso e explcito de lanar as bases para a civili-zao e modernizao da cidade15. Tenso social evidentemente tambmpresente entre os populares, aqueles que precisavam tocar para os orixs,

    que desfilavam no carnaval com seus maracatus e que procuravam seinserir nessa discusso e disputa poltica, buscando legitimidade e aliadospara manter suas prticas e crenas.

    O maracatu encontrava-se no centro desse debate e apareceu pon-tualmente na obra de alguns dos modernistas que atuavam no Recife,notadamente Lula Cardoso Ayres, no mais com aquele carter saudosis-ta e melanclico que encontramos na obra de Pereira da Costa ou MrioSette16. Esse novo olhar, perceptvel na obra de Lula quando elegeu comoum de seus temas a rainha do maracatu em sua majestade, foi precedidode um significativo movimento que, entre 1930 e 1950, tambmreposicionou o lugar da cultura afro-descendente. A realizao do I Con-

    gresso Afro-brasileiro no Recife, ao final do ano de 1934, causou grandeimpacto cultural na cidade. A forma como foi organizado na verdade,seu carter informal foi decisiva para certa aceitao das contribui-es da cultura afro-brasileira para a formao da nacionalidade.17

    Aps a realizao do I Congresso Afro-brasileiro, os trabalhos neleapresentados foram publicados e prontamente discutidos nas pginas doDirio de Pernambuco. Aos poucos, novos sinais de incorporao da cul-tura afro-descendente adentraram as prticas culturais das elites, o queno implicou sua plena aceitao preciso se discutir o quanto elaainda vista como manifestaes pitorescas e reminiscncias de antigas

    prticas de negros escravos. A folclorizao apaziguadora capaz de fazercom que certa cultura seja aceita e, ao mesmo tempo, que se mantenhamos negros no seu devido lugar. No artigo Negros e brancos no carna-

    14 Ver NEVES, Jos Maria.Msica contempornea brasilei-ra. So Paulo, Ricordi, 1981,KATER, Carlos. Msica viva eH. J. Koellreutter: movimentosem direo modernidade.So Paulo: Musa/Atravs,

    2001.15 Ver ALMEIDA, Maria dasGraas Andrade Atade de. Aconstruo da verdade autorit-ria. So Paulo: Edusp, 2001.

    16 SETTE, Mrio. Maxambom-bas e maracatus.Recife: Funda-o de Cultura da Cidade doRecife, 1981.

    17 GUILLEN, Isabel CristinaMartins. Maracatus-nao en-tre os modernistas e a tradi-o: discutindo mediaesculturais no Recife dos anos1930 e 1940. Clio: Revista dePesquisa Histrica, n. 21, Re-cife, 2003, p. 107-136.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    8/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007242

    val da Velha Repblica,Peter Fry e demais autores observam que

    explicar por que os batuques ou mais precisamente a identidade tnica que eles simbo-lizavam se transformam em problema pblico implica, com certeza, a compreenso daalterao significativa que ocorre na relao entre governantes e governados. Aos escra-vos podia-se permitir manter seus valores e crenas porque eram concebidos como

    estando fora da sociedade. Aos negros cidados deviam ser negros s na pele. No mais, ha necessidade de eliminar os vestgios africanos.18

    O governo de Agamenon Magalhes resolveu levar a srio tal ne-cessidade e redobrou esforos intelectuais e recursos institucionais parareprimir prticas consideradas brbaras e incivilizadas. Durante esses anos,a cultura afro-descendente viveu momentos de dura represso, legitima-da pelo Estado.

    Entre idas e vindas, em 1938, a famosa bailarina Eros Volusia, queprovocava furor no Rio de Janeiro, veio ao Recife e apresentou, no TeatroSanta Izabel, duas coreografias que tinham como tema o frevo e omaracatu. No Anurio do carnaval pernambucano, publicao feita pelaFederao Carnavalesca Pernambucana (FCP), em 1938, podemosadmir-la em uma fotografia em que vestia uma fantasia assemelhadaaos caboclinhos e ficamos sabendo que esses artistas no perdiam a opor-tunidade de conhecer a cultura afro-descendente, pois l apareciam foto-grafias de nossa esfuziante danarina no Xang do Pina e no MaracatuCruzeiro do Forte. Percorrendo ainda as pginas desse anurio, encon-tramos outras fotografias de xangs, bem como do Maracatu Leo Coro-ado e do Maracatu Elefante19. Ser que podemos afirmar que essas ima-gens e descries da cultura afro estavam se transformando em algo cor-

    riqueiro? E isto pode ser tomado como indcio de sua aceitao pela soci-edade? Infelizmente, no! Sob a gide de Agamenon Magalhes, que ti-nha como entre seus principais assessores um grupo de catlicos fervoro-sos, as religies afro-descendentes conheceram dias de intensa persegui-o20. E os clubes, as troas, os caboclinhos e os maracatus, dias denormatividade.

    Ainda em1938, aportou no Recife a misso folclrica organizadapor Mrio de Andrade, que percorreu o Norte e o Nordeste gravando,filmando e fotografando diversas manifestaes da cultura popular.Dirigida por Luis Saia, a misso ficou poucos dias no Recife, gravou osfamosos cantos de carregadores de piano, mas teve enorme dificuldade

    em conseguir um terreiro para gravar o xang devido situao poltica(vigilncia policial em torno das religies afro-descendentes):

    A manifestao folclrica de maior interesse etnogrfico para a Misso, em Recife, era oxang. A delicadeza da situao poltica dificultava a obteno de autorizao oficialprvia, cedida pela Polcia da capital, necessria para registro dos cultos de feitiaria afro-brasileira. No entanto, apesar da radicalizao do processo empreendido pelos CatlicosMarianos, no sentido de apagar da sociedade todo e qualquer tipo de manifestao religi-osa afro-brasileira, os integrantes da misso conseguiram permisso pra que fosse reali-zado um toque de xang para efeito de filmagem.21

    A misso folclrica gravou alguns segundos do Maracatu Leo Co-roado, alm de Saia ter anotado em suas cadernetas de campo algumas

    18FRY, Peter, CARRARA, Sr-gio e COSTA, Ana LuizaMartins. Negros e brancos nocarnaval da velha repblica. In:REIS, Joo Jos (org.) Escra-vido e inveno da liberdade :estudo sobre o negro no Bra-sil. So Paulo: Brasiliense,1988.

    19 Anurio do carnaval per-nambucano. Recife: FederaoCarnavalesca Pernambucana,1938. Eros Volsia, nas pala-vras de Mrio de Andrade,nos anos 1930, foi a primei-ra a transpor sambas, maxi-xes, maracatus, danas ms-ticas de candombl e at mes-mo amerndias para o planoda coreografia erudita. ApudSCHWARCZ, Lilia Moritz.Nem preto nem branco, mui-to pelo contrrio: cor e raa na

    intimidade. In:Histria da vidaprivada no Bras il. So Paulo:Companhia das Letras, 1998,p. 195. Ver ainda PEREIRA,Roberto. Eros Volsia: a criado-ra do bailado nacional. Rio deJaneiro: Relume-Dumar, 2004.

    20Ver MAGALHES, Agame-non. Relatrio apresentado aoExmo. Sr. Presidente da Rep-blica em virtude do artigo 46 dodecreto-lei federal n. 1.202. Re-cife: Imprensa Oficial, 1940.Constam desse documento, s

    p. 150-152, Medidas de profi-laxia moral e social: jogos proi-bido s, ca sas de to ler nc ia ,baixo espiritismo, decoro p-blico, seitas africanas e prti-cas das cincias hermticas.Criou-se para tal fim a Delega-cia de Vigilncia Geral e Cos-tumes, segundo o decreto n.262, 19/1/1939. Sobre essetema, ver tambm QUEIROZ,Marta Rosa Figueira. Religiesafro-brasileiras no Recife: inte-lectuais, policiais e represso.Recife: Dissertao (Mestrado

    em Histria) CFCH-UFPE,1999, e CAMPOS, ZuleicaDantas Pereira. O combate aocatimb: prticas repressivass religies afro-umbandistasnos anos trinta e quarenta.Re-cife: Tese (Doutorado em His-tria) CFCH-UFPE, 2001.

    21 CARLINI, lvaro. Cante lque gravam c, op. cit., p. 213-220.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    9/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 243

    a

    r

    t

    ig

    o

    stoadas que ouviu. Se o maracatu no foi privilegiado pela misso, gra-as, no entanto, ao trabalho de diversos intelectuais, bem como atua-o de seus prprios dirigentes, encontrava-se em vias de ser alado asmbolo da autntica cultura negra em Pernambuco, presente nas obrasde Ascenso Ferreira, Capiba e Lula Cardoso Ayres.

    Lula foi inegavelmente um dos grandes responsveis por um olhar

    positivo sobre os maracatus (tanto o de baque-virado quanto o de baque-solto). Desempenhou um papel-chave no sentido de firmar uma ima-gem da rainha do Maracatu Elefante Dona Santa atravs dos seusdesenhos e suas fotografias. Em 1941, em plena represso aos xangs ecatimbs, Lula surpreendeu o Recife com os murais que elaborou paradecorar o Clube Internacional, introduzindo temas do carnaval de rua,como maracatus, caboclinhos e ursos. Toda a imprensa reagiu favoravel-mente, admirada com a beleza da cultura popular. Mais do que isso, seusmurais suscitaram um rico debate sobre a identidade do carnavalpernambucano e as contribuies da cultura popular para a tradio.

    revista Contraponto, editada em Recife a partir de 1946, coube,em larga medida, a difuso do trao de Lula. Nela, ele publicou muitasgravuras que tinham como tema a cultura popular, principalmente o car-naval e, em especial, o maracatu. Nos seus primeiros nmeros, Lula colo-cou na capa gravura sobre o maracatu e, no nmero 7, de maro de 1947,vemos Dona Santa estampada na capa. A divulgao que Lula promoveude Dona Santa a tornou clebre, atravs no s das fotografias que publi-cou, mas tambm das gravuras que fez da rainha de maracatu, com alegenda quem no conhece, nas ruas do Recife carnavalesco, esta rainhade Maracatu apanhada pelo lpis de Lula? E l estava Dona Santa consa-grada e reconhecida como a rainha de maracatu. Contudo, na figura

    do que hoje denominamos de caboclo de lana que Lula revelou seu po-der de observao. Foi indubitavelmente um dos primeiros a difundirimagens dos caboclos de lana e dos tuchaus, interessando-se pela suaexuberncia dessas manifestaes e distinguindo a diferena em meio svrias personagens da cultura popular. Devido s lentes de Lula, e a seutrao, o olhar se esmiuou no detalhe que o conjunto oculta. No maisdescries generalizadas, e, sim, personagens especficos, pessoas que fa-zem o carnaval.

    Mas, sem dvida alguma, a atuao dos compositores de maracatuque devemos aqui discutir, com o intuito de estabelecer uma relao comas composies de Guerra Peixe. Capiba, no incio dos anos 1930, tinha

    composto uma srie de maracatus, musicando algumas poesias deAscenso Ferreira e compondo outras22. Venceu concursos musicais com de toror e Eh! U! Calunga23. O maracatu constitua-se, ou estava seconstituindo, portanto, num gnero musical da cultura popular nofolclrica. Assim como o frevo e as marchinhas, era composto especial-mente para o carnaval, animando os bailes nos clubes em dias de festa demomo24. Existiam concursos promovidos pela Federao CarnavalescaPernambucana, e os vencedores tinham suas composies publicadas naspginas dos jornais. Houve um grande esforo por parte da FCP e, sobre-tudo, de seu dirigente, Mrio Melo, para que o maracatu se firmasse na-

    cionalmente como gnero musical genuinamente pernambucano. Paratanto, se incumbiram de divulgar esses maracatus nas rdios cariocas,gravavam essas msicas na voz de Francisco Alves e outros mais. O esfor-

    22Ver FERREIRA, Ascenso. Omaracatu. Arquivos, n. II. Re-cife, nov. 1942; publicadotambm em Contraponto, Re-

    cife, ano II, n. 7, mar. 1948,acompanhado de fotos deLula Cardoso Ayres, em queretrata membros do maracatuNao Elefante (D. Santa, ReiEudes, Dama do Pao com aCalunga). Ver idem, de to-ror: maracatu. Rio de Janei-ro: Livraria Editora da Casado Estudante do Brasil, 1951,cujo volume traz ainda ensaiode Ariano Suassuna sobre osmaracatus de Capiba. Sobre ocompositor ver: CAMARA,Renato Phaelante da. Capiba

    frevo, meu bem. Rio de Janeiro:Instituto Nacional de Musica,1986, e SANTOS, Carlos Edu-ardo Carvalho dos et. al.. Ca-piba: sua vida e suas canes.Recife, 1984 (edio comemo-rativa do 80 aniversrio deCapiba).

    23 de toror (msica de Capibae letra de Ascenso Ferreira),composto em 1933, obteve osegundo prmio, em 1935, daFederao Carnavalesca Per-nambucana. Eh! U! Calunga

    (letra e msica de Capiba),composto em 1935, foi o pri-meiro colocado em concursorealizado em 1937 pela mes-ma associao.

    24Alm de Capiba, SebastioLopes, Odilon Ferreira, den-tre outros, compuseram ma-racatus que foram interpreta-dos nos anos trinta por canto-res famosos. Trata-se de umgnero esquecido e no estu-dado pela historiografia damsica popular brasileira. Po-de-se achar uma srie de gra-vaes de maracatu na Fono-teca da Fundao JoaquimNabuco, Recife, PE.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    10/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007244

    o no era para difundir o folclore pernambucano, e, sim, pela criaode um novo gnero da msica popular, quase que disputando espaocom o j consagrado samba.

    Porm, esse gnero de maracatu efetivamente no se consolidou, epodemos encontrar nas pginas dos jornais do Recife do final dos anos de1930 uma discusso sobre as razes que o levaram a cair de moda em

    meio dcada de 1940, lamentando-se seu desaparecimento25. Instan-do os compositores a comparecer nos concursos musicais, o cronista dacoluna Mundos de Luz e Som lamentava o fato de que no mais secompunham maracatus. Sebastio Lopes aceitou o desafio e comps novomaracatu, enquanto Capiba prestava esclarecimentos: no havia ambi-ente para se comporem msicas daquele gnero. No sei se a transiopoltica que sofremos tem contribudo para isto, mas o fato que o ambi-ente no o mesmo de 1933 e 1937, quando lancei de torore Eh. U.Calunga.26

    Essas composies de Capiba, datadas dos anos 1930 e classificadascomo maracatus, e que aparecem transcritas e publicadas na obra orga-nizada por Ascenso Ferreira, de toror, editada em 1951, no foramdevidamente analisadas do ponto de vista musical, exceto por ArianoSuassuna, em ensaio publicado no mesmo volume. O maracatu compos-to por Capiba, com letra de Ascenso Ferreira, de toror,no obstante,foi sucesso no Recife, seguindo para o Rio de Janeiro, onde foi includoem um dos quadros da revista de Jardel Jrcolis, que excursionou peloBrasil, Espanha e Portugal. Esse mesmo maracatu tornou-se sucesso car-navalesco no Rio de Janeiro no ano seguinte. Ao comentar a publicaodo livro de toror, Manuel Bandeira afirma:

    Uma das mais fortes impresses que guardo do tempo da meninice foi o meu primeiroencontro com um maracatu. Era tera-feira gorda e eu ia para a Rua da Imperatriz, noRecife, assistir de um sobrado a passagem das sociedades carnavalescas. Filomomos,Ps, Vassourinhas. De repente, na esquina da Rua da Aurora, me vi quase no meio de umformidvel maracatu. De que nao seria? Porto Rico? Cabinda Velha? Leo Coroa-do? No me lembro. Dos melhores era, a julgar pelo apuro e dignidade do Rei, da Rainhae seu cortejo prncipes, damas de honra, embaixadores, baianas. Pasmei assombrado.Tudo em volta de mim era carnaval: aquilo no! Mas o que que me fazia o coraopulsar assim em pancadas de medo? Analisando agora, retrospectivamente o meu senti-mento, creio que o motivo do alvoroo estava na msica, naquela msica que mal pareciamsica percusso de bombos, tambores, ganzs, gongus e agogs, num ritmo obsessor,

    implacvel, pressago... Mesmo de longe (lembro-me de certas noites em que, na velhacasa de Monteiro, a viragem trazia uns ecos de batuque, o ritmo dos maracatu...) invoca-va. Todas essas memrias dos meus oito anos, impagveis como o cheiro entre mar e rio docais da rua da Aurora, buliram em mim, mais vivas do que nunca, leitura do livrinho de toror... 27

    Bandeira ressalta que Capiba no foi apenas compositor popular,mas cuidou igualmente de transpor para msica erudita os temas da cul-tura popular. Na sua Sute nordestina, transcrita para orquestra por Guer-ra Peixe, a msica negra e o batuque esto presentes. Bandeira identifica

    na sonoridade dos maracatus de Capiba os velhos maracatus de sua in-fncia, notadamente o Eh, Luanda!Reconheci logo nos acordes da moesquerda aquele ritmo obsessor, implacvel... Tema intrigante e que deixo

    25 Cf. Folha da Manh, 8 fev.1939, p. 8 e 3 (edio vesper-tina), Dirio de Pernambuco, 24jan. 1946, p. 6, e 2 fev. 1946,p. 6.

    26 Dirio de Pernambuco, 1.mar. 1946, p. 2.

    27

    BANDEIRA, Manuel. Osmaracatus de Capiba. Folhade Minas, 30 ago. 1958.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    11/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 245

    a

    r

    t

    ig

    o

    scomo instigao para que os msicos se dediquem a pensar no assunto.Ainda a respeito dos maracatus de Capiba, o ensaio de Ariano

    Suassuana analisa as composies em questo, discutindo os caminhosque os compositores poderiam percorrer quando se tratava da relaocom a msica popular. O compositor simplesmente poderia, sem maio-res aspiraes que lhe seriam insufladas por um talento maior, compor

    novos frevos, maracatus etc. Nessa categoria classifica Eh, Luanda! eMaracatu Elefante, que Capiba criou em homenagem a Dona Santa. Osegundo caminho apontava para a superao do popular. Deixemosque o prprio Ariano Suassuna nos explique:

    Partindo da simples imitao das formas populares, passar ela por uma fase de transpo-sies, para chegar finalmente recriao, sua forma mais alta. A imitao , no caso, ocampo do compositor popular; e a transposio o de uma espcie intermediria, importan-tssima para a criao de uma msica nacional. (...)Em nossa regio, foi Capiba um dosprimeiros que tentou realizar aquilo que chamamos acima de transposio do popular,rasgando novos caminhos que s mais tarde sero realmente apreciados.28

    Capiba teria feito uma srie de transposies em frevos, valsas,choros e canes. Ariano Suassuna observa que h nessas composiesclaros contatos com as msicas de Stravinsky e Mozart, porm a melhorcriao nesse terreno foi sem dvida a Sute nordestina. Assim posto, clas-sifica grande parte dos maracatus de Capiba nessa segunda categoria (ape-sar de reconhecer que alguns deles foram compostos para concorrer aosconcursos do Dirio de Pernambuco e da FCP). O maracatu de toror,com poema de Ascenso Ferreira, apresenta uma espcie de reverso aotrgico esprito religioso do negro, mesclado da angstia que assumir

    formas musicais lentas e dolorosas em estilo sempre romntico-ne-gro. Tal estilo refere-se msica melanclica acrescida, entre outras,de palavras como penar, sofrer, chorar e esquecer. Essa ligao ltero-musical remete tragdia de raa do negro, evocada por msica epalavra.

    Esse era o ambiente que se vivia no Recife quando Guerra Peixechegou, em 1949, contratado pela Rdio Jornal do Commercio. Que traba-lhos musicais desenvolveu? Como atuou na cidade, entre seus intelectu-ais? Sabemos que Capiba foi seu aluno, em aulas de harmonia e compo-sio, da qual resultou a orquestrao feita por Guerra Peixe de sua Sutenordestina. O mesmo aconteceu com Sivuca e muitos outros msicos

    importantes na cidade. Vejamos agora como essa estadia de Guerra Peixeno Recife foi fundamental em sua carreira musical, bem como para arelao que estabelecer entre o popular, o folclrico e o erudito.

    Rompendo amarras, caindo no batuque dos maracatus:Guerra Peixe no Recife

    Guerra Peixe esteve no Recife pela primeira vez em julho de 1949,quando teve a oportunidade de ver uma apresentao do maracatu-na-o Elefante, de Dona Santa. Em crise com o movimento dodecafnico, o

    maestro aceitou a tarefa de conduzir a orquestra da Rdio Jornal doCommercio, recm-inaugurada. J acumulava experincia comoarranjador, tendo trabalhado nos estdios da indstria fonogrfica, fa-

    28 SUASSUNA, Ariano. Notassobre a msica de Capiba. In:FERREIRA, Ascenso de to-ror..., op. cit., p. 44 e 45.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    12/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007246

    zendo arranjos para Aurora Miranda, Marlia Batista e Francisco Alves.Para Nepomuceno, os estdios foram uma grande escola para ele, quese transformaria num dos maiores arranjadores da msica popular brasi-leira. E msica j era territrio sem fronteiras para Guerra Peixe, quecomps at marchinhas em parceria com o caipira nordestino Jararaca, ogenial alagoano parceiro de Ratinho29.

    Em 1948, Guerra Peixe apresentava no Rio de Janeiro um progra-ma de rdio que se chamava Ritmos cruzadoseque levaria para o Re-cife no ano seguinte. O rdio viria a se constituir num espao relevantepara a expanso de sua inventiva personalidade. Nesse programa, GuerraPeixe brincava com gneros e ritmos: apresentava sucessos popularescom arranjos eruditos, e transportava peas clssicas, como uma deBeethovem, para o ritmo de samba.30

    O trabalho na Rdio Jornal do Commercioo colocou em contato comos msicos recifenses, ao mesmo tempo em que lhe deu chances de fazeras recolhas de msica popular. Atuava em diversos programas de audit-rio, a exemplo de Harmonia Nitroqumica ou de Mil, trs mil, cincomil. Ao lado de Tefilo Barros, Sebastio Lopes e outros msicos, com-positores e cantores, Guerra Peixe era responsvel pelos arranjos e efei-tos orquestrais da programao da emissora31. Seu grande programa,no entanto, foi o Jardim de Melodias, em que oferecia aos ouvintes asmais belas pginas da msica brasileira, notadamente as recolhidas porGuerra Peixe em motivos folclricos.32

    Ao mesmo tempo, Guerra Peixe no ficou improdutivo em termosde composio. Em 1950, ganhou o 1 prmio do concurso de composi-es patrocinado pela Prefeitura do Recife em comemorao ao centen-rio do Teatro Santa Isabel, acontecimento abundantemente discutido nos

    jornais do Recife.33

    SuaAbertura solenerecebeu, por unanimidade, o pri-meiro prmio do jri, e o segundo colocado foi Capiba. Em 1951, emconcurso do Museu de Arte Moderna de So Paulo, obteve uma bolsapara o III Curso Internacional de Frias de Terespolis, no Rio de Janeiro,com Sonata para violino e piano. No mesmo ano comps a trilha sonorado filme Terra sempre terra, de Tom Payne. Tambm comporia, em 1953,

    j morando em So Paulo, a trilha sonora do filme Canto do mar, de AlbertoCavalcanti. Em 1952, escreveu uma srie de artigos para o suplementoliterrio do Dirio de Pernambucocom o ttulo de Um sculo de msicano Recife, fazendo um apanhado da vida musical da cidade no sculoXIX34. Morando no Recife, teve a oportunidade de conhecer Cmara

    Cascudo, com quem trocou idias, sendo por ele incentivado a publicarum livro sobre as recolhas que fazia. Recebeu tambm visita de RenatoAlmeida, com o qual conversava sobre o desenvolvimento das pesqui-sas35. Ao relembrar esses anos vividos no Recife, Guerra Peixe comenta:

    Trs anos de muita pesquisa e muito trabalho, no foi de passeio. Eu estava completa-mente por fora dos meios musicais. Era s rdio e dali xang, maracatu, etc. Levei 40 diaspara entender os toques caractersticos dos tradicionais maracatus. Nenhum msico pro-fissional no Recife conhecia aqueles toques. S depois que fui para l que passou a serquesto de honra para os bateristas saberem tocar o ritmo dos maracatus. Antes, ningum

    dava bola. Um toque de xang levei 60 dias para aprender. E s aprendi por causa dosbio conselho do preto velho que tocava: Se ficar olhando para minha mo, o senhorno vai aprender nunca.36

    29 NEPOMUCENO, Rosa, op.cit., p. 23. Em 1941, a duplaJararaca e Ratinho gravou duascomposies de sua autoria:a marcha Levanta o p, comFelisberto Martins, e o sambaMe leva, baiana, com Jara-raca, pela Odeon. Em 1942, amesma dupla gravou a mar-cha Ora bolas, parceria comJararaca e Norah, e Silvio Cal-das gravou na Victor a mar-cha Fibra de heris, parce-ria com Tefilo de Barros Fi-lho. Cf. verbete Guerra Peixe.Dicionrio Cravo Albin da M-sica Popular Brasileira. Dispo-nvel em Acessoem 31 out. 2006.

    30 NEPOMUCENO, Rosa, op.cit., p. 24.

    31

    Ver a programao da R-dio Jornal do Commerciono Jor-nal do Commercioou no Dirioda Noite. Inaugurada em 1949,ela promovia intensa propa-ganda de sua programaonas pginas dos jornais dogrupo de F. Pessoa de Quei-roz.

    32Dirio da Noite, 24 set. 1952.

    33Ver Dirio de Pernambuco, 20maio 1950, e Folha da Manh,20 maio 1950.

    34

    Dirio de Pernambuco. Suple-mento Literrio, de 30 mar. a5 out. 1952.

    35Cf. Guerra Peixe para VascoMariz. Recife, 10 fev. 1951.Pasta de Correspondncia (1),j cit.

    36 Guerra Peixe: erudito, po-pular. Acima dos rtulos, amsica brasileira. O Globo, 2jan . 1979, p. 27. Agra deo aJane Guerra Peixe por ter mefranqueado o acervo do ma-estro, onde se encontram di-

    versos recortes de jornais,alm de outros documentosimportantes sobre a atuaode Guerra Peixe no Recife.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    13/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 247

    a

    r

    t

    ig

    o

    sE quanto aos maracatus? Em 1952, escreveu a Vasco Mariz a res-peito dos maracatus de Capiba:

    Quanto aos maracatus do Capiba devo dizer o seguinte: conheo-os todos. Como can-es so muito bonitinhos e inspirados. Capiba arranjou um ritmo qualquer para cada umdeles. Mas de maracatu eles no tm nada. Alis, o maracatu autntico, o que veio dos

    negros bantus de Angola ou do Congo , coisa completamente diferente. Quemjulgar que esses maracatus do Capiba tm alguma coisa a ver com a dana, verificar otremendo engano. O maracatu autntico (com o ritmo autntico, digo) nunca foi danadonos sales de baile e nem as orquestras faziam o seu verdadeiro ritmo. Agora, apesar deno ser mais executado em bailes, que as orquestras comeam a [faz-lo]um pouco,depois que eu consegui escrev-lo para a rdio. Diziam que o ritmo era muito difcil, e quea orquestra no o tocaria. Eu, porm, acabei com essa lenda e os poucos que escrevi soexecutados com extraordinrio sucesso. [...]Acrescente-se: o prprio Capiba parece terreconhecido seu erro. Tanto que desde que as orquestras da rdio comearam a executar omaracatu no seu toque autntico, ele, o Capiba, nunca mais escreveu outro maracatu. Elevei meses at conseguir grafar o ritmo dos zabumbas, que , sem nenhum exagero,aquilo que eu escrevi no artigo que mandei para voc: O zabumba no maracatu.37

    A carta aponta para muitas questes que precisam ser mais bemdiscutidas e analisadas. No entanto, fica muito claro que, para o maestro,a transposio do maracatu tradicional para a msica orquestrada deCapiba guardava uma enorme distncia do maracatu autntico, que spoderia ser rompida quando se levasse a srio a anlise da msica folcl-rica. No final da carta, refere-se ao primeiro trabalho que publicou sobrea msica dos maracatus, no Dirio de Pernambuco38. Esse artigo traz umaanlise preliminar, destacando em especial a atuao dos bombos (ou

    zabumba, como prefere Guerra Peixe). Ela seria retomada como pontode partida para o livro Maracatus do Recife, publicado em 1955. O maes-tro salienta que a primeira impresso ao ouvir o Maracatu Elefante era ade que os tocadores de zabumba articulavam seus baques sem nenhu-ma obedincia a qualquer disciplina rtmica. Tal impresso devia-se prpria concepo de harmonia rtmica que ele como msico tinha e quese chocava com a produzida pelos maracatus. Para Guerra Peixe, essadiferena radical provinha da orientao que cada representante de gru-pos sociais diferentes recebe no desenvolvimento de suas aptides e ne-cessidades espirituais. Na concepo ocidental, aos instrumentos de to-nalidade grave cabe uma funo rtmica mais bsica, o que no ocorre

    nos maracatus: os baques so articulados fora daqueles momentos emque o sentimento rtmico do homem comumente encontra refernciapara medir o tempo. Nesse sentido, o maracatu tem uma batucada quedesnorteia o mais experimentado ouvido que o escuta pela primeira vez.

    notrio que a estadia de Guerra Peixe no Recife foi decisiva parasua carreira a partir desse perodo. Em Maracatus do Recife, ele afirma:

    Em junho de 1949 visitamos o Recife pela primeira vez. Influenciados pela leitura detrabalhos publicados sobre o maracatu (cortejo), aproveitamos a ocasio para, naquelacidade, compor um maracatu (msica) a fim de integrar uma sute para quarteto ou

    orquestra de cordas. Dias depois tivemos a oportunidade de assistir, mais ou menos comoturista, a uma exibio especial do Maracatu Elefante, e a desiluso sobrevinda abso-lutamente indescritvel... Apesar da mencionada obra haver obtido o aplauso de

    37 Guerra Peixe para VascoMariz. Recife, 25 abr. 1952.Pasta de Correspondncia (1),j cit.

    38Ver PEIXE, Csar Guerra. Ozabumba no maracatu. Di-rio de Pernambuco, 13 maio

    1951. Publicado tambm naRevista de Msica Sacra, n. 7,Rio de Janeiro, jul. 1951.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    14/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007248

    pessoas bem intencionadas nos problemas estticos da msica brasileira, no pode-mos deixar de denunciar, agora, o distanciamento que separa a pea musical da fonte.Posteriormente estudados os grupos populares do Recife, inclumos um maracatu naSute Sinfnica n. 2, na qual as principais caractersticas dessa modalidade demsica popular esto entrosadas de maneira mais direta. esse atualmente nossoponto de vista, quanto ao aproveitamento do folclore na criao de obras que anunci-

    am as fontes que lhe do origem.39

    Esta longa citao enuncia o quo complexa para Guerra Peixe atranscrio do popular-folclrico em sua msica, ao mesmo tempo emque explica a exigncia do maestro quanto qualidade e profundidadedo que chama de pesquisa folclrica, pois, diferentemente de muitosoutros folcloristas e msicos, no se limitou a recolher as manifestaesda cultura popular como matria-prima a ser trabalhada por ele musical-mente. Seu trabalho no pode ser classificado como de um folcloristatradicional ou tpico, transpondo as fronteiras que delimitam os cam-pos do saber, caminhando em direo a uma etnomusicologia, ainda queintuitiva. Outros trabalhos de Guerra Peixe, publicados posteriormente,revelam o mesmo cuidado e contriburam para que as manifestaesculturais neles abordadas alcanassem um estatuto e uma legitimidadeat ento no obtidos, notadamente nos seus estudos sobre os caboclinhos,as bandas de pfano ou zabumbas e as rezas de defunto.40

    Se o Recife foi um momento de inflexo na carreira de Guerra Pei-xe, como a obra do maestro foi recebida na cidade? Em reportagempublicada no Dirio da Noitedo Recife41, encontramos indcios de comopode ter sido a estada de Guerra Peixe na cidade e sua insero no meiointelectual. Nela se l que o Recife no deu a este homem o valor que

    realmente possui, recusando-se a publicar em forma de livro artigos queGuerra Peixe publicara no Dirio de Pernambuco, sob o ttulo Um sculode msica. O Instituto Joaquim Nabuco tambm teria se recusado aaceit-lo como pesquisador, negando-lhe a oportunidade pleiteada deorganizar as pesquisas de folclore musical com temor de que o ingres-so de uma to relevante personalidade lanasse ao segundo plano as gl-rias da terra.... O livro, no entanto, acolhia uma lio de pernambu-canismo, de amor s tradies.

    Maracatus do Recife revelava uma grande distncia dos seus pri-meiros trabalhos intelectuais a respeito da musicalidade dos maracatus. produto de uma reflexo madura, pautada em muitas pesquisas, tanto

    bibliogrfica quanto fruto de suas observaes nos grupos, momentosem que anotava as msicas ou mesmo as gravava. Essas pesquisas lhederam segurana para criticar outros autores, seja por lanarem hipte-ses sem fundamentos em pesquisa, seja por tratarem as informaes comdescuido, como se fossem coisas de somenos importncia. Neste ltimocaso, o maestro chamava a ateno para o trabalho de Ascenso Ferreira,porque ele no diferenciara as toadas dos maracatus de baque-virado dosmaracatus de baque-solto. Ao que tudo indica, os maracatus observadospor Ascenso, em sua infncia em Palmares, no eram os maracatus iguaisaos observados por Guerra Peixe no Recife. Essa confuso atribuda a

    uma possvel irreflexo de Ascenso...42

    possvel tambm fazermos uma leitura comparada de GuerraPeixe, atentando para aqueles com quem dialoga e de quem quer guar-

    39 Idem, Maracatus do Recife,op. cit., p. 49.

    40Idem, Os caboclinhos do Re-cife. Revista Brasileira de Folclo-re (RBF). Rio de Janeiro: anoVI, n. 15, maio-ago. 1966, Re-zas de defunto. RBF, an oVIII, n. 32, set.-dez. 1968, e

    Zabumba, orquestra nordes-tina. RBF, ano X, n. 26, jan.-abr. 1970.

    41 Recife pitoresco. O Mara-catu Elefante. Relquia viva dopassado. Dirio da Noite, 11fev. 1956.

    42PEIXE, Csar Guerra. Mara-catus do Recife, op. cit., p. 48.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    15/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 249

    a

    r

    t

    ig

    o

    sdar distncia. Uma leitura mais histrica, enfim. Algumas questes socentrais no texto de Guerra Peixe; elas lhe permitem marcar a diferenacom o saber posto em circulao sobre os maracatus, no momento emque escrevia. A primeira delas diz respeito origem do maracatu. Havia,quanto a isso, um saber institudo, contra o qual Guerra Peixe se insur-giu, o que perceptvel para seus crticos e resenhadores: Maracatus do

    Recife surpreendeu porque deu mostras do pesquisador paciente, res-ponsvel, cheio de cautelas, amplo nas suas investigaes43Para PauloAfonso Grisolli, Guerra Peixe foi ao arquivo e no simplesmente repe-tiu o que os modernos costumavam fazer ao afirmar que o maracatu um cortejo real cujas prticas so reminiscncias decorrentes das festasde coroao de reis negros, eleitos e nomeados na instituio do Rei doCongo44. Frmula consagrada desde Pereira da Costa, inexistiam, entre-tanto, quaisquer estudos sobre essa prtica cultural e sobre sua relaocom os maracatus. Guerra Peixe trouxe para a discusso em torno dapesquisa folclrica a necessidade de se desconstrurem esses saberes, aoapontar para a existncia de autos e outros indcios, como as Aruendas,de que a origem do maracatu no se deu em linha reta com a instituiodos Reis do Congo. Ele sentiu a necessidade de no repetir simplesmenteo j sabido e admitido. E o fez sem temer usar o talvez e o parece que,quando isso lhe exigido, pela sua responsabilidade de estudioso dascoisas do folclore.45

    Guerra Peixe no temeu discordar de autoridades estabelecidas, aexemplo de Mrio de Andrade e Oneyda Alvarenga. Questionou inclusi-ve seus argumentos em relao etnologia da palavra maracatu, queambos os autores remontavam a marac, e sua origem indgena, portan-to. Pareceu-lhe mais verossmil a observao de Gonalves Fernandes,

    que associa maracatu ao vocbulo maracatuc (vamos debandar), ressal-tando a sua proximidade com a lngua falada pelos que faziam omaracatu46. Mas na discusso sobre a dama do pao grafia hojeno questionada que se revelou o tino de pesquisador de Guerra Pei-xe, sua proximidade com aqueles que praticavam o maracatu, mostran-do a diferena que faz quando quem escreve se assenta em observaodireta. A calunga do maracatu constitua-se num enigma a ser pensado,para alm do costumeiro jargo reminiscncia de antigos totens africa-nos. Mrio de Andrade tinha dito que as damas que a conduziam de-senvolviam um passo distinto e, por isso, eram chamadas de dama dopasso. Para Guerra Peixe, em uma cuidadosa linguagem em que aventa

    a hiptese da interpretao dos estudiosos haver-se derivado de um en-gano inicial, podia-se levantar a possibilidade de que o vocbulo se refe-ria posio da dama enquanto membro do cortejo real, ou melhor, dopao. Mas concluia que no h (...) [dvida], o problema complexo...47

    Palavras que no devemos esquecer quando se trata de enfocar duasoutras questes de enorme complexidade, que Guerra Peixe enfrenta (se

    bem ou mal, este um outro problema). A primeira delas envolve a rela-o dos maracatus com os xangs, constatada pelo maestro e posta sclaras. No momento em que publicou seu livro, essa associao no pro-vocou mais temores ou perseguies policiais, o que lhe facilitou a

    constatao. Importa frisar que essa associao no aparecia claramentena historiografia, a no ser como subterfgio utilizado pelos popularespara escaparem da sanha policial48. O livro de Guerra Peixe no autori-

    43 GRISOLLI, Paulo Afonso.A partir da instituio do Reido Congo, um maestro estu-

    da os maracatus do Recife.Folha da Manh,So Paulo, 22nov. 1955.

    44 Idem.

    45 Idem.

    46PEIXE, Csar Guerra. Mara-catus do Recife, op. cit., p. 26-28.

    47 Idem, ibidem, p. 41.

    48 Ver FERNANDES, AlbinoGonalves. Xangs do Nordes-te: investigaes sobre os cul-

    tos negros fetichistas do Reci-fe. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1937.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    16/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007250

    za os atuais pesquisadores a sustentar a tese de que a relao dosmaracatus com os cultos afros lhes inerente ou constitutiva. Podemosafirmar que hoje a relao dos maracatus-nao com as religies afro-descendentes identitria, mas no devemos ler as afirmaes de Guer-ra Peixe como indcios de que sempre foram assim. O fato de que essarelao era evidente na dcada de 1940 no autoriza nenhum historia-

    dor ou estudioso da cultura popular a concluir que os maracatus-naosempre estiveram relacionados com os xangs.

    A segunda questo diz respeito diferena que Guerra Peixe iden-tifica entre os tipos de maracatus. Para ns, hoje, essa diferena obvia,porm no momento em que publicou sua obra, houve tal resistncia queo impacto de suas idias s se tornaria perceptvel aps a publicao dolivro de Katarina Real, Folclore do carnaval do Recife, na dcada de 1960,e que consagrou as denominaes de maracatu-nao e maracatu de or-questra, ou rural, e a segunda edio do livro do maestro. Para GuerraPeixe, como msico que se deteve a ouvir os que faziam os maracatus,essa diferena era gritante, a ponto de criticar Roger Bastide e AscensoFerreira por no perceberem as diferenas nas toadas.49

    Seus trabalhos nos provem de indcios preciosos a partir dos quaispodemos formular importantes questes sobre as prticas culturais, so-

    bre os trnsitos que delineamos neste artigo. A anlise que efetuamosdenota que, na cidade do Recife, os percursos culturais entre os gnerosmusicais, o ir e vir entre o que se denominava msica folclrica, populare erudita, eram mais freqentes do que se pensa, e o trnsito se dava emvias de mo dupla, sem falar nos constantes cruzamentos. Ao analisar asmediaes culturais, a historiografia tem enfatizado apropriaes, contri-

    buies, contatos e circularidades, mas nem sempre se destaca que essas

    mediaes no transitam numa via de mo nica. Por que no transitarpela contramo e se interrogar sobre os modos como a cultura popularse apropria da cultura erudita? Por que partirmos do pressupostoempobrecedor de que a cultura popular no tem acesso erudita?Uma historinha, que aparece folclorizada (evidenciando a dificuldadede se transitar nessa contramo), nos d fortes indcios de que se trata deum campo de pesquisa muito promissor:

    O maestro Guerra Peixe, h dias, me contou caso que bem demonstra a mistificao aque ficam sujeitos muitos pesquisadores. Quando viveu no Recife, catando pontos dexangs, seu guia era o famoso babala Gob. Depois de lhe cantar muita msica de

    terreiro, Gob se tomou de simpatia e decidiu ser honesto: Tudo o que lhe ensinei foi errado.

    Ante o espanto de Guerra Peixe, explicou: Sempre ensino errado aos brancos que vm aprender pontos. Troco o

    nome das entidades, confundo as melodias e as letras. Mas hoje somos amigos evamos corrigir tudo o que cantei...Gob passou a freqentar a casa do maestro. Ficou ntimo da famlia. Um dia:

    Guerra, fiz um ponto novo para xang. Agradou muito no terreiro. Todosos cavalos j o aprenderam. Ficou uma beleza! Acrescentou:

    Inspirei-me naquela musiquinha que sua esposa toca no piano.

    Cantou o folclore de sua autoria e Guerra Peixe quase caiu pra trs. O novo ponto dexang lanado com xito nos terreiros recifenses era, precisamente, Pour Elise, peapara piano de Beethoven.

    49PEIXE, Csar Guerra. Mara-catus do Recife, op. cit.,p. 55.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    17/18

    ArtCultura, Uberlndia, v. 9, n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007 251

    a

    r

    t

    ig

    o

    sBeethoven est agora nos xangs pernambucanos, servindo de apoio incorporaodo orix... Imagino que daqui a alguns anos, um desses pesquisadores improvisadosdescubra a melodia. E saia afirmando que Beethoven se inspirou no folclore brasileiropara compor Pour Elise...50

    O livro de Guerra Peixe, Maracatus do Recife,tem uma histria se-

    melhante. inegvel que ele no ficou restrito aos mbitos da culturaerudita ou acadmica. Ao longo das dcadas, aps duas edies, as apro-priaes da obra de Guerra Peixe precisam ser pensadas com mais vagar.Assim como a historinha de Gob, muitos participantes dos maracatustm lido Guerra Peixe. Citado por muitos mestres e donos de maracatus,o livro do maestro constituiu-se em saber consagrado, autoridade sufici-ente para legitimar na atualidade muitas prticas culturais e para defini-las como tradicionais ou no.

    Dessa forma, os caminhos que percorremos, entre maracatus fol-clricos e tradicionais, maracatus compostos por Capiba, e os compostospor Guerra Peixe, nos levam a concluir, tal com esclarece Chartier, queprticas de representao modificam prticas culturais e vice-versa51. Masesta no uma constatao de menor importncia ou que deva ser bana-lizada quando pensamos na complexidade das relaes culturais, poisnos permite perceber os sujeitos em constante movimento, em meio aoqual as prticas culturais esto sempre sendo criadas ou recriadas. E, aci-ma de tudo, esse movimento permanente tambm nos possibilita apre-ender a dimenso social e poltica em que as prticas culturais sovivenciadas.

    Artigo recebido em dezembro de 2006. Aprovado em maio de 2007.

    50HOLANDA, Nestor de. Te-lhado de vidro. Dirio de Not-cias, Rio de Janeiro, 26 set.1969.

    51CHARTIER, Roger.A Hist-ria Cultural: entre prticas e

    representaes. Lisboa-Rio deJaneiro: Difel/Bertrand Brasil,1990.

  • 8/12/2019 GPeixe_Artigo

    18/18