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Revista Global Brasil 08

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Editorial 1 GLOBAL

Esse numero 8 da Global/Brasil concretiza – pelo menos em parte – a perspectivaque colocamos no editorial do número anterior: com base na estabilidade e nalegitimidade do primeiro mandato do presidente Lula, precisamos avançar emdireção a um modelo de desenvolvimento que conjugue mobilização produtiva eradicalização democrática. Abrimos, pois, espaço para várias intervenções sobre aprodução cultural da periferia, o embate da TV digital, a questão da cópia, etc. Oterreno da produção cultural, os esforços para colocar a cultura em pauta cons-tituem-se como os eixos privilegiados dessa inovação. A produção da cultura rep-resenta um dos maiores desafios de definição do modo de inserção do Brasil nosfluxos do capitalismo contemporâneo, ao passo que os investimentos em infra-estruturas previstos no PAC vão além de uma mera – embora necessária – moder-nização. Hoje em dia, a circulação (que as infra-estruturas proporcionam e tornamdinâmica) se constitui – diretamente – em atividade de “agregação” de valor.Ao mesmo tempo, o debate político institucional parece demasiadamente sobre-determinado: do lado do governo e de sua base, pelos imperativos do crescimento;e, do lado de uma oposição derrotada, pela imposição do debate sobre previdênciae reforma trabalhista. O lançamento do projeto de uma TV pública parece indicarque dessa vez o governo Lula articula uma resposta adequada diante de umagrande mídia autoritária e conservadora. Porém, o debate interno à base governista(dentro do governo, dentro do PT e dos movimentos) é atravessado por uma sériede visões bastante perigosas. Podemos resumi-los nos seguintes termos: há umasobre-avaliação do impacto e do significado do segundo turno das eleiçõespresidenciais; e há subestimação das contradições internas ao segundomandato. Essas duas posturas alimentando-se reciprocamente.Ninguém quer negar a importância política do segundo turno. Tratou-se de um gol-contra da oposição e da mídia monopolista. Mas, seria um grande erro político –de natureza ideológica – transformar os temas do segundo turno (que, superficial-mente, podem deixar entrever uma demanda por ummaior papel do Estado na pri-oridade de uma outra política econômica) em temas do segundo mandato. O ver-dadeiro evento eleitoral é outro, e diz respeito à identificação massiva e sem hesi-tação dos mais pobres, dos muitos, com o presidente Lula. Essa identificação –objeto de um vergonhoso fogo de artilharia que durou um ano e meio – tem umabase muito clara: a política social de distribuição de renda e redução da desigual-dade. Ninguém deve esquecer que, se hoje é possível baixar a taxa de juros eavançar no crescimento, é graças à política social. É a política social quepermite mudar a política econômica! Mais ainda, esse erro leva a sub-avaliaras contradições que – desde já atravessam o segundo mandato. Se o primeiroparecia marcado pelo conflito entre “Casa Civil” e “Fazenda” (Palocci), o segundojá indica a polêmica entre, de novo, a “Casa Civil” e o “Meio Ambiente” (a ministraMarina). No governo, indica-se que a saída estaria em uma mudança de posturapor parte dos responsáveis do ministério do Meio Ambiente. Parece haver con-senso de que se trata, no que diz respeito ao “meio ambiente”, de passar do “nãofazer” para o “como fazer”. Esse tipo de embate não poderia ser mais emblemático:a lógica instrumental do crescimento está dada e, necessária e intrinsecamente,trará frutos positivos. Diante desse determinismo do “progresso”, toda preocu-pação, toda hesitação deveria dobrar-se.Por isso, precisamos urgentemente voltar a enfatizar o significado político do“primeiro turno”: a mudança da própria base social do governo Lula. Com efeito,a política social (de distribuição de renda) apresenta o grande interesse de desen-volver – em um só tempo e não em “três tempos” – políticas públicas e mobilizaçãodemocrática. É essa associação de forma e conteúdo que precisamos manter eamplificar: não se trata de passar do “não fazer” ao ”como fazer”, mas de mantere aprofundar uma perspectiva radicalmente democrática, a única que pode resolvero verdadeiro enigma tático e estratégico, aquele de se decidir “o que fazer”!

“O que fazer”?

Capa:Tatuagens Urbanas, de Ronald Duarte,Nova Iguaçu, RJ, 2006.Oficina de arte pública, fazendo parteda Rede Nacional de Artes Visuais daFUNARTE.

Funtummireku DenkyemmirekuUm jacaré de duas cabeças quecompartilham um estômago.Símbolo da unidade na diversidade eadvertência contra as brigas internasquando existe um destino em comum.

À esquerda:Show de Bola, de Claudio Cambra,Campo do Gradim São Gonçalo, RJ, 2006.Foto de Carlos Borges.

GLOBAL Brasil é uma publicaçãoda Rede Universidade Nômade e,da Do Lar Design [email protected]

GLOBAL Brasil é a edição brasileiraassociada ao GLOBAL PROJECTwww.globalmagazine.org

Distribuidor exclusivo para todo o Brasil:Fernando Chinaglia Distribuidora S/A

Rua Teodoro da Silva, no 907 - Vila IzabelCep 20563-900 - Rio de janeiro - RJTel 55 21 2195 3200

Page 4: Global Brasil 08

GLOBAL 2 Sumário

Comitê EditorialAlexandre do NascimentoAlexandre MendesAndré BarrosBarbara SzanieckiCaio Márcio SilveiraEcio de SallesEricson PiresFábio GoveiaFábio MaliniFrancisco GuimarãesGeo BrittoGerardo SilvaGiuseppe CoccoIvana BentesLeonora CorsiniMaria José BarbosaPatricia Fagundes DarosPedro Cláudio Cunca BocayuvaPeter Pál PelbartRodrigo GuéronRonald DuarteTatiana Roque

Conexões GlobaisAntonio Negri (Itália)Franco Ingrassia (Argentina)Javier Toret (Espanha)Luca Casarini (Itália)Marco Bascetta (Itália)Michael Hardt (Estados Unidos)Nicolás Sguiglia (Espanha)Raul Sanchez (Espanha)

Conselho EditorialAdriano PilattiAlexandre VoglerAna MonteiroAndré BasseresAndré UraniCharles FeitosaEmanuele LandiEugênio FonsecaFernando SantoroHermano VianaJoão Almeida SobrinhoJoel BirmanJô GondarKiko NetoLeonardo PalmaLorenzo MacagnoLuis AndradeLuiz Camillo OsórioMauro Sá Rego CostaSimone SampaioSuely Rolnik

Revisão dos TextosFábio GoveiaFábio MaliniLeonora Corsini

Tradução dos TextosGeo BrittoGerardo SilvaLeonora Corsini

Produção e DesignDo Lar Design/ Barbara Szaniecki

Pesquisa de Imagem Ronald DuarteCapa Ronald Duarte

Para o Ministério da Cultura, é de sumaimportância estimular e difundir o debatepúblico de todo e qualquer tema relevanteque corresponda à sua área de atuação.Tanto assim, que desenvolveu uma sériede ações destinadas a ampliar ao máximonão apenas o incentivo a esses debates,como o acesso ao seu conteúdo.A publicação dos debates é uma dasferramentas utilizadas para democratizarseu conteúdo. Por isso mesmo integrauma das linhas de política cultural levadasa cabo pelo Ministério.A Petrobras, maior empresa brasileira emaior patrocinadora das artes e da culturaem nosso país, apóia o Programa Culturae Pensamento 2007, dando continuidadeao projeto iniciado em 2006. Também destamaneira reforçamos e confirmamos nossaparceria com o Ministério da Cultura.A missão primordial da nossa empresa,desde que ela foi criada, há poucomais de meio século, é a de contribuirpara o desenvolvimento do Brasil.Fizemos e fazemos isso aprimorando cadavez mais nossos produtos, expandindonossas atividades para além das fronteirasbrasileiras, dedicando especial atenção àpesquisa de tecnologia de ponta.E também apoiando iniciativas como esta,porque, afinal, um país que não se enriqueceatravés do debate e da difusão de idéiasjamais será um país desenvolvido.

Patrocínio

Projeto patrocinado peloPrograma Cultura e Pensamento 2007

LEI DEINCENTIVOÀ CULTURA

Jornalista responsávelFábio Luiz Malini de Lima

Participaram deste número / TextosAlexandre do NascimentoAlexandre MendesAna Maria BonjourBarbara SzanieckiBruno CavaCarlo VercelloneCelso MedinaColetivo NeurogreenColetivo SituacionesDaniela ZanettiFábio GoveiaFábio MaliniFrancis SodréGuilherme BuenoGustavo GindreIvana BentesJavier BiardeauJosé Humberto BertarelliLeonora CorsiniMarcos DantasMilton MarquesRigoberto LanzRodrigo GuéronRomanoTomás Herreros Sala

Participaram deste número / ImagensAlê SoutoAlexandre VoglerAlex HamburgerAmauri Alves FilhoAndré SantangeloBeto RomaBob NCandinha BezerraCarlos BorgesClaudio CambraCristiana MirandaDavi RibeiroEdson BarrusEduardo CâmaraGabriela MonteiroHelio BrancoJoão LaetJorge DuarteJorge FonsecaLeonardo VidelaLia ChaiaMarcos ChavesPatricia GladysPedro VarelaRomanoRonald DuarteRoosivelt PinheiroSayonara PinheiroVicente de Mello

Realização

Co-realização

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Sumário 3 GLOBAL

brasil

G L O BA L

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

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Editorial

Trânsitos

Redes colaborativas e precariado produtivo Ivana Bentes

Falta de regulamentação ameaça TV digital Marcos Dantas

O comunismo das redes Fábio Malini

Viva a cópia! Ana Maria Bonjour e Leonora Corsini

Cenas da Periferia Daniela Zanetti

O debate sobre renda social garantida na Europa Carlo Vercellone

Espaço aberto ao leitor: Gustavo Gindre

Conexões Globais

A revolta dos jovens de Copenhagen Coletivo Neurogreen

Perguntar caminhando: governo Zapatero, governança e movimentos (parte1) Tomás Herreros Sala

Politizar a tristeza Coletivo Situaciones

Mercosul, sim. Império, não. Francis Sodré

Dossiê: o debate venezuelano sobre socialismo do século XXI

O que “socialismo” quer dizer Rigoberto Lanz

Por um novo socialismo no século XXI Javier Biardeau

Socialismo ético Celso Medina

Universidade Nômade

Prouni e o futuro-presente de milhares de brasileiros Fábio Goveia

De quem é o racismo? Alexandre do Nascimento

Camelô: a exceção singular Bruno Cava e Alexandre Mendes

Maquinações

Viver juntos? Convivências e conflitos contemporâneos Barbara Szaniecki

Da fome à vontade de comer: a mais-valia da vida Rodrigo Guéron

Arte culinária Milton Marques

O homem urbano e a preservação da cidade José Humberto Bertarelli

Os intelectuais silenciados Guilherme Bueno

Arte no ar Romano

ERRATA 1A pedido da autora do texto Estamira publicado na Global número 6, fazemos a seguinte correção:Estamira não foi estuprada quando trabalhava no lixão de Jardim Gramacho, isso aconteceu quando elavoltava para casa, tarde da noite, depois de um dia de trabalho como faxineira em uma firma da BaixadaFluminense. Muito traumatizada, acabou voltando para Gramacho e não por acaso ela sempre repeteque sua única sorte na vida foi ter conhecido o "Sr. Jardim Gramacho". Embora no filme de MarcosPrado não se trate da questão de quem seria o pai da terceira filha de Estamira (que nasceu depois desteepisódio de estupro) ficamos sabendo que esta filha foi entregue a adoção mas nunca perdeu o conta-to com sua mãe biológica.

ERRATA 2Na Global número 6foi esquecido o créditoda obra à esquerda:Coquetel,de Bernardo Damasceno,2001.

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GLOBAL 4 trânsitos

Nunca, na história da cultura, tivemostantas possibilidades de descentralizaçãodos meios de produção. Equipamentosdigitais, câmeras de vídeo, câmeras foto-gráficas, equipamentos para músicos,Djs, produtores de audiovisual, computa-dores pessoais, softwares livres, umaenorme capacidade em duplicação deCds, livros, música, que colocam emxeque o direito autoral tradicional efazem vislumbrar um capitalismo doexcedente e da possibilidade da livre cir-culação do conhecimento. Quais asbases “tecnológicas” dessas mudanças?

Segundo Michel Bauwens em “AEconomia Política da Produção entrePares” (The Political Economy of PeerProduction), à medida que os sistemassociais, econômicos e políticos se trans-formam em redes distribuídas, surgeuma nova dinâmica produtiva: o modelopeer to peer (P2P), ponto a ponto. Maisque uma nova tecnologia de comuni-cação, é o modelo de funcionamento de

novos processos sociais. E faz surgir umterceiro modo de produção, de autori-dade e de propriedade, visando aumen-tar a participação generalizada de atoresequipotenciais. Suas características maisimportantes, segundo Bauwens, são:produção de valor de uso através dacooperação livre entre produtores quetêm acesso ao capital distribuído; admin-istração pela comunidade de produtorese não por mecanismos de alocação domercado ou por uma hierarquia empre-sarial (“terceiro modo de autoridade”);disponibilizar livremente o valor de usosegundo um princípio de universalidade,através de novos regimes de pro-priedade comum (“modo de propriedadedistribuída ou entre pares”).

A infra-estrutura do P2P e das RedesSociais Colaborativas tem algumascondições básicas, propostas porBauwens, necessárias para facilitar aemergência de processos entre pares,que podemos resumir, como:

disponível emhttp://www.ctheory.net/articles.aspx?id=499

e em www.p2pfoundation.net/

0 MODELO PEER TO PEER

TRANSFORMOU A COOPERAÇÃO

NUMA ETAPA FUNDAMENTAL

DA PRODUÇÃO CULTURAL,TECNOLÓGICA E ECONÔMICA

NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA.

Ivana Bentes

Solitários / Na barra da rede,de Roosivelt Pinheiro, 2001-2002.

Foto de André Santangelo.

R E D E S C O L A B O R A T I V A S E

Page 7: Global Brasil 08

Trânsitos 5 GLOBAL

1) A existência de uma infra-estruturatecnológica instalada. Os movimentospara a inclusão digital, os sistemas tele-visivos de file-serving – TiVo – e as infra-estruturas alternativas de telecomuni-cação baseadas em meshworks são rep-resentativos desta tendência;2) A existência de sistemas alternativosde informação e comunicação que per-mitam a comunicação autônoma entreagentes cooperantes. A Web permite aprodução, a disseminação e o consumodo material escrito, assim como o pod-casting e o webcasting criam uma infra-estrutura alternativa de informação ecomunicação multimídia sem o intermé-dio dos meios de comunicação clássicos;3) A existência de uma infra-estrutura desoftware destinada à cooperação autôno-ma global. Um número crescente de ferra-mentas de colaboração que se inseremno software de redes sociais facilitam acriação de confiança e capital social;4) A existência de infra-estrutura legalque permita a criação de valor de uso eque o proteja da apropriação privada. AGeneral Public Licence (que proíbe aapropriação do código de software), aanáloga Open Source Initiative e certasversões da licença Creative Commonsdesempenham esta função;5) Por fim, o requisito cultural. ParaBauwens, assim comopara AntonioNegri,Maurizio Lazzarato e os teóricos do Capi-talismo Cognitivo, esse requisito apontapara a difusão da intelectualidade demassa, ou seja, a distribuição da inteli-gência humana, com as transformaçõesnas formas de sentir e ser (ontologia), nasformas de conhecer (epistemologia), e emvalores que contribuem para a criação deum “individualismo cooperativo”, umadas novas bases das redes colaborativas.

O caso brasileiro

A estas proposições de Bauwens pode-mos acrescentar a dobra brasileira. Comoenfrentar essa questão fugindo da crimi-nalização do produtor e do consumidorde bens culturais? Se um camelô vendeCD duplicado, DVD duplicado de música,de filme, se ele vende na porta do showde funk o que o garoto acabou de ouvire dançar e quer levar pra casa, será queo papel do Estado e das Corporações écriminalizar esse consumidor, criador,propagador, esses agentes de difusãovirótica de cultura em que se transfor-maram os camelôs, os adolescentes, asvideolocadoras, os cineclubes, os cole-tivos, os blogueiros, as comunidades detroca de softwares os produtores e con-sumidores de cultura locais e globais?

MAIS QUE UMA NOVA TECNOLOGIA DE

COMUNICAÇÃO, O P2P É MODELO DE

FUNCIONAMENTO DE NOVOS PROCESSOS

SOCIAIS. E FAZ SURGIR UM TERCEIRO

MODO DE PRODUÇÃO,DE AUTORIDADE E DE PROPRIEDADE.

Em vez de reprimir, como legalizar “a cul-tura popular digital” (Hermano Vianna)que está se formando? Que não é só aquestão da pirataria, é a oportunidade deum grupo e hip-hop ou de funk formarsua equipe de som, tocar na favela, nascomunidades, nos clubes, gravar suamúsica, queimar o seu CD e vender naporta do baile, formando uma rede pro-dutiva que dá trabalho, ocupação e senti-do para uma vida.

Hoje, um computador pessoal de baixocusto e o acesso à internet são bens cul-turais essenciais no capitalismo cognitivo,pois o trabalho se tornou comunicacionale relacional. O desafio é como univer-salizar e socializar esses meios de pro-dução de comunicação que são os meiosde produção de cultura? Como apenas10% da população brasileira possui com-putador em casa, então tem que ter bolsacultura, bolsa comunicação, bolsa infor-mática e colocar um computador funcio-nando em cada casa, centro, associaçãode moradores, quiosques públicos. Comu-nicação e cultura tornaram-se estratégi-cos para a sociedade civil. Nesse sentido,um dos programas mais significativos dogoverno Lula são os Pontos de Cultura,implementados pelo Ministério da Culturaem todo o país.

É preciso reconhecer a dimensão produ-tiva desses movimentos que não devemreceber bolsas com contrapartidas, masbolsas-investimento, pois eles própriosjá são a contrapartida (Giuseppe Cocco),são os agentes produtivos que estãotransformando realidades locais. Sãomodelos embrionários de transformaçãoradical das políticas públicas. São elesque produzem cultura a partir do local,vivem e moram em territórios abando-nados e revitalizados de dentro.

Também podemos falar de crise eextinção da tutela intelectual, econômicasobre os movimentos, que desconfiamdas relações assimétricas e do roubo decapital simbólico e de um valor e um bemaltamente valorado no contexto contem-porâneo: a produção de mundos. Dessaforma, é a universidade, é a mídia, é omarketing social – ou o que eu chamo de“a lavagem social” – que precisa das per-iferias para se legitimar socialmente, int-electualmente ou até economicamente.

Emergência da cultura da periferia

A ascensão e a visibilidade da produçãocultural vinda das periferias, subúrbios efavelas explicita esse novo valor. Umaprodução cultural deslocada que trazconsigo embriões de políticas públicaspotenciais, com a possibilidade de redis-tribuição de riqueza e de poder, consti-tuindo- se também como lugar de traba-lho vivo e não meramente reprodutivo.

Essa cultura das favelas e periferias(música, teatro, dança, literatura, cine-ma), surge como um discurso político“fora de lugar” e coloca em cena novosmediadores e produtores de cultura: rap-pers, funkeiros, b-boys, jovens atores,performers, favelados, desempregados,subempregados, produtores da chamadaeconomia informal, grupos e discursosque vêm revitalizando os territórios dapobreza e reconfigurando a cena culturalurbana. Transitam pela cidade e ascen-dem à mídia de forma muitas vezesambígua, podendo assumir esse lugar deum discurso político urgente e de reno-vação num capitalismo da informação.

A cultura das favelas e periferias tambémé um contraponto para a visão estereoti-pada das favelas como fábricas de mortee violência, aspecto recorrente na mídia eno cinema que revela apenas a imagemda favela-inferno. A complexidade eambigüidade da “dobra” brasileira nocapitalismo global vem mostrando queas fábricas de pobreza e violência sãotambém territórios e redes de criação.Essas vozes da periferia destituem ostradicionais mediadores da cultura e pas-sam de “objetos” a “sujeitos” do discur-so, concorrendo com os discursos dauniversidade e da mídia.

Nas favelas e periferias produziram-senovas relações de vizinhança, mutirões,redes de ajuda rizomáticas, cultura dasfestas, rituais religiosos, samba, funk,hip-hop, todo um capital cultural e afe-tivo forjado num ambiente de brutali-dade compartilhado por diferentes grupossociais. Desses espaços surgem práticasde cultura, estéticas e de redes políticas ede sociabilidade forjadas dentro dos gue-tos, mas conectadas aos fluxos globais(não é só o tráfico de drogas que con-segue se globalizar).

Grupos e territórios locais apontando saí-das possíveis, rompendo com o velho“nacional-popular” populista e paterna-lista ou idéias engessadas de “identidadenacional”, e surgindo como expressões

P R E C A R I A D O P R O D U T I V O

Page 8: Global Brasil 08

Instalação De fio e de Teia,de Sayonara Pinheiro.Fotografia de Candinha Bezerra.

Falta deGoverno Brasileiro

precisa, com urgência,

constituir o marco regulatório

das Comunicações,

pois sem isso a possibilidade

de diversificação de conteúdos

e democratização do setor

fica comprometido.

Marcos Dantas

de um gueto global, dos guetos-mundo.Como falamos hoje de cidades globais,com questões e problemas comuns. Onovo produtor de cultura das periferiasfaz parte de um precariado global: são osprodutores sem salário nem emprego.São os trabalhadores do imaterial.

Estado-Nação versusCidades da Cooperação

Surgem também novas alianças entre asfavelas e outros grupos isolados, comouma etapa no salto dos movimentos cul-turais locais e globais. Cidades da coo-peração que rivalizam com o EstadoNação, e funcionam à revelia dele.Movimentos que surgem da crise doEstado como provedor. Mas como darsuporte a essas redes sócioculturais?

Vivemos uma reestruturação produtiva.E na cultura isso é explícito. A cultura éhoje o lugar do trabalho informal (nãoassalariado). Movimentos que trabalhamcom informação, comunicação, arte,conhecimento e que não estão nasgrandes corporações. Uma radicalizaçãoda democracia estimulando a produti-vidade social.

Essa experiência da cultura a partir dosmovimentos sócioculturais surge comopossibilidade de renovação radical daspolíticas públicas. Não é só uma mu-dança da política para a cultura, masuma mudança da própria cultura política.São muitas iniciativas e podemos des-tacar, dentre outras, a economia e a cul-tura do funk e do hip-hop. São movi-mentos que produzem novas identi-dades e sentimento de pertencimento,de comunidade, para além da música, ecriam mundos e atividades produtivas:DJs, donos de equipamentos de som,donos de vans, organizadores de bailes,seguranças e rappers. Funkeiros quefazem até dez apresentações em bailesdiferentes numa única noite. Todo umciclo econômico em torno da cultura hip-hop e funk que explicita o primado dacultura na constituição da economia cog-nitiva do capitalismo contemporâneo.

AS VOZES DA PERIFERIA

DESTITUEM OS TRADICIONAIS

MEDIADORES DA CULTURA

E PASSAM DE “OBJETOS”A “SUJEITOS” DO DISCURSO,

CONCORRENDO COM OS DISCURSOS

DA UNIVERSIDADE E DA MÍDIA

Os movimentos culturais trabalham comuma idéia de educação não-formal comoporta de entrada para a educação formale para o trabalho vivo. Um movimentocomo o MST conseguiu construir escolase propor programas educativos commais rapidez que muitas prefeituras nointerior do país. A produção cultural daperiferia também não é formal. Éprecária, informal, veloz, e se dá emredes colaborativas, produzindo transfe-rência de capital simbólico e real sem ostradicionais mediadores culturais e depoder. Os movimentos sócioculturaispodem atuar em todas as pontas: comoprodutores de cultura, administradores ebeneficiários do resultado da sua pro-dução.

Se os atores culturais e sociais dispõemde recursos intelectuais e materiais paraassumirem esse protagonismo, qual opapel das políticas públicas? Apoiar,estimular e promover, formar lideranças,agentes de cultura, administradores decultura, de eventos culturais, dar ascondições mínimas para esse desen-volvimento.

Até o final o deste ano, o Brasil deveráestar assistindo à sua primeira trans-missão em televisão digital. Em termostécnicos, as operadoras de TV e aindústria de equipamentos e recep-tores não deverão encontrar muitasdificuldades para cumprir o prazo. Noentanto, se não souber se antecipar aproblemas político-jurídicos, oGoverno Lula poderá acabar enredan-do-se em querelas judiciais que podematé ameaçar o cumprimento dos pra-zos, em prejuízo dos investidores e dasociedade.

GLOBAL 6 trânsitos

Page 9: Global Brasil 08

A TVD situa-se em uma espécie de inter-seção técnica e comercial entre a antigaradiodifusão e as antigas telecomuni-cações. Por isto mesmo, junto com avoz sobre IP, vídeo-sob-demanda, inter-net e outros meios ou serviços digitaisde comunicação, provoca amplo debatepolítico-normativo em muitos países,dos quais já começam a resultar novosmarcos legais que substituem leis eregras estabelecidas desde as primeirasdécadas do século XX.A radiodifusão é definida como umempreendimento de natureza unidire-cional, ponto-a-massa, cujo objeto é atransmissão de conteúdos (notícias,entretenimento, cultura etc.). As teleco-municações são bidirecionais, ponto-a-ponto e não se ocupam da natureza dosconteúdos transmitidos. A TVD poderáser bidirecional ou multidirecional(deixando de ser radiodifusão), tantoquanto a telefonia digitalizada já vemse tornando, ela também, veiculadorade conteúdos, a exemplo do que acon-tece na telefonia celular. Os mundos denegócios que se apoiavam nas dis-tinções e barreiras (inclusive normati-vas) construídas em torno desses con-ceitos, tendem a se mover uns sobre osoutros. Dentro de alguns anos, como jápodemos perceber na publicidade atualde algumas operadoras de “telecom”,todos os conglomerados de comuni-cações oferecerão, num mesmo“pacote”, telefonia, cultura, infor-mações. Com certeza, neste processo,desaparecerão algumas das grandesempresas de hoje, outras vão se con-solidar, talvez até surja algum novogrande “império” nacional ou global decomunicações convergentes.As cartas já estão na mesa. Por isto, senão estiver bem calçada normativa-mente, a TVD brasileira poderá encer-rar suas transmissões nas salas de umtribunal qualquer. Diante dos interessesem jogo e do vazio normativo, não fal-tarão bons argumentos jurídicos paradefender qualquer causa. E não faltarãoprocuradores e juízes ávidos para desli-gar a TVD ao toque de uma liminar.

As controvérsias da TV Digital

A primeira controvérsia já está anunci-ada. Trata-se da “consignação” decanais adicionais aos atuais detentoresde concessão de TV terrestre. Quando oGoverno Lula definiu, no decreto4.901/2003, a sua política para oSistema Brasileiro de Televisão Digital(SBTVD), deixou claro que, entre seus

objetivos, estava o estímulo àevolução das “atuais exploradoras”(Artº 1º, inciso VI), inclusive possibili-tando “o uso de faixa adicional deradiofreqüência, observada a legis-lação específica” (Artº 1º, inciso V).Assim, em termos políticos, o Governofoi coerente ao estabelecer, no decreto5.820/2006, que “será consignado, àsconcessionárias e autorizadas deserviço de radiodifusão de sons e ima-gens, para cada canal outorgado, canalde radiofreqüências com largura debanda de seis megahertz, a fim de per-mitir a transição para a tecnologia di-gital sem interrupção da transmissãode sinais analógicos” (Artº 7º).O problema é que tal coerência políticapode estar em conflito com a falta de“legislação específica”. Não se encon-tra, na lei brasileira, nada que permitaa uma autoridade conceder faixas doespectro em “consignação”. Ao con-trário, depois da lei 8.666, o Governoestá obrigado a pôr em leilão qualquerrecurso ou bem público que queiraoferecer à exploração privada – e oespectro é um recurso público. Inte-resses contrariados já ameaçam buscar,na Justiça,melhor esclarecer esta questão.Não será o único problema. Nada sedefiniu ainda sobre a multiprogra-mação. Caso uma concessionáriaentenda que fará um bom negóciomultiplicando o seu canal por quatroou até oito (que a tecnologia H.264 per-mite), terá obtido, de graça, três (ousete) canais a mais? Em princípio,sobretudo do ponto de vista do tele-spectador, a multiprogramação podevir a ser um atrativo a mais para levá-lo a migrar para a TVD, na medida emque ofereça maiores alternativas deinformação e entretenimento. Doponto de vista da emissora poderá ser,ou não, uma boa alternativa de negó-cios, dependendo dos investimentosnecessários e das fontes de receitasdisponíveis. Mas no campo normativo,suscitará, mais uma vez, dúvidas quan-to à legalidade da utilização de umrecurso público que, podendo ser tec-nicamente melhor distribuido paramuitos, terá milagrosamente se multi-plicado nas mãos de um só.

Mercado desregulamentado

Estes e outros problemas, no fundo,podem ser vistos por diferentes óti-cas, dependendo do interesse dosinvestidores e da sociedade. Em-presas que hoje identificamos como

de “telecomunicações” pressionarãopela multiplicação de canais, pela flex-ibilização da verticalizada cadeia pro-dutiva da atual TV aberta e até pelaconcessão, aos espectadores, demaiores poderes de escolha interativa.Aquelas que ainda definimos como de“radiodifusão” defenderão as vanta-gens da manutenção, no essencial, deum modelo de negócios e de rela-cionamento com o público que já sedemonstrou comprovadamente exi-toso. Mas, e a “multidão”?Quaisquer que sejam as opçõesempresariais e sociais, a introdução daTVD enfrentará problemas judiciaisjusto porque, como já foi dito, a faltade clareza normativa poderá servir àbarganha dos interesses em jogo.Como o Governo Lula preferiu (apósum primeiro ano em que parecia ir emoutra direção) tomar uma decisãosobre a questão tecnológica, nadaavançando na construção do neces-sário marco regulatório, o debate foiempurrado para agora, em 2007.Num ambiente onde grupos pode-rosos defenderão seus respectivosinteresses, caberá ao Governo Luladefinir um projeto estratégico, acimados interesses segmentados, paraservir de base à costura dos acordosque permitam confluir as divergênciaspara uma nova modelagem normativadas nossas comunicações. Por umlado estão os que pressionarão a favorde um regime democrático e competi-tivo. Por outro lado, o Governo nãopoderá ignorar o acúmulo de capital econhecimento que já alcançamosneste setor, acúmulo este reconhecidointernacionalmente. O avanço dasnossas comunicações não pode serfeito em prejuízo das organizaçõesnacionais, da produção brasileira, dosempregos que sustentam e da pre-sença marcante da nossa indústria cul-tural no mercado externo. Mas nãohaverá avanço se não forem criadascondições para a entrada de novosprodutores e para uma nova divisãode trabalho na cadeia produtiva.Se o Governo Lula entender isto e tra-balhar para obter consensos sobrepontos tão controversos, chegará aofinal de 2007 com o plano regulatóriodefinido e poderá entrar definitiva-mente para a história como o granderesponsável, menos pela entrada daTVD no Brasil, e mais pela construçãode um marco institucional que, salvopelo arremedo da LGT, permaneciasem real alteração desde 1962.

regulamentação ameaça TV digital

Trânsitos 7 GLOBAL

Page 10: Global Brasil 08

GLOBAL 8 trânsitos

O COMUNISMO DAS REDES

Ao perguntar a um jovem músico, inte-grante da cena punk-rock, quantas ban-das desse estilo havia em Vitória, noEspírito Santo, no começo da década de90, ele me respondeu de bate pronto:“Umas 15!”. De modo similar à reali-dade de todo país, as bandas enfren-tavam diversas dificuldades: de acessoaos estúdios de gravação, de acesso àsinformações detalhadas de referências(álbuns musicais ou ainda visual dosartistas). Hoje, a realidade mudou. Aoquestionar se sabia o número de bandasexistentes atualmente, o músico medisse: “Nossa! Umas 300. Hoje é muitobarato fazer uma banda. Qualquer ado-lescente tem uma”, me disse.

A mudança dessa realidade é explicada,principalmente, pela ampliação da demo-cratização dos instrumentos de pro-dução (como o computador, videocam,câmeras fotográficas digitais, celulares,a internet etc.), que faz disparar a quan-tidade de conteúdos e faz a sociedadeexigir espaços comuns para abrigar suascriações, para que mais gente possaconhecê-las. Aliado a isso, há umasegunda força, a redução dos custos doconsumo através da democratização dadistribuição, graças à popularização daInternet e das redes do “mercado infor-mal”. Hoje, toda banda tem seu fotolog,site institucional, site no MySpace, ondesão disponibilizadas informações e atésuas músicas para que o público possafazer download. Há ainda o fato de quehá atualmente uma ligação estreita entreoferta e demanda de cultura. As pessoas

são agora capazes de formar preferên-cias e opiniões através espaços própriosde formação de gosto e opinião, comolistas de discussão, blogs ou ainda sitesde relacionamentos, que reproduzem nainternet o ambiente de troca que ocorreem festivais e circuitos independentesde cultura.

Novo sujeito político: as redes sociais

O que acontece é que os atuais movi-mentos de cultura e comunicação sãoprodutos de uma “net culture”. Sua pro-fusão criativa é muito explicada pela popu-larização da Internet e do computador.Na Net, a cultura teria encontrado umambiente comum de exibição das cria-ções, que já estavam virando mofo porconta da escassez de canais de difusãocultural. Outra coisa: toda essa riquezafica a um clique do usuário, o que facilitaa organização de uma rede de contatossociais em torno da produção de umadada manifestação cultural. A necessi-dade de troca e de proximidade – muitotípica do ethos da Net – faz acelerarnovas dinâmicas culturais; e inovaçõesestéticas logo se alastram por conta deuma cultura que se faz em tempo real,num espiral incrível de relações inter-subjetivas. Na Net, não há uma Grandeou uma Alta Cultura, mas uma Multi-Cultura, impossível de cartografar e dereceber uma taxonomia. No final dascontas, a cultura na Net é resultado deum vasto conjunto de redes sociais for-madas por coletivos de jovens talentosque sobrevivem no submundo do mer-cado, recebendo por tarefa e por perfor-mance, sem qualquer proteção social equase sempre para além de políticas cul-turais do mercado privado e público.

A forma mais rápida

de democratização

da comunicação

é financiar mídias

que exibam a produção

cultural das redes sociais

formadas pelo precariado

da comunicação,

caso contrário,

vamos ficar reduzidos

a forma-Estado

ou a forma-Globo,

que são a mesma coisa:

submissão

a um poder único.

Fábio Malini

Entre Sala,de Patricia Gladys

2005.

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Trânsitos 9 GLOBAL

da imprensa viam-se às voltas com ummonstro: os leitores inundavam a seçãode comentários, gerando uma correntede opinião fortíssima, a ponto de AlbertoDines, um dos mais importantes jorna-listas brasileiros, chamar o leitor depatrulheiro. Em média, cada notícia rece-bia mais de 200 comentários. O comu-nismo das redes forçou que o novo go-verno Lula inserisse a redução dasalíquotas de impostos na comercia-lização do computador no Plano deAceleração do Crescimento. Isso, conju-gado à queda do dólar, faz com que o PCcomece a ser objeto de propaganda dasCasas Bahia. Este ano, o micro será obem eletrônico mais vendido depois docelular, ultrapassando a televisão.

Investir na forma-Rede: para alémda forma-Estado e da forma-Globo

O que estamos percebendo, nesse iníciode século, é uma grande pressão socialpara que um circuitomidiáticomais abran-gente seja estruturado por nossas institui-ções democráticas. Temos agora a possi-bilidade de estruturar um mercado econô-mico, um direito, um sistema de mídias eum espaço de circulação de comunicaçãoe cultura, a partir da produção, de quali-dade, das redes sociais. Essa multidão,falo em termos conceituais, porque trata-se agora de um agente que se interligaem rede e que constitui, a partir de seuspróprios desejos, um comum. É o comu-nismo das redes. Essas singularidadesem rede estão constituindo um novoespaço político de atuação, algo que,aliás, poucos políticos perceberam. Cine-astas, videomakers, dramaturgos, atores,dançarinos, programadores de software,músicos, artistas plásticos, designers, jor-nalistas, publicitários, editores, enfim,toda uma gama de produtores culturais,são todos periféricos na estrutura, mas

centrais na produção de novas verdades,pensamentos, estilos ou linguagens. Adimensão política nova é trazê-los paradentro da Democracia. Ser a base dequalquer política democrática para quenão sejam somente capturados paracompor subjetividades impostas nasmercadorias do capitalismo contem-porâneo. E para trazê-los para dentro daDemocracia é necessário começar a con-jugar um grande esforço no sentido decriar alternativas à forma-Estado. Quandofalo forma-Estado não estou contra asinstituições democráticas, ao contrário,estou me referindo ao modus operandido Direito que as fazem funcionar atravésdas múltiplas formas do burocratismo.

Na área da comunicação e da cultura,temos uma Forma-Estado bastante rígida,que limita a capacidade de comunicar dasociedade. Temos, por exemplo, leis quepermitem a comunicação comunitária,mas desde que não constituam um mer-cado em torno delas. Elas têm um curtaabrangência no espectro eletrônico euma incapacidade de movimentar recur-sos que façam que seus produtoresvivam dignamente. Temos no Brasil umprocesso de concessão de radiodifusãoescandalosa, com mais de 70 marcosregulatórios do setor, o que faz com queos detentores de concessão possamfazer o que bem entendem. É a forma-Globo criada pela forma-Estado. Paraque possamos ultrapassar esse impasse,a solução é incentivar o comunismo dasredes – apoiar as iniciativas e movimen-tos que surjam para produzir conteúdosem rede. O debate sobre a televisãopública e sobre a universalização doacesso às redes virtuais só vem reforçara nova bandeira política que deve seconstituir. Sem apoiar essas redes, aspolíticas de comunicação sempre vãocheirar o aroma do Jardim Botânico.

As redes sociais são, portanto, o novosujeito político contemporâneo, ummonstro que acaba por curto-circuitar opensamento e a ação das políticas cultu-rais, à medida que produzir redes sociaisconfunde-se hoje com a própria pro-dução da Internet. O que abastece osquase 70 milhões de blogs, os 40 milvídeos/dia no Youtube, as milhares demúsica do MySpace ou as milhares decomunidades no Orkut é a produção cul-tural que acontece fora da Internet, masque acaba por produzir a própriaInternet. Talvez alguém formado nosbancos da Universidade Mackenzie ouda ideologia ortodoxa marxista não con-siga entender como milhares de pes-soas, em um baile funk ou num show depunk rock, cantam desesperadamentemúsicas que não escutam nas rádios demassa. Mas acontece que deliram comseus “ídolos de micro-hit” porque têmacesso a novos e interativos canais dedistribuição da cultura (das redes p2paos vendedores ambulantes de cd´s). Issofaz com que a instalação nas cidades deinfra-estrutura de acesso à rede comampla banda de transmissão (de mais de1GB/s) seja um passo importante paraampliar e constituir novos canais de dis-tribuição de cultura e conhecimento.

Essas redes fizeram nascer o paradigmado micro-hit. Em vez de estrela solitária,surpreendemo-nos cada vez mais com umenxame demicro-estrelas, que usama redecomo espaço de exposição das suas cria-ções, construindo novas redes sociais nopróprio ambiente virtual em torno dessascriações. Formam ummercado que maisse assemelha a um comunismo dasredes, ao fazer com que toda riquezaseja posta em circulação, e não extraídana forma de acumulação e poupança.

As redes virtuais são, portanto, o própriosocial em estado bruto. E não devemoster medo de investir nelas. O papel dasredes sociais – como sinônimo de Internet– nas últimas eleições no Brasil foi tãogrande, que os políticos só agora se dãoconta. Durante a corrida eleitoral, foramgerados cerca de 600 postagens por diana blogosfera. Mais de 1 milhão de pes-soas no Orkut participou diretamente dedebates sobre política, fazendo com queos marketeiros de Lula produzissem, àspressas, o famoso vídeo publicado noYoutube onde Lula diz a célebre frase:“Alô, Companheiros do Orkut”. Só ovídeo em que Geraldo Alckmin aparecetratando mal uma equipe de jornalistasque o arguiam sobre a violência em SãoPaulo foi visto, na época, por mais de400 mil pessoas. Os principais colunistas

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GLOBAL 10 trânsitos

Será que alguém deixa de comprar livrosporque faz xérox? Apesar dos mais fer-renhos defensores da lógica dos direitosautorais e da propriedade intelectualacreditarem que sim, não é isto que acon-tece. A entrada em massa da internet navida das pessoas produziu uma revoluçãoao criar a possibilidade de produzir conhe-cimento e trocar informações livremente ede maneira horizontal, passando o com-putador a ser um instrumento de criação epondo fim à idéia do consumo alienado.

Autoria, criação e obra

A abertura e a difusão de conhecimentoproporcionada por essa revolução digitalmostram-se fundamentais para a circu-lação de bens culturais – incluindo livros,discos, obras de arte. A desmateriali-zação da produção de bens culturais éum processo que está “chacoalhando” ovelho paradigma da propriedade intelec-tual e, ao mesmo tempo, apontandonovas possibilidades de criação e distri-buição, além de reconfigurar a próprianoção de autoria – tanto do ponto devista jurídico quanto do ponto de vista dacriação.

Temer que, ao copiar músicas e Cds, osmúsicos e compositores vão morrer defome por não terem meios de controlar ereceber direitos autorais constitui, naverdade, uma falsa questão. O problemaé outro. Os mais atingidos são as grandesgravadoras que, durante anos, detive-ram monopólios e direitos de exclusi-vidade em todo o processo de produçãoe agora terão que encontrar outras formasde lucrar com a música. O mesmopodemos dizer das editoras com seusmonopólios sobre publicações, autores,edições e seleções e o controle da dis-tribuição de livros. A indústria do entre-tenimento, com seus artifícios merca-dológicos e contratuais, trava uma inces-sante batalha contra as possibilidadesde produção aberta. E a principal armatem sido difundir e reforçar o conceitomercadológico de propriedade intelec-tual. A música, os livros, os bens culturais,são tratados como mercadoria parapoderem ser capturados e transforma-dos em produto de especulação e explo-ração industrial.

Qual o interesse de um artista e qual aimportância de uma obra? Propriedade

significa algo para usufruto próprio,vedado ao detentor da coisa. O proprie-tário de um celular não quer que este sejautilizado oumanipulado por ninguém alémdele. Para o artista, ao contrário, a maiorrealização consiste na maior circulação eno conhecimento de seu trabalho. Umbem material, como um carro, deve serprotegido. Mas a arte não pode ficarpresa, encarcerada, alienada ao grandepúblico; deve, ao contrário, ser solta, di-fusa no mundo. A arte monopolizada é aarte do domínio, que empacota e vendeseguindo a cartilha do lucro. Arte livre é aarte de todos, aberta para a crítica, abertapara a intervenção e à apreciação univer-sal.

Esta discussão foi em grande medidaimpulsionada pelos debates gerados apartir do movimento de software livre,que introduziu, com a abertura dos códi-gos fonte, a possibilidade de produçãoaberta e compartilhada. Por outro lado, aprodução cada vez mais difusa, de benscada vez mais intangíveis, faz com que osdispositivos de controle e ordenaçãosobre a economia dos bens culturais te-nham que ser reavaliados e reconfigura-

Uma das bases da nova economia

cognitiva e imaterial é a idéia de

que consumir é também produzir:

assim não há mais como separar

a produção do consumo.

VIVA A CÓPIA!Ana Maria Bonjour e Leonora Corsini

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Trânsitos 11 GLOBAL

dos; novas formas de remunerar os cria-dores e todos os que contribuem para oprocesso de criação – de compositores aintérpretes, passando pelas gravadoras,agentes e distribuidores – precisam serencontradas. Quanto mais conhecido otrabalho de um artista, mais oportu-nidade este terá de ser convidado parapalestras, para fazer shows, participar depublicações etc. Trata-se da descentra-lização da produção e de maior liberdadepara o artista, que tem a possibilidadeagora de gerir sua criação, sem inter-mediários. E, mais, estamos falando dademocratização da informação. A arteabandonando o conceito enrugado deartigo de luxo para, finalmente, enfiar-seno parangolé de Hélio Oiticica e interagirnos corpos diversos, incorporando eexprimindo o desejo da multidão.

A cópia [e o consumo] são produtivos

Os novos elementos que emergiram comforça total neste cenário de produçãodifusa de música, arte e outros bensintangíveis – desejo de liberdade e a“comunalidade” do conhecimento – nãopodem ser deixados de lado. Não se jus-tifica mais que a prática de copiar ospróprios CDs, baixando músicas emMP3, seja vista como criminosa, ilícita(pirataria é crime!, berra a propagandana TV). Uma das bases desta nova eco-nomia cognitiva e imaterial é a idéia deque consumir é também produzir: assimnão há mais como separar a produção doconsumo. Copiar não é crime. Crime éimpedir o acesso, restringir a liberdade,

montar todo um sistema de controle apartir da lógica proprietária que se querfazer aplicar sobre a criação e a invenção,que não têm limites, que são sempreexcesso e, justamente por isso, não podemreceber tratamento de lógica proprietária.

O monopólio sobre a cópia (copyright)está longe de proteger o trabalho doautor, pois restringe a divulgação de suaobra e o eventual reconhecimento doseu talento. A história comprova a dissi-mulação do domínio sobre a informa-ção: inventada a imprensa, no séculoXIV, os detentores do poder, temerososde perder a soberania em razão do grandeacesso à informação, estabeleceram ummecanismo de controle através de acor-do com os donos dos meios de produção.Concederam aos produtores de livros omonopólio sobre as edições que publi-cavam, ganhando com isso o controlesobre todo o conteúdo. A idéia, clara-mente, não era defender os autores, maspura e simplesmente os interesses dossoberanos e, conseqüentemente, os lucrosdos agentes de produção. A quem inte-ressa hoje em dia a defesa do copyright?

Ao ouvir e selecionarmúsicas, queimandoCDs, DVDs, filmes e vídeos livres, os con-sumidores estão sendo absolutamenteprodutivos, inventando e deixandoinventar em cima do que já está circu-lando. Estão construindo uma novaética, que subverte a idéia do direito doautor: no lugar de “propriedade” intelec-tual, a proposta é “generosidade” inte-lectual, cujo princípio básico é dar mais

liberdade ao outro, ampliando ao infinitoa própria liberdade. Proposta que é com-partilhada por praticamente todos osmúsicos e produtores que despontam nocenário alternativo da criação musical eartística como DJ Dolores, Mangue Beat,H.D. Mabuse, Re:combo, Overmundo,Mombojó, Devotos, Mundo Livre S/A etc.

Trata-se de buscar novas formas degarantir a renda com a criação artísticaque não passe pelo “miserê” que rece-bem músicos, autores e compositoresdas agências fiscalizadoras de direitosautorais ou da captura total da indústriado entretenimento. Multiplicar shows eperformances, criar mecanismos queliberem da cobrança de direitos autoraispara a livre distribuição ou que permitamsamples e overdubbings, como fazemCreative Commons e Re:combo comsuas licenças especiais, são algumas saí-das. O copyleft, por exemplo, vem ga-nhando cada dia mais adeptos.

Bom mesmo vai ser o dia em que o aces-so à internet estiver totalmente democra-tizado. Assim, todos poderão acessar pro-gramas peer-to-peer para baixar e trocararquivos demúsica, produzir seus própriosCDs, difundir conhecimento, multiplicarinformações e gostos. Melhor ainda quan-do copiar músicas deixar de ser visto comoatividade criminosa ou ilegal. Porque, sea liberdade de criação está diretamenterelacionada ao estímulo à criatividade e àinventividade, e se copiar também écriar, a pirataria pode ser sim produtiva, epode ser uma forma de resistência.

Confere com o original, de Gabriela Monteiro, 2006. Foto de Beto Roma.

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GLOBAL 12 trânsitos

Só a Arte expulsa demônios das pessoas, de Davi Ribeiro, 2005.

Ampliação da produção

audiovisual das favelas

faz curto-circuitar

a visão antropológica

da periferia como “falta”

para construir um

imaginário de um local

do excesso estético

Daniela Zanetti

Cenas da periferia

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Trânsitos 13 GLOBAL

No livro Cineastas e imagens do povo,Jean-Claude Bernardet, em análise dofilme Greve afirma: “O filme não surgede dentro da greve, de dentro do meiooperário, mas é um filme sobre a greve,feito por um autor que se aproxima dosoperários, mas não coincide com eles”.Essa reflexão ressalta um aspecto nãosomente “norteador” para a discussãoque se segue, mas também elementarquando hoje discutimos a relação entreperiferia e meios de comunicação. Quemé este “outro” filmado, retratado, cap-tado no registro audiovisual que hoje éidentificado com a noção de “periferia”?O fato é que dispomos hoje de umconjunto de produtos comunicacionaissobre a periferia – e feitos pela própriaperiferia – que coloca em confrontoconceitos tradicionais da produçãomediática, por meio de abordagens queresultam de um deslocamento do sujeito-produtor. Este “coincide” com seupróprio objeto.

Os significados de Periferia

De um lado, encontramos iniciativas devalorização da “cultura de periferia”através de projetos de inclusão socialpor meio da comunicação e da arte,abrangendo não somente bairros nasgrandes cidades, mas também peque-nos municípios e regiões distantes doscentros produtivos do país. De outrolado, atuam os meios de comunicaçãohegemônicos, a grande mídia, quetrazem matérias e programas que ten-tam “mostrar” a realidade (positiva ounegativa) das periferias.No que se refere à produção inde-pendente – derivada de projetos sociaisou iniciativas públicas –, o audiovisualtem sido utilizado como instrumento decapacitação profissional, de expressãoartística ou simplesmente de debate ereflexão. Essa é uma prática que tem seexpandido através de diversos projetosque visam principalmente à inclusãosocial das populações de baixa renda,moradores de áreas de periferia e fave-las. Esse investimento na linguagemaudiovisual resulta no aumento de umtipo específico de produção simbólica esuas respectivas formas narrativas.O programa Pontos de Cultura doMinistério da Cultura, por exemplo, tema proposta de ampliar a produção e cir-culação de produtos culturais indepen-dentes, visando públicos que dificil-mente teriam acesso a meios formaisde produção e difusão, formação espe-cífica e oportunidades de atuação noscampos da comunicação e das artes. Háainda o projeto Revelando os Brasis, da

Secretaria do Audiovisual do MinC, queincentiva a produção de vídeos pormoradores de cidades com até 20 milhabitantes. Muitos desses lugaresprovavelmente nem possuem uma salade cinema. Novamente, temos aqui“produtos” que trazem vozes distintasdaqueles que normalmente “hegemo-nizam” a produção mediática – emboraaqueles não sejam totalmente desvincu-lados desta última.Há ainda organizações atuando com oaudiovisual em regiões de periferia efavelas, como o Cine Favela (SP), MaréAlta (SP), Kinoforum (SP), Nós do Morro(RJ), Nós do Cinema (RJ), AssociaçãoImagem Comunitária da Rede Jovem deCidadania (MG) ou ainda a Rede Cipó(BA). Projetos sociais como esses vêmrealizando oficinas de audiovisual emperiferias (ou regiões de alto índice devulnerabilidade social), resultando emproduções independentes, muitas dasquais exibidas em festivais e mostras,dentro e fora do país. Surgem, a partirdeles, (novos) sujeitos sociais capazesde ocupar (e criar) espaços de produçãosimbólica, além de interagir de formacrítica com os produtos mediáticoshegemônicos.Nesse contexto, seria possível delimitarum padrão em torno das representaçõesidentitárias de obras audiovisuais desen-volvidas pela periferia? Essas narrativasseguem padrões estéticos e discursivos?Conseguem construir uma identidadecultural particular a partir de uma reali-dade que se encontra “fora” do “centro”da produção mediática? Que tipos dedeslocamentos do imaginário resultamdesse processo?Os questionamentos são muitos.Podemos encarar estas produções comoparte integrante da cultura mediática apartir de uma perspectiva mais ampla:que inclua os efeitos diretos ou indiretosdesse novo tipo de “apropriação” darealidade e de problematização dasquestões sociais por grupos normal-mente excluídos dos processos comuni-cacionais hegemônicos. Modos de apro-priação e de problematização que játrazem indícios de identidade

Na comunicação, por eles mesmos

Durante a primeira metade do séculoXX, o samba deixa de ser relegado aosmorros, aos seus grupos originais, e étrazido também para o cotidiano dasclasses média e alta, entrando para omercado da música popular brasileira.Acompanhamos atualmente um movi-mento similar, se considerarmos aabsorção de manifestações culturais da

periferia pela cultura de massa. Com amúsica isso parece mais evidente: o funke o hip-hop são exemplos disso. Na lite-ratura também acontece movimentosemelhante, com a atual geração de“escritores marginais”. Um exemplo éFerréz, autor de Manual Prático do Ódio,que também envereda por outros proje-tos artísticos. O cinema nacional tem uti-lizado temas, linguagens e estéticas rela-tivas à periferia, que são inseridas nomercado ou associados ao mainstreamde forma “alternativa”, porém, nem sem-pre a partir do ponto de vista do “outro”retratado. Com certeza, muitas produ-ções brasileiras trabalharam com repre-sentações da pobreza, do oprimido. Noentanto, nos últimos anos as tecnologiasdigitais têm contribuído para um bara-teamento e ampliação do acesso aosprocessos de produção e difusão audio-visual, fundamental para o surgimentode sujeitos-produtores mais autônomos,dissociados (pelo menos a princípio) davoz dominante da TV, por exemplo.Um desses produtos independentesfeitos “de dentro da periferia” causougrande impacto ao ser exibido na TVaberta, em 2006. Trata-se do documen-tário “Falcão, meninos do tráfico” do rap-per MV Bill e do produtor Celso Athayde,levado ao ar no programa Fantástico, daTV Globo. O documentário, um projetoligado à Central Única das Favelas (Cufa),iniciado em 1998, aborda o universo dosmeninos que trabalham no tráfico dedrogas em diversas partes do país.Esse documentário é um ponto de inter-seção evidente – e ambíguo – entreesses dois caminhos traçados em tornodo tema periferia: de um lado, a pro-dução independente, à parte dos proces-sos comunicacionais dominantes; e deoutro, a mídia hegemônica, ambas ten-tando, cada uma à sua maneira, pôr emevidência o discurso do “outro”, do“excluído”. A princípio, são outros parâ-metros de produção de sentido queestão em jogo, pois, como afirmam ospróprios idealizadores do documentário,o objetivo foi “mostrar, sem cortes ouedições espetaculares, o lado humanodestes jovens”.Diante de tais evidências, que demons-tram uma midiatização do debate emtorno de sujeitos sociais normalmenterelegados a um papel de “excluídos”, eda profusão de projetos audiovisuais“periféricos” por eles elaborados (mesmoque sob a orientação de profissionais),não há como negar que ocorram desco-lamentos do imaginário social, capazesmesmo de reforçar disputas por espaçostanto no plano econômico, quanto noplano estético.

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GLOBAL 14 trânsitos

Remunerar a produção da vida

O segundo fundamento de nossa concepção da RSG consisteem considerá-la como uma renda primária. Um salário social liga-do a uma contribuição produtiva que hoje não é nem reconhe-cida, nem remunerada. Com efeito, contrariamente às aborda-gens em termos de “fim do trabalho”, a crise atual da normafordista do emprego está longe de significar uma crise do traba-lho como fonte principal da produção da riqueza. O capitalismocognitivo não apenas é uma economia intensiva no uso do saber,mas também uma economia intensiva em trabalho, embora essadimensão nova do trabalho escape à sua mensuração oficial.

Essa transformação encontra sua principal origem na maneirapela qual o desenvolvimento de uma intelectualidade difusa ea dimensão cognitiva do trabalho conduziram à afirmação deuma nova primazia dos saberes vivos, mobilizados pelo traba-lho. Disso deriva também a crise “do regime temporal”, que,na era fordista, opunha rigidamente o tempo de trabalho dire-to e os outros tempos sociais dedicados à reprodução da forçade trabalho. Duas tendências mostram o impacto e o desafiocolocados por essa transformação. A primeira diz que a partede capital dito intangível (educação, formação, saúde) e incor-porado nos homens (o chamado “capital humano”) ultrapassaa parte do capital material no estoque de capital e constitui oprincipal fator do crescimento. Em seguida, há outro fato queos economistas omitem sistematicamente: os motores maisdinâmicos (os motores) do novo capitalismo do conhecimentosão os dos serviços coletivos, que antes eram proporcionadospelo Wefare State.

A segunda evolução concerne à passagem de uma divisãotaylorista a uma divisão cognitiva do trabalho, fundada sobre acriatividade e a capacidade de aprendizagem dos trabalhadorespor meio da troca relacional de conhecimento e saberes. Nessaperspectiva, o tempo de trabalho imediato dedicado à pro-dução no horário formal não é mais do que uma fração dotempo social de produção. Por sua natureza, o trabalho cogni-tivo se apresenta como uma combinação complexa de umaatividade de reflexão, comunicação e produção de saber.

Conseqüentemente, os conflitos tradicionais entre trabalho enão-trabalho se atenuam numa dinâmica contraditória. Por umlado, o tempo livre não se reduz mais à mera função catárticade reprodução do potencial energético da força de trabalho.Por outro, cria-se um conflito e uma tensão crescente entre essatendência à autonomia do trabalho e a tentativa por parte docapital de sujeitar o conjunto dos tempos sociais à lógica hete-rônoma da valorização do capital. Essa tensão contribui paraexplicar a desestabilização dos tradicionais termos da trocacapital-trabalho assalariado. No capitalismo industrial, osalário era a contrapartida da compra por parte do capital deuma fração bem determinada do tempo humano. O taylorismo,por meio da expropriação dos saberes operários e da rígida

A necessidade de políticas de Renda Mínima ampara-se na constatação de que otrabalho hoje é produtivo não somente quando produz lucro para outrem, mas porqueé capaz de gerar inovações e novos valores de uso fora de uma relação assalariada.

Carlo Vercellone

O DEBATE SOBRE RENDA SOCIAL GARANTIDA NA EUROPA

A proposta de uma Renda Social Garantida (RSG) de um nívelsubstancial e independente do emprego, na Europa, elaboradano âmbito da hipótese do Capitalismo Cognitivo, é muitasvezes recusada com base em duas criticas. A primeira dizrespeito ao caráter eticamente inaceitável de uma desconexãoda renda com relação ao trabalho assalariado. Essa críticamuitas vezes está por trás das posições que opõem à reivindi-cação de uma RSG a proposta de uma redução uniforme dotempo de trabalho dentro de uma perspectiva que expressauma nostalgia pelo modelo fordista de pleno emprego. Asegunda critica consiste em dizer que a reivindicação de umaRSG seria igual às propostas de implementação de um basicincome (Renda Mínima) justificado a partir de uma abordagemem termos de “fim do trabalho” à la Rifkin. Nessa interpre-tação, a justificação principal de um basic income consistiria nofato de que a revolução informática transformaria o empregoem uma mercadoria escassa e, mais ainda, privaria o trabalhode seu papel central na produção de riqueza.

Contudo, são criticas embasadas em interpretações “mal-dosas” da elaboração teórica que sustenta a proposta da rendasocial garantida (RSG). O objetivo desse artigo é de mostrar ainconsistência dessas criticas e esclarecer esses mal-entendi-dos, lembrando os dois fundamentos essenciais da propostade RSG.

O primeiro fundamento diz respeito ao papel do programa deRSG incondicional com relação à condição de força de trabalhoem uma economia capitalista. O desemprego e a precariedadesão aqui entendidos como o resultado da posição subalternado assalariado dentro de uma economia monetária de pro-dução: trata-se do constrangimento monetário que faz do tra-balho assalariado a condição de acesso à moeda. Nesta pers-pectiva, a RSG consiste em reforçar a liberdade efetiva deescolha da força de trabalho, como o sublinhava ironicamenteMarx, “seu proprietário é não apenas livre de vendê-la, mas seencontra também e sobretudo na obrigação de fazê-lo”. Poroutro lado, o caráter incondicionado e individual da RSGaumentaria o grau de autonomia das mulheres e dos jovenscom relação aos tradicionais dispositivos de proteção social.

Dessa concepção derivam dois corolários essenciais. Emprimeiro lugar, o valor monetário da RSG deve ser suficiente-mente elevado (pelo menos a metade do salário médio) parapermitir opor-se à atual degradação das condições de trabalhoe favorecer a mobilidade “escolhida” contra a mobilidade“imposta” sob a forma de precariedade. Além disso, a RSGpermitiria a real diminuição do tempo de trabalho, sendo maiseficiente que a diminuição uniforme da duração da semana detrabalho. Em segundo lugar, a proposta da RSG se insere emum projeto mais amplo de fortalecimento dos esforços deredução da lógica do mercado.

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Trânsitos 15 GLOBAL

definição dos tempos e das tarefas, foi a solução adequada aesse fim. Na fábrica fordista, o tempo efetivo de trabalho, a pro-dutividade, o valor e o volume da produção pareciam perfeita-mente determinados de maneira “científica”.

O único risco real para o capital era que essa implicação para-doxal do operário-massa se transformasse em insurgênciaantagonista. Foi o que aconteceu. Mas tudo muda quando otrabalho, tornando-se cada vez mais cognitivo, não pode maisser reduzido a um simples gasto de energia efetuado em umtempo determinado. Não apenas o capital se tornou nova-mente dependente dos saberes dos trabalhadores, mas eledeve também conseguir uma disponibilidade e implicaçãoativa do conjunto dos saberes e da vida. A “prescrição da sub-jetividade”, a obrigação do resultado, a pressão do clientejunto ao constrangimento puro e simples ligado à precariedadesão as principais vias encontradas pelo capital para tentarresponder a esse problema inédito.

As diversas formas de precarização da relação salarial são tam-bém instrumentos para o capital impor essa subordinaçãototal, sem reconhecer e sem pagar o salário que corresponde aesse tempo não-integrado e não-mensurável. No capitalismocontemporâneo, a precariedade parece estar para o trabalho damesma maneira que, no capitalismo industrial, a fragmentaçãodas tarefas está para o taylorismo. A mesma lógica explica porque o processo de desqualificação da força de trabalho pareceter cedido espaço a um maciço processo de “desclassificação”que golpeia as mulheres e os jovens diplomados.

Dois motivos para apoiar a renda universal

Concluindo, a proposta da RSG apóia-se em um re-exame doconceito de trabalho produtivo e da questão do salário, con-duzida a partir de um duplo ponto de vista. O primeiro dizrespeito ao conceito de trabalho produtivo, entendido como otrabalho que gera lucro. Desse ponto de vista, a RSG, comosalário social, corresponderia à remuneração coletiva de umaparte dessa atividade criadora de valor que se realiza no con-junto dos tempos sociais com base em uma enorme massa detrabalho não-certificado e não-remunerado.

O segundo ponto de vista diz respeito ao conceito de trabalhoprodutivo como trabalho livre produtor de valores de uso.Trata-se de afirmar que o trabalho pode ser improdutivo decapital, mas produtivo de riquezas não-mercantis e concretizar-se em uma renda. Precisamos sublinhar o papel ambivalente,ao mesmo tempo de antagonismo e complementaridade, queessas duas formas de trabalho produtivo mantêm entre si nocapitalismo cognitivo. A expansão do trabalho livre avança jun-tamente com sua subordinação ao trabalho que produz mais-valia em razão das próprias tendências que levam aodesmoronamento das tradicionais fronteiras entre trabalho enão-trabalho, esfera da produção e esfera do tempo livre.

A questão posta pela RSG não é apenas a do reconhecimentoe da luta contra essa extensão de exploração, mas também daemancipação do trabalho da esfera da produção de mais-valia.Nesse nível, só o caráter incondicional da renda poderá preser-var a plena autonomia das atividades que não podem encon-trar todo seu sentido se realizadas para si mesmas e favorecera transição em direção ao modelo não-produtivista, fundado naprimazia de formas de cooperação não-mercantis capazes deliberar a sociedade do general intellect da lógica parasitária docapitalismo cognitivo.

Engenheiro de obras feitas, de Alex Hamburger, 1996.Foto de Vicente de Mello.

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GLOBAL 16 trânsitos

Gustavo Gindre (Coletivo Intervozes)

ARevistaGlobal n° 7 publicou o texto “ATVDigital e o precariado da comunicação”, deautoria de Fábio Malini. Manifestei aos edi-tores minha profunda discordância com oteor do texto e, em uma clara demons-tração da pluralidade e democracia bus-cadas tanto pela Revista Global quanto pelaUniversidade Nômade, me foi aberto esteespaço de réplica, que muito agradeço.

O argumento central do (confuso) texto éuma suposta dissociação entre o Ministérioda Cultura e os movimentos sociais liga-dos à democratização da comunicação.

Sobre isso quero lembrar que o ColetivoIntervozes apoiou publicamente o projetode criação da Agência Nacional do Cinemae do Audiovisual (Ancinav). Defendemos astrês indicações feitas pelo ministro GilbertoGil para a Ancine e manifestamos nossoprotesto contra a postergação de suas no-meações pelo Senado Federal. Nossa pro-posta sobre a TV digital foi construída emprofundo diálogo com membros do MinCe tivemos a oportunidade de entregá-lapessoalmente ao ministro Gil. Foi a con-vite do Ministério da Cultura e da Radio-bras que estamos participando do Fórumde TVs Públicas. E o Coletivo Intervozesparticipa também do Ponto de CulturaVila Buarque, na cidade de São Paulo.

Particularmente, fui convidado para minis-trar aula para os novos funcionários con-cursados da Ancine e estive, como mem-bro eleito do Comitê Gestor da Internet(CGIbr), atuando ao lado do Ministério daCultura, na Cúpula Mundial sobre aSociedade da Informação, em defesa deuma governança democrática da Internet.Por tudo isso, não consigo vislumbrar a

suposta dissociação e não encontro notexto do professor Malini um único fatoconcreto que justifique sua opinião. Ditoisto, cabe pontuar outras discordânciascom o referido texto.

Jamais defendemos um modelo de TVdigital que não fosse interativo. Muito pelocontrário, bastaria uma leitura no docu-mento de mais de 30 páginas (disponívelem www.intervozes.org.br) que entre-gamos em mãos aos ministros GilbertoGil, Dilma Rousseff e Luiz Dulci para cons-tatar que entendemos a TV digital como amaior oportunidade que o Brasil já tevede realizar um amplo processo deinclusão digital. Só não acreditamos queeste papel deva ser desempenhadoexclusivamente pelas forças de mercadoou pelo Estado. Defendemos a criação deredes comunitárias, com tecnologias wire-less e gestão na ponta, com ampla partic-ipação da sociedade civil. Mas, defende-mos, principalmente, uma comunicaçãopública entendida como direito do ser hu-mano e não como mercadoria a ser adqui-rida apenas por aqueles que podem pagar.

Tampouco existe uma dissociação entrenossas propostas e aquelas dos produ-tores independentes. Segundo o argu-mento deMalini, como explicar nossa cons-tante parceria com o Congresso Brasileirode Cinema (CBC) e a presença de inte-grantes do Coletivo Intervozes no recémencerrado Encontro Paulista de Cineclubes?

Concordo com o autor sobre a profundainterrelação entre os radiodifusores e oEstado brasileiro. Por isso, inclusive, denun-ciamos publicamente a presença de propri-etários de meios de comunicação (e deseus prepostos) tanto no poder Executivoquanto no Legislativo. Só não posso con-

cordar (e Gramsci não me permitiria) coma afirmação de que “A Globo e o Estadosão a mesma coisa” (sic). Se assim fosse,como então poderíamos apoiar as medi-das adotadas pelo ministro de Estado daCultura, Gilberto Gil? Seria o MinC umasucursal da Globo?

Igualmente não é verdade que acreditamosser “o Estado o guardião da comunicaçãolivre”. Ora, estamos firmemente empe-nhados no sucesso do Fórum de TVsPúblicas e propondo a regulamentação doartigo 223 da Constituição Federal, queprevê a criação de um sistema público (não-estatal) de comunicação. Por diversas vezesapoiamos as rádios comunitárias contra arepressão perpetrada pelo Estado. Comopodemos estar distantes do “precariado” e,aomesmo tempo, constituirmos uma FrenteNacional em Defesa de um Sistema Demo-crático de Rádio e TV Digital, com cerca de100 entidades? Alémdisso, dialogamos como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra(MST), com a CUT, com Fórum Nacional deParticipação Popular e a Central de Movi-mentos Sociais, entre outras entidades.

Sim, é verdade que vivemos um processode convergência tecnológica. Mas, tambémé verdade que o Brasil é um país onde 96%dos lares recebem TV aberta, cerca de 9%assinam alguma TV paga e menos de 6%dos domicílios possuem um serviço deacesso banda larga à Internet. Foi pensandonisso que o ministro Gilberto Gil e suaequipe propuseram a criação de uma agên-cia regulatória para veículos de comuni-cação tão “tradicionais” como a televisãoaberta. E justamente por concordar com anecessidade de uma regulação democráticados veículos de comunicação (especial-mente aqueles que são concessões públi-cas) é que apoiamos a proposta da Ancinav.

Também estranho que Fabio Malini faleem nome do “precariado” e afirme comconvicção que comunicação este “pre-cariado” gostaria. Que lugar ocupa parapoder falar em nome dos supostos excluí-dos com tanta convicção?

Enfim, acredito ser este um extenso debatesobre os rumos da comunicação no Brasil e,principalmente, pela garantia do direitohumano inalienável à comunicação porparte de todos o(a)s brasileiro(a)s. Mas, nãoacho que um diálogo de tal importânciapossa ocorrer com expressões como“filosofia de quinta”, “silogismo cínico” e“dor de cotovelo”. Em outros patamares,convido o professor Malini a continuar estediálogo em todos os vários espaços dasociedade civil onde o tema da democratiza-ção das comunicações vem assumindo pro-gressiva relevância.

Espaço Aberto ao LeitorSobre o texto TV Digital e o Precariado da Comunicação

Parangolé daspu rgb, de Helio Branco, 2005.

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17 GLOBALColuna, de Lia Chaia, 2003.

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GLOBAL 18 Conexões Globais

Foi um fim de semana bastante quenteem Copenhagen, especialmente emNorrebro, bairro alternativo onde selocalizava o Ungdomshuset que foievacuado e demolido com autorizaçãodo governo Rasmussen. Foram três diase três noites de pesados protestos, osquais os socialdemocratas, que contro-lam a cidade desde 1900, reprimiramduramente, incluindo a prisão de 600jovens. Este duro tratamento fez dis-parar uma onda de solidariedade trans-nacional entre a juventude européia,com uma enxurrada de apelos, mani-festos, boicotes e ocupações de missõesconsulares da Dinamarca, não apenasem Malmö, Hamburgo e Berlim, mastambém em Veneza, Milão, Salonica eIstanbul.E por que na Dinamarca? Por que umarebelião tão potente dos jovens dacidade, que teve a pronta adesão dajuventude imigrante, poderia ocorrer emuma pacífica e próspera capital euro-péia, chegando a incluir barricadas,incêndios e enfrentamentos com a polí-cia (que teve que pedir reforços à Suéciapara controlar a situação)? Acaso aquelajuventude consumista não deveria estarlá sonhando em sair para descobrir omundo, em viajar e navegar a baixocusto? Não tinha sido condenada a serirreversivelmente pós-ideológica, muitomenos afeita à política radical?

O que acontece na Dinamarca?

Em termos políticos, a Dinamarca é umpaís especial por várias razões. Faz parteda União Européia desde 1973, mas suapopulação opôs-se veementemente aMaastricht, o que desencadeou grandesconflitos (os únicos comparáveis aos doúltimo fim de semana na históriarecente) depois do Referendum de 1993,retrospectivamente tão importantequanto as greves que explodiram naFrança em 1995 catalisando o movimen-to antiglobalização na Europa.Muitos dinamarqueses estiveram emGöteborg, um episódio crucial doamadurecimento dos protestos no-globalna Europa, pouco antes de Gênova. Ohoje respeitável líder da direita Gian-franco Fini já havia declarado à revistaTimes que “Gênova será Göteborg, oupior”. (Uma vez que assumiu o comandoda repressão aos ativistas de Gênova,Fini cuidou para que sua profecia secumprisse). Como conseqüência daoposição à Maastricht, a Dinamarca nãofaz parte da comunidade do euro, embo-ra seja parte do mainstream eurocrático.Uma direita neoconservadora, firme-mente ocidentalista, tem estado no

poder desde 2001. A Dinamarca tornou-se fiel aliada de Bush, por mais tempoainda do que a Itália de Berlusconi.Certamente, a terra que acolheu aprimeira revolução jacobina fora daFrança e inventou a física quântica per-manece uma terra com pendores parapensadores liberais e manifestantesrabble rousers : os dinamarqueses pos-suem um agudo senso de humor, muitomais do que seus vizinhos escandinavos(lembram de The Kingdom de Lars vonTrier?). E Copenhagen, uma cidade com-pletamente imersa em redes informa-cionais e nos canais de abastecimento(pensem na navegação conteinerizadado gigante Maersk) que alimentam aeconomia global, está cheia deles. Comrelação às classes criativas inglesas eitalianas, os trabalhadores imateriaisdinamarqueses são ainda mais radicaise libertários. O anarquismo floresceudesde o início da década de 80, indo doanarcopunk ao black block e além. O rad-icalismo de matizes vermelhas e verdestambém está no auge. Com efeito, umaconfiança generalizada nos sistemaspeer-to-peer e de download grátis foiimplementado e consolidado a partir decoletivos como o Piratgruppe. Alémdisso, idéias e ações contra a pre-cariedade vêm sendo fomentadas porgrupos como o Flexico. E quem poderiase esquecer dos maravilhosos comer-ciais subversivos tipo Guaraná Power(anti-Pepsi), que foram sucesso comer-cial também na Península de Jutland?

Movimentos contra o poder

Estes são apenas fragmentos do que aclasse criativa de Copenhagen é capazde fazer, quando pensa e se movimentaem termos de ação política e engaja-mento cultural. Mas, por outro lado, aDinamarca é também uma forte econo-mia agrária que continua prosperandoem meio à Política Agrícola Comum(Common Agricultural Policy) graças àqualidade superior de seus laticínios ederivados de carne, que conquistarammercados europeus e mundiais. Osfazendeiros tendem a ser rígidos, reli-giosos, conservadores e nacionalistas namesma medida que os moradores dascidades são abertos e progressistas.Enquanto os primeiros foram os pivôsda ascensão da direita ao poder, os últi-mos estão cada vez mais insatisfeitoscom a esquerda tradicional.O movimento antiglobalização daDinamarca foi o único na Europa adesenvolver sua própria força política.Muitos de seus ativistas engajaram-sena aliança Vermelho-Verde que con-

As revoltas

da juventude

na Dinamarca

ressaltam

a dimensão global

da exclusão

sistemática

dos jovens

das políticas

democráticas

de inclusão social.

O paradoxo é que

os jovens são

cada vez mais

dotados de

altos níveis de

capital humano.

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ColetivoNeurogreen

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Conexões Globais 19 GLOBAL

rígidas, e que faz parte de uma UniãoEuropéia ainda xenófoba) ficou evidentepara o mundo inteiro depois da gestãodesastrada da crise das charges satíric-as. As charges, que faziam propo-sitalmente graça com o Profeta Maomé,na realidade faziam parte do editorialpolítico de um jornal conservador,tradicional canal de expressão dos inte-resses de leitores de ultra-direita. Umsimples boicote do mundo islâmico aosprodutos dinamarqueses fez com que asmultinacionais do país se ajoelhassemdiante do Primeiro Ministro Anders FoghRasmussen, pedindo que adotasse umapostura mais sensata e conciliadora.Na verdade o primeiro ministro – que porsua boa aparência foi recomendado porBerlusconi para ser amante da suamulher – tem omesmo sobrenome de ummilitante político de destaque na esquer-da européia, Poul Nyrup Rasmussen,chefe dos socialdemocratas de Stras-burgo e influente na InternacionalSocialista. O erro desastroso da social-democracia de Copenhagen que permi-tiu a venda nebulosa do centro socialdos jovens de Ungomdshuset a um setorfundamentalista cristão, fato agravadopela evacuação forçada (já tinham acon-tecido algumas escaramuças em setem-bro, era previsível que os jovens deCopenhagen explodiriam assim quehouvesse uma nova provocação) apontamuito claramente uma coisa: que os doisRasmussens são as duas faces de umamesma moeda. Os políticos europeus,sejam socialdemocratas, liberais ou con-servadores, tornam-se cada vez maisindistinguíveis. Todos compartilham adeferência pelos mercados financeiros epelas grandes corporações, possueminstintos repressores e xenófobos e securvam aos interesses econômicos degrupos firmemente estabelecidos e dasgerações mais velhas.Até mesmo os sindicatos na Dinamarcajá perceberam que a socialdemocracianão é mais confiável para defender osinteresses dos trabalhadores, e quandoas coisas começam a se agitar, alinham-se com os estudantes em protesto. Foiexatamente assim durante as grevesgerais e as ocupações de universidadesque sacudiram o país na primavera de2006, quando Rasmussen anunciou“reformas” estruturais cortando benefí-cios tanto dos jovens quanto dos traba-lhadores mais velhos, medidas às quaisa socialdemocracia a princípio se opôsapenas retoricamente. Mas seria ingenui-dade atribuir a uma suposta “exceção”dinamarquesa a magnitude e extensãodos conflitos. Ao contrário, em virtudede seu passado socialista e de seu pre-

sente libertário, os movimentos naDinamarca encontram-se em posiçãoprivilegiada para combater as conse-qüências sociopolíticas do neoconser-vadorismo americano e o liberalismo demercado europeu. Eles poderiam serconsiderados os arautos da insurgênciada juventude européia.

Os protestos dos jovens daDinamarca são uma continuaçãodos protestos na França

Na verdade, faz sentido enxergar nosprotestos de Copenhagen uma conti-nuação dos protestos na França de 2006,ambos como instâncias de uma novafase dos movimentos radicais, após odeclínio que se seguiu à fracassada ten-tativa de bloquear a invasão angloame-ricana do Iraque. Particularmente, é ten-tador ver esta tendência como anteci-pação da rebelião generalizada dasclasses criativas da Europa contra aselites hipócritas, arrogantes e corruptasque vêm governando a União Europeia,que foram desmoralizadas pelo blocoFrança-Holanda, mas que se agarram aopoder como se a Europa fosse uma pro-priedade que lhes pertencesse. O encontrode Bruxelas teve a intenção de “dourar apílula” das credenciais ambientalistas daUE, a fim de torná-las atraentes a maispessoas além de uma privilegiada mino-ria. No final de março de 2007, o encontrode Berlim (que teve na pauta a decla-ração de Berlim do futuro constitucionalda UE) celebrou, dentre outras coisas,meio século de tratados na Europa.Marcou também a morte do federalismoeuropeu e a transição para uma espéciede Confederação de Estados-nação, emque se combinam a belicosidade e racis-mo dos primeiros à transferência desoberania dos últimos.A insurgência da juventude deCopenhagen, Paris e outras cidadesparece apontar para a cada vez maiorconsciência política e radicalização entreos jovens que trabalham com infor-mação, conhecimento, indústria cultural.Somente a classe criativa pode desviar ocurso da história da Europa do presentepatamar reacionário em que se encon-tra, marchando em direção à emanci-pação social de uma nova geraçãoeuropéia finalmente “mestiça ”. Temosque agir agora por uma Europa radical,conectando e solidarizando com estasgrandes lutas como a revolta dos jovensestudantes em Copenhagen: vamos criarum espaço europeu para a cultura alter-nativa jovem!

Tradução de Leonora Corsini

seguiu colocar uma mulher de menos de30 anos no Parlamento e constituir umalista “rosa” de candidatos às eleiçõesmunicipais de Copenhagen. Isto contribuiupara criar uma situação multifacetadaem que as forças radicais trabalham emsinergia, das ruas até o parlamento, comuma organização tácita que respeita aautonomia em todos os seus elementos.Talvez o mais importante de tudo isso éque estas forças radicais vêm se empe-nhando em ultrapassar a cisão entreuma classe criativa hegemonicamentebranca e uma classe de prestadores deserviços majoritariamente constituídapor imigrantes, especialmente jovensalternativos e moradores dos guetos.Diferentemente do que aconteceu emParis onde os estudantes fizeram violentasmanifestações nas universidades e nasruas para protestar contra a precarie-dade dos jovens franceses – e o governonão conseguiu de fato se conectar comas demandas desses jovens – (houve naverdade muita tensão e divisão entreestudantes e radicais, por um lado, emoradores das periferias, cujo objetivoera enfrentar a polícia), em Copenhagenem todos os recentes tumultos sociaisos jovens brancos e não-brancos ficamdo mesmo lado da barricada.Mega manifestações ocorrem espon-taneamente em resposta às violaçõesdas liberdades individuais e dos direitoscoletivos, bem como abusos de poderdo Estado e da polícia. Pensar no casoRodney King em Los Angeles em 1992 ea onda de violentos protestos que seseguiu; pensar na eletrocução acidentaldos dois adolescentes que fugiam dapolícia e que disparou toda a onda deprotestos nas periferias francesas em2005, ajuda a entender porque a repres-são das forças especiais da Dinamarcaconvocadas a evacuar Ungomdshusetna madrugada do primeiro de março foicomo fósforo em paiol de pólvora.Rebeliões são processos espontâneosque surgem depois que toda crença eminstrumentos não-violentos de protestoe enfrentamento se esgota em virtude dasurdez do poder.

A xenofobia do poder dinamarquês

E o poder de estado dinamarquês ésurdo e mudo. Assim que a Direita subiuao poder, desencadeou-se uma cruzadacultural para “proteger” os valores oci-dentais dos imigrantes muçulmanos,percebidos como uma ameaça à identi-dade cultural dinamarquesa. A extensãodesta hostilidade aos migrantes naDinamarca (um Estado bastante nacio-nalista com leis de imigração bastante

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PERGUNTAR CAMINHANDO:

GLOBAL 20 Conexões Globais

As razões da vitória de Zapatero nas eleições gerais espanholasde março de 2004, o surgimento de uma agenda política comelementos novos (retirada das tropas do Iraque, aprovação doscasamentos entre homossexuais etc.) ou o novo cenário que seabriu a partir de então, são dados relevantes no âmbito euro-peu. Merecem atenção prioritária por parte dos movimentosque fazem a política “desde baixo” e que, ao mesmo tempo,desejam formas de governança que não impeçam a produçãode novos direitos (renda básica, cidadania extensível, moradia)ou de formas mais efetivas e extensivas de auto-governo eautonomia. Que efeitos podem ter os protestos ou os movi-mentos sociais em geral? Quais os sujeitos que os protago-nizam, e de que formas? Que repercussões são abertas no ter-reno da hegemonia? Que cenários políticos prenunciam? Comoadentrar esses novos cenários, e como se articular neles?Todas essas são perguntas que surgem recorrentemente noantagonismo militante europeu.Neste sentido é mais do que razoável afirmar que os aconteci-mentos dos últimos anos na Espanha constituem um verda-deiro laboratório, que lança novas hipóteses e refuta outras, nodesejo de construir outros mundos, de tornar factível umaEuropa de movimento. Um laboratório de estudos para se pen-sar e fazer a política na conjuntura política, social, econômica,cultural deste início do século XXI. Um experimento que ultra-passa a Espanha e que se torna referência para a Europa.Neste texto, são oferecidas uma bateria de teses e hipóteses.As teses pretendem situar o estado da questão, enquanto ashipóteses são lançadas sobre os dilemas, sobre as perguntasque devem ser resolvidas através da metodologia, o styleanunciado pelos zapatistas, o “caminhar perguntando”, isto é,perguntar através da prática de movimento, de insurreição, deêxodo, de conflito. Elas são, não esqueçamos, as forças consti-tuintes da democracia, dos direitos, da cidadania. As hipótesesse testam não só através das palavras, mas junto do fazermovimento.

Tese 1O poder de movimento não apenas existe mas é observável eexibe seus efeitos nos fenômenos contemporâneos: a derrotade Aznar dá mostras disso.O fato de Zapatero ter vencido as eleições em 2004 e assumidoa chefia do governo é uma variável dependente do poder demovimento, isto é, do potente e heterogêneo ciclo de lutaspolíticas, da tomada definitiva das ruas gerada na Espanha noúltimo período do governo da direita (2000-2004).Durante este período tornou-se visível uma enorme e complexarede de movimentos, sindicatos, grupos cidadãos ou associa-ções de atores e cineastas que, durante um longo período ocu-pou as ruas para denunciar que se governava de costas para acidadania – ou contra ela. Devemos situar, entre os episódiosmais significativos, a greve geral de 2002 contra uma nova refor-ma trabalhista que pretendia normatizar ainda mais o regimelaboral; o protesto contra a gestão governamental do acidentecom o petroleiro na Galícia (fins de 2002) e a mobilização dossem-documentos (que teve um pico expressivo em 2000).É aí que se deve rastrear, esmiuçar, seguir o “fio” dos protestospara assinalar as razões que conduziram à derrota de Aznar(Partido Popular) e, por conseguinte, à vitória de Zapatero(Partido Socialista Trabalhador Espanhol). Outras razões, comopor exemplo, a suposta “novidade” da opção Zapatero, ouuma certa idéia de refundação do PSOE, na clave dos novosmodelos de gestão do público, são excessivamente simplistase, sobretudo, pouco realistas.

Tese 2O ciclo político de 2000-04 na Espanha é improvável sem anovidade do movimento alteroglobal, que multiplica exponen-cialmente e oferece novas linguagens comuns ao protesto.Não é possível entender essas mobilizações e lutas políticas esociais sem delineá-las, sem contextualizá-las no calor da ondaglobal, das iniciativas alteroglobais que, desde o zapatismo emais claramente desde Seattle (finais de 1999) supõem umanova emergência política, novos códigos, novos sujeitos,novos repertórios, novos significados, definitivamente, novasmáquinas de guerra. Em outras palavras, estando correta asuposição de que os protestos na Espanha de 2000 e 2004foram mais do que isso, só podemos entender a emergênciadestes protestos a partir dos dados, experiências, acumulaçãoe desejo, expressos pelo ciclo transnacional, pós-nacional,global, do movimento de movimentos.Em outras palavras, quem sai às ruas entre 2000 e 2004 não éapenas a esquerda política. É também a geração que na déca-da de 1990 se delineou em certa área da autonomia, mais alémda esquerda institucional e não-institucional (centros sociais,rádios comunitárias, grupos anti-militaristas etc.). Será tam-bém protagonista especial, mais adiante, aquela outra geraçãode final dos 90 e princípios do século XXI que toma as ruas,uma nova geração plenamente pós-fordista, do precariado, traba-lhadores cognitivos que usam a cooperação horizontal, queconstróem máquinas de guerra através da tecnologia hacker,dos SMS e de outras formas de agregação.Essa é a ampla trama que rompe a hegemonia de Aznar, que seexpressa de forma contínua no período de 2000 a 2004. Não sedeve, portanto, creditar como mérito exclusivo do PartidoSocialista ter batido a direita nas urnas. É muito mais do queisso. É uma plêiade de mobilizações que geram estados deopinião pública favoráveis à política “desde baixo” que, nocaso espanhol, conjuga-se com variáveis locais. É este o con-texto para poder entender a vitória de Zapatero.

Tese 3Os delírios imperiais ou de representação absoluta são hoje,mais do que nunca, a partir da mudança epocal pressupostapelo general intellect, não apenas improváveis como tambémsão formas de governo que tendem à própria destruição.Sob Aznar a direita governou em maioria absoluta no período2000-04, tendo assumido como tarefa meta-política umarestauração “desde cima”, cuja matriz fundamental era anegação da governança e a afirmação de um governo único, deuma única cor, majestoso, pretensioso, absoluto. E que repre-sentava, de maneira extensiva e intensiva, o conjunto dosespanhóis. O “outro” era o mal, o lado escuro.Essa representação tornou-semais uma vez impossível: surgiramos sindicalistas, o precariado, os alteroglobalistas, os cineastas,os anti-militaristas e o “não” à guerra, os cidadãos da Galíciaenfurecidos com a gestão cosmética do governo durante acrise do Prestige, dos migrantes sem documentos, inclusive osnacionalismos periféricos ou de centro-esquerda. Tudo issodesembocou numa interessante produção de diferenças in-conciliáveis, incompatíveis com as necessidades de um uni-governo. Um governo que diz representar os espanhóis e unsespanhóis que não querem ser representados. Lema comumem praticamente todas as mobilizações de 2000 a 2004 era o“ele não nos representa”, que abriu caminho para a afirmaçãode novas realidades políticas intratáveis para o governo.

governo Zapatero,Tomás Herreros Sala

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Conexões Globais 21 GLOBAL

Desta forma, o grande erro da direita deriva de ter criado umatessitura política local espanhola que era uma cópia genial docenário prototípico global anunciado pelo movimento global:um poder surdo, um poder que comanda sem os cidadãos einclusive contra eles. Aznar permitiu assim uma recombinaçãodo ciclo de protestos globais em uma matriz estritamenteespanhola.Hipótese 1. De forma lenta mas sustentada, a provínciaEspanha torna-se cada vez mais um laboratório de movimento,pela combinação produtiva entre uma espécie de política “frombelow” e uma política “por cima”, capaz de gerar inputs nacaixa negra da política.A Espanha foi governada durante quase dez anos (1996-2004)por uma direita radical. Não raro escutávamos acadêmicos eintelectuais progressistas, emmeados dos anos 90, afirmar queum governo deste tipo contrabalançaria a hegemonia da direita,no sentido de transmutar a sociedade espanhola em formasreacionárias. A isto deve-se agregar, retrocedendo ainda maisna história contemporânea, uma pós-transição política espa-nhola (1982-1992) que impôs um longo e tenebroso inverno noqual o desejo de política, de uma outra política, só pôde apare-cer muito esporadicamente. A ditadura e a transição políticaque se seguiu golpearam, nocautearam e anularam qualqueraspiração de potência de movimento.Tudo isso foi como um “arremedo” do intelecto de massas daesquerda oficial. Porém, mais uma vez, falharam os apologistasda não-política. Pelo menos desde meados dos anos 90 tem-seproduzido uma mutação strictu sensu, quase genealógica, emdireção à criação de novos tipos de práticas e valores. Dentreestes podemos destacar a presença, no cenário metropolitano,dos centros sociais; o surgimento de elementos comunicativosdesde baixo (com a rede Indymedia despontando como práticacomunicacional comum a toda uma geração); a aparição, como movimento global, de uma nova militância cujo âmbito deatuação, de relação e análise é claramente pós-nacional, senãoeuropeu; a articulação de novos sujeitos políticos (migrantes,precários) no calor da transformação experimentada pelaEspanha, especialmente a partir dos anos 90.São práticas constituintes, embriões de um espaço públiconão-estatal em construção, de uma máquina política desejante,complexa, que começou a produzir e que é fonte inesgotávelde desejo de uma outra política. Tão logo tudo isso comece asedimentar – desafiando a regra dos lugares comuns do inte-lecto de massa – a política será transformada em gestão desdebaixo, comum, dos assuntos complexos.

A segunda parte do artigo será publicada no próximo númeroda revista Global

Tradução de Leonora Corsini

governança e movimentos (parte I)

Desenho de Bic, de Pedro Varela, 2005.

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GLOBAL 22 Conexões Globais

Mais de cinco anos após a insurreição do dezembro de 2001argentino, testemunhamos as mudanças nas interpretações esentimentos em torno daquele evento. Para muitos de nós, atristeza foi o sentimento que acompanhou uma fase deste tor-tuoso porvir. Este texto resgata um momento na elaboração“daquela tristeza” que pretende ultrapassar as noções de“vitória” e “derrota” pertencentes ao ciclo anterior, centradona tomada de poder de estado e, ao mesmo tempo, pretendecompartilhar um procedimento que nos permitiu “tornar públi-co” um sentimento íntimo de pessoas e grupos. A politizaçãoda tristeza resume nossa intenção de resistir, de reelaborar oque veio à luz naquele experimento coletivo sob uma novadinâmica de publicidade.

Neste contexto, um grupo diverso de coletivos que comparti-lharam a experiência vivida da transversalidade política naArgentina nos anos recentes – Grupo de Arte Callejero (GAC,Grupo de Arte de Rua, a comunidade educacional CreciendoJuntos, o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD)os bairros de Solano e Guernica, o coletivo de comunicaçãoLavaca, e o Colectivo Situaciones – reuniram-se por várias se-manas no final de 2005.

Tristeza Política1. A lógica dos especialistas. Após um período de “desor-dem”, chegam os especialistas para restaurar e ressuscitarclassificações que – dizem – nunca se dissolvem completa-mente. Há também os especialistas em política, que organizama desordem no sentido oposto: “Se você não tem uma estra-tégia de poder clara, o que você está fazendo não é política, mas'ativismo social', filantropia, contracultura etc.” Assim o hibri-dismo implícito na criação de cada nova figura política é inten-cionalmente confundido com festa à fantasia.

2. Repetição sem diferença. A chave para a produtividadealcançada num momento de tumulto criativo é que ele tornapossíveis “fusões” pessoais e grupais, junto com uma misturade linguagens na qual a autoria do que está sendo criado nãoimporta tanto quanto a extensão em que energias se unem.Esta eficácia não resiste à repetição fora das situações nasquais se engendra seu sentido sem se tornar formulesca. E aautomação da fórmula congela nossa própria capacidade detemporalizar estes processos.

3. Duração como critério de validade. Entre 2001-2003, emcada grupo ou coletivo surgiu alguma questão sobre as práticasque tomavam corpo além do grupo. A idéia chave para tornarpossíveis tais encontros era o “terceiro grupo”: agrupamentosem torno de tarefas que indiferenciavam os grupos ao mesmotempo em que tornavam-nos parceiros. A tristeza, em sua ânsiade simplificação, conclui que a finitude temporal da experimen-tação é suficiente para solapar seu valor, fazer invisíveis tantoo “fora comum” quanto os procedimentos destinados a formá-lo.

4. Desdém pela socialização da produção. Uma lógica de“contágio” permeou formas de luta, imagens e pesquisa, ques-tionando o controle dos negócios e suas marcas sobre o campodos signos. A reação normalizadora veio depois para governaresta expansão viral. Neste nível, diversos procedimentos facili-taram a normalização: o esvaziamento dos slogans coletivosatravés da literalização; os mais típicos preconceitos de “eco-nomicismo reativo” expressos em frases como “os piqueterossó querem ganhar dinheiro sem trabalhar”, “a classe média sófoi às ruas quando mexeram em seus bolsos”; a identificaçãomecânica do nível “micro” com “pequeno”, um julgamentoP

OL

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ZAColetivoSituaciones

MOVIMENTOS TENTAM SUPERAR A DICOTOMIA VITÓRIA -

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Conexões Globais 23 GLOBAL

a desmantelar formas e fórmulas bem-sucedidas em dias passados não pode setornar um tipo de repetição ou simulação.

2. Sem vitimizações. A tristeza apenasaponta para nossa desconexão momen-tânea num processo dinâmico, que nãoprecisa ser pensado como uma longa fasede estabilização periodicamente interrom-pida pela crise de dominação, mas simcomo um processo atravessado pela lutapolítica. Não apenas a tristeza é uma políti-ca do poder, mas também a circunstânciaem que a política do poder torna-sepoderosa.

3. Poder (potentia) do absenteísmo.Se o poder (potentia) de fazer é verifi-cado através da soberania democráticaque conseguimos atualizar dentro dele, apolitização da tristeza pode talvez sercompreendida como uma forma desabedoria na qual a passividade aparentepreserva radicalmente seu conteúdoativo, subjetivo.

4. Novos espaços públicos. A insti-tuição de novos espaços públicos nãoprecisa de condições excepcionais, masprecisa de uma instituição não-estataldaquilo que é coletivo. Isto é o que MujeresCreando chama “política concreta”.

5. A reelaboração do coletivo. O cole-tivo como premissa e não como sentidoou ponto de chegada: como aquele “lem-brete” que emerge de um esforço reno-vado de escuta. O coletivo como nível deprodução política que acompanha asexperiências de uns e outros. Não falamosde fórmulas de grupo: o coletivo-comu-nitário é sempre um desafio de aberturano que diz respeito ao mundo.

Gostaríamos de encerrar com umahipótese: a dinâmica em curso naArgentina dá início ao que poderíamoschamar de “nova governança”. Prolon-gar a tristeza leva ao isolamento nestanova fase do processo. Como uma “tra-dução” do evento, a “nova governa-bilidade” distribui reconhecimentos entreas dinâmicas instituintes e abre espaçosinimagináveis na fase anterior de neo-liberalismo linha-dura. Não há espaçopara sentimentos de “sucesso” e “der-rota”. Com a mudança da tristeza políticapara a politização da tristeza, preten-demos tomar os dilemas abertos pelosempre presente risco de nos perdermosnos fixos e ilusórios binarismos, que nosconfrontam, como vitória-derrota.

Tradução Nate Holdren, SebastianTouzae Manolo.

segundo o qual as formas concretas derevolta são identificadas com ummomento anterior, local e excepcional,recortado de uma realidade “macro”.

5.Máquinas de captura.Os recursos queos coletivos emovimentos arrancaram dasinstituições não ditaram o “sentido”,nem de seu uso, nem de sua operação.Ao contrário, tornaram-se engrenagensde uma nova máquina, que embebeu amaneira de relacionar-se com estas insti-tuições de um sentido diferente, semingenuidade, verificando na prática comoesta dinâmica dependia de uma relaçãode forças. A emergência de todos estesprocedimentos extra-institucionais aspiroua uma radical democratização da relaçãoentre dinâmica criativa e instituição,sentido e recursos.

6. Autonomia como espartilho. Atécerto momento autonomia era quaseequivalente à transversalidade entre oscoletivos, movimentos e pessoas. Estaressonância positiva funcionou comosuperfície para o desenvolvimento de umdiálogo instituinte fora do consensotanto do capital quanto dos “mestres”dos aparatos partidários. Mas, uma veztransformada em doutrina, a autonomiatorna-se dessensibilizada quanto à trans-versalidade da qual se nutre e à qualdeve seu verdadeiro poder (potentia).

7. Aparição súbita na ribalta. A perfor-mance das massas durante a explosão decontrapoder na Argentina no final de 2001foi acompanhada por uma violentamudança de cenário: quem eram os atoresrelevantes, quais os parâmetros de com-preensão e relacionamento com este novoprotagonismo social. A espetacularizaçãoespetaculariza: ela institui estrelas e esta-belece vozes reconhecidas. A relação con-sumista com os pontos “quentes” de con-flito levou a uma mudança colossal declima, na qual os coletivos e movimentosdeixaram de ser observados, aplaudidos eacompanhados para serem subitamenteignorados e até escarnecidos, o usual-mente é experimentado com ummisto desolidão, decepção e culpa.

Politizar a tristezaUma política “na” e “contra a” tristezanão pode ser uma política triste. A rea-propriação e reinterpretação dos eventospressupõem:

1. Elaborar o evento à luz damemória como poder (potentia). Oprocesso não termina em derrotas evitórias, mas podemos realmente congelare nos remover de sua dinâmica. Aprender

Deleite, de André Santangelo.

DERROTA NA ARGENTINA, QUASE SEIS ANOS DEPOIS DA INSURREIÇÃO DE 2001

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GLOBAL 24 Conexões Globais

O Brasil recebeu com certa desconfiançaa visita do presidente dos EstadosUnidos, George Bush, em março desteano. A pergunta que ficou na cabeça demilhões de brasileiros era: “O que eleveio fazer aqui?”. Não existem muitasrespostas a essa pergunta, basta perce-ber que quando recebemos uma visita, oanfitrião pode nos receber bem; mas nãotemos o resto da casa protestando,queimando bonecos, cartazes escritos“Vá embora” ou “Fora daqui”. Umaleitura breve dos movimentos aconte-cidos nas ruas de São Paulo e do Rio deJaneiro carregam certa razão de ser.Um acordo sobre o incentivo à produçãode biocombustíveis iria ser tratado. Oque aconteceu na mesma semana emque a União Européia lançava a sua pro-posta de “nova revolução industrial”que prevê a criação de uma política deproteção climática, segurança energéticae criação de um sistema competitivo efuncional nos mercados de eletricidade egás natural para todo continenteeuropeu. Isso aumentaria também a pro-dução e o consumo de biocombustíveis.Parecia que os interesses eram os mes-mos no mundo todo e na mesma época.A União Européia discutiu com toda apompa que representa uma reunião de

chefes de Estado. Bush achou melhorvisitar nos trópicos um dos maiores pro-dutores de etanol do mundo.

Busca por combustível renovável

Os EUA anunciavam sua intenção derestringir a demanda mundial porpetróleo e também a vontade de reduzira emissão de gases poluentes no mundo(mesmo que tenha sido um dos poucose mais simbólicos dos países a não assi-nar o Tratado de Kyoto). O Brasil detemjunto com os EUA a produção de 70% doetanol mundial. Os EUA importam e pre-cisam importar mais. O Brasil possui umexcedente e tende a exportar mais.Com essa corrida aos canaviais, a ONUabriu um Fórum Global para transformaro etanol em matéria-prima energéticamundial, denominado “Fórum paraEnergias Renováveis”. E os EUA chega-ram ao Brasil com a proposta de investirem 20 anos US$1,6 bilhões em pes-quisas adicionais para produzir, juntocom o Brasil, fontes alternativas de ener-gia. Em entrevista, realizada no pátio daTranspetro Bush dizia: “Queremos diver-sificar, sair do petróleo”.Lula imaginava que a visita traria a pos-sibilidade de colocar na arena a redução

Mercosul, sim. Império, não.

Visita de Bush ao Brasil

serviu como campo

global de luta

por atenção entre

o presidente dos EUA e

o da Venezuela,

Hugo Chávez.

Mas também mostrou

que os rumos do etanol

estão condicionados pelo

Governo Lula à abertura

da América aos produtos

dos países do Sul

Francis Sodré

Lola (Avellanas), de Bob N, 2006.

Page 27: Global Brasil 08

Conexões Globais 25 GLOBAL

de barreiras alfandegárias para o com-bustível brasileiro (algo em torno de US$0,54% por galão, além da taxa de mais2,5%). Afinal, quem sabe conseguissedemocratizar o comércio americano,romper barreiras, levar os produtos dosul para o norte? Bush, no entanto, disseum sonoro “não” e o acordo não saiu;ficou apenas a promessa de reduzir oconsumo de gasolina e aumentar o usode biocombustíveis em 20% nos próxi-mos 10 anos. Mas 10 anos é muitotempo e o Brasil tem pressa.

O périplo de Chávez

Nos mesmos dias, Hugo Chávez fez tam-bém uma visita aos amigos e vizinhosdos trópicos. Desta vez foi à Argentina –melhor parceira do Brasil no Mercosul. Oanfitrião do encontro, Kirchner, preparouum grande palanque onde o presidentevenezuelano foi aplaudido por 20.000pessoas com cartazes e faixas quediziam “Mercosul sim, imperialismonão”. A Argentina recebeu a propostapolítica de melhorar o uso do gás e dopetróleo trazida por Chávez para todosos países da América Latina. A criaçãodo “Gasoduto do Sul” é uma propostade organização política dos países pro-

dutores e consumidores do gás naAmérica do Sul. Venezuela, Argentina eBolívia possuem a produção do combus-tível e também a tecnologia para melhorexplorá-lo. Muitos afirmavam que a visi-ta de Bush ao Brasil era uma estratégiapara desestabilizar a Venezuela, tantoque nos discursos presidenciais de ambospresidentes não se falava em Chávez.No entanto, sob olhar atento de toda aimprensa mundial e de 20.000 argenti-nos, Chávez declarava que Bush teriavindo a América Latina para enganar,emperrar e dividir os movimentos popu-lares. E assim, o Cone Sul tornou-se umgrande tabuleiro de xadrez.Chávez discursava em nome da AméricaLatina, do Mercosul, das múltiplasparcerias entre os vizinhos. Bush discur-sava em prol de tecnologia, pesquisa,produção de conhecimento como umaestratégia para fugir do oriente médioatravés do etanol, declarando: “O petró-leo que vem de fora traz uma questão desegurança nacional”. A União Européiapensava estratégias de produção e ampli-ação do consumo de algo que a AméricaLatina já produz muito bem, o biocom-bustível. Morales e Kirchner trouxeramnovamente a pauta do gasoduto. E Luladefendia a redução da poluição mundial,desde que seja através da geração deemprego e renda aos pequenos agricul-tores da cana-de-açúcar no Brasil.Tudo isso aconteceu bem aqui, naAmérica Latina, que se diz pobre e repre-sentante do Terceiro Mundo. O mundointeiro decide, de repente, que a maiorsaída para os problemas dos EstadosUnidos, da União Européia, da ONU, daAmérica do Sul e do Oriente Médio estáaqui entre nosotros: os pobres. A espe-rança para a resolução de todos essesconflitos sairá da América Latina. Daquise deseja produção de matéria-prima,tecnologia refinada, pesquisa e aindaagricultura? Temos algum fetiche produ-zindo uma sedução mundial.A visita também deixou um bilhete pre-gado com imã na geladeira: um memo-rando foi assinado por Brasil e EstadosUnidos, prevendo a transferência de tec-nologia e investimentos para outrospaíses a partir das pesquisas produzidaspor esta parceria. Algo que nos deixoucom a chamada “pulga atrás da orelha”.Produzir tecnologia com os EstadosUnidos? Pode ser algo interessante, masarriscado, como tudo aquilo que sepactua com o diabo. Sabemos que oMercosul proíbe seus integrantes aassinarem acordos bilaterais e tambémsabemos que os mesmos acordos bila-terais sempre enfraquecem os paísesmais pobres do acordo.

América Latina: o desenvolvimentoestá na interdependência global

É possível que venhamos a produzirpesquisas juntos e ainda tenhamos queno futuro pagar pela patente dos produ-tos da nossa doce, velha e conhecidacana-de-açúcar; afinal pactuar pro-dução de conhecimento com alguémque detém o maior número de patentesde pesquisa no mundo é no mínimoousado. E deixa a questão: de quemserá a posse do conhecimento produ-zido? A matéria-prima da caipirinha,não nos deixou com respostas doces,apenas com dúvidas inflamáveis comoo álcool. Entretanto, essas visitas pelaAmérica Latina mostraram que nossainterdependência é muito mais pode-rosa do que nós mesmos possamosimaginar.O que Chávez, Morales, Lula, Kirchner eBachelet já entenderam é que a noção dedesenvolvimento não virá apenas docapital externo, mas sim da idéia de queo capital é produzido numa relação deinterdependência na América Latinaglobalizada.A virada à esquerda da América do Suldeixa pistas de que esses governos rep-resentam minorias que nunca estiveramno poder. O Mercosul tem tomado parasi o direcionamento dos seus fluxos decapital e o poder de gerir sua tecnologia,tanto com sua enorme potência com os(bio) combustíveis, como na política dedistribuição de medicamentos, produçãode alimentos, pesquisas em comum. Avisita de Bush serviu para mostrar queos EUA são uma força econômica, mascomo diz Chávez “um cadáver político”.Essas negociações que só visam a cap-tura não funcionam mais com oMercosul. Bush queria tornar o Impériodemocratizante, fazendo-nos aceitarmelhor a guerra, o massacre no Iraqueatravés da “pacificação” pelo comérciocom os “pobres”. Já vimos este filme equeremos o fim deste modelo de gestãoimperial.As visitas seguiram feito Cruzadas,Bush foi do Brasil para o Uruguai eChávez, tentando uma liderança políti-ca no Mercosul, foi da Argentina àBolívia. O presidente americano foirecebido em Montevidéu, logo noaeroporto com o cartaz: “Bush,fascista, você que é terrorista” eChávez chegou à Bolívia aplaudido pormilhares de descendentes de cam-poneses e indígenas com bandeirasvermelhas pelas ruas. Algo que é sin-tomático. O estilo da recepção propor-cionada pelo anfitrião às vezes dizmuito sobre o caráter da visita.

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Dossiê: o debate venezuelano sobre socialismo do século XXI

GLOBAL 26 Conexões Globais

O novo mapa político que se desenhacom os resultados eleitorais de dezem-bro na Venezuela faz perfilarem-secondições favoráveis para que os con-teúdos de um agenda de transformaçãopossam se adensar, quer dizer, ganharterreno em sua definição substantiva etraduzir-se progressivamente em expe-riências tangíveis.

O voluntarismo dos decretos talvez sirvacomo alavanca de visibilidade dos as-suntos ríspidos da revolução; torna-seporém supérfluo como cristalização ver-dadeira de mudanças de fundo.

Isso quer dizer que a vontade políticapara impulsionar transformações efeti-vas tem que vir acompanhada de con-cepções estratégicas bem definidas, devisões emancipatórias que façam umajuste de contas com os anacronismosideológicos do marxismo soviético e dosocialismo burocrático.

O clima criado com a ascenção do novoperíodo governamental aponta na direçãode provocar verdadeiras mudanças nosnúcleos duros do Estado. Não somentepelo implícito reconhecimento de que noessencial o Estado herdado permaneceintacto, mas também pela brutal reali-dade do agravamento de fenômenos per-versos como o burocratismo e a cor-rupção. Como considerar seriamente ademolição do velho Estado se não temsido possível definir uma política efetivacontra a corrupção e o burocratismo?Nenhum anúncio grandiloqüente sobreos grandes assuntos da revolução serãocríveis enquanto permanecerem na impu-nidade as pragas da corrupção e do buro-cratismo. Sabemos que não estamoslutando apenas contra pequenos desviosou más práticas administrativas, mascontra uma cultura que vem de longe. Ainutilidade do que foi dito e do que foifeito atesta claramente a complexidade eenvergadura destas enfermidades.

O QUE “SOCIALISMO” QUER DIZERO socialismo venezuelano

visa desmontar a trama

institucional e burocrática

do Estado para

desestruturar a corrupção

e a centralização

democrática, que

concentram direitos

e recursos públicos em

uma elite política e

econômica.

Rigoberto Lanz

Page 29: Global Brasil 08

Conexões Globais 27 GLOBAL

Contra as pragas do burocratismo

A desmontagem da trama institucionaldo velho Estado é uma tarefa que em simesma pode consumir boa parte daenergia disponível neste período que seinicia. Ali não podem ser poupadosesforços nem deve-se empenhar numaúnica via: a criação de consensos, oaproveitamento de todo tipo de oportu-nidades, a colocação em cena de experi-mentos pontuais, o desenho de estraté-gias de distintos alcances. Por se tratarde uma luta contra toda uma culturaorganizacional que vem se reproduzindoao longo de séculos, onde existempoderosos interesses objetivos queaglutinam grandes contingentes de fun-cionários e com tão pouca clareza nossetores dirigentes sobre como encararessas batalhas, é compreensível que aincerteza e a pouca credibilidade este-jam juntas nos diversos ambientes ondese desenvolve esse debate.

De qualquer maneira, o eixo estrutu-rador das novas correlações de forçaque esse mapa está desenhando define-se no duplo movimento da luta contra asformas estatais tradicionais e aemergência do poder popular em umadinâmica de posicionamento crescente.Essa “dualidade de poderes” marcará osrumos das políticas mais emblemáticasfeitas desde o governo e também ocaráter das lutas dos novos atores soci-ais que disputam palmo a palmo suaautonomia, sua capacidade de decisão,suas regras de auto-gestão política rela-cionadas aos pequenos e grandesespaços da sociedade.

Nesse trajeto estará sendo colocado emprova um aspecto definitório de umacultura democrática de novo tipo: aexpansão da crítica e o aprofundamentodos espaços de discussão. Não se tratade elementos de estilo nem de notasqualificativas da vida democrática. Pelocontrário, o que está em jogo é umacondição de fundo que tangencia aexperiência mais íntima à liberdade, aoexercício do pluralismo e ao cultivo dadiferença, consubstanciais à complexi-dade da vida, à fecundidade de todaexperiência libertária. Não se tratam deformalismos jurídicos nem de exor-tações morais. Quando insistimos emprecisar o tom da crítica na práxis dosatores políticos e da qualificação cres-cente dos espaços de debate, é porqueestamos na presença de vetoresdefinidores da qualidade dos processosrevolucionários. A luta neste terrenoabre distintas frentes onde se conjugam

as tendências burocráticas dos apare-lhos de Estado, as tendências pragmáti-cas de grupos de interesses que nãoacreditam no debate, muito menos nafunção criadora da crítica, a propensãohegemônica de grupos amparados emcotas de poder. Esse quadro evidenciaas dificuldades para que as discusõesprosperem espontaneamente e paraque a crítica se constitua como alavancaconstrutiva de uma nova consciênciarevolucionária.

Qual socialismo?

As palavras não são neutras. Mas aspalavras tampouco significam umacoisa só, nem expressam univoca-mente um só sentido. “Socialismo”não é a exceção. Esse termo pode sig-nificar muitas coisas (desde uma lem-brança nazista, passando por distintasformas de “socialismo utópico”, atéqualquer alusão aos traços pós-moder-nos ou às variantes nórdicas de orga-nização da sociedade). Isso obriga acolocar sobrenomes à palavra “socia-lismo” e a ter que explicar em cadacaso quais são os conteúdos que seestá defendendo com o uso dessa ter-minologia.

Na Venezuela o debate não pode evitara responsabilidade pelo percurso desseconceito. Tampouco pode evitar oajuste de contas com a experiênciahistórica onde o “socialismo” burocráti-co se lançou completamente. Esse é oponto de partida para qualquer debatesério sobre o assunto.

Nós tentamos traçar um certo rumonessa discusão, reforçando o lugar teó-rico a partir do qual falamos, quer dizer,sabendo que as teorias políticas tradi-cionais não servem para pensar essarevolução; enfatizando o desmantela-mento do Estado burguês (sem o qualnão há nenhuma revolução que valha apena); fixando o olhar no caráter culturaldas transformações verdadeiras; acen-tuando com força o papel da crítica, dadiscusão aberta, da formação intelec-tual; recuperando vigorosamente o pro-tagonismo do poder popular frente àsintermediações institucionais; enfim,apostando firme nas prática subversivasque possam propagar o efeito emanci-patório das rupturas, dos conflitos, dascontradições. Dê você o nome, nósficamos com o conteúdo.

Tudo o que foi dito acima delineia umhorizonte carregado de possibilidades,um quadro político muito favorável paraaprofundar as lutas progressivamente.Mas não se devem confundir possibili-dades com fatalidades. Nada disso é evi-dente nem está garantido automatica-mente. Esse clima favorável pode rever-ter em calamidade se a condução não forcuidadosa e se as tendências regressivas– que existem, é bom lembrá-lo –acabam retornando. Por isso é bom con-siderar as conjunturas como aposta:vontade voltada sobre os processosnascentes, consciência lúcida sobre asarmadilhas e desafios.

Tradução Gerardo Silva

Caminhos modernos, de André Santangelo.

Page 30: Global Brasil 08

POR UM NOVO SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

GLOBAL 28 Conexões Globais

O novo Socialismo do século XXI implicainvenção e superação crítica, tanto daspráticas teóricas, políticas, econômicas,jurídicas, ideológicas, estéticas, éticas e cul-turais como dos erros e fracassos do VelhoSocialismo Burocrático do século XX.

O novo Socialismo exige uma novapráxis revolucionária, sustentada emconcepções pluralistas radicais e nacional-populares do bem comum, a justiça, aigualdade, a liberdade e a libertação social.

As tradições nacional-populares são asmatrizes simbólicas de onde nascem aspulsões de resistência, a impugnação e aesperança que mobilizam a construção dealternativas radicalmente democráticas àordem capitalista.

Diversidade de pensamentos contra-hegemônicos, convergência socialistapara a unidade democrática da ação revo-lucionária abrem vias insuspeitas demobilidade revolucionária. Morreram ascitações de autoridade, os textos sagra-dos e os dogmas que encarceram a critivi-dade e a fecundidade das vivências tans-formadoras.

O Socialismo do século XXI será radicaldemocrático, será imanentemente diver-so e permanecerá como uma obra abertaaos poderes criadores do povo.

É preciso dialogar crítica e abertamentecom as tradições revolucionárias semcomplexos nem sectarismos. A fecundi-dade da memória da lutas e o necessáriosaldo de inventário permitirão utilizar osensinos como cartas de navegação,como mapas para transitar-configurar asmudanças radicais da consciência e dascircunstâncias.

A emancipação humana e a defesa davida digna são eixos fundamentais da lutacontra a exploração do trabalho assala-riado, a coerção política, a hegemoniaideológica, a negação cultural, os rostosmúltiplos da opressão, da exclusão sociale da destruição da natureza.

Uma nova cidadania socialista

A revolução democrática permanenterumo ao socialismo do século XXIenvolve uma revolução correlativa noplano epistemológico, estético, ético e navida cotidiana do povo, além de transfor-mações radicais nas estruturas econô-micas jurídicas e políticas.

Trata-se de transformar a vida e a subje-tividade configurada a partir da lógica do

Entre muitos caminhos,

o socialismo deve reunir

os muitos sujeitos políticos

no interior das formas de poder conquistada.

Ao mesmo tempo, deve empreender

realizações democráticas baseadas mais em

convicções do que em sectarismo

Javier Biardeau

Dossiê: o debate venezuelano sobre socialismo do século XXI

Page 31: Global Brasil 08

Conexões Globais 29 GLOBAL

capital, de desenvolvimento da potênciahumana através da praxis e não de mu-danças alheias ao plano subjetivo. Trata-sede uma passagem do “individualismounidimensional e possessivo” à “cidada-nia social, mutidimensional e solidária”.

Como afirmou Eduardo Galeano, o novoSocialismo é a ampliação dos espaços deliberdade, através de uma igualdade socialque reconhece princípios de justiça cultu-ral. Não se trata do mundo de iguais uni-formes, produto das funções de mando edo domínio burocrático, mas do mundoda igualdade na diversidade, de ummundo capaz de conter múltiplos mundos.

Como disse Gramsci, a utopia concretaimplica derrubar o fetichismo que encobre aseparação entre governantes e governados.Mais do que orientação vertical, reque-rem-se orientações coletivas; mais do queobediência de mandatos, busca-se aassunção crítica de decisões colegiadas;mais do que dependência, imaturidade esubmissão, trata-se de potencializar aautonomia, o desenvolvimento humano ea emancipação; enfim, de construir comu-nidades contra-hegemônicas de libertação.

O poder e a mobilização popular

Todo esforço organizativo para amplificara potência revolucionária do poder popu-lar deve subordinar-se a ele, e nuncapretender substituir os mandatos quenascem do povo por funções de mandode aparelhos e estruturas verticais dedireção. As estruturas e aparelhos seguemos processos e movimentos, os orga-nogramas são ferramentas e não obje-tivos e fins. É preciso saber organizar asorganizações, observar as observações, epensar o pensamento; eis o espaço deretroações entre uma praxis de libertaçãoe os pensamentos complexos.

Quem acredita que o Socialismo está navirada da esquina na desordem globalcontemporânea são os burocratas doimediatismo, os gestores de Estados emcrise permanente pelo descontrole de umcapital transnacional.

O novo Socialismo do século XXI será umtrânsito longo que levará ao menos trêsgerações de esforços para derrubar a racio-nalidade burocrático-instrumental domi-nante. A menção ao século XXI não é umasimples formalidade. É o reconhecimentode que a encruzilhada estará situada porlongos anos entre os Socialismos huma-nistas e as Barbáries capitalistas.

Tradução Gerardo Silva

Bandeiras brancas, de Amauri Alves Filho, 2001.Interferência urbana realizada do aterro do Flamengo à enseada de Botafogo, RJ.

Page 32: Global Brasil 08

SOCIALISMO ÉTICO

GLOBAL 30 Conexões Globais

O fracasso do Socialismo

foi benéfico apenas para

uma pequena elite que

se aproveitou ao máximo

daquilo que Marx chamou

de valor de troca

Celso Medina

Já foi dito em mais de uma oportu-nidade que o Socialismo fracassou. Suamaior derrota foi mostrada porGorbatchev, quando deu início aodesmembramento da União Soviética.Bem, aceitamos que o Socialismo tenhafracassado. Mas, podemos afirmar quesua antítese, o capitalismo, tenha sidodefinitivamente exitoso? Se pensarmosem termos do que entendemos porêxito, o capitalismo apontou a moder-nidade; incrementou a materialidade,tornou possível a realização de sonhosque inicialmente não passariam deficções. Assim, ele pode ser apontadocomo um êxito. Mas quem ficou felizcom este êxito? Uma pequena elite, quecoisificou a maquinaria humana,reduzindo sua afetividade a uma meraprodução mercantil, criando umFrankenstein que podemos chamar de“business man”, que revela o graumáximo do que Marx chamou de valorde troca.

A vozes que louvam o capitalismo, asso-ciando-o à democracia e à liberdade,atuam como meros sofistas quandoarmam seus argumentos laudatórios.Não se pode apresentar o atual panora-ma mundial como ummostruário de êxi-tos. Ao contrário. Fenômenos como adepredação acelerada da natureza, oressurgimento de doenças medievais, afome, a Aids, as guerras religiosas ali-mentadas pelo Ocidente etc. são cons-tatações de que o capitalismo tem sidoum sistema nefasto para a humanidade.O que fazer diante do fracasso? Insistir

nos velhos dogmas da esquerda e dadireita? Situarmo-nos num espaçoeclético, onde os valores de troca e deuso se anulem, caminhando para umaeconomia produtiva com alto sentidosocial? O capitalismo como sistema temdado clara mostra de desumanidade.Neste sentido, concordo plenamentecom a afirmação de François Houtar deque “um novo projeto deve começarpela deslegitimaçao clara e radical docapitalismo, dentro de sua própria lógi-ca”. A prédica de Marx de que o capita-lismo leva dentro de si sua própria des-truição não aconteceu exatamenteassim. Não foi em direção da suaprópria destruição, mas foi em direçãoà destruição da própria humanidade.Daí o imperativo de se repensar asidéias que em outros tempos enfren-taram o capitalismo.

Este repensar é mais urgente para aAmérica Latina, onde a divisão social einternacional do trabalho outorgou aocontinente um papel periférico de produ-tor de matérias-primas. Nossos povoslatino-americanos não têm chancealguma de construir economias queresolvam os problemas pontuais quehoje enfrentam. Para eles, urge uma ra-

dical mudança de direção. Essa viradapode ir à reboque do ideário socialista.Há quem pense no presidente daVenezuela, Hugo Chávez, como denomi-nação cabal do Socialismo do séculoXXI. Uma denominação suficientementegeneralizante, mas que pode se tornaruma indigesta receita ideológica,podendo ser usada das mais variadasmaneiras.

Houtar sustenta que o Socialismo, maisque um conceito, é um projeto. Propõeesta afirmação como antídoto ao dog-matismo. Podemos então pender paraum Socialismo Idiossincrático, tal comopensado por Juan Carlos Mariátegui, noPeru do início dos anos 1930. Umsocialismo de camponeses e indígenas,com um tímido proletariado, apoiadonuma hermenêutica efetiva do marxis-mo. No caso da Venezuela, essa idios-sincrasia permite conjugar o ideário deBolívar, a ação libertária de EzequielZamora e a espiritualidade de SimonRodriguez com o diagnóstico e as teo-rias de Marx. Esse ideal socialistavenezuelano é postulado como ummarco para a comunidade latino-ameri-cana, cujas forças interculturais devemprocurar uma dialética solidária.

Dossiê: o debate venezuelano sobre socialismo do século XXI

Desmanche, de Alê Souto, 2007. Registro de interferência Urbana em Santa Teresa

Page 33: Global Brasil 08

Conexões Globais 31 GLOBAL

Creio que a Venezuela vive uma conjun-tura política complexa, que muitos deno-minam como transição ao socialismo.Esse processo deveria evitar o risco de sereproduzir no “curto-prazo” a terceira inter-nacional (KOMINTERN), que só serviupara restabelecer o sistema capitalista,aprofundando suas marcas mais cruéis.Veja o que é a velha União Soviética: umpaís dominado por burocratas que setransformaram emmagnatas capitalistasexploradores do povo russo, cujo íconemais patético é o diretor da velha KGB,Vladimir Putin, presidente da Rússia.

Desequilíbrio contra a queda

Qual a sociedade que queremos em umsocialismo do século XXI? Somos os quenão crêem na utopia? Será que este foium sonho moderno para que nos inter-essássemos permanentemente pelofuturo, descuidando de nosso presente?Utopia se associa à perfeição, e o serhumano é humano por ser imperfeito.Como afirma Jose Luis Pardo, o serhumano é um ser que pode cair, pois oque o sustenta não é o equilíbrio e sim odesequilíbrio. É esta possibilidade decair que nos une. Vivemos para não cair.Inclino-me, com Foucault, pelas hete-ropias. Conhecer a queda não nos fazpensar com o cérebro, mas com oombro, para poder usar o outro para quenão caia. A sociedade que aspiramos é

aquela em que os espaços são compar-tilhados não como entregas, mas comodiálogos.

Essas heteropias poderiam se alimentarde um ideal ecologista. Nós deveríamosdeixar os purismos modernistas e mer-gulhar nos ensinamentos de nossosnativos. Nossos irmãos Incas deram-noso “Pachamama”, a mãe-terra à qualdevemos adoração e empatia. Resga-temos nela o valor genuinamente revolu-cionário que Marx conceituou para nós:o valor de uso. Para isto serianecessário ultrapassar a racionalidadeinstrumental e nos colocar em umavisão cosmológica – somos do mesmosangue que circula pela natureza, emtoda sua abundância.

Para potencializar este ideário, serianecessário enfrentar radicalmente omecanismo desumanizador do capita-lismo: o valor de troca, que ele concebecomo desmatamento, como destruiçãode um rio, como abstração simples quederivará em mercadoria. A desmateriali-dade do mundo construiu uma perversametafísica em que a natureza tornou-seum corpo vazio de sua abstração. Esseprocesso sacrificou a felicidade dahumanidade, polarizando ricos e pobres.A produção está a serviço de uma sofisti-cação que ostenta brilho e que escondeas profundas desigualdades.

Mudar o nome das coisas

Romper com essa cultura de troca im-plica mudar os nomes das coisas. Énecessário parar de falar de clientes efalar de cidadãos. Será necessário revi-sar a palavra privada e remover suaforça predadora. É necessário tambémrepensar o Estado e apagar sua lógicaanuladora. Que este seja o motor do queé público e que não coisifique o ser, con-vertendo-o em simples ficha das ideolo-gias. Que a democracia seja fim e meioao mesmo tempo. Que o protagonismoseja uma concreção, não um teatro pro-selitista. Uma democracia não é a somade todos, nem a síntese de todos, massim uma rede de diálogos que nãoprocura um consenso estéril e sim osangue da diversidade.

Sobretudo, o Socialismo tem de serético. O que implica que seu mais carodesejo deve ser criar seres humanoslivres e responsáveis. A liberdade emsua dimensão absoluta é uma perversi-dade, porque se alguém tem liberdadeilimitada, em algum momento se apro-pria da liberdade dos outros. A ética éessencialmente a ação que dota o serhumano de capacidade para atuar semcoerção. Para isto, é necessário um pro-fundo processo educativo que conceba oser humano não como uma máquinaaprendiz e sim como um ser que seforma. A partir dele, o Estado Socialistadeveria desescolarizar a escola, dotá-lade um clima ecologizante que permeiesua formação por todos os espaços físi-cos e espirituais do ser humano. Estaética socialista tenderia a priveligiar apolítica.

Por último, quero reafirmar que a lutacontra o capitalismo deve ser dirigidaessencialmente contra sua racionali-dade, sustentada na submissão dasociedade pela lei do valor de troca. Essatransição tem de se ocupar em radi-calizar a deslegitimação do capitalismo.Não se trata de preparar um aparatopropagandístico que venda o socia-lismo como uma mercadoria ideológica.Trata-se de planejar um mundo exem-plarmente, onde o sentido desumano docapitalismo se evidencie. Não é umaprédica contra os ricos, mas umadesconstrução do modo de enriqueci-mento que gera material e pobrezaespiritual.

Tradução Geo Britto

Page 34: Global Brasil 08

GLOBAL 32 Universidade Nômade

Os dados do Ministério da Educação

divulgados em abril mostraram que o

desempenho dos alunos bolsistas do

Programa Universidade Para Todos

(PROUNI) foi superior ao de outros estu-

dantes no Exame Nacional de Desem-

penho de Estudantes do Ensino Superior

(ENADE), antigo Provão, em 2006. Entre

tantas análises possíveis, o resultado

evidencia o caminho das políticas

implantadas na área social no Governo

Lula: transformar de dentro para fora. A

principal mudança ocorrida com o

PROUNI foi transpor a barreira interna

dos alunos de escolas públicas sobre as

chances de “vencer na vida”. O PROUNI

altera a percepção que o estudante tem

de sua potencialidade e de seu futuro: o

desejo move esses milhares de estu-

dantes para dentro da Universidade.

Rapidamente, os “especialistas” defen-

sores de privilégios e do status quo vão

aos jornais e anunciam o descobrimento

dos “culpados” pelo bom desempenho

dos bolsistas do PROUNI. Entre tantas

explicações estão a baixa qualidade dos

alunos do ensino superior privado; a

tranqüilidade para estudar que os alunos

atendidos pelo Programa Universidade

Para Todos têm, já que possuem bolsas

integrais ou parciais; o esforço dos bol-

sistas para manter a média escolar, pois

perdem o benefício caso tenham

aproveitamento abaixo de 75%. Mas,

parece que os especialistas esquecem

do mais importante: a oportunidade que

os alunos do PROUNI têm de fazer um

curso superior é a chance de fazer o

futuro presente. Aquele futuro que

jamais se realizaria parece estar, a partir

de agora, ao alcance deles. Essa é a

transformação em curso na vida desses

estudantes: o orgulho de fazer parte da

história e de construir a própria história.

Imaginem uma escola pública da perife-

ria com dificuldades operacionais, de

infra-estrutura, com professores sobre-

carregados e com pouco estímulo. Um

aluno que trabalha o dia todo e chega

para as aulas já cansado. Essa é a reali-

dade da maioria dos estudantes do sis-

tema público de ensino médio brasileiro.

Com uma história tão complicada, seria

muito difícil oferecer algum incentivo a

esses alunos para que permanecessem

no ensino público de olho no vestibular

e no ingresso ao ensino superior. “Que

chance eu teria diante de alguém que

estuda pela manhã, estuda à tarde em

casa e relaxa na academia no início da

noite. Todos os dias”, diria um desses

muitos brasileiros lutadores. Mas, partir

de 2005, mesmo com tantos problemas,

esse aluno que está no ensino público

passou a ter uma esperança com a cria-

ção do PROUNI.

Estudantes

da rede pública

têm desempenho melhor

que não-bolsistas do

projeto do governo federal

no ENADE

Fábio Goveia

PROUNIe o futuro-presente de milhares de brasileiros

Bandeiras à brasileira,de Jorge Fonseca, 2006.

Madeira e lata, 117x145 cmFoto de Eduardo Câmara.

Page 35: Global Brasil 08

Universidade Nômade 33 GLOBAL

Números e auto-estima

No primeiro ano do programa, cerca de100 mil bolsas foram ofertadas aos estu-dantes. Já no primeiro semestre de 2007foram mais de 108 mil bolsas (entre bene-fícios parciais e integrais) disponibili-zadas em todos os Estados do Brasil. Omaior número de bolsas foi oferecido emSão Paulo: 36.460. Para além dos númerosque podemos destacar como extrema-mente positivos, ao ampliar de fato o nú-mero de vagas ocupadas por alunos compoucos recursos financeiros a um cursosuperior, o PROUNI está mudando a formacomo o estudante do ensino público étratado pela sociedade. O programa acer-ta em cheio a auto-estima destes alunos.

Durante muitos anos, os alunos do ensi-no público estiveram sempre em desvan-tagem competitiva durante a passagemdo ensino médio para o ensino superior.Com isso, um número cada vez maior depais faziam um esforço sobre-humanopara matricular seus filhos em escolasparticulares que, teoricamente, teriamum ensino de melhor qualidade. Na ten-tativa de permitir melhores chances aosseus descendentes, trabalhavam mais,se esforçavam mais, lutavam mais eassim conseguiam pagar uma escolaparticular. Além disso, uma verdadeiramáfia-indústria de cursinhos pré-vestibulares se instalou no Brasil.

Além da mudança imediata na competiçãopor uma vaga no ensino superior, oPROUNI estabeleceu novos patamares deonde os alunos podem observar o vestibu-lar. O programa deu uma esperança àque-les alunos sofridos das escolas em franga-lhos das periferias brasileiras. Este alunopassou a ser olhado como um sujeito queexiste na sociedade, a partir do momentoem que ele possui chances reais de ingres-sar na faculdade, de virar “dotô”, de as-cender socialmente. A escola pública deixade ser apenas espaço-violência-destituído-de-valor e passa a ser local de sonho. A val-orização desses espaços mudará o modocomo os próprios usuários olham. Os paisde um aluno que hoje cursa a oitava sériedo ensino fundamental numa escola públi-ca estão pensando duas vezes antes detrocar seu filho para um colégio particular.Cabe agora aos governantes e gestores daeducação a devida atenção para potencia-lizar esse desejo de permanência no sistemapúblico de ensino. Com a permanência des-ses estudantes no ensino público melhora aauto-estima de todos os envolvidos naeducação pública: do aluno ao ministro daEducação. Mas, como não é apenas deauto-estima que vivem os estudantes,cabe também melhorar a qualidade dessesespaços de educação. Contudo, a primeiramudança já aconteceu. E de dentro parafora: ficar no ensino público não significaestar fora do ensino superior. Essa relaçãofoi rompida. Espero que para sempre.

Em resumo, o PROUNI conseguiu au-

mentar o ingresso de jovens discrimi-

nados socialmente no ensino superior;

deu um golpe profundo na poderosa

máfia dos cursinhos pré-vestibulares e das

escolas particulares; e levantou a auto-

estima dos estudantes do ensino médio

público. Ainda há muitos problemas na

educação pública, mas o Programa

Universidade Para Todos começa a recu-

perar o orgulho dos milhões de alunos

que estudam no ensino público. Talvez

esse seja um resultado difícil de ser

percebido de imediato, mas certamente

será, num médio e longo prazo, um dos

mais importantes benefícios trazidos

pelo Governo Lula.

Page 36: Global Brasil 08

D E Q U E M É O R A C I S M O ?

GLOBAL 34 Universidade Nômade

Imprensa se comporta

como órgão difusor

do neoescravagismo

ao patrulhar a ministra

Matilde Ribeiro

por ter afirmado

que racismo é quando

uma maioria impede

o direito dos outros.

Alexandre do Nascimento

Recentemente, em entrevista para arádio BBC Brasil (seção brasileira daBBC de Londres), a Ministra MatildeRibeiro, perguntada pelo entrevista-dor se no Brasil tem racismo tambémde negro contra branco, como nosEstados Unidos, deu a seguinteresposta: “Eu acho natural que tenha.Mas não é na mesma dimensão quenos Estados Unidos. Não é racismoquando um negro se insurge contraum branco. Racismo é quando umamaioria econômica, política ounumérica coíbe ou veta direitos deoutros. Um negro não querer convivercom um branco, ou não gostar de umbranco, eu acho uma reação natural,embora não esteja incitando isso. Nãoacho que seja uma coisa boa. Mas énatural que aconteça, porque quem foiaçoitado a vida inteira não tem obri-gação de gostar de quem o açoitou”.

O que foi dito pela Ministra é de fácilentendimento: quem sofre algum tipode discriminação ou opressão pode,em reação, praticar o mesmo comquem o discrimina ou oprime, emborano Brasil esse tipo de reação venhaem muito menor intensidade do queem países como os EUA ou África deSul, onde o racismo estabeleceu umaseparação completa entre negros ebrancos e teve respaldo legal. Aqui,por não haver uma distinção (formal)de direitos para os grupos raciaisexplícito em Lei e pela miscigenação,a dinâmica do racismo é diferente: a

exclusão se dá na própria convivênciaentre negros e brancos, submetendonegros e negras a constrangimentos,desprezo, desrespeito, depreciações ediscriminações que, entre várias coisasnegativas, produzem as imensas desi-gualdades raciais em todos os indica-dores sociais, intolerância e violência.

A democracia racial da imprensa

Pois bem, o interessante na polêmicaconstruída pelos grandes veículos deimprensa em torno da declaração daministra foi a própria atitude dessesveículos, que trataram o que foi ditopela ministra como racismo e inci-tação ao ódio racial, inclusive dandovoz a intelectuais que, no atual debatesobre cotas para negros nas universi-dades e sobre o projeto do Estatuto daIgualdade Racial, colocam-se comodefensores da ideologia da democra-cia racial que, como sabemos, é ummito. Isso foi feito com mais contun-dência pelo mesmo jornal que um diapublicou matéria que sustentava queaqui no Brasil o racismo é “cordial”,ou seja, acontece travestido dedemocracia racial.

Se houve manifestação de racismoparece ter sido do próprio jornal, quefoi desonesto e nada “cordial” ao afir-mar no título da matéria que a minis-tra disse que o “racismo de negro con-tra branco é natural”, abrindo amploespaço para os que têm interesse emcriar constrangimentos à Secretaria dePolíticas Públicas de Igualdade Racialpor discordarem dos discursos e pro-postas desse órgão, principalmentedas propostas de políticas de açãoafirmativa para acesso de negros adireitos como educação e emprego.Estes últimos sustentaram a posiçãodo jornal dizendo coisas como “todavez que alguém faz restrição a umapessoa ou a um grupo é racismo”;“insurgir-se contra alguém pela suacor, seja ele preto, branco ou amarelo,é racismo”; “esperamos uma retra-tação formal da ministra sob o risco devoltarmos a aplicar a lei do talião emplena democracia”; “uma coisa é con-siderar natural, outra é sancionarisso”; “o racismo é um mal que assolaa humanidade no mundo contemporâ-neo e assume várias formas. O Brasiltinha se caracterizado justamente porreprimir esses sentimentos em termos

históricos, pelo menos desde aabolição (1888)... o que a ministra fez émuito grave. É mais do que racismo, éincitar o ódio racial” (sic).

Considerando que a declaração daministra não contém racismo e muitomenos faz incitação ao ódio racial –faz no máximo um uso inadequado dapalavra “natural” – e que esta declar-ação foi veiculada na mesma imprensaque, em seu editorial do dia 05/07/06(um dia após professores e ativistas domovimento negro terem entregado aoCongresso Nacional um manifesto emfavor da aprovação dos projetos decotas nas universidades e do estatutoda igualdade racial), declarou que ascotas raciais nas universidades con-stituem uma ameaça ao ensino superi-or, é de causar nojo a idéia explícita deque a ameaça está na cor da cota e nãona cota.

A imprensa e o neoescravagismo

De fato, boa parte da imprensa noBrasil comporta-se como porta-voz deuma espécie de neoescravagismo aonão tratar como racismo, por exemplo,a violência policial contra jovens negros,ou não enxergar racismo na atitudediscriminatória da Prefeitura do Rioque proibiu a presença de cursos pré-vestibulares para negros e carentesnas escolas municipais, posicionando-se ao mesmo tempo (com argumentosbaseados em preconceitos raciais)contra as cotas para negros nas univer-sidades. Obviamente, trata-se de umaproposta da qual se pode discordar; oproblema está nos argumentos utiliza-dos, repletos de preconceitos raciais.

A ministra Matilde Ribeiro fez restriçãoou se insurgiu contra alguém pela corda pele e incitou ódio racial? Sua decla-ração sancionou o racismo em umasociedade sem racismo? O Brasil pas-sou a reprimir o racismo a partir da abo-lição formal do instituto da escravidão?O grande erro da ministra ao fazer adeclaração que fez foi esquecer oudesconsiderar o racismo (nada cordial)das oligarquias brasileiras, que jáexternou (sem críticas da grandeimprensa) o desejo de se livrar da“raça” que está no poder.

Tudo sempre começa bem,de Alexandre Vogler.

Museu da Universidade do Ceará, 2003.

Page 37: Global Brasil 08

35 GLOBAL

Page 38: Global Brasil 08

Camelô [[ a exceção singular ]]

GLOBAL 36 Universidade Nômade

Quem acompanhou na Revista Global n. 7 a entrevista da líderdo movimento de trabalhadores informais pode ter se espanta-do com o teor das reivindicações. Perguntada se quer carteiraassinada e salário fixo, Maria dos Camelôs foi enfática emrejeitar a idéia de “ter patrão, ter horário”. Afrontou certosenso comum: achar que a “solução” para os camelôs seriaincluí-los no trabalho formal, protegendo-os com os direitos egarantias trabalhistas, permitindo que eles abandonem assim aprópria marginalidade ao sistema. Mas a militante não apenas“gosta do que faz”, como também avalia que aufere maisrenda como informal do que conseguiria com a carteira assi-nada: “Quando eu trabalhava de carteira assinada, ganhavaum salário mínimo. Sem condições.”

Mais do que simplesmente trabalhar fora da relação de subor-dinação, Maria busca uma renda que o trabalho formal nãopode lhe proporcionar. O problema dela não é o desemprego,mas o não-reconhecimento de um espaço livre de trabalho:“Não quero emprego. Quero trabalhar!” De plano, boa partedos defensores do direito trabalhista diria que a recusa em par-ticipar do direito do trabalho é um retrocesso. Afinal, comoassegurar os benefícios constitucionais e legais se o traba -lhador evade-se das relações normalizadas pelo direito? Comoconstruir a segurança social quando aqueles que mais pre-cisam dela insistem em colocar-se à margem da lei?

Acontece que, na prática, os camelôs não se conformam àsregras do jogo do poder constituído. Não lhes interessa teremprego. Não se ajustam a identidades sociais pré-formadas(daí serem rotulados como “bandidos”). Preferem não gozar debenefícios trabalhistas – que no final das contas convergempara baixa renda e subordinação – para dispor de uma formade vida que eles próprios criaram e cultivaram entre si. Os tra-balhadores informais inventaram um “fora” que a máquinajurídica da soberania não pode aceitar. Como o funcionamentoda normalização concentra-se na inclusão da exceção, pormeio das tecnologias de controle da polícia (no sentido amplo),não é acidental que, variando apenas o método, todos queiramenquadrar os camelôs dentro das estruturas enrijecidas dopoder constituído.

O movimento dos trabalhadores informais subverte a lógica da sociedade decontrole e resiste ao poder constituído

Bruno Cava e Alexandre Mendes

Eu sou imoral, de Edson Barrus.

Page 39: Global Brasil 08

Universidade Nômade 37 GLOBAL

O movimento camelô expressa uma singularidade. Eles não seopõem ao trabalho assalariado dentro da hierarquia capitalista.Não são reativos: não se reuniram em um movimento contra otrabalho formal. Diferente disso, afirmam uma forma de vidasingular que se projeta em comportamentos, desejos, relaçõesafetivas, em um estilo próprio. Uma estética da produção. Nasua singularidade, o trabalho informal socializa a produção, noespaço comum das ruas, da linguagem coloquial, da economiapopular. Ele se constitui em produção, e produção do comum.

Camelô e preso: figuras intercambiáveis

É precisamente ao singular que o poder soberano respondecom a exceção. Pensemos no sistema prisional... aliás,camelô e preso são figuras intercambiáveis: “Se não fosse aRENAP estava todo mundo preso”. Todo o direito penalhumanista é construído com base em práticas punitivas quese apóiam na ressocialização preventiva. Apontando noinfrator um comportamento anormal, a meta passa a ser nor-malizá-lo, de maneira que possa ser re-inserido na sociedadede controle. Enquanto a singularidade dos não-conformadosé feita delinqüência, a prisão fabrica a delinqüência, que éindispensável ao exercício da norma. A delinqüência torna-seidentidade excepcional, que desborda da prisão e dissemina-se moduladamente no corpo social. Todos nos tornamospotenciais delinqüentes, então somos submetidos às tecnolo-gias do poder: biométricas, policialescas, invasivas. Ascâmeras de vigilância permanentemente apontadas para asruas de Londres e São Paulo são somente sintomas. O espaçopúblico assemelha-se cada vez mais às prisões e ao campo deconcentração.

Nada pode ficar “de fora”. O poder constituído quer açambar-car toda a vida. O projeto do biopoder é totalitário e, não poracaso, opera com conceitos totalizantes: população, povo,nação. Captura a vida para explorar suas energias produtivas.Frustra formas de vida que escapam aos tipos sociais domesti-cados e úteis à expropriação do capitalismo, que o podersoberano organiza e mantém. A gestão da vida dentro demoldes de expropriação e controle anima o biopoder.

Tomemos a recente lei “anti-drogas”: a fim de assenhorear-seao máximo da vida, explode a exceção em um continuum demarginalidade, com tipos penais abertos, praticamente embranco. Qualquer comportamento ligeiramente associado àsdrogas ilegais conduz à identidade “traficante”. A lei indeter-mina-se. É o funcionamento da exceção soberana: fazer dela anorma, diluindo o excepcional em todo o corpo social, possi-bilitando destarte a penetração do biopoder.

Resistir com o corpo

Assim como os camelôs, os presidiários resistem. As freqüentesrebeliões em presídios muitas vezes são manifestações de umasingularidade ameaçada, que não se conforma com a destruiçãode sua forma de vida. Resistem com o próprio corpo exposto.Resistem não porque são normalizados, mas são normalizadosporque resistem. A resistência é primeira, assim como o direitode resistência é originário. A violência policial contra camelôse presidiários é uma medida de contra-insurgência. E no corpo-a-corpo físico, levam a pior: são discriminados, apanham,sofrem. Mas o sofrimento, quando não leva à aniquilação,aguça a resistência, fortalecendo o sujeito político.

Das identidades atribuídas pela contra-insurgência aosresistentes, a mais violenta opera na dicotomia humano/desu -mano. Quando a tecnologia de controle protege o humano dodesumano, atua com ilimitada violência contra o último. Aguerra humanitária significa considerar o outro lado desmere-cedor de qualquer garantia. Daí ser exposto como um animal,por vezes diante das câmeras, por outras enjaulado em camposde concentração. O “desumano” situa-se aquém do prisio -neiro, como os “combatentes ilegais” de Guantánamo.

Recentemente, um escrito de Renato Janine com declaraçõesambíguas sobre a tortura e pena de morte sofreu veementereprovação pelo mundo intelectual. E com muita razão – e sen-sibilidade! Só que a maioria não percebeu um aspecto espe-cialmente sinistro no referido artigo. Começando um trecho como sintomático “Quem é humano?”, o professor de ética lamentaque deixemos aos presos a “tarefa de matar quem não mereceviver”. E diz ainda que a huma nidade não apenas se ganha, mastambém se perde. Em suma, sustenta com todas as letras a pos si -bilidade de o poder soberano decidir sobre o humano e o desu -mano, quem merece ou não viver. Não há forma mais perversa denormalização que o extermínio, rondando, aí sim, o estado nazista.

Diante do estado de exceção que se aprofunda em nossa mod-er nidade, nossa tarefa ainda é a de produzir um estado deexceção efetivo (Benjamin). Enquanto a exceção soberanabaseia-se na captura da vida pelo biopoder, mediante asupressão das singularidades e a contra-insurgência norma -lizadora, a exceção efetiva só pode emanar da liberdade radicaldas singularidades, que colaboram em rede e põem sua formade vida como resistência biopolítica, logo produtiva. Contra oprocesso totalitário de fazer a lei indeterminar-se em vida, fazera vida – a potência infinita da vida – indeterminar-se em lei. Àexceção soberana que neutraliza a singularidade, a exceçãoontológica que propicia à vida a expressão constituinte e pro-duz, no sentido da terra, os direitos.

O problema dos camelôs não é o desemprego, mas o não-reconhecimento de umespaço livre de trabalho: “Não quero emprego. Quero trabalhar!”

O projeto do biopoder é totalitário e opera com conceitos totalizantes: população, povo,nação. Captura a vida para lhe explorar as energias produtivas. Frustra formas de vida –como a dos camelôs – que escapam dos tipos sociais domesticados.

Page 40: Global Brasil 08

GLOBAL 38 Maquinações

A proposta de introduzir numa Bienal o instante fugaz em quea potência política se alia ao gesto estético é de uma pretensãoà altura da incompreensão da natureza desses fenômenosacontecimentais. Quais são os dispositivos teóricos e práticosque permitem apreender o evento estético-político? Como abrirespaço e tempo para a criação estético-política? Como trans-formar a instituição de espetáculo em um terreno de experi-mentação? Em outros termos, como deixar acontecer? Nãoseria justo afirmar que na última Bienal o imprevisível não deuas caras. Pois ele aconteceu sim, na relação de força entre osartistas convidados e a instituição: a censura aos bloqueadoresde celulares de Marcelo Cidade, ao projeto do mexicano HectorZamora, e ao Guaraná Power do Superflex foi o melhor que aBienal produziu. O embate político liberou a criação artística.

No entanto, a incapacidade de perceber a possibilidade abertano conflito que se instaurava levou a curadoria a uma posiçãoequivocada. Refugiou-se atrás do presidente da instituição que,preocupado com os constrangimentos que toda censura acar-reta, disse que a instituição “não é o palco adequado para dis-cutir relações de caráter comercial” (UOL 04/10/2006). Ora,instituições como Bienais não estão no epicentro das relaçõescomerciais – materiais e imaterias – que permeiam o campo daArte, dos artistas e dos discursos que os legitimam? Por queem vez de travestir a instituição em palco de falsa convivência– num viver juntos – não assumí-la como palco dos necessáriosconflitos que podem provocar o acontecimento criador?

O evento Foucault e Negri ou como juntar força con-ceitual com militância política

Após duas décadas de sonolência, o ativismo social encontrounovo fôlego num ciclo de lutas globais: manifestações contra oG8, a OMC, o FMI e, desde 2003, contra a invasão do Iraque.Desde Seattle em 1999, houve um renascimento dessas lutasinspiradas emmaio de 68, período no qual os jovens da Europae dos Estados Unidos iniciaram um processo que contagiou omundo. Infelizmente, na nossa América Latina, frente àirrupção de potência daqueles anos, os poderes constituídosefetuaram o golpe que inaugurou o ciclo mais terrível de nossahistória recente. Terrível, mas resistente: Oiticica parangoleia,Clark experimenta, gerando uma anti-Arte. Retornando àEuropa: naqueles anos de “imaginação no poder”, contrarian-do intelectuais que, nas clausuras das academias, preocu-pavam-se com universais que não davam conta da ebuliçãosocial, Foucault, na França, e Negri, na Itália, conjugaram emsuas mentes e em seus corpos fertilidade intelectual comativismo político. Militantes de todas as classes sociais alimen-taram suas práticas com as inovações teóricas desses autores.

Algumas dessas práticas tinham efetivamente grande forçaestética, apesar da inexistência de pretensão Artística.Participar da liturgia dos museus não fazia parte de suas preo-cupações. Entre as manifestações iconográficas daquelemomento, destaco os cartazes do Atelier Populaire de Paris: emmaio de 68, estudantes e operários realizaram inúmeros car-tazes de grande impacto visual. Em sua luta contra as institui-ções do poder e do saber, certamente não cogitavam outrolugar de exposição que não fosse a rua. Não se tratava de uma“anti-arte”, mas de uma tática ambígua de um “nem Arte, nemAnti-arte”. Uma produção inclassificável porque sempre em

movimento: nômade. Inclassificável porque sempre hete-rogênea: monstruosa. Deleuze e Guattari também contribuíramdando a esses expressivos militantes o vigor teórico de que pre-cisavam; eles retribuíram, dando a força estética que essesautores desejavam. Estetização da política (não aquela pro-movida pelo fascismo e denunciada por Benjamim, mas umaestética produzida por muitos e reproduzível para muitos) epolitização da arte avançaram juntos em 68.

Foucault morreu em 1984, mas sua “artilharia” teórica – forja-da nas suas lutas públicas e privadas – continua disponível atodos que pretendem compreender os mecanismos de poder eresistência nos discursos. Negri reconhece a influência deFoucault que deve ser incluído entre os autores que traçam alinha “maldita” de seu pensamento, pensamento que é hojereferência para os movimentos globais e locais, sejam elesartísticos ou não. Em última instância, são esses movimentos (enão os vassalos das instituições) que poderão confirmar se essaartilharia teórica é potente ou não.

Nem Foucault e nem Negri debruçaram-se demoradamentesobre a Arte. Contudo, sua teoria e sua prática política prestam-se à análise da constituição desse campo específico. O simplesdizer “o que é” e “o que não é Arte” é disciplinamento e con-trole do espaço e do tempo dessa curiosa forma de conheci-mento. Seleção da área e do momento de exposição, seleçãodos artistas, das obras e de seus suportes e, finalmente,seleção dos discursos que legitimam a todos. Como evitar umaconstrução autoritária? Como evitar, por exemplo, a delimi-tação eugênica de um campo que reduz a jargão toda teoriajulgada inconveniente pela crítica arrogante? É evidente que oproblema não pertence unicamente às Artes. Ocorre também noDesign. Pois a constituição de todo campo se dá através doexercício dos podres poderes constituídos, cuja característicafundamental é a redução da multiplicidade de discursos a umsó discurso legitimado. É possível escapar a esse estéril exercí-cio? Manter o campo aberto à relação com outros campos é umcomeço. Manter o campo aberto à relação com outros movi-mentos sociais, artísticos ou não, é uma boa continuação. Emtodas e entre todas essas situações, a pluralidade de experi-mentações preparou o terreno para o possível acontecimentodo novo: novos saberes, novos discursos, novas imagens,novos olhares.

Estética da multidão

Em Estética da Multidão, analisei processos que, por seremmuitos, são avessos a toda forma de classificação e que, porestarem sempre emmutação, são avessos a toda forma de cap-tura. O avesso do avesso do avesso do avesso: subversões,inversões, carnavalizações e semiofagizações propostas pelaslutas sociais globais no império contemporâneo. Mimetizandoseus movimentos, transitei da teoria política às práticas estéticasexperimentando, para além das aparências acadêmicas, umtateamento despretensioso dos terrenos estético e político queme permitiu evitar as certezas totalitárias de cada campo espe-cífico. Ao final do livro, baseando-me em Poder Constituinte deNegri (ou seja, a partir de um “fora” do campo constituído dasArtes), abordei a subversão de um espetáculo midiático (alegitimação da guerra do Iraque pelas imagens catódicas daqueda da estátua de Saddam em Bagdá) em evento multitu-

V I V E R J U N T O S ?Barbara Szaniecki

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CONV IVÊNC IAS E CONFL I TOS CONTEMPORÂNEOS

Maquinações 39 GLOBAL

dinário (a crítica da guerra através do irre-verente tombamento de uma falsa estátuade Bush em Londres). Do ritual ao inespe-rado: procurei o léxico adequado para dizero que até então era indizível ou mal-dito.

Nem “Arte social engajada”, nem “Arte-ativismo” e nem “práticas Artísticas cola-borativas” satisfaziam, na medida em que“aquilo”, para mim, não era necessaria-mente Arte, nem necessariamente anti-Arte. Simplesmente essa questão não meinteressava. O até então indizível foi desig-nado como o ansiado acoplamento entreuma expressão estética e uma potênciapolítica, como o imprevisível encontro daestetização da política (mais uma vez, nãose trata daquela que angustiava Benjamin,ou seja, de uma fonte única, totalitária emanipuladora de massas) com a politi-zação da arte: uma estética de potênciapara além da representação do poder,uma estética da multidão.

Ora, essa estética constituinte, por serum excesso sempre em mutação – ummonstro, no maravilhoso vocabulárionegriano – felizmente não “cabe” numlivro. E ainda menos numa Bienal, pois oproblema da última edição em São Paulonão foi certamente a quantidade deespaço disponível, mas a falta de quali-dade na relação entre teoria praticável eprática teorizável. Falta da compreensãode que coletivos de Artistas são even-tualmente cooptáveis e cooptados, masseus monstruosos processos de coope-ração e o comum que deles resultaresistem vivamente na polis real e vir-tual. Esse monstro é a própria vida quenão “cabe” nem mesmo dentro de umenorme pavilhão, orientado por duasinteressantes linhas oiticicanas e sob umtítulo espetacularmente sedutor. O proje-to é louvavelmente ambicioso, os recur-sos são poderosos, no entanto o eventovital escapa por todos os lados pois nãoé possível reduzir as práticas sociais dosmuitos para muitos a uma Arte depoucos para poucos. A vida resiste nosconflitos políticos dos quais procureiapreender as livres expressões estéticasnas ruas das cidades e nas páginas dainternet. Nesses espaços comuns, aquestão que se coloca à multidão con-temporânea não é um “como viver jun-tos”, mas um “como lutar juntos”. Paraconseguir abordá-la, só assumindo aber-tamente o conflito em vez de camuflá-lonuma hipócrita convivência.

Tridente, de Alexandre Vogler. Foto de João Laet.

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GLOBAL 40 Maquinações

Da fome à vontade de comer: a mais-valia da vidaFrei Betto culpa a geladeira pela fome dos pobres Segundo um dos ícones

do marxismo cristão,

antes os pobres tinham

arroz, feijão e farinha

para comer, mas depois

veio a geladeira

e com ela a fome,

uma vez que os pobres

resolveram comprar

refrigerante e sorvete.

Rodrigo Guéron

Sandálias da umidade, de Helio Branco, 2006.Tiras de sandália havaiana e línguas de boi, dimensões variáveis.

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Maquinações 41 GLOBAL

Capital e controle

O capital, quando reduz o cidadão à dimensão de “consumi-dor", esvazia a função ativa que ele pode ter na produção debens. Por isso, o próprio capital põe em suas vitrines subje-tividades prontas, instigando-nos todo o tempo a “escolherum estilo”, a dizer “como é nossa personalidade”, ou “do quenós gostamos”. Ele controla o processo produtivo, transfor-mando a nossa capacidade produtiva em repetição, em usomaquinicamente servil do corpo, em pura reprodução nalinha de montagem e na linha de consumo, paralisando assima dimensão constitutiva de valores, e, portanto, de inovaçãoética e política, que a produção de bens, quando é de fato pro-dução – e não reprodução – pode ter.

Aí está o “coletivismo” do capital: a padronização, a serializa-ção das subjetividades, embora esse mesmo marxismocristão caia na simplória polarização “individualismo x cole-tivismo”, acusando o capitalismo de ser individualista (nãovendo esses seus violentos processos de coletivização) eopondo a este individualismo o seu coletivismo transcen-dente: o bem em si que querem ver “resgatado”. Neste caso,a briga do marxismo cristão com o capital é um tiroteio detranscendentes no qual nós, simples mortais em nossas sub-jetividades, tentamos escapar.

O ato ético quando se constitui socialmente como um atopolítico é, antes de tudo, um ato produtivo, inventor de vidae, portanto nada transcendente. É a própria linguagem comocorpo que se estende (prótese) no entrelaçar de corpos quecria o corpo social: a subjetividade coletiva como uma singu-laridade é, por sua vez, a constituição de um aparelho, umatecnologia, através da qual a vida se produz. Ter a geladeiracomo algo que traz o mal é, além de condenação moral dodesejo, a condenação moral da tecnologia como expressãocriativa do desejo. De novo emerge um homem puro, autên-tico: uma versão da “natureza humana” e das grades opres-soras do humanismo.

Mas é este mesmo humanismo que separa a técnica e amáquina da vida, reificando-a quando a compreende comosímbolo da civilização e do progresso da razão, como efeti-vação de um destino pré-determinado. De novo uma“natureza humana” distinta daquela “pura” do pobre semgeladeira, do qual o Frei tem nostalgia; mas com a mesmaestrutura de um pensamento constituído, essencialista, típicodo poder. A máquina é, antes de tudo, nós mesmos na pre-tensão vital de se estender – “se expandir e se afirmar navida”, como dizia Nietzsche – máquina desejante. Assim, ageladeira, ou seja lá o que for, não encerra nada em si mesmacomo símbolo de progresso ou de superioridade cultural. E,da mesma maneira, ela não deve ser condenada em simesma. Esta máquina, ou qualquer outra, instaura possibili-dades, sentidos possíveis a serem criados porque passa a ternovas linguagens, novas técnicas, novas tecnologias,máquinas viventes, viventes máquinas, fabricando-se cadavez mais: vitalismo contra todos os humanismos.

O excesso, ao contrário do que diz Betto, é a melhor

coisa da vida, no sentido do “a mais”, do que

“diferencia”: é o lugar onde se constrói a felicidade

Citando o que teria sido dito por Carlinhos Brown, que eletoma como uma verdade sua, Frei Betto, em artigo recente-mente publicado, botou a culpa na geladeira pela fome dospobres. Segundo um dos ícones do marxismo cristão, antesos pobres tinham arroz, feijão e farinha e algo mais em casapara comer, mas depois veio a geladeira e com ela a fome, jáque os pobres resolveram comprar refrigerante, sorvete etc. etal. A fala do Frei soa um senso comum intelectual bem cor-rente que reterritorializa o moralismo cristão num pensamen-to supostamente de esquerda e que condena moralmente odesejo. Trata-se de um conservadorismo bem instalado numaelite intelectual para a qual não faltam os bens de consumoque ela parece achar perigosa que os pobres os tenham. Écomo se estes tivessem que ser “culturalmente educados”,“aprender como é que deve ser feito”, antes de poder con-sumir ou de ter acesso ao progresso tecnológico.

Ter geladeira, sorvete e refrigerante seria um excesso; umquerer mover-se, um deslocamento cultural que, segundoesta lógica moral, deve ser sempre evitado em nome de uma“autenticidade”. É mais ou menos a mesma coisa que dizerque se as mulheres não tivessem desejado trabalhar, algunsdos males contemporâneos seriam evitados. É claro queexiste aí uma lógica do poder que se reafirma na compaixãocristã, que – na América Latina em especial – se atualiza emgrande parte no marxismo. Aqui, os guardiães da Razãocomo um bem transcendente confundem-se com os porta-vozes do Deus moral. O sábio jurista e o Deus jurista, duasversões do pensamento que se constitui na forma-estado. Ospobres que desejaram a tecnologia e seus bens são a desrazãona forma dos fracos, antes que o sejam na forma de bárbaros(e aí se instala o dualismo do poder, ou bárbaro ou fraco. Emtodo caso, de uma forma ou de outra, o perigo do pobre querergeladeira, computador e celular é que isso tenha acontecidoantes da evangelização ou da missão civilizatória “ou, ou...”

É evidente que o consumismo é um problema do capitalismo,mas de maneira exatamente inversa à que Frei Betto colocaem seu artigo, que Boff não se cansa de repetir, e que ainteligentsia marxista nacional reproduz maquinicamente. Oproblema do consumismo não é desejo demais, não é liber-dade demais, não é o excesso, nem muito menos é estetiza-ção da vida em oposição à ética. Ao contrário, o consumismo– e não o consumo – é um “menos”: uma despotencializaçãode nossas possibilidades vitais, criativas, num sistema decaptura do desejo e de redução padronizadora de valores. Aestética do shopping center está longe de significar a libe-ração das nossas possibilidades estéticas, e o moralismocatólico não foi menos estético para espalhar seus medos,seus mecanismos de controle, seus esquemas de introjeçãode culpa, suas maravilhosas sublimações e seus criativosdelírios artísticos e simbólicos. Há sempre uma expressãoopressora de poder nos discursos que opõem ética à estéticae conseqüentemente à política ao desejo.

O excesso, ao contrário do que diz Frei Betto, é a melhor coisada vida, no sentido do “a mais”, do que “diferencia”: é olugar onde se constrói a felicidade. E a felicidade num senti-do coletivo, isto é, político, é este “a mais”, esta “mais valiade vida”: esta diferença coletivamente construída. É isso quedá uma dimensão à vida para além de uma simples sobre-vida, de um corpo tal como querem, por exemplo, as ciênciasbiomédicas contemporâneas, ou de um corpo aprisionadonos padrões estéticos do que as grandes corporações do ca-pital chamam de “mercado”.

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GLOBAL 42 Maquinações

arteFui almoçar dia destes, na Toca de Assis,uma irmandade religiosa que fica lá noRio Comprido. Leigos militantes da práti-ca de S. Francisco de Assis. Hábitos comcalças por baixo, marrom, sandálias decouro, e corte de cabelo “a la santo”, coma cabeça raspada, deixando apenas umaestreita mecha, que forma uma auréolade cabelos à volta da cabeça. Jovens quecarregam sacos de batatas, que irão setransformar na refeição que será dividi-da por mais de sessenta pessoas.

Abre meio dia em ponto, e em mesasbrancas com uma garrafa d'água ecopos descartáveis, quase todos rezamduas tradicionais orações católicas. Oque me chamou a atenção foi a leiturade uma parte do Novo Testamento porum franciscano, no qual Jesus, emresposta a um seguidor, lhe explica oque fazer para chegar ao reino dos céus.Dizia ele: “É mais fácil um camelo passarpelo buraco de uma agulha do que umrico entrar no reino dos céus”.

A questão não está no fato de quem vaiconquistar algum reino, verdadeiro ouimaginário. O fato é que cada vez maiscresce a população nas ruas, e cada diaaumenta mais também a mobilização dasociedade civil em auxílio.

A pastora que vem de Kombi comalguns fiéis, profetiza mudanças.Olhando para a mais de uma centena deinfiéis que aguardam a quentinha,entendo que só uma revolução serácapaz de alguma transformação nestapequena multidão. Entretanto, vale apena aguardar enquanto a mesma fazsuas orações e prodígios, pois a comidavem muito bem temperada. Pimentão,cebola, alho e tomate, bem como folhasde louro, melhoram o paladar de arroz,feijão, batata e frango com duas bana-nas e água em um copo descartável.Menu diferente do MAP – movimento deamor ao próximo – de inspiraçãokardecista, onde arroz, feijão, angu ecarne moída não tem sal e tampoucooutros condimentos. Mas vem uma gar-rafa de água para purificar o maléficointerior dos necessitados. Em quase

todas as sextas-feiras, na esquina da RioBranco com a Presidente Vargas.

Também ali, kardecistas e evangélicos,mas sem oração, distribuem sopa compão, às quartas e quintas.

Legumes com macarrão e algum salga-do bem temperado, nestes dias onúmero de assistidos é menor, cerca decinqüenta, o que dá para alguns repe-tirem a dotação.

Os católicos fazem a festa, normalmenteaos sábados, com a melhor acabada ali-mentação. Um grande comboio commais de doze carros em bom estadoservem carne assada com batata oucostela com agrião, um pedaço de bolo,em sobremesa ou até pudim em umcopinho descartável. E uma garrafagrande de água para cada um.

Católicos também servem café damanhã, no Largo de São Francisco, aosdomingos pela manhã e, no mesmolocal e dia, um kardecista distribuialmoço em quentinhas.

Aos sábados de madrugada, pai e filha,ele ex-policial, servem café com leite epão com mortadela.

À meia-noite de sábado três grupos deevangélicos servem lanche, biscoito,guaraná gelado, cachorro quente, emtrês pontos diferentes da mesmaesquina. Sem dúvida, os católicos sãomais organizados e mais ágeis quanto àdistribuição de alimentos. Evangélicosdemoram-se em cantorias, fazendo-seaté acompanhar de pandeiros, preces,profecias e sermões, enquanto seavoluma uma fila crescente, com retar-datários de vários lugares, cujo interesseé apenas encher a barriga; e, geral-mente, faltam suprimentos para boaparte dos famintos.

Exercitam uma multiplicação degêneros, parcial e restrita, apesar doinútil esforço dos empolgados e gesticu-ladores profetas. Quanto aos católicos,por maior que seja o número de assisti-dos, sempre sobram gêneros. E não temreza, exercitam a distribuição simples-mente, não há representantes da igreja,apenas fiéis, sendo que os evangélicosvêm com pastores, pastoras e profetas,que, como os kardecistas, distribuem fili-petas com propaganda.

Nas esquinas da Rio Branco com Presi-dente Vargas, a população é flutuante,dormem ali mais para receber os ali-

mentos. Contudo, no Largo de São Fran-cisco, moram várias famílias com muitascrianças, sendo que no Largo de Camões,atrás do IFICS, aos domingos de feriados,evangélicos distribuem cachorro quente,com coca-cola, após demorada pregação.

A multidão é bastante variada. A maioriaé de brancos – 80% – e negros.Praticamente todos mal vestidos, e osque têm boa roupa, receberam na ruamesmo. Praticamente ninguém lê nada.Então como se pode transformar umaoutra pessoa, se ela é que é dona do pró-prio destino? Bom aí acontece uma práti-ca quase impossível. A de aceitar umaoutra pessoa em sua totalidade, quali-dades e defeitos. Para tanto, é neces-sário primeiro ter consciência de que nin-guém é perfeito. Ninguém, nem Papa,pastores ou bispas, todos têm o seuaspecto negativo, geralmente encobertopor uma aparência social. Então é pre-ciso primeiro a pessoa aceitar ela mes-ma, qualidades e defeitos, integralmente.

Aí a outra passa a se transformar poraceitação. Que, aliás, está na Bíblia:“Ama ao teu próximo como a ti mesmo!”Assim acontece uma mudança pratica-mente invisível, mas acontece. Dentroda dialética ordem natural das coisas. Éuma evolução.

Se os ricos podem mandar fabricar umaagulha em tamanho adequado para pode-rem passar pelo buraco sem problemas,para os pobres viverem uma revoluçãosocial é como passar por um moedor decarne. Isto porque a revolução tem queacontecer aqui na terra mesmo.

Logicamente, a transformação revolucio-nária não é uma adaptação ao sistemasócio-político vigente, uma pequena me-lhoria financeira que possibilite comprarum prato de comida e uma calça nova equatro paredes para poder residir dentro.

Esta transformação começa pela própriapessoa – aquela que for revolucionária.Primeiro começa na consciência, interi-ormente, através do conhecimentomaterial objetivo – não seria o “reino doscéus” o campo das idéias objetivas? –para depois se projetar ao exterior mate-rial. Aí ela passa a estar livre de todo umsistema de pensamento, e pode viver aliberdade da construção de um novo.

E Liberdade é proibida em um sistemade exploração. Porém, ela é tão neces-sária para a sobrevivência quanto a águae o ar. Quem não é livre, por mais quetenha, não vive uma vida plena. Passa a

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Maquinações 43 GLOBAL

Quem não é livre, por mais que tenha,

não vive uma vida plena.

Passa a existência toda sonhando em ser livre

e confundindo liberdade com poder.

culinária

existência toda sonhando em ser livre, econfundindo liberdade com poder. Nãoconsegue eliminar do seu interior medo,ódio, raiva e vingança. Não importa areligião professada. Alimenta-se apenasa revolta, e não a revolução verdadeira-mente transformadora.

E uma revolução só é verdadeira quandoparte do povo. A revolta é apenas umestágio anterior à revolução.

São milhares de pessoas que moramnas ruas; só no centro da cidade sãomais de dois mil que, se não recebessema comida doada, explodiriam em revoltapara não morrer de fome.

No domingo de Páscoa pela manhã, naRua Uruguaiana, bem em frente aocamelódromo, católicos serviram aaproximadamente trezentas pessoas –homens, mulheres e crianças – choco-late quente com sanduíche, ao invés docafé com leite, como fazem habitual-mente nos demais domingos.

Milton Marques

(Militante nômade)

Vaca sercada, de Jorge Duarte, 2007.Acrilica e arame farpado s/tela, 138x185 cm. Foto de Eduardo Câmara.

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GLOBAL 44 Maquinações

As cidades, com algumas variantes,desenvolveram-se a partir de um centro,tendo como seu limite a periferia, cer-cada por uma área rural; depois, a“natureza”. No começo do século XX, ourbanismo modernista, a partir de suaconcepção de ordem universal, separa avida da cidade em funções, estabele-cendo zonas de usos exclusivos.

No mundo atual, tudo é cidade: paisa-gens e parques temáticos, indústrias esupermercados, estacionamentos eshoppings, campo, moradias e aeroportos,quadras de futebol com grama sintéticae praia. A realidade que nos cerca con-forma uma nova topografia urbana; ascidades planificadas das últimas décadasfundiram-se com as cidades antigas. Acidade colonizou a paisagem agrária,conferindo a tudo um sentido urbano.

TUDO É CIDADE

Para o homem contemporâneo, a cidadeé um domínio excitante e sedutor, ela lheapresenta as sensações dos seus dese-jos. Os meios de comunicação reforçamos ideais de bem estar que a tecnologiae as possibilidades de fácil desloca-mento oferecem. No entanto, a cidadeindefinida e desigual não se deixa cap-turar pela uniformização das imagens;ela está longe do nivelamento do desejo,através de valores estéticos padronizados.

A movimentação individual, permitidapelo acesso facilitado ao carro e à moto-cicleta, possibilita ao “homem-urbano”estar entre os ícones da cultura contem-porânea, apropriando-se deles. Ele sedesloca para o trabalho ou para o lazeratravés de auto-estradas com chama-tivos objetos/outdoors; atravessa pontesde onde observa e percebe a silhuetadas cidades: as fábricas, os shoppings eaeroportos, museus iluminados – seussímbolos culturais – em uma seqüênciade cinematográficas imagens, experi-mentando um sentido de escala e pro-porção em relação ao mundo, umarelação quase tátil, como quem passa a

mão sobre a topografia do mapa urbano.Cansado dos anúncios e das imitaçõesdo ”natural”, o homem-urbano sai ànova procura. Como um nômade, domi-na espaços extensos. A cidade é seudomínio, ali se geram seus instantes deliberdade, escolhe sua própria "tribo cul-tural" e realiza uma apropriação subje-tiva de caminhos e lugares.

Enormes densidades humanas multipli-cam-se produzindo novas ocupações enovas funções, “intranqüilizadoras expe-riências”. O “homem-urbano” reinventasua história em contato com a singulari-dade de seu habitat; protege-se nele,precisa dele e com ele amplia sua potên-cia integrando um ponto na rede. Omovimento com sua tribo possibilita asua existência; a existência das dife-rentes tribos amplia a força do públicoenquanto coletivo. Fluxos intensos con-somem as diferentes produções. Éimpensável o domínio de uma culturaexcludente. Cada ambiente construídotem sua rede produtora de corpos úni-cos que por sua vez recriam seu habitat.

O VALOR DOS VAZIOS URBANOS

O espaço construído e o espaço não-construído na atual cidade fazem parteda mesma trama urbanizada e devemser considerados com a mesma hierar-quia para poder preservar qualidades jáadquiridas. É necessário considerar osterrenos não ocupados como oásisurbanos em permanente evolução,devendo receber projetos com a menorocupação possível, levando em conta asimensas transformações sofridas pelourbanismo dos últimos anos e a incor-poração da tecnologia na cidade em per-manente mutação. Os vazios urbanossão valiosos estoques de terra que nãodevem ser ocupados com programasque serão rapidamente superados. Umexemplo deste tipo de ocupação foramos projetos de revitalização das áreasportuárias em algumas metrópoles, quedemonstraram ser custosos investimen-tos para as cidades sem gerar a vitali-

dade necessária para serem integradosao espaço coletivo, manifestando exclu-sivos interesses imobiliários e finan-ceiros com programas que certamenteas cidades terão dificuldades de absor-ver. É conveniente criar projetos nestasáreas de expansão que construamequipamentos urbanos efêmeros quepermitirão expansões futuras para dife-rentes usos.

Novos programas arquitetônicos eviários devem ser pensados para cons-truir destacamentos urbanos “além-cidades“, núcleos de concentração ner-vosa com alta capacidade de absorver osintermináveis fluxos de mercadorias,carros e transportes de longa distância.Estas acumulações arquitetônicas, comuma malha infra-estrutural de altíssimaeficiência (as grandes cidades se encon-tram com as possibilidades de expansãoda sua infra-estrutura quase esgotadas),operariam ao mesmo tempo comoobstáculos e facilitadoras. As auto-estradas chegam nestes terminais ondeestão disponíveis os meios para dis-tribuição até os bairros: metrôs, trens,vans, bondinhos – meios de transportesobreviventes de tempos mais coletivos.Tais destacamentos “além-cidades”estarão dotados de complexos comerci-ais, centros administrativos, serviços dedocumentação, cinemas, calçadões decomércio, hospedagem, sem esquecervideogames; enfim, lugares de per-manência efêmera. Elevar La Defénse àsua máxima potência.

Estes conjuntos para-urbanos, apesar desua brutalidade, talvez possam preser-var a ambiência consolidada das cidadestal qual as conhecemos hoje em dia.

José Humberto Bertarelli

Bueiro Concreto,de Leonardo Videla,

impressão digital sobre aço inox.,60cm x 45cm, 2005.

O HOMEM URBANO E A

PRESERVAÇÃ

O DA CIDADE

NOVAS MÁQUINAS URBANAS PARA PRESERVAR DIFERENTES TEMPOS.

NOVA TOPOGRAFIA FAZ COM QUE TUDO SEJA CIDADE: DE SHOPPING

CENTER A PARQUES TEMÁTICOS, OU AINDA DE MORADIAS E AEROPORTOS.

COMO PRODUZIR A CIDADE NUM MOMENTO DE TEMPO E ESPAÇO UNIFICADO?

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Ultimamente tem sido usual falar no“silêncio dos intelectuais”, sobretudoquando se é exigida uma posição arespeito dos rumos dos governos deesquerda e centro-esquerda. Em 2005,o tema atravessou a vida brasileira emotivou a polêmica na grandeimprensa (por ocasião de um semi-nário realizado à luz deste tema),quase sempre acompanhado de umaespécie de condenação em massa dospensadores. Este episódio parece-mebastante ilustrativo para refazermos apergunta: existe hoje um silêncio dosintelectuais?

Minha percepção inicial é de que há,sim, um silêncio dos intelectuais. Oacontecimento de 2005 foi uma con-tundente demonstração. O que nãopôde ser dito, entretanto, é que aquiloque testemunhamos foi, na verdade, osilenciamento dos intelectuais, isto é,foi-lhes interditado em ato contínuo odireito de se pronunciarem einserirem na sociedade um debatevivenciado diante das perplexidadesdo mundo atual. Explico-me, tomandocomo referência o próprio desenvolvi-mento da “controvérsia”. Realizado oseminário, o seu conteúdo na grandeimprensa foi absolutamente distor-cido. A palestra da filósofa MarilenaChauí era publicada nos periódicosem trechos pré-selecionados, jádecodificados pela ótica das editoriasdos grandes jornais. Na época, aliás, otema, que começara sendo veiculadonos cadernos culturais, foi logo trans-ferido, de modo indiscutivelmentepejorativo, para a seção de política.Confesso jamais ter tido oportu-nidade de conhecer o teor de suaconferência, mas tinha absolutacerteza de que não se tratava demodo algum daquilo impresso nosjornais, uma vez que não via senãofrases soltas, desconexas, sobre asquais qualquer juízo minimamentesério mostrava-se inviável.

Mais grave, contudo, foi o processo dedesqualificação logo em seguidaimplantado. Os comentadores – ironi-

OS INTELECTUAIS

SILENCIADOSGuilherme Bueno

GLOBAL 46 Maquinações

Em 2005,

intelectuais brasileiros

foram vítimas de

um movimento

de desqualificação

com um objetivo claro:

calar a voz

do questionamento

Ainda não,de Marcos Chaves, 2007.

C-Print, 150 X 125cm.

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Maquinações 47 GLOBAL

camente novamente no caderno depolítica – eram um ex-presidente decentro-direita e seu então líder de par-tido no senado. Ambos diziam, commaior ou menor grosseria, que a pro-fessora Chauí poderia entender“muito de Spinoza, mas nada depolítica”, que “não deveria vir apúblico falar besteiras”. Mesmo quenão o tenham declarado explicita-mente, pouco faltou para sugeriremque ela deveria se calar. Repito: maisdo que grosseria, mais do quearrogância, prepotência ou desprezo,tal atitude era a expressão cabal datruculência. O mundo endógeno dos“sabedores” não admite ser afrontadopelo dos sábios. Refletir sobre políticasem pertencer à casta dos seus proprie-tários era uma ofensa de tal magni-tude que só podia ser respondida como impedimento. Algo como “se vocênão exerce um cargo não tem direito ase pronunciar politicamente”.

Negação do direito político

Se a rarefação do direito de defesa eraindicativo de como se produzia a“mudez dos pensadores de esquer-da”, o método de expurgo continhauma perversão sub-reptícia mais pro-funda. Em uma linha: a contestaçãocontra a opinião de Chauí negava algobásico a qualquer cidadão, o direitopolítico. Uma tecnocracia queria fazê-la incapaz de argüir o sistema, seja elequal fosse. É simples perceber a inver-são produzida: a política passa então aser o objeto exclusivo de personagensque, em sua competência, interditama todo e qualquer indivíduo um direitoconstituído pelo menos desde 1776 ou1789. Dito de outro modo, os intelec-tuais deixavam repentinamente de sercapazes de exercer sua função: pior doque um estorvo, eles representavamum desperdício. Eles deveriam serignorados, não mereceriam mais serouvidos. Os intelectuais foram, maisuma vez, silenciados.

De repente, pensar tornou-se algodesprezível, abjeto. Ser intelectual, no

melhor dos casos, é algo digno depiedade, é ser náufrago e ingênuo nooceano de transações superiores.Mas, é preciso chamá-lo de omisso,“inventar” sua abstenção, transformara reflexão em obsolescência. Eis a“espontaneidade” deste novo e louva-do pragmatismo profissional, que nãoadmite incertezas e cuja relatividadede escrúpulos passa a ser denomi-nada “realidade humana imutável”,da qual só podemos participar comoobservadores quietos, e não comoindignados. A filósofa, como eu ouvocê, foi desautorizada a falar depolítica. Idéias não podem contestar omonolito da Realpolitk, um eficazeufemismo pelo qual todas as práticaspoderiam ser justificadas. Realpolitkera o escopo intelectual, belo nomepara as coisas feias, autoriza-se a fazero pior citando Bismark.

Como sempre,os intelectuais insistemem questionar o real e

as verdades pré-concebidas.Eles continuam sendo

o desagradável obstáculoao status quo e

ao “bom e perfeitofuncionamento das coisas”

Apenas repito o que é sabido, masque a grande mídia e certos setoresacham útil fazer-nos esquecer: o inte-lectual é o projeto, anteprojeto e anti-projeto político. Qualquer uma dastrês modalidades pode lhe caber,exceto a dócil passividade. Em ummundo em que se quer naturalizar apobreza, é estratégico apassivar o int-electual, abafar sua voz. A negaçãotácita e “pragmática” de seu protestomostra, ao contrário, o quanto os inte-lectuais ainda lutam por continuar elo-qüentes, loquazes. O que eles menosfazem é permanecer quietos. E, se esteocorre, pode inclusive indicar umapausa meditativa, a necessidade dojuízo aprofundado, algo que muitosdesejam ser expurgado em nome daeficácia e da urgência negocista.

Calar-se vesus ser calado

É relativamente simples perceber adiferença entre calar-se e ser calado.De fato, junto com nossas incertezasvivemos uma urgência, eu diria quese trata precisamente da manutençãode nosso espaço de existência.Intelectuais não querem idéiasprontas nem padrinhos que penseme decidam por eles. As folhas denossa grande imprensa e seu séqüitosão paredes bem construídas e àprova de som, o referendo de temposque não querem ser mudados jamaise que, dispensando métodos “anti-estéticos”, em sua féerica sobriedadepublicitária, clean, reciclam velhosprogramas. Ser reacionário transfor-mou-se em mérito. Silenciar os inte-lectuais, malgrado os próprios, éestabelecer um conjunto de priori-dades bem conhecidas, com outraroupagem. É compactuar com o sub-desenvolvimento (posso dizer mesmoo anti-desenvolvimento) e a estraté-gica delegação de autoridade aosoutros. De repente, o livre pensamen-to precisou ser denunciado comomoeda velha, fora de moda, e semdestino: uma afetação, quase umtranstorno.

No jargão de clichês do marketing,exige-se que a antiga máxima atribuí-da a Voltaire que outrora se aprendiana escola (Je ne suis pas d'accordavec ce que vous dîtes, mais je mebattrai pour que vous ayez le droit dele dire) seja descontinuada. Os inte-lectuais são amordaçados porquenão admitem renunciar à suacondição de sujeitos livres, porquenão aceitam matar. Como sempre,eles insistem em questionar o real eas verdades pré-concebidas, repe-tidas, eles continuam sendo odesagradável obstáculo ao status quoe ao “bom e perfeito funcionamentodas coisas”. Ainda bem.

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GLOBAL 48 Maquinações

Pensar uma ocupação sonora radiofônica na rua é pensar nosentido do espaço de fora, daquilo que não é privado e simpúblico. Este é um aspecto desse trabalho, essa passagem doespaço privado, seja ele interno ou mesmo do atelier, para umespaço onde as pessoas lidam com objetos comuns, mobi-liários urbanos, veículos, sinais.

Por ser um espaço muito diferente do cubo branco, ambienteesteticamente neutro em uma galeria ou museu tradicionais, arua possui uma outra dinâmica e isso pressupõe outra atitude,onde não se trata de transferir o trabalho do atelier ou da gale-ria para a rua, mas de pensar toda a ação e a transmissãosonora especificamente para o ambiente, estabelecendo umjogo semântico com o espaço físico onde essa ação vai existir.

A transmissão radiofônica e a performance que ocorre noestúdio compõem uma ação muito diferente do antigo métierartístico por não possuir um suporte permanente e dependerde registros fotográficos e sonoros. Embora fuja de ser umproduto, o trabalho quase sempre é visto e acessado por setornar produto no formato de registro.

A parte que me interessa nesse espaço está no ar. A comuni-cação nesse meio também deveria ser pública, assim como oar que respiramos, que é um bem natural, e não pode ser pri-vatizado. O ar deveria ser um lugar como a rua, um espaço deafetos, onde as pessoas se encontram, mas as concessõespolíticas da administração pública determinam quem utilizaesse espaço e isso significa padrões que tendem a uniformizaro rádio, que fazem que esse meio permaneça limitado a umeterno monólogo ao invés do diálogo que ele possibilita.Ouvimos o rádio como uma voz que nos fala, mas nessemesmo lugar podem haver várias vozes.

Com as concessões vêm os formatos que interessam aosmonopólios, formatos que comunicam imediatamente, deprimeira. Feitos para a massa. Como arte é sempre uma

Arte no Ar Romano

proposição, colocada nesse imediatismo fica deslocada,porque ali a coisa não foi resolvida de primeira, precisa quevocê coloque algo mais, precisa de você.

Diferente de uma propaganda imediata, a transmissão derádio pode construir lugares, pontos de encontro, restituindoem parte esse meio como espaço de afeto e ação; as pessoas,ao entrarem em contato com o rádio, ao transmitirem suas"vozes", se emocionam pela distância que ele alcança fisica-mente, e sempre se lembram de quando ouviam rádio. É certoque todos tem alguma coisa para dizer no rádio.

Cada meio que surge traz com ele características que são pró-prias e que podem ser utilizadas para a comunicação, quepropiciam formas diferentes de falar e de ouvir. Devemos levarao máximo os limites das mídias como ferramentas de comu-nicação, incentivando o surgimento de linguagens que ren-ovem a forma de utilizá-las e estimulem a produção de subje-tividade. Padrões e concessões não podem ser os instrumen-tos reguladores da criação nesses meios. A educação e a leg-islação precisam mudar, e pra isso é preciso aprender a ouviroutras formas de fazer rádio.

Para mudar isso, temos de formar produtores de rádio e nãoconsumidores de tecnologia, buscar uma população defalantes tão grande como a de ouvintes. Isso é efetivamenteapropriar -se da tecnologia. Essa também é uma idéia de for-mação de público para a arte consistente.

Meu trabalho com a rádio aberta consiste em propor esseespaço imantado no meio radiofônico, dividindo com todos aspossibilidades dessa tecnologia; consiste em mostrar que eleacontece dentro, fora de nós e "no ar", ocupando provisioria-mente a massa arquitetônica muda e permanente da cidade,com a paisagem sonora das linguagens que podemos gerar.

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